Estruturas de sentimento que emergem, dramaturgias que precipitam

July 21, 2017 | Autor: Nayara Brito | Categoria: Dramaturgy, Postmodernism, Structures of Feeling
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Este livro é fundamental para quem quer entender mais a fundo o pensamento de Williams, sua posição crítica em relação ao marxismo e aquilo a que ele chama de materialismo cultural. Ver referência completa ao final do trabalho.
Williams percebe, em cada processo cultural, a existência de elementos a que chama de dominantes, residuais e emergentes. No contexto que citamos aqui, para que se entenda brevemente, a estrutura dominante (ou hegemônica) da sociedade era a cultura burguesa e, como parte dela, o drama burguês enquanto gênero dominante no teatro. Acontece que, num processo cultural, podemos encontrar elementos residuais, quer dizer, que foram formados num período passado, mas que ainda atuam efetivamente no presente, de forma alternativa ou incorporada ao dominante. E podemos encontrar, por último, elementos emergentes, que indicariam a formação de novos significados, valores e tipos de relação surgindo a partir de uma transformação dentro da cultura dominante. (Cf.: Marxismo e literatura, p. 124-129).
Não que um dia isso tenha de fato acontecido na história do teatro. Luiz Fernando Ramos, no prefácio citado, chama atenção para isso, mas justifica a posição de Williams dizendo tratar-se da criação de uma "grande conceitual, em que por contraste fosse possível analisar o fenômeno que se manifestava contemporaneamente a ele [Williams], em que os dramaturgos cada vez mais prescindiam de uma escritura cênica para realizar seus projetos." (2010, p. 14). Assim, a convenção ou padrão dramático que Williams relaciona com a estrutura de sentimento da época de Tchékhov/Stanislavski é a que ele chama de "comportamento", em que o dramaturgo não indica claramente a ação a ser mostrada em cena. Da Antiguidade, cujo padrão seria a "fala encenada", passando pelo teatro medieval ("encenação visual"), seguindo por Ibsen ("atividade"), a simultaneidade entre fala e ação vai perdendo cada vez mais essa sintonia até chegar à separação consumada entre elas na convenção do "comportamento". Para um comentário mais desenvolvido a esse respeito, ler o prefácio de Drama em cena (Williams, 2010).
Jean-Pierre Sarrazac é o principal pesquisador vivo das poéticas do drama moderno e contemporâneo. Para ele, a autonomia que a cena contemporânea ganhou em relação ao domínio do texto dramático foi benéfica tanto para um quanto para o outro, pois deu liberdade também para a dramaturgia experimentar formas até então impensáveis pelas condições impostas por sua relação com a cena. Sugerimos a leitura do artigo A Reprise (resposta ao pós-dramático), publicado pela revista Questão de crítica, v. 3, n. 19, março de 2010.
É interessante notar como algumas obras da dramaturgia contemporânea tem feito um uso muito particular e inédito da rubrica, incorporando-a aos trechos convencionalmente destinados a serem falas pelos atores, funcionando, muitas vezes, como o meio por onde o autor pode se expressar mais diretamente e se comunicar com o público. Essas modificações, esse hibridismo no interior da obra dramatúrgica dá a ela um outro tipo de performatividade, que não aquela do drama cerrado. É o caso de textos como Clansed, de Sarah Kane, ou Por Elise, de Grace Passô. Outras considerações sobre a rubrica você encontra em: Luiz Fernando Ramos, A rubrica como literatura da teatralidade: modelos textuais & poéticas da cena. São Paulo: Revista Sala Preta, v. 1, 2001.
Alvim cita o livro de Harold Bloom, Shakespeare: a Invenção do Humano, para a sua argumentação. Ver mais comentários na entrevista concedida à revista Urdimento, n. 18, 2012, p. 165.
Condensados no livro Dramáticas do transumano e outros escritos seguidos de Pinokio (7Letras, 2012).
Algumas ressalvas são imprescindíveis a partir desta afirmação. Quando dizemos que o tipo de encenação que Alvim constrói exige um trabalho vocal mais elaborado que o trabalho físico-corporal dos atores, absolutamente não ignoramos que a voz faz, sim, parte do corpo, sendo produzida por uma série de componentes fisiológicos e anatômicos, que precisam também de exercícios físicos específicos. Por outro lado, a quase completa imobilidade em que os atores permanecem (veja link na nota 11), em geral, ao longo de suas encenações (assistimos somente ao Peep Classic Ésquilo, mas, segundo a crítica, o tipo de atuação dos atores da Club Noir, companhia de Alvim, é semelhante em todas as suas montagens) nos sugere essa valorização do trabalho vocal, muito embora tal imobilidade também possa exigir um esforço físico tão intenso quanto o de uma sequência de ações físicas, por exemplo, como entendidas por Stanislavski.
A experiência de apreensão da dramaturgia alviniana mediada pela encenação rende uma longa discussão, que não cabe nem é o propósito aqui. Mas o leitor pode encontrar comentários bastante interessantes e teoricamente bem articulados no texto Roberto Alvim e o futuro do drama, uma crítica do espetáculo Peep Classic Ésquilo escrita por Patrick Pessoa e publicada na revista eletrônica Questão de crítica. Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/2013/08/roberto-alvim-e-o-futuro-do-drama/. Último acesso: 04/09/14.
ESTRUTURAS DE SENTIMENTO QUE EMERGEM,
DRAMATURGIAS QUE PRECIPITAM
Nayara Macedo Barbosa de Brito
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
[email protected]

Pensar a criação artística como uma atividade humana de produção cultural relacionada às condições históricas e materiais de seu contexto torna insuficientes as análises formalistas das artes. Suprir essa insuficiência analítica é uma das contribuições que a noção de estrutura de sentimento, elaborada por Raymond Williams, buscar realizar. Apresentamos o conceito de Williams e propomos um exercício de análise formal-conteudística de Pinokio, do dramaturgo Roberto Alvim para, então, trabalharmos sobre a hipótese de Frederic Jameson de que o pós-modernismo seria a nova estrutura de sentimento.

Palavras-chave: Estrutura de sentimento. Dramaturgia. Pós-modernismo.


O conceito que ora apresentamos é uma das chaves de uma pesquisa de mestrado que vem sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS e que se intitula, até o momento, Estrutura e sentimento na dramaturgia brasileira contemporânea: as perspectivas de Fernando Bonassi, Newton Moreno e Roberto Alvim. Esse conceito, a saber, o de estrutura de sentimento, é fundamental para praticamente toda a obra de seu autor, o teórico britânico Raymond Williams, pois é com ele que consegue elaborar um novo critério de análise da cultura e das formas artísticas que leva em conta a sua historicidade e a relação material de suas manifestações.
O termo surge inicialmente em seus estudos sobre o drama (em Preface to film (1954) e depois em Drama from Ibsen to Brecht (1968)) com o intuito de resolver um problema analítico que fizesse entender a prevalência de dadas convenções cinematográficas em determinados períodos históricos, fato que não se explicava pelas análises formalistas, então em voga. A existência de traços comuns em um conjunto de obras de um mesmo período era o indicativo de que as estruturas que elas apresentavam não se formavam autonomamente ou por processos internos a elas. Essas estruturas eram – e são – respostas elaboradas em uma linguagem artística específica à experiência histórica de seus criadores. Com isso, Williams descreve e, por esta nova metodologia de análise, demonstra a relação íntima entre as obras artísticas e o seu contexto histórico, social e material de produção, o que gera uma mudança do status das artes, tomadas pela crítica marxista como uma atividade secundária da vida humana, assim como todas as atividades ligadas à área da superestrutura do modelo de base-superestrutura. A nova perspectiva que Williams abre a partir deste modelo, e que chama de materialismo cultural, coloca as práticas artísticas e de produção simbólica das sociedades num lugar de paridade com as demais atividades de produção humana. Para ele, a produção cultural e artística não reflete a realidade material e social na qual está inserida, mas, trabalhando também ela com elementos materiais condicionados, é formada e formante das relações históricas em que está imbricada.
As artes não estariam, portanto, separadas da vida social, em um nível superior (metafísico) em relação a esta, como o modelo marxista fazia crer. De modo que se a separação entre os domínios artístico e social é negada, o modelo de análise das artes pautado unicamente pelos seus referentes formais, estéticos e de estilo não dá mais conta da totalidade da obra: falta, justamente, pensar essas formas em relação ou como resposta a determinada conjuntura histórica.
A ideia de estrutura de sentimento está relacionada ao fato de que as convenções formais das linguagens artísticas vão sendo criadas e transformadas pela relação que articulam com a realidade social. A expressão encontra uma explicação mais objetiva em Drama from Ibsen to Brecht, mas não é, e nem pode, por sua natureza, ser colocada de maneira simplista. Os vários teóricos que se debruçaram sobre ela posteriormente clarearam um pouco o seu entendimento. Para Cora Kaplan, citada por Maria Elisa Cevasco no livro Para ler Raymond Williams, o termo designa "o sentimento vivido de um tempo, suas histórias dinâmicas e efêmeras, que contêm e revisam [...] contradições" (s/d, p. 231 apud CEVASCO, 2001, p. 151); para Luiz Fernando Ramos, que prefacia a edição brasileira de Drama em cena, estrutura de sentimento diz respeito a "modos de sentir de uma determinada época" (2010, p. 8); para Betina Bischof, que traduziu a edição brasileira de Tragédia moderna, um "conteúdo de experiência e de pensamento [...] histórico em sua natureza" (2011, p. 36).
Experiência e pensamento seriam, inclusive, segundo o próprio Williams, outras palavras que poderiam designar o que ele quer dizer. Mas aponta ressalvas ao seu uso, por certos sentidos que uma e outra carregam e que poderiam resultar numa interpretação equivocada daquilo que ele está tentando demonstrar. Experiência, para ele, seria a "melhor palavra, a mais ampla, mas [que, contudo, possui] a dificuldade de que um dos seus sentidos tem o tempo verbal do passado que é o obstáculo mais importante ao reconhecimento da área da experiência social que está sendo definida." (WILLIAMS, 1979, p. 134). Pensamento, por sua vez, remeteria a formas fixas, estáticas, já definidas e bem compreendidas, sendo justamente o contrário daquilo que ele está tentando demonstrar com o novo termo.
Os argumentos que Williams dá nos ajudam a compreender o sentido que ele busca, finalmente, com sentimento, "termo difícil", diz ainda, mas escolhido, "para ressaltar uma distinção dos conceitos mais formais de 'visão de mundo' ou 'ideologia'" (1979, p. 134). Williams buscou um termo que não remetesse ao passado nem a alguma ideia já definida porque o que queria designar era um processo ainda em curso, o processo de uma experiência social que corria no tempo presente. Eis a dificuldade de sua apreensão.
Nesse sentido, torna-se particularmente difícil distinguir a estrutura de sentimento quando ela ainda está sendo vivida e quando se está inserido nesse processo. É aí que a produção artística surge como instrumento fundamental para sua apreensão, uma vez que é nas obras de arte que tal processo primeiro encontra uma articulação formalizada. Segundo Williams, é nas artes que se encontram os primeiros indícios da formação de uma nova estrutura de sentimento (cf. WILLIAMS, 1983, p. 9-10).
As obras que Williams analisa em Drama from Ibsen to Brecht são basicamente as mesmas de que Peter Szondi se vale como argumento para a elaboração de sua Teoria do drama moderno e estão situadas entre o final do século XIX e o imediato pós-guerra. As obras desse período anunciariam a emergência de uma nova estrutura de sentimento, contemporânea aos teóricos citados e completamente distinta da do final do século anterior. As diferenças que se observavam estavam, por exemplo, na relação entre o texto e a cena, foco do estudo de Williams que se desenrola no posterior Drama em cena, e nas relações entre autor, texto e sociedade como articuladas na linguagem, no caso do estudo de Szondi.
Tomemos como exemplo a dramaturgia de Tchékhov e sua relação com a encenação, particularmente com a de Stanislavski. As peças do dramaturgo russo, a exemplo de A Gaivota (1895), se organizam segundo uma forma que não condiz com as convenções cênicas do drama burguês, que constituía, em meados do século XIX, a estrutura dominante do que se entendia por teatro. Sendo um dos principais representantes do teatro naturalista (primeira das vanguardas modernistas), o autor coloca em crise a relação entre o texto dramático e sua dimensão cênica na medida em que se consuma, no texto, a separação entre fala e ação: Tchékhov não escreve mais necessariamente a cena como ela será materializada pelo encenador. Seus textos apresentam lacunas de tal modo que se faz necessário a escritura de um outro texto, o cênico, cujo autor não é mais ele senão uma figura que começa a entrar em evidência: o encenador. Até Brecht, ponto onde terminam os estudos referidos de Williams e de Szondi (mas continuamente até o teatro contemporâneo, segundo os estudos de Jean-Pierre Sarrazac), o que se observou foi um movimento cada vez mais nítido de autonomia do texto em relação à cena e vice-versa. Esse movimento, repetimo-nos, não se deu por um processo interno às obras e seus autores, mas como resposta às mudanças na conjuntura histórica do período determinado nos estudos, entre cerca de 1880 e 1950. Williams percebe em Brecht e, segundo Luiz Fernando Ramos, intui em Beckett que essa nova conjuntura solicitava "uma forma em que a realização cênica se sobrepusesse à construção dramática literária" (2010, p. 14). Tal processo chega ao final do século XX na forma de criações cênicas que, por prescindir às vezes completamente do texto para se realizar, são organizadas teoricamente em torno de uma nova categoria, a do teatro pós-dramático, como pensada por Hans-Thies Lehmann em livro homônimo. Não nos interessa, contudo, as novas convenções cênicas que este teatro estabelece, mas as convenções dramáticas que ainda são estruturadas/reinventadas no nosso presente histórico, e que se inserem num conjunto da produção teatral contemporânea que não pode ser chamada efetivamente de pós-dramática.
Além da relação texto-cena que Williams examina, há também uma tensão que é interna à obra, à parte sua articulação cênica, e que é objeto da análise de Szondi. Uma tensão que se configura na forma de uma contradição: as peças de Tchékhov, novamente, apesar de se estruturarem segundo os princípios da forma dramática cerrada, com a ação (categoria aristotélica) sendo movida pelos diálogos entre os personagens, estes, de fato, não "conversam". As trocas aparentes entre suas falas revelam, para o leitor atento, uma proximidade com a forma monologada, embora ainda querendo conservar na antiga forma – na antiga convenção – um conteúdo social – ou aquilo que seria uma estrutura de sentimento – que já não cabe nela. A incapacidade de ouvir o outro, tão presente em suas peças e formalizada num "diálogo de surdos", seria uma marca e uma contradição sociais que encontraram resposta nessa contradição interna da obra.
Tal contradição é recorrente em um número expressivo de obras dramáticas da modernidade. Para Szondi, a inadequação entre forma e conteúdo aparece ainda nos trabalhos de Ibsen e Strindberg – citados também por Williams (1983) pela dificuldade que, com esses autores, começa a haver na relação entre literatura e teatro –, e Maeterlinck e Hauptmann. A emergência de conteúdos épicos, como a Revolução Industrial e as duas guerras mundiais que, embora não representadas diretamente nos textos, alteraram radicalmente as relações entre as pessoas e seus modos de vida e, consequentemente, a representação dessas relações e modos em cena, exigiram um tratamento diferenciado daquele dramático feito até então; exigiram a elaboração de uma ou de novas convenções que se acordasse com a estrutura de sentimento que emergia a partir daqueles eventos que marcaram a virada do século XX até Auschwitz. Apesar da resistência pela manutenção da antiga convenção, elementos épicos vieram implodir a forma dramática (segundo a tese szondiana) para dar conta dos novos conteúdos, o que resultou, eis o grande exemplo, no drama-épico de Brecht, que apesar de apresentar um modo novo de elaboração dramatúrgica, pela combinação dos gêneros épico e dramático, guarda, exatamente por esta combinação, estruturas residuais da antiga forma – embora já a partir daqui possamos falar em texto dramatúrgico ao invés de dramático, para destacar o afastamento das obras em relação à forma do drama absoluto que Szondi indica.
É com alguma clareza que conseguimos ver, hoje, o processo da construção de uma nova conjuntura histórico-social, logo, de uma nova estrutura de sentimento, e suas implicações nas convenções do drama/teatro modernos. Olhando para trás, vemos quase a totalidade e as contradições de um contexto e podemos observar como tal se formalizou nas obras de arte. O trabalho se complica, contudo, quando temos que fazer o caminho inverso para tentar apreender a nossa atual estrutura de sentimento contemporânea: olhar atentamente as obras que vem sendo produzidas e buscar elementos que sejam comuns a elas para, daí, ver o que dessa estrutura de sentimento emergente, em formação, encontra-se em solução nas obras. A hipótese de Frederic Jameson, segundo a qual o pós-modernismo seria a estrutura de sentimento de nossa época, pode nos ser útil em alguma medida. Para ele, ambos os termos teriam funções muito semelhantes, que seriam a de "coordenar novas formas de práticas e de hábitos sociais com as novas formas de produção e organizações econômicas postas em prática pela modificação no capitalismo [...] nos últimos anos." (apud CEVASCO, 2001, p. 151). Uma dessas práticas sociais é, justamente, o fazer artístico, que já apresenta características pós-modernas em sua forma de criação e nas estéticas produzidas. Entre os termos mais caros à arte desse movimento estão a desconstrução, a fragmentação, a colagem, a paródia, procedimentos que podemos identificar no texto que analisamos mais à frente.
Contudo, para dar conta desta empreitada não basta uma análise formalista das obras, pois, segundo Williams, sempre sobra "algo para o quê não há uma contraparte externa."; esta parte que a análise formalista não toca é, justamente, a estrutura de sentimento, que "só pode ser percebida pela experiência da própria obra de arte." (WILLIAMS, 2011, p. 37).
Surge aí uma questão: se o nosso objeto de análise é um texto dramatúrgico, há então duas formas de "experienciá-lo": a primeira é claramente pela leitura da obra; a segunda, através da sua materialização cênica. Acreditamos que esta última teria a capacidade de tornar latente esse elemento que se encontra no interior da obra dramatúrgica, pois, através das articulações com os demais elementos que compõem a cena – iluminação, presença física dos atores, sonoridade, movimentação –, o que seria a estrutura de sentimento interna à obra emergiria e, pela presença sentida entre atores e público muito mais do que pelos sentidos apreendidos pela narrativa do espetáculo, poderia ser, enfim, percebida.
Mas há uma questão interessante a se considerar na primeira possibilidade que indicamos de experienciar o texto dramatúrgico. Há em qualquer texto escrito para a cena, e até naqueles que a princípio não foram escritos para este destino, uma performatividade que lhe é inerente, que pode estar nas possíveis rubricas e indicações/sugestões cênicas ou mesmo na própria forma como ele se estrutura. Para os fins deste trabalho, vamos nos deter a esta possibilidade, buscando a performatividade inerente ao texto Pinokio (2012), do dramaturgo brasileiro Roberto Alvim, através de uma análise que tencione a relação entre a sua forma e o seu conteúdo, na tentativa de nos aproximar do que seria a estrutura de sentimento contemporânea apontada por esta obra específica.
Pinokio é, segundo o seu autor, o exemplo mais bem acabado daquilo a que Alvim tem chamado de dramáticas do transumano. Para ele, cada técnica de criação artística está relacionada ou diz respeito a uma determinada visão de mundo (donde podemos encontrar uma homologia com a relação que Williams estabelece entre convenção-estrutura de sentimento). O que ele propõe, então, com a criação de uma nova técnica – estrutura, arquitetura, modo de concepção – dramatúrgica é a produção de novas visões de mundo que superem as velhas noções sobre o homem que tiveram origem no Renascimento e que se arrastaram até o século XX, mas que, segundo o autor, não dizem mais respeito ao homem contemporâneo. Ele chama atenção para o modo como Shakespeare ("não um filósofo, não um cientista, mas um dramaturgo") conseguiu traduzir em sua obra o homem que surgia no Renascimento, e que viria a ser o sujeito moderno, definindo uma ideia muito específica do que seja o humano. Chama atenção, ainda, para a semelhança entre aquele momento da virada dos séculos XVI/XVII, em que o sujeito moderno se desenhava, e o nosso presente histórico, desse início de século XXI/terceiro milênio quando, mais uma vez, "estamos diante da oportunidade de invenção de outras possibilidades de experiênciação (sic) (o que eu chamo de transumano: outros modos de subjetivação, para além do homem).". E nos convida a esta invenção, à invenção de uma espécie "que poderá habitar o futuro de modo absolutamente distinto do modus operandi que utilizamos nos últimos 400 anos." (ALVIM, 2012, p. 165).
Alvim confirma, por estas colocações, a hipótese de Williams de que é nas obras de arte que primeiro se articula/formaliza aquilo que se percebe como novidade, como estruturas emergentes a partir da experiência social. E como, para além de refletir, as artes são também uma atividade de produção da realidade – Shakespeare, segundo Bloom (ver nota 6), não só refletiu o homem contemporâneo a ele em suas obras, mas inventou este homem.
Não queremos nos alongar demais aqui, mas só para que se entendam as mudanças operadas na forma dramática do século XVII para hoje e suas articulações com os respectivos contextos históricos, vale tecermos ainda alguns comentários sobre a obra shakespeariana.
O mundo de Shakespeare, e o humano que habita nele, é ainda um mundo que preza pela ordem e pelo equilíbrio, que é concebido por ideias totalizantes e unificadoras (as grandes narrativas características do modernismo), exigindo de seu sujeito uma postura centralizada. Se pensarmos na Ofélia de Hamlet (1601), que se vê levada à loucura e consequente suicídio após a morte do pai, que junto com seu irmão a dominava e oprimia em todos os aspectos, como a cultura patriarcal do pós-medievo garantia, e após a desilusão amorosa com Hamlet, vemos como a perda da centralidade, sustentada à força pelos personagens masculinos que a circundavam, tem um destino trágico.
A forma encontrada para representar esse tipo de drama/tragédia, com forte carga psicológica, foi o verso dramático, capaz de fazer dialogar os personagens em cena, não num sentido moderno, já que, como indica Williams, no "estilo da performance elisabetana [...] os atores encenam poesia dramática para um público em vez de representar comportamentos." (2010, p. 104). Eles não estão representando, mas apresentando o seu drama para um público, ainda que não rompendo com o plano da ficção, mas já, por um recurso épico, comunicando nos versos dramáticos as suas angústias diretamente para a plateia. As estratégias épicas utilizadas pelo autor inglês não eram, contudo, predominantes no drama daquele período, de cujas convenções, ainda pautadas pela Poética aristotélica, Shakespeare se distancia.
Mas tanto o drama convencional (no sentido de convenção que Williams estabelece (1983)) elisabetano quanto o shakespeariano, da mesma época, apresentam características que já não encontramos em boa parte da dramaturgia mais recente, ou ao menos nos autores mais consagrados, porque não correspondem à nossa atual estrutura de sentimento; essa dramaturgia se pauta, agora, por novas convenções dramáticas e, é claro, cênicas – convenções a que talvez possamos chamar pós-modernas. Como diz Rosângela Patriota (2006, p. 21), "se na tragédia do século 17 havia uma ordem e um equilíbrio a serem restaurados, a Europa do século 20 tornou-se sinônimo dos escombros que alguns identificaram como progresso.". É o caso do Hamlet que Heiner Müller recria em 1977 em Hamlet-máquina, valendo-se de um processo de desconstrução da forma dramática. O decoro e o luto público que, segundo Patriota, havia na peça de Shakespeare e que, pensado na relação com a forma, os versos dramáticos asseguravam é, em Müller, dessacralizado, profanado, "seja pelo coito do casal real sobre o caixão, seja pelos restos mortais consumidos pelos miseráveis." (2006, p. 21). Os versos são substituídos por vários fragmentos de narrativas, que constituem as falas de Hamlet, de Ofélia, e do "intérprete", contrariando por completo a estrutura dialógica do drama tradicional e, pela assumida do ator enquanto intérprete de um personagem, abrindo uma via mais direta de comunicação entre palco e plateia, antes impossibilitada pelo fechamento do universo fictício. O texto, agora sem dúvida ou dissimulação, é dirigido ao público.

OFÉLIA
(Enquanto dois homens com batas de médico a enrolam de baixo para cima na cadeira de rodas em faixas de gaze).
Aqui fala Electra. No coração das trevas. Sob o Sol da tortura. Para as metrópoles do mundo. Em nome das vítimas. Rejeito todo o sêmen que recebi. Transformo o leite dos meus peitos em veneno mortal. Renego o mundo que pari entre as minhas coxas. [...] (MÜLLER, 1987, p. 32 apud PATRIORA, 2006, p. 21)

INTÉRPRETE DE HAMLET
[...]
Arrombo a minha carne lacrada. Quero habitar as minhas veias, na medula dos meus ossos, no labirinto do meu crânio. Retiro-me para as minhas vísceras. Sento-me na minha merda, no meu sangue. N'algum lugar são rompidos ventres para que eu possa morar na minha merda. [...] (MÜLLER, 1987, p. 31 apud PATRIORA, 2006, p. 21)

E porque o texto, neste caso, é dirigido efetivamente para o público, não há trocas entre as falas ou entre os personagens/ator; estes estão isolados, separados por um ódio e um desprezo mútuos que se deixa ver nas falas, um desprezo em relação ao outro, ao mundo e ao próprio corpo. Essa é, pensamos, a estrutura de sentimento que emerge da dramaturgia mulleriana, e que se deixa ver pela estrutura e pelo discurso do texto, noutros termos, pela convenção dramática que ele estabelece, em que a ação mostrada em cena ocorre separada da fala enunciada.
A dramaturgia de Roberto Alvim segue por caminhos semelhantes aos de Müller, mas encara um processo de abstração da forma dramática ainda mais radical. Os desvios que opera nas categorias do drama aristotélico, como a fábula e o personagem – e mais ainda, os desvios que opera na própria língua portuguesa –, tem o intuito de revelar outra lógica de subjetividade humana e das questões do homem contemporâneo. A recriação que Alvim elabora, à semelhança do procedimento de Müller, é feita, dessa vez, não a partir de um clássico do teatro, mas da literatura infantil. O menino de madeira que queria se tornar humano, criado por Carlo Collodi em finais do século XIX, é ressignificado no texto de Alvim, que leva seu Pinokio por um caminho inverso ao do autor italiano. Em Alvim, o menino humano quer virar máquina (assim como o Hamlet mülleriano):

O GRILO FALANTE.

no princípio
um boneco

[...] (ALVIM, 2012, p. 111)

A MULHER VELHA.
só o que falta
é undar-se à máquina
quer ele unar tudo

urdir-me à máquina
ele disse
quero untir-me

[...] (p. 112)

O MENINO.

[...] com ele em você
neleemmim esta casa
[...]

escoam os restos de você detritos restos meus seus restos dele escoam pelos canos intestinos vísceras tubulações da casa o esgoto a água encanada saliva e suor e restos e detritos seu ventre
[...] (p. 114).

A semelhança com o Hamlet-máquina, pela remissão ao ventre (encontrado na fala citada de Ofélia) e às vísceras (na fala do Intérprete de Hamlet), fica evidente, assim como o processo simbiótico que o organismo do eu-ele-você, não identificável ou não definível enquanto um personagem construído como uma unidade, mas colocado ali apenas como um elemento em nome da qual fala O MENINO e que tem por única função esta, falar; a simbiose deste organismo, a princípio humano, já que composto por intestinos, saliva e suor, com uma estrutura maquinal, composta por tubulações, canos e detritos, dá origem a um sujeito que traz em si essa dupla condição, de homem e de máquina, talvez representativo daquilo a que Alvim vem chamando de transumano.
Diante disso, perguntamo-nos: a separação iniciada em Shakespeare e tornada mais evidente em Müller estaria levando o homem a transformar-se numa espécie maquinal, num processo que supera, inclusive, aquele demonstrado no Tempos modernos (1936) de Charles Chaplin, alterando o que seria a subjetividade humana? É este o homem pós-moderno? Seria esta a nossa atual estrutura de sentimento (ou ao menos uma parte constituinte desta)? Esta é, certamente, uma das respostas cri-ativas que o drama vem dando às questões colocadas pelo mundo contemporâneo.
Essa alteração da lógica subjetiva da modernidade é formalizada, na peça de Alvim, por uma mudança no modo como não só sua dramaturgia é organizada, mas como as palavras que a constroem são desorganizadas, exigindo por parte do leitor/espectador um novo modo de apreensão, condizente com a subjetividade sugerida do homem contemporâneo.
No trecho citado acima, por exemplo, A MULHER VELHA usa os verbos undar, unar, urdir e untir, inexistentes na língua portuguesa, mas cujos radicais nos lembram de verbos conhecidos nossos, como "unir" e "untar", e nos sentimos tentados a traduzir as palavras inventadas por sentidos que já conhecemos. Diante da liberdade dada ao espectador contemporâneo, esta será sempre uma possibilidade. Mas a intenção de Alvim, que a declara em seus textos teóricos, é provocar a criação de novos significados, até então inexistentes, a partir de significantes que também não existiam, e que talvez não vão existir fora da realidade do teatro, único espaço, diz o autor, onde nos é possível viver "outras e insuspeitadas experiências".
Há a possibilidade, também, de o espectador (neste caso, mais que o leitor, a não ser que este experimente uma leitura em voz alta, por exemplo) simplesmente abandonar a procura por um sentido naquelas velhas-novas palavras e no modo como elas estão (des)organizadas e abrir uma outra janela perceptiva, que apreenda, por exemplo, o ritmo com que cada enunciado é produzido, a musicalidade do texto verbalizado, o timbre da voz que o enuncia e, por fim, a sensação que estes elementos, materiais/presenciais muito mais do que lógico-linguísticos, provocam em quem os experiencia. O tipo de encenação que o próprio Alvim – que trabalha nesta função desde antes de dedicar-se à escrita dramatúrgica – constrói valoriza esta possibilidade de apreensão do texto, na medida em que exige de seus atores um trabalho vocal talvez muito mais elaborado do que o trabalho físico-corporal, pois é esta vocalidade que fica em evidência o tempo inteiro em suas encenações.
Dissemos mais acima que não iríamos nos ater, nos limites já curtos deste espaço, à recepção do texto a partir de sua materialização cênica, e sim pela leitura individual e provável performatividade nela contida. Mas este último parágrafo prova que é inevitável, em se tratando de dramaturgia, deixar de lado o que seria a intenção cênica desse processo; é inevitável imaginar as relações que a estrutura textual que temos em mãos, a saber, a dramaturgia escrita, pode tecer com os demais elementos que compõem uma encenação, ainda que não tenhamos acesso às montagens já existentes do material que está sendo trabalhado (no caso, a única montagem do Pinokio de que temos conhecimento é do próprio Alvim). Mas isto é trabalho para outra ocasião.
Ficamos, por agora, com estas reflexões iniciais – a serem desenvolvidas na dissertação referida no início – sobre um tipo de dramaturgia, expressa pelo trabalho de Roberto Alvim, que se distancia cada vez mais das categorias que compunham o drama tradicional, orientado pela Poética de Aristóteles, e que teria dado conta de traduzir as problemáticas do homem até pouco tempo. A nova dramaturgia que vem sendo elaborada, e que desponta a partir do pós-guerra, é diversa até perder de vista – não poderíamos reuni-la e determinar a forma como se estrutura hoje, embora o que seria uma poética pós-modernista das artes aponte muitas de suas características. O trabalho de Alvim mostra apenas uma das vertentes que a dramaturgia contemporânea seguiu, e segue, uma vertente que traz em si estruturas emergentes que indicam o que seria a estrutura de sentimento de nosso tempo.
A noção-chave de Williams nos ajuda a compreender as transformações por que atravessam as formas artísticas, e em específico a linguagem dramatúrgica; nos ajuda a compreender o movimento de influência mútua que ocorre entre as transformações sociais e o desenvolvimento das formas artísticas, esferas aparentemente autônomas, mas intimamente relacionadas.
Esperamos que as reflexões aqui apresentadas sirvam para o leitor pensar de que forma uma tal estrutura de sentimento – quer dizer, um dado contexto histórico, um dado modo de sentir e de pensar, uma dada experiência coletiva –, que talvez possamos denominar, como Jameson, de pós-modernismo, interfere não só na produção artística e simbólica de uma sociedade, mas em todos os campos que a formam, sendo parte de nossa vida mais ordinária.

REFERÊNCIAS

ALVIM, Roberto. Caminhos da dramaturgia brasileira contemporânea. Entrevista com Roberto Alvim. Revista Urdimento. Florianópolis, UDESC, n.18, 2012, p.163-7.
_______. Dramáticas do transumano e outros escritos seguidos de Pinokio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.
CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
JAMESON, Frederic. Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática, 1997.
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