Estudantes, Universidade e Teoria Crítica: A dialética de um enfrentamento

June 8, 2017 | Autor: Rodrigo Pinto | Categoria: Critical Theory
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Estudantes, Universidade e Teoria Crítica: a dialética de um enfrentamento Rodrigo Pinto Universidade de São Paulo

Nov.2014

Logo no irromper de minha experiência acadêmica, enquanto estudante de filosofia da Universidade de São Paulo, um professor pelo qual nutro uma admiração profícua revelou-me que toda verdadeira elaboração filosófica nasce de um acontecimento singular1. Tal escrito nasceu a partir de um desafio proposto por um professor de analisar uma carta dos estudantes de filosofia, entre os quais o autor deste texto está incluído, endereçada ao departamento de filosofia da Universidade de São Paulo, baseado-se no escritos dos teóricos da Escola de Frankfurt. De antemão, é necessário ressaltar que não é o objetivo deste artigo discutir a veracidade ou não dos elementos da carta, valendo-se apenas de uma análise analítica dos elementos presentes e articulando-os às formulações dos pensadores da Teoria Crítica. Para tal desígnio, a análise será realizada em dois momentos. No primeiro, será abordada a temática dos teóricos da Primeira Geração da Teoria Crítica para ressaltar como os movimentos estudantis, a partir de mudanças estruturais na sociedade, tornaram-se um dos mais importantes foco de contestação na sociedade presente. No segundo momento, será averiguada a carta dos estudantes a partir dos estudos da segunda geração da Escola de Frankfurt, em virtude de ser mais atual e abordar questões mais semelhantes àquelas tratadas pelo movimento estudantil no momento histórico presente onde os projetos de emancipação e contestação não são mais norteados pelos mesmos ideais de antes.

1) Primeira Geração da Teoria Crítica e a Mudança do Papel dos Estudantes Durante uma greve turbulenta, pela qual a Universidade de São Paulo atravessou em meados de 2014, os estudantes do Curso de Filosofia receberam uma proposta do departamento que propunha “aulas na primeira metade do tempo previsto das disciplinas, reservando-se a segunda metade para debates sobre a situação atual da Universidade”, tal como escrito no email assinado pelo Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho, chefe do Departamento de Filosofia, e encaminhado para os estudantes do curso. Antes de analisar propriamente os elementos da carta que os estudantes do Curso de Filosofia redigiram em resposta a proposta do Departamento, talvez seja producente analisar primeiramente a guinada da

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No caso, esse professor foi Vladimir Safatle. O curso em questão, no qual escutei tal pronunciamento, delineava o projeto Capitalismo e Esquizofrenia de Deleuze e Guattari.

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importância do papel a ser desempenhado pelos estudantes nos movimentos contestatórios à luz da leitura dos autores da Primeira Geração da Teoria Crítica e seus antecessores marxistas. Para entender a relevância da participação estudantil na práxis social é fundamental visualizar as transformações pelas quais passou o capitalismo na primeira metade do século XX e que terminarão por atomizar o papel dos estudantes. Inicialmente, vale dizer que os diagnósticos que os teóricos marxistas haviam formulado mostraram-se desacertados. Karl Marx, ainda no século XIX, acreditava que “o sistema de trabalho assalariado, a divisão do trabalho e a irracionalidade da competição capitalista levariam as relações de produção a impedir o desenvolvimento das forças produtivas, colocado em contradição com elas abrindo-se assim o período da revolução socialista” (TERRA, 2008). Semelhantemente, já no início do século XX, Lenin afirmaria que o capitalismo em sua fase imperialista já se encontraria no estado de decomposição que marcaria a transição para outro modo de produção, o socialismo. De forma um pouco mais acertada, no entanto ainda equivocada, Rosa Luxemburgo admitiria que as profundas contradições do capitalismo seriam superadas politicamente, sendo que uma rebelião proletária eclodiria antes e extinguiria o sistema capitalista antes que ele pudesse apaziguar as suas contradições. Portanto, ainda que Marx e Lenin acreditassem que o capitalismo inevitavelmente se aniquilaria por si só, diferentemente da previsão de Rosa Luxemburgo, todos os três conservavam a forte opinião de que o capitalismo estava próximo do fim e que o proletariado é que seria o sujeito de tal transformação e principal responsável pelo salto do capitalismo para o socialismo. Todavia, bem como analisou Friedrich Pollock, um processo burguês de reestruturação afastou a perspectiva de superação do capitalismo e tornou falsa a teoria do colapso já que “houve uma reorganização planificada da economia, mas não ocorreu a transição para o socialismo, o que seria impensável para a tradição marxista anterior” (RUGITSKY, 2008), pois eles imaginavam que a possibilidade de uma intervenção permanente do Estado para estabilizar e organizar o mercado levaria a um colapso da própria lógica de valorização do capital - o que não aconteceu. Na verdade, a simbiose entre o capitalismo monopolista e o Estado provou ter efeitos bastante diversos do imaginado: “Sob a forma totalitária do capitalismo de Estado, o Estado constitui um instrumento de um novo poder que resultou da união entre os interesses privados mais poderosos, os ocupantes dos altos escalões administrativos da indústria e da administração privada, os altos escalões da burocracia estatal (incluindo os militares) e as figuras de liderança da burocracia partidária vitoriosa. Qualquer pessoa que não pertença a esse grupo constitui objeto de dominação.” (POLLOCK, 1982)

Dentre as várias consequências de tal mudança de concepção do capitalismo, todas elas constituindo-se como um bloqueio para a realização de um projeto emancipatório, uma delas deve ser destacada por é fundamental para a análise que pretendemos realizar no presente trabalho: a existência de uma diferenciação social no interior do próprio proletariado. Um dos grandes elementos sob os quais Marx se apoiava para crer no triunfo da revolução era de que o enorme abismo que separava o polo de riqueza do polo da pobreza facilitaria a organização de uma ação unitária contra o capital. Todavia, as transformações pelo qual passou o

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capitalismo fez surgir uma diferenciação de classe dentro do próprio proletariado, isto é, uma espécie de “aristocracia operária”. Tal fato originou um choque até mesmo na concepção de consciência de classe de Lukács. Os primeiros filósofos da Teoria Crítica como Horkheimer, Adorno e Marcuse analisaram os efeitos nefastos e ideológicos que essa multiplicidade de classes, em oposição ao sistema binário marxista, e a elevação do padrão de vida da população causaram para realizar o diagnóstico de época: “A chamada igualação das distinções de classe revela sua função ideológica. Se o trabalhador e seu patrão assistem ao mesmo programa de televisão e visitam os mesmos pontos pitorescos, se a datilógrafa se apresenta tão atraentemente pintada quanto a filha do patrão, se o negro possui um Cadillac, se todos leem o mesmo jornal, essa assimilação não indica o desaparecimento de classes, mas a extensão com que as necessidades e satisfações servem à preservação do Estabelecimento é compartilhada pela população subjacente” (MARCUSE, 1973) Isso significava um bloqueio determinante no caminho para uma emancipação - entendendo emancipação como a construção de uma sociedade organizada de acordo com uma produção racionalizada que visaria suprir as necessidades e diminuir o tempo de trabalho de modo que o trabalho deixasse de ser a principal dimensão formadora de indivíduos, ou seja, os sujeitos não seriam mais definidos mediante sua relação com o trabalho, pois teriam a maior parte do tempo disponível para debruçar-se sobre a “arte da vida” e subjetivar-se a partir daí. O fato do progresso técnico da sociedade ter possibilitado uma melhoria das condições de vida e de trabalho, inclusive do proletariado, é um fator determinante para a perda do potencial revolucionário do proletariado. A ocorrência dessa hipótese, uma melhoria na qualidade de vida geral, era algo que Marx acreditava ser totalmente possível, em virtude de sua confiança nas possibilidades que o avanço técnico possibilitaria, porém jamais dentro de um sistema capitalista. Se antes, Marx confiava na adesão maciça da massa já que o “proletariado não têm nada a perder em uma revolução comunista, a não ser suas correntes”, com os ganhos, ainda que ínfimos, proporcionados pelo desenvolvimento do capitalismo, a adesão ficaria mais complicada. Entretanto, vale a pena destacar que essa elevação no padrão de vida não mudaria o caráter reificante do trabalho: “Nem a utilização dos controles políticos em vez de físicos (fome, dependência pessoal, força), nem a mudança no caráter do trabalho pesado, nem a assimilação das classes ocupacionais, nem a igualação da esfera do consumo consumam o fato de as decisões sobre a vida e a morte, sobre a segurança pessoal e nacional, serem tomadas em lugares sobre os quais os indivíduos não tem controle algum. Essa é a forma pura da servidão: existir como instrumento, como uma coisa.” (MARCUSE, 1973) Somado a isso, o caráter eminentemente tecnológico pelo qual a produção estava se organizando trazia consigo transformações que eufemizariam ainda mais a dominação, transformando-a em administração, o

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que as livrava da roupagem exploratória, que Marx acreditava ser fundamental para inflar no peito do empregado o furor revolucionário: “O novo mundo-do-trabalho tecnológico impõe um enfraquecimento da posição negativa da classe trabalhadora: esta não parece ser a contradição viva da sociedade estabelecida. Essa tendência é reforçada pelo efeito da organização tecnológica da produção sobre o outro lado envolvido: sobre a gerência e a direção. A dominação se transfigura em administração. Os patrões e proprietários capitalistas estão perdendo sua identidade como agentes responsáveis; estão assumindo a função de burocratas numa máquinas corporativa.” (MARCUSE, 1973) É possível concluir que os três principais representantes da Primeira Geração da Teoria Crítica Horkheimer, Adorno e Marcuse - irão conservar com um pensamento semelhante, onde os três irão contrariar aquilo que Marx diagnosticou ao afirmarem que a estrutura da forma de dominação da natureza que produziu o capitalismo industrial é fechada. Enquanto Marx entendeu que a forma da vida material predeterminava a forma da vida em geral e consequentemente as possibilidades de emancipação humana, os estudos feitos pelos teóricos da Escola de Frankfurt, mais de meio século depois, provou que o saber gerado pelo desenvolvimento técnico foi responsável pela dominação do outro, e não pelo discernimento. Afinal, a forma da técnica não é neutra e nem é capaz de gerar conhecimento social e cultural neutro. Diante dessa situação totalmente desfavorável a realização de um projeto emancipatório, onde a classe que antes detinha o potencial revolucionário tornou-se fatalmente dominada e integrada ao sistema “já que não tem as condições requeridas para criar as novas necessidades e escapar das necessidades repressivas, com o que os trabalhadores não mais representam a classe que levam em si a negação das necessidades existentes”, Marcuse, sem aceitar redimir-se, persevera e passa a buscar em outros agentes a força elementar para violar as regras do jogo e evidenciar o quão o jogo é trapaceado. Tais agentes não são os mesmos das teorias revolucionárias anteriores pois não encontram-se situados no cerne da desigualdade econômica como era o proletariado. “No plano social e político, o proletariado perde o papel de sujeito da revolução, já que foi em grande parte integrado nas sociedades capitalistas avançadas. Para continuar com o modelo da revolução, Marcuse tem de repensar a própria ciência e técnica e estar atento a forças que estão na periferia do sistema e, assim, são mais dificilmente integráveis.” (TERRA, 2008) Sendo assim, será nos estudantes que Marcuse passará a visualizar um forte potencial contestatório, capaz de estremecer os sólidos alicerces do sistema, pois “onde a resistência dos pobres sucumbiu, são os estudantes que lideram a luta”. (MARCUSE, 1972) “Na própria sociedade tardo-capitalista dos Estados Unidos, mas também na Europa, existem forças que se opõem ao capitalismo, forças que o negam, e, a esse respeito, não

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hesito de modo algum em citar novamente a oposição dos intelectuais e, particularmente, dos estudantes.” (MARCUSE, 1969) O pensamento de Marcuse provou não ser equivocado. Ainda que a sociedade não tenha passado por uma grande transformação, os estudantes exerceram um papel preponderante dentre os movimentos que ousaram desafiar a lógica dominadora do sistema na segunda metade do século XX. É possível identificar movimentos nos mais variados lugares que contaram com a participação fundamental nesse período: em Cuba, na Revolução de 1959; na França, nas revoltas de Maio de 68; no México, nas revoltas contra as Olimpíadas em 68; em Portugal, na Revolução dos Cravos de 1974; no Brasil, Argentina e Chile, nos grupos guerrilheiros que lutaram contra a ditadura militar; nos Estados Unidos, na luta pelos direitos civis dos negros. Dessa forma, em função do contexto histórico analisado pelos teóricos da Teoria Crítica, onde as possibilidades de emancipação e os seus agentes ativos foram gradualmente desaparecendo ao serem integrados no sistema desigual, fica claro o papel influente que os estudantes passaram a desempenhar para a realização de qualquer projeto que vise a construção de uma sociedade diferente e livre de exploração e dominação.

2) A Segunda Geração da Teoria Crítica e a Confiança no Potencial Emancipatório da Comunicação Marcuse seria o último da Teoria Crítica a rejeitar aliar um projeto emancipatório com um projeto democrático por não reconhecer um potencial transformador no Estado de Direito. A argumentação dos teóricos da chamada Segunda Geração da Teoria Crítica se desenvolveram no sentido de buscar no aprofundamento da democracia o viés emancipatório. Diferentemente das teorias marxistas tradicionais, os representantes dessa nova geração acreditavam que “o marxismo sempre padeceu de uma falta de transparência sobre seus princípios normativos, apesar de sempre colocar em perspectiva a emancipação humana. Essa obscuridade normativa teria tido consequências políticas graves, como uma relação puramente instrumental com a democracia e os direitos humanos”. (REPA, 2008) Paralelamente a essa mudança de abordagem dentro da Escola de Frankfurt, os movimentos estudantis no andamento para o final do século XX sofreram transformações de sua linha de ação. Depois de Maio de 68, os movimentos passaram por transformações conceptuais semelhantes às da Teoria Critica. Em outras palavras: os movimentos estudantis não se concentraram mais em construir um grupo revolucionário, juntamente ou não a um Partido, que buscasse alcançar a emancipação por meio da dissolução do Estado de Direito. As reivindicações estudantis se basearam em tentar pluralizar os elementos democráticos, através da ampliação do espaço público de modo que as contestações de participação pudessem ser atendidas. Nesse ponto, uma vez que identifico a problemática dos dos Estudantes de Filosofia atrelada às questões discutidas pelos teóricos da 2ª Geração da Escola de Frankfurt, abordarei componentes da carta dos

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estudantes. Mais uma vez, reitero que a seguinte análise não objetiva discutir a veracidade ou não do texto, limitando-se a relacionar seus termos aos conteúdos abordados no curso. A carta inicia-se com o trecho seguinte: “Nós, estudantes de Filosofia, reunidxs em Assembleia no dia 06.08, deliberamos pela não aceitação da proposta apresentada sobre “meias-aulas”. O termo “deliberação” foi utilizado para representar uma prática utilizada pelos estudantes de Filosofia para decidir sobre qual seria o posicionamento dos estudantes com relação a proposta já citada do Departamento. O termo deliberação, baseando-se em como Manin utilizar o termo, deve ser compreendido como um processo deliberativo onde os sujeitos solidificam suas posições a partir da discussão com os outros sujeitos. “A fonte de legitimidade não é a vontade predeterminada dos indivíduos, mas antes o processo de sua formação, ou seja, a própria deliberação. A liberdade do indivíduo consiste primeiramente em estar apto a chegar a uma decisão por meio e um processo de pesquisa e comparação entre várias soluções. Já que as decisões políticas são características impostas a todos, parece razoável buscar, como condição necessária para a legitimidade, a deliberação de todos ou, mais precisamente, o direito de todos em participar na deliberação. Precisamos, assim, modificar a conclusão fundamental de Rousseau, Sieyès, e Rawls: uma decisão legítima não representa a vontade de todos, mas resulta da deliberação de todos.” (MANIN, 2007) Ou seja, se é certo que os estudantes de Filosofia deliberaram tal como Manin prevê, o espaço da Assembléia foi um espaço onde coexistiram as mais diversas posições quanto a proposta do departamento, onde foram apresentadas as justificativas por ambas as partes que desejavam aceitar ou não a proposta. Somente após a exposição do conjunto de argumentos de cada grupo, é possível que a deliberação tenha sido realizada mediante a votação onde cada indivíduo presente na Assembléia teve direito a votar. Desse modo, o processo em questão contou com a dupla dimensão da deliberação: a individual, pois cada indivíduo, a partir de suas próprias razões, pesou os argumentos das diferentes opiniões e votou; e a coletiva, já que o processo discursivo e a formação de opinião foi realizado em conjunto. Já em outro trecho, os estudantes indicaram algumas justificativas relativas a situação da Universidade e seus problemas estruturais que foram determinantes para a opção de recusar a proposta: “Entendemos que o momento pelo qual a Universidade passa -- com arrocho salarial, corte de funcionárixs terceirizadxs e de bolsas, e a intransigência do CRUESP e especialmente do reitor Zago nas negociações -- impossibilita a continuação das atividades acadêmicas em qualquer grau de normalidade, mesmo que parcial, e que a própria greve é uma resposta a essa situação.” A seguinte passagem “a intransigência do CRUESP e especialmente do reitor Zago nas negociações” indica uma situação comunicativa mal sucedida devido a intransigência de uma das partes. Tais problemas na

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esfera comunicativa pode ser ser resultado da ação estratégica e instrumental interferindo na ação comunicativa. A ação comunicativa é definida como “um tipo de interação social em que o meio de coordenar os diversos objetivos das pessoas envolvidas é dado na forma de um acordo racional, do entendimento recíproco entre as partes, alcançado através da linguagem”, excluindo de sua forma as comunicações estratégicas e instrumentais, pois “na primeira, o sujeito lida não diretamente com outro sujeito, mas com as coisas”, “ao passo que, na segunda, o sujeito busca influenciar o outro sujeito para que este realize atos necessários para a obtenção do seu fim” (REPA, 2008). A partir desta ótica, a intransigência de um sujeito durante um diálogo pode ser uma consequência de uma pré-disposição dele para a obtenção de determinado fim formulado por ele anteriormente ao diálogo, de forma que o diálogo funcionasse, para ele, apenas como o meio para atingir o fim. Essa disposição impossibilita que a comunicação exista com um potencial de entendimento entre as partes, capaz de gerar uma situação em que o sistema dinheiro e poder não colonize sistematicamente o mundo da vida que se reproduz em sua dimensão simbólica por meio das ações comunicativas. Mais adiante, os estudantes citarão novamente questões relacionadas aos problemas da Universidade que fizeram emergir a situação de anomalia na qual ela se encontrava no momento: “… alertamos que se faz necessária uma profunda reformulação estatutária, que, democratizando as estruturas de tomada de decisão, com maior participação de professorxs doutorxs, trabalhadorxs e estudantes – e medidas que garantam o acesso e permanência dxs estudantes dos cursos …” A indagação referente a uma “profunda reformulação estatutária” e a democratização das “estruturas de tomada de decisão, com maior participação de professrxs, doutorxs” tem um vínculo com as teorias das americanas Nancy Fraser e Iris Young. A partir das críticas proferidas pelos estudantes, identifica-se aquilo que Nancy Fraser define como “injustiça simbólica”, a saber, aquela radicada “nos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação”, marcada pelo ocultamento, isto é, “ que torna-se invisível por efeito das práticas comunicativas, interpretativas e representacionais autorizadas da própria cultura”. O remédio para esse tipo de injustiça é alguma espécie de mudança cultural ou simbólica que envolve a revalorização das identidades desrespeitadas (FRASER, 2001) . No contexto da carta e da Universidade, um maior reconhecimento envolveria uma valorização da figura dos sujeitos especificados na carta, tornando-os participantes dos processos decisórios e deliberativos quanto aos rumos da Universidade. Ainda é possível identificar um outro fator: uma necessidade ainda maior de reconhecimento dos estudantes pobres, pois como argumentado na carta “seria inviável, pelo menos para xs estudantes mais pobres, manter mesmo meia-normalidade sem bandejão, biblioteca, sala pró-aluno e até papel higiênico nos banheiros”. Nesse ponto, apesar de que em virtude das reivindicações dos estudantes serem apenas restritas ao âmbito da Universidade não é possível falar sobre remédios redistributivos, nota-se aqui a relação com um elemento tocante à teoria de Nancy Fraser dos problemas distributivos da sociedade que geram tipos de

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desigualdade diferentes. No contexto da Universidade, ainda que apenas seja possível remédios de reconhecimento no âmbito da universidade, observa-se que em virtude de uma parcela dos estudantes sofrerem com problemas de caráter distributivo e econômico, os estudantes de Filosofia ressaltam na carta a necessidade de observância a esse fato ao realçar a falta de sensibilidade do Departamento ao propor a proposta sem atentar para isso. A questão da democratização das estruturas de tomada de decisão e maior participação dos sujeitos envolvidos também é algo pertinente aos escritos de Iris Young. Um reconhecimento maior dos “professorxs doutorxs, trabalhadorxs e estudantes", substanciado na aproximação deles do centro das decisões, traria aquilo que Iris Young chama de perspectiva, isto é, “a forma particular de determinado grupo, localizado em uma camada específica da estrutura social, ter a experiência ou ponto de vista particular acerca dos processo sociais” (YOUNG, 2000). Desse modo, a perspectiva dos “professorxs doutorxs, trabalhadorxs e estudantes” seria determinante no processo de deliberação dos altos escalões da Universidade. Fazendo um paralelo, ainda que longíquo, com a obra de Franz Neuman, poderia-se afirmar que assim como o jurista alemão assinalou que a entrada dos proletários no parlamento representou um ganho exorbitante para a democracia, pode-se dizer que a entrada dos “professorxs doutorxs, trabalhadorxs e estudantes" na instância decisória da Universidade poderia representar um aumento da efetividade da democracia dentro do seio da Usp. Em outro momento da carta, os alunos assinalam outro ponto que influiu no posicionamento adotado por eles: “impedir que o controverso déficit orçamentário da universidade seja jogado sobre as costas daquelxs que cotidianamente a garantem”. Identifica-se nesse caso um problema de prestação de contas, onde um problema de representação causou essa desconexão entre ambos que gera essa troca de acusações, tal como relatado na carta. Valendo-se novamente de conceitos de Iris Young, verifica-se que problemas com relação a representação podem surgir quando a representação não esteja em concordância com aquilo que a americana entende como a forma ideal de representar, isto é, a partir de “procedimentos e fóruns complementares por meio dos quais os cidadãos discutam entre si e com os representantes suas avaliações acerca das políticas que esses últimos apoiaram. Meios oficiais de prestação de contas distintos das campanhas eleitorais podem incluir conselhos de supervisão, comissões de estudo de implementação e audiência participativas periódicas que acompanham os processo de produção de políticas. Esferas públicas da sociedade civil podem aprofundar a responsabilização mediante questionamentos, elogios, críticas e avaliações independentes.” (YOUNG, 2000) Ou seja, um canal permanente de diálogo e prestação de contas entre o representante e os representados, onde o contato constante permitiria uma maior claridade no processo representativo, provavelmente faria com que tais problemas não evoluíssem até o ponto da intransparência na relação causar a efusão de acusações de ambas as partes. O desenvolvimento da carta dos estudantes demonstra uma um ponto positivo que novamente relacionase com aquilo tratado por praticamente todos após Habermas: a abertura de uma comunicação no seio da

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democracia para que dela surja os potenciais emancipatórios. Destaco abaixo os trechos que observo tal intuito por parte dos estudantes: “Também optamos, apesar da decisão de não aceitação da proposta, por não refazer o cadeiraço a princípio, pois trata-se de um método que usamos quando professorxs insistem em seguir seus cursos apesar de nossas decisões enquanto categoria, muitas vezes constrangendo (com ou sem intenção) estudantes que estariam interessados em debater a greve a voltar para as salas de aula. Nesse momento optamos pelo piquete de convencimento, esperando que xs professorxs que entendem a situação de crise na universidade não imponham um começo dos cursos à revelia da decisão estudantil.” “Gostaríamos de ressaltar a boa intenção da proposta, no sentido de que ela acena para maior abertura de diálogo entre estudantes e professorxs.” “… e exortamos xs professorxs dispostxs à mobilização também a assumir a tarefa de discutir com xs estudantes nos fóruns e espaços da greve, construindo debates e discussões.” “No entanto apreciamos a disposição contida na proposta, e esperamos que haja igual abertura para diálogo em momentos de calmaria. Também deliberamos em assembleia a proposta ao departamento de uma plenária não deliberativa entre os três setores da filosofia, em que as ideias possam aparecer com mais clareza”

Nota-se nesses trechos como os estudantes do curso, ainda que tenham recusado a proposta, mostraramse dispostos a manter o diálogo entre os diferentes setores. Essa perseverança no diálogo demonstra uma confiança naquilo que Habermas definiria como a dimensão emancipatória da ação comunicativa buscando uma unidade da razão na multiplicidade de suas vozes. Ademais, em virtude de uma aparente inexistência de canais profícuos de diálogo entre os setores, destaca-se o fato dos próprios estudantes terem deliberado pela realização de uma plenária entre os três setores, o que representa uma dimensão dual da política tal como analisou Jean Cohen e Andrew Arato. Tal associação realizada nessa plenária auto-organizada, livre dos processos de burocratização, rompendo assim com a unilateralidade desses mesmos processos. No todo, isso representa a democratização das formas existentes de exercício do poder, o que demonstra uma similaridade com a argumentação dos teóricos da Segunda Geração da Teoria Crítica que emergiram a “ideia de um espaço público democrático, dialógico e reflexivo capaz de servir de base para a ampliação da democracia” (AVRITZER, 1999). No entanto, a carta dos estudantes revela uma imprecisão no seguinte trecho: “legitimamos por completo o movimento grevista e suas ações, sejam elas: manifestações, piquetes ou quaisquer outras”. Seguindo a análise de Marcuse sobre a linguagem e o universo da locução, ele destacará o seguinte ao abordar a questão das abreviações: “OTAN, OTASE, ONU, AFL-CIO, AEC e também URSS, DDR, etc. A maioria dessas abreviaturas é perfeitamente razoável e está justificada pela extensão da designação.

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Contudo, se alguém pode aventurar ver em algumas delas uma “astúcia da Razão” - a abreviatura pode ajudar a reprimir perguntas indesejáveis. OTAN não sugere o que Organização do Tratado do Atlântico Norte diz, a saber, um tratado entre nações do Atlântico Norte - caso em que se poderia levantar questão sobre a participação da Grécia e da Turquia.” (MARCUSE, 1973) Ou seja, Marcuse argumenta que a utilização das siglas pode ser facilmente modelada para ocultar questões que o nome suscitaria se apresentado em sua totalidade, vide o caso em que ele citou da sigla da OTAN. Na carta dos estudantes, a utilização do termo “quaisquer outros” carrega em si um grau de indeterminação que possibilitaria, dessa forma, a legitimação de qualquer atividade por parte do movimento grevista. Expressões como essa possibilitam uma arbitrariedade no ato de julgar o seu significado, tornando possível faze-la significar qualquer coisa ao mesmo tempo que oculta um significado mais preciso e indesejado que subsistiria no caso de tal significado ser indicado pela própria palavra que se refere precisamente a ele e não através de um termo mais geral e impreciso como “quaisquer outras”. Portanto, ficou claro que a problemática das discussões universitárias são semelhantes às da sociedade presente como um todo envolvidas pelo véu da ampliação da democracia e maior participação dos agentes e minorias envolvidos. Desse modo, uma vez que a tarefa da Teoria Crítica é um estudo da sociedade presente, foi possível realizar uma análise da carta dos estudantes relacionando suas passagens com as ideias dos teóricos da Segunda Geração Escola de Frankfurt, sem antes deixar de abordar os teóricos da Primeira Geração a partir da discussão a transformação da importância do papel dos estudantes nos movimentos emancipatórios e contestatórios. Concluo o presente trabalho, afirmando que, embora partilhe algo da convicção nos anseios democratizantes das teorias comunicativas da Escola de Frankfurt (reconhecendo, ainda assim, os seus limites), acredito que o departamento de filosofia da Universidade de São Paulo utilizase de suas força institucional para assumir uma postura autoritária que inviabiliza o discurso e impele os estudantes a medidas radicais. Estes, por sua vez, entendem ser imprescindível combater o foco particular de poder situado internamente ao próprio curso de filosofia, pois, no limite, este foco articula-se com os demais focos de poder da sociedade, de modo que a inversão dessa estrutura de poder específica nutre relações com as demais lutas externas, igualmente imprescindíveis.

Bibliografia: AVRITZER, LEONARDO. Teoria Crítica e Teoria Democrática (Novos Estudos CEBRAP, Nº 53), 1999 FRASER, Nancy. 2001. “From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a ‘postsocialist’ age”. In: S. Seidman; J. Alexander. (orgs.). 2001 MANIN, BERNARD: Legitimidade e Deliberação Política (Democracia Deliberativa, Denilson Luis Werle (org.)) - São Paulo, SP: Editora Singular, 2007 MARCUSE, HEBERT. O Fim da Utopia. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1969 MARCUSE, HEBERT. Contra Revolução e Revolta. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1972

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MARCUSE, HEBERT. O Homem Unidimensional: Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1973 POLLOCK, FRIEDRICH. "State capitalism: its limits and possibilities". In: Arato, Andrew (ed.). The essential Frankfurt School reader. New York: Urizen Books, 1982. REPA, LUIZ: Jurgen Habermas e o Modelo Reconstrutivo de Teoria Critica (Curso Livre de Teoria Crítica, Marcos Nobre (org.) - Campinas, SP; Papirus, 2008 RUGITSKY, FERNANDO. Friedrich Pollock: Limites e Possibilidades (Curso Livre de Teoria Crítica, Marcos Nobre (org.) - Campinas, SP; Papirus, 2008 TERRA, RICARDO. Hebert Marcuse: Os Limites do Paradigma da Revlução: Ciência, Técnica e Movimentos Sociais(Curso Livre de Teoria Crítica, Marcos Nobre (org.) - Campinas, SP; Papirus, 2008 YOUNG, IRIS: Inclusion and Democracy - New York, Oxford, 2000

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