Estudo das telas seiscentistas da Capela de Santo António em Setúbal, com ‘status quaestionis’ sobre a pintura maneirista e barroca na cidade.

Share Embed


Descrição do Produto

Casas Religiosas de Setúbal e Azeitão COORDENAÇÃO CIENTÍFICA

albérico afonso costa | antónio cunha bento | inês gato de pinho | maria joão pereira coutinho

TEXTOS

albérico afonso costa ese, ips, ihc/fcsh/nova | ana lúcia barbosa ceris/ist/ul | andré afonso mnaa, cieba/fbaul, cdass | edite martins alberto cham-fcsh/nova & uaç | heitor baptista pato gal | inês gato de pinho ceris/ist/ul | isabel sousa de macedo cms, faul | joana rosário acervo, cdass | maria joão cândido spa-cms | maria joão pereira coutinho iha/fcsh/nova | sílvia ferreira iha/fcsh/nova | vítor serrão artis/iha/flul

DESIGN DE COMUNICAÇÃO

EDIÇÃO

IMPRESSÃO APOIOS INSTITUCIONAIS

ddlx - design comunicação lisboa

lasa - liga dos amigos de setúbal e azeitão | estuário

europress, lda diocese de setúbal | câmara municipal de setúbal | fundação buehler-brochaus | instituto politécnico de setúbal

PATROCINIOS

charneca alumínios | nuno mesquita pires união das freguesias de setúbal

Depósito Legal: 418202/16 ISBN: 978-972-8017-26-2

Os artigos, imagens e norma ortográfica utilizadas são da responsabilidade dos autores. Os editores não aceitam qualquer responsabilidade por qualquer uso indevido de texto e imagens.

2016

casas religiosas de setúbal e azeitão

ESTUDO DAS TELAS SEISCENTISTAS DA CAPELA DE SANTO ANTÓNIO EM SETúBAL, COM “STATUS QUAESTIONIS“ SOBRE A PINTURA MANEIRISTA E BARROCA NA CIDADE1 Vítor Serrão artis, instituto de história da arte faculdade de letras da universidade de lisboa

De pintura e pintores em Setúbal Apesar das perdas patrimoniais que Setúbal sofreu ao longo dos séculos, por causa de catástrofes naturais, de guerras e outras fases de conturbação e épocas de abandono, bem como incêndios, sismos, acções de roubo e iconoclastia, alterações de gosto ou, ainda, actos de incompetência das tutelas, aquilo que ainda subsiste no campo da arte da Pintura dos séculos XVI, XVII e XVII em igrejas e museus da antiga vila piscatória, elevada a cidade em 1860, é extremamente importante. Chegaram aos nossos dias muitas peças de alta qualidade artística, entre pinturas sobre tábua, sobre tela, a fresco e a têmpera, num acervo que justifica certamente um estudo mais aprofundado que o que nestas páginas se esboça. Existe a constatação de que aí existiu desde sempre um mercado, tanto sacro como aristocrático e burguês, que era culto, empreendedor, com recursos suficientes e sequaz de modelos estéticos o mais possível actualizados. O gosto do Renasci1 Este texto desenvolve os principais aspectos da comunicação apresentada pelo autor, em 28 de Novembro de 2014, ao colóquio Casas Religiosas em Setúbal e Azeitão.

205

mento teve forte ressonância na pintura setubalense da época de D. João III como, nas duas gerações que se seguiram, os modelos do Maneirismo italianizante e, um pouco mais tarde, os do tenebrismo proto-barroco, para já no declinar do século XVII se sentir a força do Barroco internacional e do classicismo proselitista. Destas fases restam em Setúbal importantes obras de pintura. Não admira, por tudo isso, que diversos pintores se radicassem em Setúbal, aí abrindo oficina e realizando trabalho para as igrejas, os conventos e a clientela privada. Embora muita dessa produção tenha desaparecido, ou não possa ser hoje identificada, as obras que remanescem permitem seguir com o devido destaque a evolução pictural estabelecida ao longo da Idade Moderna portuguesa. É especialmente notável o conjunto de painéis renascentistas, conservados no Museu de Setúbal, que constituíam o antigo e aparatoso retábulo-mor da igreja do Convento de Jesus, casa de freiras clarissas. Esse conjunto, formado por catorze grandiosas tábuas, com cenas da Vida de Maria, da Paixão de Cristo e da Ordem franciscana, saíram da Oficina Régia de Jorge Afonso, no terceiro decénio do século XVI, e contam-se entre as mais interessantes pinturas da fase manuelina-joanina que existem em Portugal 2. Trata-se de um políptico de valia artística excepcional, saído da chamada Oficina Régia de Lisboa, dirigida por mestre Jorge Afonso, e produzida certamente em regime de partilhada colaboração («parcerias»), por volta de 1520-1525, com alguns colaboradores de eleição. Mas no Museu de Setúbal expõe-se também três magníficas pinturas do pintor régio Gregório Lopes, que representam a Ascensão de Cristo, o Encontro de Sant’Ana e São Joaquim na Porta Dourada, e a Aparição de Cristo à Virgem, oriundas da Anunciada e que se situam nos anos de cerca de 1540, devendo ter sido executados quando Lopes, pintor régio de D. João III e cavaleiro da Ordem de Santiago de Espada, trabalhava para D. Jorge de Lencastre, o Grão-Mestre dos espatários. Coubera já a Gregório Lopes, um pouco antes de executar essas peças, pintar as tábuas do primitivo retábulo da igreja de São Julião, de que sobreviveu apenas o quadro Criação de Adão, hoje na sacristia do templo 3. Por essa mesma altura -- cerca de 1530 -- Gregório Lopes pintou também, por encomenda espatária, a famosa Nossa Senhora da Misericórdia da Santa Casa da Misericórdia de Sesimbra. Ainda da fase renascentista cabe referir o muito interessante quadro do Calvário, hoje na igreja de Nossa Senhora da Saúde (Recolhimento da Anunciada), pintura a óleo sobre madeira de carvalho do segundo quartel do século 2 A respeito deste excepcional conjunto pictórico, cf. Armando Vieira Santos, Primitivos Portugueses do Museu de Setúbal, Lisboa, Realizações Artis, 1955; Luís-Reis Santos, Jorge Afonso, Lisboa, Realizações Artis, 1966; José Custódio Vieira da Silva, Setúbal, Lisboa, Presença, 1990; Luís Alberto Casimiro, A Anunciação do Senhor na Pintura Quinhentista Portuguesa (1500-1550). Análise geométrica, iconográfica e significado iconológico, tese de doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, vol. II, pp. 1171-1197; e o recente estudo de Fernando António Baptista Pereira ed alii, O Retábulo do Convento de Jesus de Setúbal, Setúbal, 2014. 3 Vítor Serrão, «A Criação do Homem de Gregório Lopes», revista Oceanos, nº 4, Junho de 1990, pp. 76-81.

206

casas religiosas de setúbal e azeitão

XVI, carecida de restauro, que parece seguir o estilo sequencial da oficina de Garcia Fernandes4. Trata-se de uma composição inspirada em moldes ‘ferreirinescos’, que encontra paralelo, de facto, em muitas obras saídas da oficina do referido pintor, caso do antigo retábulo da Trindade (datado de 1537), hoje no Museu Nacional de Arte Antiga. Também em igrejas do Distrito abundam as boas pinturas quinhentistas, desde o Cabo Espichel (duas belíssimas peças do Mestre da Lourinhã) ao Montijo (um painel de Tomás Luís), a Alcochete (pinturas de Diogo Teixeira e sua oficina), a Sesimbra (tábuas de Giraldo de Prado e André Peres), à Moita (uma valiosa tábua maneirista não identificada), etc, ou seja, um vasto ‘corpus’ pictórico que seria moroso referenciar no âmbito desta comunicação, centrada tão-só no património pictórico existente na cidade. Durante os séculos XVI e XVII, segundo a documentação hoje conhecida, ou a partir do que se atesta pela presença de obra, residiram ou tiveram actividade na vila de Setúbal os seguintes pintores: Afonso Lopes, pintor de óleo e fresco, morador em Évora mas estante na cidade do Sado entre Fevereiro e Maio de 1521 quando veio pintar, por excepcional preço de 70.000 rs, o desaparecido tecto da igreja de São Julião, obra que atesta a sua competência e grau de especialização. Tratava-se, muito provavelmente, de um tecto afrescado, para o qual o próprio rei D. Manuel aprovou previamente a «mostra» da pintura a realizar 5. Devia tratar-se de uma pujante decoração manuelina, com arquitecturas fingidas, ornatos «de romano» e um impacto cenográfico idêntico ao que mostra, por exemplo, a decoração do tecto da Charola do Convento de Cristo de Tomar, único testemunho de pintura manuelina de cobertura que chegou aos nossos dias. O artista, que pode ser autor dos frescos da profanada ermida de Santo Aleixo, termo de Montemor-o-Novo, datados de 1531 6, vivia ainda em 1536, em Évora, segundo documento publicado por Túlio Espanca 7. Baltasar de Morais, pintor de modalidade desconhecida, que já vivia na vila de Setúbal em 1536 8, aparecendo envolvido mais tarde, em 1552, numa denúncia que fez ao tribunal da Inquisição de Lisboa contra uma pessoa acusada de práticas judaizantes 9. Nada mais se conhece a seu respeito, nem da sua actividade artística.

4 A tábua foi dada a conhecer por Fernando António Baptista Pereira no artigo «Sobre o manuelino de Setúbal», na revista Movimento Cultural, nº 6, 1989, pp. 31-39. 5 A.N.T.T., Lº 149 da Livraria, fls. 16 e segs., cit. in Vergílio Correia, Pintores Portugueses dos Séculos XV e XVI, Coimbra, 1928, pp. 54-55. 6 Luís Afonso e Vitor Serrão, «Os frescos da igreja de Santo Aleixo (1531), uma obra-prima do Renascimento português», revista Al-mansor, nº 4, 2ª série, 2005, pp. 149-166. 7 Cit. em Túlio Espanca, «Notas sobre pintores em Évora nos séculos XVI e XVII», A Cidade de Évora, nº 13-14, 1947. 8 A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, Lº 57 do Tribunal do Santo Ofício, Lº 3 das Denúncias da Inquisição, refª fl. 77 vº e segs. Informação inédita de Francisco Bilou, a quem agradecemos. 9 A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, Lº 57 do Tribunal do Santo Ofício, Lº 3 das Denúncias da Inquisição, refª fl. 77 vº e segs. Informação inédita de Francisco Bilou, a quem agradecemos.

207

André Gonçalves (1º), que a mando do rei Venturoso trabalhou com os pintores Garcia Fernandes, Cristóvão de Figueiredo e Gregório Lopes, sob direcção de Francisco Henriques, nas obras do tribunal da Relação de Lisboa e, cerca de 1518, no retábulo da igreja de São Gião 10, e que em 1526 se radicou em Setúbal, acaso por questões profissionais do seu ofício, tendo aí pintado um desaparecido retábulo para a igreja matriz de Sines, o qual não estava ainda concluído em 1544: «huum Retavollo pera a dita Igreja (de Sines) que Jorge furtado que Ds aja dera de empreytada a hum andre gllz pyntor mºr em setuball e que lhe erão já entreges vynte e hum mil rs (…) e que o dito Retavollo esta começado em setuvall» 11. É possível que sejam suas duas arcaizantes tábuas da Capela do Espírito Santo dos Mareantes de Sesimbra, de cerca de 1530 e muito inspiradas em modelos neerlandeses de Francisco Henriques, que fora director de empreitada de Gonçalves nas obras do tribunal da Relação. André da Guerra, pintor lisboeta que em 1552 e 1554 servia o cargo de examinador dos pintores 12, aparece-nos em 1564 em Setúbal a pintar e dourar «de romano», com trabalho em ouro burnido e pincel, o Sacrário da igreja de São Julião, por preço de 24.000 rs. Trata-se de peça infelizmente desaparecida 13. Sabemo-lo morador, também, em Almada. Giraldo Fernandes de Prado (c. 1530-1592), morador na vila de Almada, foi pintor, iluminador e calígrafo do Duque de Bragança D. Teodósio II. Deixou obra relevante no Paço de Vila Viçosa e na igreja da Misericórdia de Almada, cujo retábulo é da sua autoria, com colaboração do discípulo André Peres. Em 1571 iluminou esmeradamente, com caprichoso desenho maneirista, o Compromisso da Irmandade das Almas da igreja de São Julião de Setúbal, hoje na Biblioteca Municipal da cidade, onde o fólio iluminado com o Julgamento das Almas trai evidente influência miguelangelesca 14. Francisco Venegas (Sevilha, c. 1520-Lisboa, 1594?), artista notabilíssimo, integrado na Bella Maniera italianizante, que foi pintor régio de Filipe I de Portugal, trabalhou por volta de 1578 para Setúbal, fazendo um quadro para o desaparecido Mosteiro das domínicas de São João Baptista. Esse painel, que representava Santa Irene curando as feridas de São Sebastião, deveria ser idêntico a

10 A.N.T.T., Gaveta 20, maço 13, nº 73, refª em Francisco Marques de Sousa Viterbo, Noticia de alguns pintores portuguezes e de outros que, sendo estrangeiros, exerceram a sua arte em Portugal, 1ª série, Lisboa, 1903, pp. 85-87. 11 A.N.T.T., Ordens Militares, São Tiago, lº n º 190, fls. 86 vº e 87. 12 Vergílio Correia, op. cit., pp. 51-52. 13 Arquivo da Paróquia de São Julião de Setúbal, Livro das Detriminações do Santo Sacramento da egrejas de Sam Gião (1541-1635), fls. 1312 vº a 133. Inédito. 14 Sobre Giraldo Fernandes de Prado, cf. Vitor Serrão, «Maniera, peinture murale et calligraphie: Giraldo Fernandes de Prado (c. 1535-1592), un grand peintre, écrivain et noble enlumineur méconnu», in Out of the Stream: new perspectives in the study of Medieval and Early Modern mural painting (com coord. de Luís Afonso e Vitor Serrão), Manchester, 2007, pp. 116-140; idem, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança (1540-1640), edição da Fundação da Casa de Bragança, Lisboa, 2008 (refª ao Compromisso de Setúbal a pp. 56-68). O Compromisso de Setúbal foi descoberto por Rafael Moreira (1988) e considerado então como obra de Francisco de Holanda, mas os estilemas, o desenho da moldura, a figuração e o geometrismo das capitais apontam iniludivelmente para o que se conhece da obra de Giraldo Fernandes de Prado, a quem é hoje consensualmente tributado.

208

casas religiosas de setúbal e azeitão

outro que concebeu para o Mosteiro de São Vicente de Fora. Infelizmente, ambos os painéis desapareceram e deles só nos chegou um excelente desenho assinado (Gabinete de Desenhos do Museu Nacional de Arte Antiga, nº de invº 662)15, com indicação manuscrita na qual a encomenda setubalense é referenciada. Francisco António, morador na vila setubalense, onde surge referenciado em 1581 numa procuração notarial 16, mas estante na cidade de Évora em 1594, associado aí à operosa oficina fresquista de José de Escovar, com quem estaria a colaborar 17. Fernão Gomes (Albuquerque, 1548-Lisboa, 1612), célebre pintor régio de Filipe II de Portugal, que em início do século XVII, na sua qualidade de «pintor dos Mestrados das Ordens Militares», cargo para que fora designado em 1601, pintou um grande retábulo maneirista para a igreja de Santa Maria de Setúbal com o tema da Assunção da Virgem, painel que se desfez cerca de 1700, aquando da factura do actual retábulo barroco, e do qual restam apenas duas pranchas com sinuosas figuras de Apóstolos e de Anjos Músicos, conservadas na sacristia da igreja de Santa Maria. Essas pranchas de sólida pintura maneirista, com personagens alongadas e formas curvilíneas, num pronunciado irrealismo que define os gostos do pintor, são típicas do estilo desse grande artista régio, a quem coube retratar o poeta Luís de Camões, e que era muito considerado ao tempo pelo seu «bravo talento» 18. Fernão Gomes foi, ademais, um dos fundadores da Irmandade de São Lucas, primeira corporação dos pintores lisboetas, uma espécie de Academia de Desenho. Simão Rodrigues (c. 1560-1629) e Domingos Vieira Serrão (c. 1570-1632), operosos pintores da Contra-Maniera nacional, o primeiro de Alcácer do Sal mas com oficina em Lisboa, o segundo de Tomar, trabalharam frequentemente em regime de ‘parceria’ 19. Nesse âmbito existe uma obra em Setúbal que lhes deve ser tributada, a grande Última Ceia e as cinco pinturinhas do Sacrário rotativo da Capela dos Salemas, peças tardo-maneiristas do início do século XVII que se admiram no transepto da igreja de Santa Maria. Também pode ser fruto desta «parceria» a pintura do tecto da Casa do Capítulo do Convento de Jesus, recentemente beneficiado. Luís Álvares de Andrade, o ‘Pintor Santo’ (fal. 1631), pintor lisboeta muito considerado como difusor das Alminhas do Purgatório e que teve o título de «pintor de têmpera de Sua Magestade», indicador das modalidades preferenciais em que laborava, veio a Setúbal em 1617 para pintar, dourar e estofar a parte 15 Catálogo da exposição A Pintura Maneirista em Portugal. Arte no Tempo de Camões, CCB, 1995, p. 342-343. 16 Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Setúbal, Lº 2, fls. 72 e 73. Inédito. 17 Arquivo Distrital de Évora, Notas do Tabelião Domingos Pires, Lº 229, fls. 70 vº a 72; refª em Vítor Serrão, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1983, pp. 195 e 367. 18 Sobre o artista, cf. Dagoberto L. Mark, Fernão Gomes, Um pintor do tempo de Camões. A pintura maneirista em Portugal, Lisboa, 1972. 19 Adriano de Gusmão, Simão Rodrigues e seus colaboradores, Lisboa, Realizações Artis, 1956.

209

de entalhe e escultura do retábulo-mor da igreja de São Julião 20. Esse retábulo, que fora desenhado pelo arquitecto Baltasar Álvares e entalhado por Jacques de Campos, substituía o velho retábulo renascentista pintado por Gregório Lopes havia quase um século. A obra desapareceu. João Rodrigues de Setúbal, pintor de têmpera e dourado, certamente natural da vila do Sado, inscrito na Irmandade de São Lucas de Lisboa em 1613, ano em que assina um assento da mesa presidida por Domingos Vieira Serrão sobre colectas e obrigações de esmolas 21. Miguel de Oliveira, pintor de óleo e dourado morador em Setúbal e com actividade já no primeiro quartel do século XVII, autor da pintura e dourado de um retábulo na igreja de Nossa Senhora da Anunciada, em 1621-1622 22, e sobre o qual existem outras referências tabeliónicas, bem como a notícia de um filho processado pela Inquisição e degredado em 1633 para a Ilha do Príncipe 23. José Nunes Correia, natural de Setúbal (1620), filho do ourives de ouro António Nunes, neto paterno de Mestre Diogo, físico na corte de D. João III, trabalhou vinte e cinco anos em Málaga, Sevilha e Ayamonte 24, voltando à sua vila natal por volta de 1668 e aí pintando, segundo se crê, as oito grandes telas tenebristas da Capela de Santo António. São pinturas de tão forte influência andaluza que só poderiam ser de um artista educado nesses centros, como era o caso do Nunes Correia, único pintor setubalense do século XVII com formação profissional na Andaluzia. Dessas telas nos ocuparemos mais adiante. José Mendes, um pintor-dourador lisboeta que em 1683 estava em Setúbal, obrigou-se a «pintar e dourar o arco e tecto da capella mor da dita igreja de sam Julião em que esta a tribuna em que se põe o Santissimo Sacramento», cumprindo uma obra de dourado e decoração brutesca muito especializada e custosa, que envolveu a quantia de 200.000 rs, mas que desapareceu 25. João Pereira Pegado, competente pintor de dourado e de brutesco, morador em Lisboa, que vem a Setúbal em Dezembro de 1696, a mando da Irmandade do Santíssimo Sacramento da igreja de São Sebastião, para dourar «toda a obra de talha que resentemente se fes na dita igrª» (obra, sabemo-lo por outro contrato, da autoria do entalhador Francisco Álvares Landim), bem como brutescar o tecto dessa capela-mor, por alto preço de 530.000 rs 26. Trata-se de obra desa20 Arquivo Distrital de Évora, Notas do Tabelião Domingos Pires, Lº 229, fls. 70 vº a 72; refª em Vítor Serrão, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1983, pp. 195 e 367. 21 F. A. Garcez Teixeira, A Irmandade de São Lucas, corporação de artistas. Estudo do seu Arquivo, Lisboa, 1931, p. 51. 22 Arquivo da Misericórdia de Setúbal, Livro de Receita e Despesa do Hospital e Confraria de Nossa Senhora da Anunciada, 1621-1622, s/nº fls., refª in Vitor Serrão, op. cit., p. 342. 23 A.N.T.T., Cartório Notarial de Lisboa nº 7-A (antigo), Notas de Simeão Antunes, Lº de Novembro de 1616 a Março de 1617, fls. 93 vº a 95. 24 A.N.N.T., Inquisição de Lisboa, Processo nº 8293. Informação inédita do Dr. Francisco Bilou, que muito se agradece. 25 Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Setúbal, Lº 53 de Notas de António Borges Ferreira, fls. 103 vº a 104. Inédito. 26 Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Setúbal, Lº 67 de Notas de Silvestre de Pina Manique, s/nºde fls. Inédito.

210

casas religiosas de setúbal e azeitão

parecida, pois deu lugar a uma outra pintura após o terramoto de 1755, da autoria de Pedro Alexandrino de Carvalho. Pelos mesmos anos, o Pegado trabalha também na igreja de Nossa Senhora da Consolação do Castelo de Sesimbra 27. Este João Pereira Pegado era um dos colaboradores do grande pintor António de Oliveira Bernardes (1662-1732), tendo já trabalhado com ele, pouco antes, na magnífica pintura do tecto da igreja de Nossa Senhora dos Prazeres de Beja, de 1690 28, o que leva a supor que no desaparecido tecto da igreja de São Sebastião também tivesse participado Bernardes, este com as partes de figuração, aquele com a de ornamentação brutesca. António de Oliveira Bernardes (Beja, 1662- Loures, 1732), grande pintor de óleo e de azulejos, o mais importante da sua geração, actuou na vila de Setúbal onde pintou pelo menos três tectos de brutesco de esmerada qualidade cenográfica e artística: o tecto da capela-mor da igreja do Senhor do Bonfim (cª 1695), capela cujos azulejos são também da sua autoria; o tecto da igreja domínica de São João Baptista, de cerca de 1700, muito esquecido dos estudiosos; e o tecto da sala da Irmandade do Corpo Santo, de cerca de 1715, associado a azulejaria do Mestre P.M.P. Estas obras de Bernardes exigem um estudo demorado e uma análise de conjunto, tomando como ponto de partida o tecto de Nossa Senhora dos Prazeres de Beja (1690), que se encontra hoje bem identificado e restaurado 29. Os três tectos de Bernardes em Setúbal mostram uma linguagem entre o brutesco compacto e a perspectivação ilusória e são pintados com desenvoltura técnica e uma assumida linguagem de bel composto, em feliz associação cenográfica com a obra de talha e azulejo do espaço arquitectónico, numa busca de totalidade barroca que complementa a ‘estrutura chã’ desses edifícios. Com a presença de Bernardes, o mercado artístico de Setúbal entra finalmente nos altos cumes do classicismo italo-francês e do Barroco proselitista. Além de pintor de tectos, ele foi, como escreveu o Engº Santos Simões, «o mago que soube reabilitar uma arte que se perdia, levando o Azulejo a um esplendor até então desconhecido, lançando a semente que haveria de produzir a fecundidade do século XVIII» 30. Lourenço da Silva Paz (1666-1718), pintor régio de óleo e dourador, morador na capital, pertencente a uma estirpe de pintores com o mesmo apelido 31, foi discípulo de Bento Coelho da Silveira e em 1697 veio a Setúbal assinar o con27 Vitor Serrão, «O retábulo barroco do ‘Estilo Nacional’ da Igreja de Nossa Senhora da Consolação do Castelo de Sesimbra (1698)», revista Sesimbra Cultural, nº 4, Dezembro de 1994, pp. 24-26. Nesta desaparecida decoração pictórica, o Pegado associou-se a outro mestre com quem já trabalhara nos Prazeres de Beja, o entalhador lisboeta Manuel João da Fonseca. Neste caso de Sesimbra, poderia tratar-se de mais uma decoração integral envolvendo também a figura de Bernardes. 28 Vitor Serrão, A igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja. Arte e História de um Espaço Barroco (1672-1698), ed. Aletheia, Diocese de Beja e IGESPAR, 2007. 29 Idem, ibidem. 30 J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, pp. 35-37. 31 Vitor Serrão, «Lourenço da Silva Paz (1666-1718), um pintor da «escola» de Bento Coelho», in Uma Vida em História. Estudos de Homenagem a António Borges Coelho, ed. Caminho e Centro de História, vol. coordenado por António Dias Farinha, José Nunes Carreira e Vítor Serrão, Lisboa, 2001, pp. 465-493.

211

trato-promessa que o notável mestre entalhador lisboeta José Rodrigues Ramalho fez com a irmandade do Santíssimo Sacramento da igreja de Santa Maria para efeito de lhes lavrar o grandioso retábulo-mor dessa igreja, obra-prima da talha barroca de ‘Estilo Nacional’ ainda felizmente íntegra 32. Poder-se-ia deduzir que foi ele quem dourou e policromou esse altar, mas tal tarefa coube, afinal, ao artista, também lisboeta, que de seguida se refere. Vicente Nunes, pintor-dourador de Lisboa (foi, por exemplo, colaborador do «pintor de perspectiva» António Simões Ribeiro, em 1723, nos tectos da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra), a quem coube realizar o trabalho de douramento, estofo e pintura do retábulo-mor da igreja de Santa Maria, executado por José Rodrigues Ramalho 33. Dionísio de Matos, pintor de modalidade desconhecida, activo na vila setubalense em 1705, data em que fez procuração ao Dr. José Gomes de Avelar, de Lisboa 34. Manuel Álvares, pintor de modalidade desconhecida, morador em Setúbal nesse mesmo ano, onde surge como testemunha num assento notarial 35. António de Aguilar Osório, pintor de brutesco, morador em Setúbal, contratado em Novembro de 1716 pela Irmandade do Santíssimo Sacramento da igreja de São Julião para pintar, dourar, encarnar, estofar e brutescar, por preço excepcional de 1.050 mil rs, a capela-mor dessa igreja, dourando a obra de talha e os seus relevos, estofando as figuras, incluindo um painel a óleo para parede do Evangelho, tudo obras desaparecidas no incêndio que vitimou esse templo 36. De novo o pintor nos surge em Abril de 1720 envolvido na pintura do arco-mestre, dois meios arcos e colunas na igreja da Anunciada mas que se ausentara da vila sem ter ultimado essas obras de decoração pictórica, ordenadas pelo Capitão Luís Barbosa Pontes, pelo que a irmandade recorreu, em novo contrato, a um pintor chamado António Feio Guerreiro 37. António Feio Guerreiro, pintor de brutesco, morador em Lisboa, que em Abril de 1720 se contratou com a irmandade de Nossa Senhora da Anunciada de Setúbal para ultimar, ao preço de 220.000 rs, as obras deixadas inacabadas pelo pintor António de Aguilar Osório, que se ausentara da vila sem acabar o trabalho 38. António de Aguilar Pardo, pintor ao que parece distinto do referido António 32 Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Setúbal, Lº 68 de Notas de Francisco Ferreira Nabo, fls. 105 vº a 107. Publicado em Vitor Serrão, «Uma obra-prima da talha do “Estilo Nacional”: o Retábulo da igreja de Santa Maria da Graça, de Setúbal (1697-1700)», Póvoa de Varzim - Boletim Cultural, vol. de homenagem a Flávio Gonçalves, vol. XXVII, 1989, nº 2, pp. 637-661. 33 Vitor Serrão, art. cit. na nota anterior. 34 Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Setúbal, Notas de Francisco Ferreira Nabo, Lº 86, fls. 71 vº-72 vº. Inédito. 35 Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Setúbal, Notas de António Silveira Pato, Lº 90, fls. 21-22 vº. Inédito. 36 Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Setúbal, Notas de Francisco Ribeiro Pereira, Lº 114, fls. 52 vº-54 vº. Inédito. 37 Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Setúbal, Notas de Francisco Ribeiro Pereira, Lº 122, fls. 25-26. Inédito. 38 Idem, ibidem.

212

casas religiosas de setúbal e azeitão

de Aguilar Osório (a menos que tivesse também o apelido Pardo 39), activo nas modalidades de brutesco e dourado, morador na vila de Setúbal, surge-nos em Setembro de 1721 a testemunhar o contrato entre a abadessa do Convento de Jesus e o mestre entalhador lisboeta José da Costa para fazer o retábulo, tribuna e trono da igreja desse Convento de clarissas, por 100.000 rs (esse retábulo de talha substituía o primitivo retábulo de pintura renascentista, cujas catorze tábuas se expõem no Museu de Setúbal) 40. Francisco Pinto Pereira, pintor de óleo e retratista, activo de 1720 a 1752, data da morte, a quem o tratadista Cyrillo Volkmar Machado atribui, na sua Collecção de Memorias, de 1823 41, os painéis da nave da igreja do Senhor do Bonfim em Setúbal. Estes painéis, recentemente estudados por Susana Nobre Gonçalves, mostram dureza de pincel e uma excessiva fidelidade a modelos de gravuras, que os diminui em termos artísticos e não faz jus à fama que auferiu como retratista. Cyrillo confirma essa asserção: «Os seus painéis de Historia são poucos, e máos. O seu forte, diz Pedro Alexandrino, era pôr grandes escuras muito ao pé dos realces, sem a suavidade das meias tintas. Estavão alguns deles na igreja do Senhor do Bom fim em Setubal» 42. José Gonçalves Soares, pintor e dourador de Lisboa encarregado das obras das Ordens Militares, que entre 1732 e 1735 actua em São Julião de Setúbal, enriquecendo com pintura de dourado o tecto e ilhargas da capela-mor, por preço de 850.000 rs, tudo obras desaparecidas 43. Ricardo António, pintor-dourador que em 1742 actua nas decorações de estofo, encarnação e douramento de obras de talha realizadas pelo entalhador José Gomes Torel no presbitério da igreja de São Julião 44, a qual, como se sabe, foi totalmente arrasada pelo terramoto de 1755, perdendo-se todas essas obras artísticas (salvo os dois portais manuelinos do mestre pedreiro João Favacho, felizmente ainda íntegros). Além dos vinte e sete pintores referenciados com presença e actividade para Setúbal, outros nomes constarão certamente dos inexplorados fundos arquivísticos. Estas e outras referências a elencar nos arquivos da cidade, muito ricos de informação artística, virão permitir que se escreva uma história da pintura setubalense bem nutrida de dados sobre artistas e obras, tarefa que não cabe no âmbito do presente trabalho, mas que merece vir a ser cumprido.

39 Infelizmente, o confronto das assinaturas de António de Aguilar Osório e António de Aguilar Pardo não é conclusivo. 40 Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Setúbal, Notas de Francisco Ribeiro Pereira, Lº 122, fls. 123 vº-125 vº. Inédito. 41 Cyrillo Volkmar Machado, Collecção de Memorias…, Lisboa, 1823, pp. 86-87. 42 Idem, ibidem, p. 86. 43 Arquivo Paroquial de São Julião de Setúbal, Maço de mss. avulsos s/nº (sobre obras diversas) e Maço 17 contrato de 1 de Fevereiro de 1735 entre a Irmandade do Santíssimo Sacramento e o pintor e dourador José Gonçalves Soares, de Lisboa. Inédito. 44 Arquivo Paroquial de São Julião de Setúbal, Maço de mss. avulsos (Maço 17), contrato de 18 de Setembro de 1742. Inédito.

213

A série de telas com a Vida e Milagres de Santo António de Lisboa pelo pintor penumbrista José Nunes Correia Uma das obras de pintura menos conhecidas da cidade é o conjunto de oito telas seiscentistas da Capela de Santo António, praticamente ignoradas nos estudos sobre o património artístico setubalense, mas que apresentam, para além dos méritos iconográficos, qualidades formais e compositivas dignas de apreço. Este templinho de Setúbal, vulgarmente chamado de Capela de Santo António do Postigo, começou a ser erguido pouco antes do ano de 1679, data que cronografa a lápide que encima a porta de serventia. É uma capela de ‘arquitectura chã’ de prospecto arquitectónico muito singelo, que se ergue na zona intramuros do burgo, na antiga Judiaria. O facto de estar implantada junto de um postigo rasgado no interior do recinto das muralhas medievais da cidade explica a designação da capela. No exterior destaca-se uma varanda seiscentista com ferragens, da época da construção, e uma lápide que encima a porta lateral e inclui um poema da autoria do famoso poeta Gregório de Matos (Salvador da Baía, 1623-Recife, 1696)45. O espaço interior desta capela tem muito interesse artístico, não só pelo revestimento integral de azulejos polícromos de padronagem, ou «tapete», de fim do século XVII, que cobrem as paredes da capela-mor e o silhar da nave, estes com ornatos de flor-de-lis 46, como pela presença de várias imagens em madeira policromada, dos séculos XVII e XVIII. Estas representam Santo António de Lisboa, o padroeiro do templo, que como escultura é a mais interessante de todas, e ainda o Senhor dos Navegantes, Nossa Senhora da Guia, Santa Luzia, Nossa Senhora da Piedade, o Senhor Morto e o Senhor atado à coluna, todas em relativo estado de conservação e com méritos artísticos variáveis. Maior nota artística no templo nos mereceram, entretanto, as oito grandes pinturas a óleo sobre tela, emolduradas por opulenta talha barroca do Seiscentismo tardio, que representam diversos passos da vida e milagres de Santo António de Lisboa. São pinturas de valia histórica, em termos da narração antoniana, mas também artística, mostrando-se devedoras de um pintor que, sendo porventura local, conhecia bem os modelos do tenebrismo andaluz. No estudo mais recente realizado sobre a pintura portuguesa da segunda metade do século XVII – o tempo de Marcos da Cruz, de Josefa de Óbidos e de Bento Coelho –, esta série setubalense mereceu referência elogiosa, dada a força expressiva das composições, não isentas embora de certa dureza no desenho 47. 45 Gregório de Matos formou-se na Universidade de Coimbra em 1661, regressando a Salvador em 1679, deixando obra poética que lhe grangeou enorme prestígio e, também, muitas invejas e inimizades. Degredado para Angola em 1694, irá morrer no Recife em condições miseráveis. O poema (mote para décimas) que encontramos gravado na lápide da Capela de Santo António é dedicado a Santo António e reza o seguinte: Deus que é vosso amigo de alma / Na palma se vos vem pôr / Porque só vós do amor / Soubestes levar a palma. 46 J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no Século XVII. Tomo II – Elenco, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1971, p. 185. 47 Vitor Serrão, «’O Que A Necessidade Applaudia’…: A Pintura Portuguesa no Tempo de Josefa de Óbidos, 16301684», Catálogo da exposição Josefa de Óbidos e a Invenção do Barroco Português, comissariada por Joaquim Oliveira

214

casas religiosas de setúbal e azeitão

Estas pinturas estavam em deficiente estado de conservação quando as examinámos pela primeira vez em 1988, com os suportes bambos e escurecidos por fumos e vernizes hodiernos, tendo sido beneficiadas em data mais recente. Para além do seu evidenciado interesse iconográfico, era visível nessas pinturas seiscentistas, mesmo nas más condições em que se encontravam, e apesar das fragilidades de desenho que o artista reflecte, uma fortíssima influência da pintura proto-barroca da Andaluzia. De facto, sente-se nestas telas aquele gosto pelo naturalismo impregnado de fortes contrastes claro-escuristas que domina o Siglo d’Oro espanhol do sul, com influxos da pintura sevilhana e, de modo geral, andaluza. Vendo-se o quadro Santo António de Lisboa pregando em Forli, em Novembro de 1222, para os frades reunidos no refeitório da Comunidade, é possível confrontá-lo com certas pinturas naturalistas de Francisco de Herrera el Viejo (1590-1656), as quais, sendo naturalmente muito superiores no plano artístico, mostram similitudes de ‘receita’ compositiva -- já assinaladas, aliás, num nosso estudo de 1992 a propósito dessas telas e das suas afinidades, meramente composicionais, com as telas da série de São Boaventura por Herrera) 48. Mas os pontos de contacto sentem-se também, e mais concretamente, com algumas pinturas saída da oficina granadina de Miguel Jerónimo de Cieza em Granada 49, ou com a produção dos malaguenhos Miguel Manrique (falecido em 1647), pese a sua formação flamenga, e Juan Niño de Guevara (1632-1693), que foi discípulo de Alonso Cano, entre muitos outros exemplos picturais andaluzes da segunda metade do século XVII que mostram alguma similitude com o forte penumbrismo da série de telas setubalenses 50. As telas mostram, como se disse, debilidades ao nível da modelação e do debuxo de figura, que a liberdade de touche e uma certa largueza compositiva em certo sentido compensam. O artista revela um largo e dinâmico tratamento das personagens, com suas poses e panejamentos alteados, compondo com bom sentido cenográfico oito passos do hagiológio antoniano. Ignora-se quem e quando a obra foi encomendada, devendo tê-lo sido pela irmandade de Santo António e por volta dos anos de 1679 em que a Capela foi inaugurada. Graças ao senhor Padre Henrique Pinto Rema 51, a cuja autoridade antoCaetano, José Alberto Seabra e Anísio Franco, Museu Nacional de Arte Antiga e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp.13-24. 48 Vitor Serrão, A Pintura Proto-Barroca em Portugal. O triunfo do Naturalismo e do Tenebrismo, 1612-1657, tese de Doutoramento, Universidade de Coimbra, 1992, vol. II (policopiado), pp. 193-195; as oito telas medem, aproximadamente, 1m,750 de altura por x 2m 100 de largura. 49 Cf., por exemplo, Ana María Castañeda Becerra, Los Cieza, una familia de pintores del Barroco granadino, Universidad de Granada, 1990; e Alfonso Emilio Pérez Sánchez, Pintura barroca en España 1600-1750, Madrid, Ediciones Cátedra, 1992. As obras de Miguel Jerónimo de Cieza (1611-1685), seu filho José de Cieza (1656-1692) e outros pintores de Granada activos na segunda metade do século XVII mostram, no seu duro tenebrismo, características afins às telas setubalenses em apreço. 50 Diego Angulo Iñíguez, Pintura del Siglo XVII, Ars Hispaniae-XV, Madrid, 1958, pp. 271-272 e 386-392. 51 Muito se agradece ao senhor Padre Henrique Pinto Rema, grande especialista nos estudos sobre Santo António de Lisboa, a sua prestimosa ajuda na identificação das cenas representadas nos quadros, algumas delas inusuais na iconografia antoniana e, por isso, difíceis de discernir.

215

niana recorremos, foi possível dilucidar a temática de algumas destas telas mais difíceis de identificação. A primeira pintura representa Santo António de Lisboa e o encontro com os Cónegos Regrantes de Santa Cruz no ermitério de Santo Antão dos Olivais em Coimbra. Como reza a história antoniana, realizou-se em 1220 um encontro entre cónegos regrantes oriundos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra com monges franciscanos do ermitério de Santo Antão dos Olivais, da mesma cidade, no âmbito do qual se fez entrega de D. Fernando Martins, o futuro Santo António de Lisboa, que desse modo integrou a congregação mendicante. O Santo surge na tela já nimbado, junto a três outros religiosos, destacando-se um fundo de arquitectura com arcadas que sugere de maneira convincente um trecho de ermitério franciscano. O segundo quadro representa a Profissão de Fernando Martins, com o nome de António, para a ordem franciscana, na Primavera de 1220. Mostra-se Fernando Martins, já frade da Ordem dos Frades Menores, de joelhos, quando entrou, na Primavera de 1220, para a Ordem. De um e outro lado, figuras de frades franciscanos e regrantes crúzios, um deles porventura o Abade César. A figura de traços venerandos defronte do qual Santo António se genuflexiona poderá ser Fr. João Parente, no acto de entrega do hábito. Pese a dureza de desenho, que atesta a produção regional, a tela revela um esforçado sentido de dinâmica narrativa, acentuada pelas poses e movimentos das personagens. A terceira pintura da série representa o Encontro de São Francisco com Santo António de Lisboa em Assis no Capítulo das Esteiras em Maio de 1221. A cena decorre na cidade de Assis, mostrando-se os dois santos em comunicação, num contexto arquitectónico singelo, dominado por uma forte atmosfera penumbrista que tudo envolve. A quarta tela representa Santo António de Lisboa pregando em Forli, em Novembro de 1222, para os frades reunidos no refeitório da Comunidade. Trata-se de uma composição artisticamente muito interessante, pela disposição das nove figuras num ambiente de refeitório monacal, escassamente iluminado. A revelação da oratória de Santo António de Lisboa no mosteiro de Forli no dia 24 de Novembro de 1222, ocorrida segundo as fontes antonianas num final da manhã, ou início dessa tarde, porventura durante uma refeição conventual, explica-se pelo facto de o Superior da Comunidade de Forli ter solicitado a Santo António que dirigisse a palavra aos presentes, depois de solene cerimónia de ordenações sacras. Na pintura, vê-se o santo taumaturgo português em destaque, usando da palavra, rodeado por frades franciscanos e tendo três dominicanos diante de si, assistindo à prédica. A quinta pintura representa a célebre Pregação de Santo António de Lisboa aos peixes em Rímini no fim de 1222, a cena mais comum na iconografia antoniana. Mostra-se o santo de pé, à esquerda, junto a um trecho de água de onde emergem muitos peixes, uma ponte a meio do episódio e, ao fundo à direita, um 216

casas religiosas de setúbal e azeitão

casario de cidade onde se assinalam diversas figuras de hereges descrentes, que assistem ao milagre. É a única das oito pinturas da série onde se observa uma franca abertura ao paisagismo. A sexta pintura representa um episódio invulgar na iconografia antoniana, a Aparição do Anjo a Santo António de Lisboa. O santo, sentado à esquerda, é representado em acto de meditação, lendo um manuscrito seguro na mão esquerda, no momento em que um Anjo alado irrompe na sua cela envolto por um halo sobrenatural. Segundo o Padre Henrique Rema 52, no historial do santo ainda não se identificou nenhuma aparição angelical a Santo António. Mas existe uma “flor”, relacionada com um episódio ocorrido em 1225 em Montpellier, que narra a história de uma “carta” roubada e recuperada: tendo um noviço que deixou o hábito fugido com um manuscrito de Santo António, o santo taumaturgo, ao dar pela falta do documento, pediu ao Senhor que lho restituísse, e de imediato entrou na sua cela o referido noviço com o manuscrito nas mãos, a contar o sucedido e a pedir perdão pelo roubo. Acontecera que, ao passar numa ponte, alguém admoestara o noviço pelo furto, impelindo-o a devolver o manuscrito a Santo António, o que ele de imediato fez. Pode tratar-se da representação deste episódio, em que se vê o Santo de novo com o manuscrito, agradecendo a intercessão angelical. Resta acrescentar, segundo as crónicas, que Santo António moveu artes e engenho para que o noviço arrependido continuasse no Noviciado, onde veio a morrer em odor de santidade 53. O sétimo painel representa Santo António de Lisboa convertendo um notário pecador em Puy-en-Velay em 1225. Cena de exterior, que decorre na rua de uma cidade, mostra Santo António, à esquerda, e uma personagem de vestes alvas e manto azul, à direita. Parece reportar-se a um acontecimento passado em Puy-en-Velay por volta de 1225: sucedeu que um notário de vida escandalosa ameaçou Santo António pelas reverências que lhe prestava, tendo o Santo prognosticado que ele ainda viria a ser mártir da fé cristã; ora, tendo o Bispo de Puy promovido uma peregrinação à Terra Santa, o referido notário resolveu acompanhá-lo a fim de expiar os seus pecados, e acabou por ser preso e morto pelos muçulmanos, cumprindo-se assim a profecia 54. A última das telas da Capela de Santo António do Postigo representa a Cura milagrosa do noviço Pedro em Limoges por Santo António de Lisboa em 1226. Trata-se de um acontecimento milagroso ocorrido em 1226 narrado, segundo informação do Padre Henrique Rema, na Legenda Florentina, na Legenda Rigaldina e no Liber Miraculorum, três das mais relevantes fontes antonianas: um certo noviço, tentado por desejo carnal, pediu a Santo António que rezasse por ele a

52 Agradecem-se estas indicações iconográficas ao Padre Henrique Pinto Rema. 53 Cf. P. Rolim, Santo António de Lisboa 1231-1931, Lisboa, edição do Sétimo Centenário da Morte de Santo António de Lisboa, 1931, pp. 118-119. 54 Cf. P. Rolim, Santo António de Lisboa 1231-1931, Lisboa, edição do Sétimo Centenário da Morte de Santo António de Lisboa, 1931, pp. 123-124.

217

fim de o livrar da tentação e, finda a missa, o santo, ainda revestido dos paramentos sacerdotais, dirigiu-se ao noviço e soprou-lhe na boca, ficando o noviço de imediato livre da tentação, podendo continuar na Ordem. Quem poderia ter pintado estes quadros de cerca de 1675-1680 que atrás se referenciaram e descreveram? Por um processo da Inquisição de Lisboa datado de 1686, descoberto e gentilmente comunicado ao autor por Francisco Bilou 55, fica-se a saber da existência de um pintor setubalense chamado José Nunes Correia se se formou precisamente na Andaluzia e que, por isso, pode bem ser, muito provavelmente, o autor das oito grandes telas tenebristas da Capela de Santo António, dada a tão forte influência andaluza que reflectem. Este José Nunes Correia era, até data recente, um nome de artista completamente desconhecido. Nasceu em Setúbal em 1620, era filho do ourives de ouro António Nunes e era neto paterno de Mestre Diogo, um físico na corte de D. João III. Foi preso pelo Santo Ofício, acusado de judaísmo, no ano de 1686, e o processo regista que o pintor trabalhou muitos anos em terras do reino vizinho: consta aí que tinha sessenta e seis anos de idade, pouco mais ou menos, e que se «deteve por um espaço de vinte e sinco annos na cidade de Malaga, em Sevilha, em Ayamonte e em outras vilas e lugares da Andaluzia». Saíu da vila de Setúbal para aperfeiçoar a sua arte, dirigindo-se à cidade de Málaga, onde casou e teve cinco filhos, estando depois em Sevilha e passando um total de vinte e cinco anos a pintar por terras da Andaluzia. Só regressou a Setúbal em 1668, após o estabelecimento da paz de Madrid em 1668, que encerrou o trágico período de guerras da Restauração. José Nunes Correia foi condenado, findo o processo inquisitorial (que assina no final com letra trémula), à pena de cárcere a arbítrio, depois de as alegadas práticas judaizantes terem sido alvo de inquérito e ouvidas várias testemunhas, como era prática do tribunal do Santo Ofício. O artista, que se formou em Málaga e Sevilha no gosto do tenebrismo proto-barroco, será, por isso, quase de certeza o autor das oito estimáveis telas da Capela de Santo António, que atestam à evidência um acentuado carácter do naturalismo proto-barroco andaluz. O problema da autoria desse ciclo de telas antonianas fica, assim, praticamente resolvido. O processo revela, também, dados valiosos sobre o panorama social, de franca intolerância religiosa, e também artístico, na vila de Setúbal em época de franco triunfo dos valores da Contra-Reforma. Preso pelo Santo Ofício, o pintor José Nunes Correia declarou, no seu depoimento de 21 de Maio de 1686 aos inquisidores, que «possuia cinco paineis de quatro palmos de queda, dous dos quais tem molduras negras, e os quatro (sic) em grades, a saber, hum de Sam Pedro emperfeito, outro de Sam Miguel o anjo, nossa Snra da Comcepção e Santo Antonio acabados, e S. Jeronimo de maior queda que os mais, e quatro ou cinco pequenos, hum delles com a Imagem de xpo Sºr nosso Crucificado, outro da Magdalenna, outro do Eçe Omo com moldura negra, outro de Nª snra 55 A.N.N.T., Inquisição de Lisboa, Processo nº 8293. Informação inédita do Dr. Francisco Bilou.

218

casas religiosas de setúbal e azeitão

da piedade, outro de Sam jozeph, outro de Nossa Snra com o Menino nos braços, outro da Magdalena em meio corpo, que todos poderão valer vinte mil reais». Estes quadros apreendidos pela Inquisição eram, quase de certeza, pinturas da sua autoria, havendo alguns deles que estavam por acabar à data da prisão. Espera-se oportunidade de poder desenvolver com maior dose de pormenores um estudo detalhado da pintura dos séculos XVI a XVIII existente em Setúbal e que carece, como se disse, de uma análise com maior desenvolvimento. A análise preliminar destas telas seiscentistas é apresentado como «estudo de caso» desse trabalho mais vasto a empreender, acrescido de uma hipótese autoral que parece credível. E abundam, no ‘status quaestionis’ atrás desenhado, materiais de arquivo e de campo em abundância para que tal projecto possa vir a ser cumprido de forma integrada, caso por exemplo da actividade de Fernão Gomes e Simão Rodrigues para Setúbal, ou da obra de pintores até há pouco completamente desconhecidos, como António de Aguilar Osório, ou ainda dos três notabilíssimos tectos barrocos aqui atribuídos a António de Oliveira Bernardes.

Agradecimentos O autor manifesta a sua gratidão, por informações prestadas ou reflexões conjuntas, a Albérico Costa, André Afonso, António Cunha Bento, Padre Carlos Russo, Fernando António Baptista Pereira, Francisco Borba, Francisco Bilou, Padre Henrique Pinto Rema, Inês Gato de Pinho, Joana Rosário, Joaquina Soares, José Meco, Laurinda Abreu, Maria Adelina Amorim, Maria João Pereira Coutinho, Patrícia Monteiro, Pedro Flor, Rui Mendes, Padre Rui Rosmaninho e Sandra Costa Saldanha, Sílvia Ferreira e Susana Varela Flor.

219

IMAGENS

Fig. 1 Santo António de Lisboa e o encontro com os Cónegos Regrantes de Santa Cruz no ermitério de Santo Antão dos Olivais em Coimbra. Atribuído a José Nunes Correia, cª 1670-1680. Setúbal, Capela de Santo António. © Francisco Borba.

Fig. 2 Profissão de Fernando Martins, com o nome de António, para a ordem franciscana, na Primavera de 1220. Atribuído a José Nunes Correia, cª 1670-1680. Setúbal, Capela de Santo António. © Francisco Borba.

220

casas religiosas de setúbal e azeitão

Fig. 3 Pregação de Santo António de Lisboa aos peixes em Rímini no fim de 1222. Atribuído a José Nunes Correia, cª 1670-1680. Setúbal, Capela de Santo António. © Francisco Borba.

Fig. 4 Santo António de Lisboa convertendo um notário pecador em Puy-en-Velay em 1225. Atribuído a José Nunes Correia, cª 1670-1680. Setúbal, Capela de Santo António. © Francisco Borba.

221

Fig. 5 Pregação de Santo António de Lisboa aos peixes em Rímini no fim de 1222. Atribuído a José Nunes Correia, cª 1670-1680. Setúbal, Capela de Santo António. © Francisco Borba.

Fig. 6 Aparição do Anjo a Santo António de Lisboa. Atribuído a José Nunes Correia, cª 1670-1680. Setúbal, Capela de Santo António. © Francisco Borba.

222

casas religiosas de setúbal e azeitão

Fig. 7 Santo António de Lisboa convertendo um notário pecador em Puy-en-Velay em 1225. Atribuído a José Nunes Correia, cª 1670-1680. Setúbal, Capela de Santo António. © Francisco Borba.

Fig. 8 Cura milagrosa do noviço Pedro em Limoges por Santo António de Lisboa em 1226. Atribuído a José Nunes Correia, cª 1670-1680. Setúbal, Capela de Santo António. © Francisco Borba.

223

Fig. 9 Fragmento do painel da Assunção da Virgem, antigo retábulo-mor da igreja de Santa Maria de Setúbal, c. 1590-1600, por Fernão Gomes. Setúbal, sacristia da igreja de Santa Maria. Fig. 10 Outro fragmento do painel da Assunção da Virgem, antigo retábulo-mor da igreja de Santa Maria de Setúbal, c. 1590-1600, por Fernão Gomes. Setúbal, sacristia da igreja de Santa Maria.

Fig. 11 Última Ceia da Capela dos Salemas, c. 1600, pela «companhia» Simão Rodrigues-Domingos Vieira Serrão. Setúbal, transepto da igreja de Santa Maria.

224

casas religiosas de setúbal e azeitão

Fig. 12 Pormenor do tecto de brutesco compacto da Capela do Corpo Santo, em Setúbal, por António de Oliveira Bernardes, c. 1710-1715.

Fig. 13 Pormenor do tecto de brutesco compacto da Capela do Corpo Santo, em Setúbal, por António de Oliveira Bernardes, c. 1710-1715.

225

Fig. 14 Tecto de brutesco compacto da nave da igreja do Convento dominicano de São João Baptista de Setúbal, por António de Oliveira Bernardes e João Pereira Pegado, cª 1700.

226

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.