ESTUDO DE CASO: A EXPERIÊNCIA DO PROGRAMA DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS DA SECRETARIA MUNICIPAL DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS DE VITÓRIA

May 22, 2017 | Autor: Karime Siviero | Categoria: Conciliação, Mediação e Arbitragem, Mediação
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Estudo de caso: a experiência do programa de mediação de conflitos da Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória

ESTUDO DE CASO: A EXPERIÊNCIA DO PROGRAMA DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS DA SECRETARIA MUNICIPAL DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS DE VITÓRIA A case study on consensual justice in Brazil: the experience of conflict mediation program of the Secretary of Citizenship and Human Rights of the City of Vitória Revista de Arbitragem e Mediação | vol. 48/2016 | p. 271 - 291 | Jan - Mar / 2016 DTR\2016\4605 Karime Silva Siviero Mestra em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Advogada-Chefe do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Vila Velha. Brunela Vieira de Vincenzi Doutora em Constitucional e Filosofia pela Johann Wolfgang Goethe Universität – Frankfurt am Main. Mestra em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde leciona na graduação e no mestrado, coordena o Núcleo de Prática Jurídica e preside a Comissão Interdisciplinar de Apoio aos Refugiados e Migrantes na UFES, criada pela Portaria n. 2521 de 30.10.2014 e Professora Efetiva da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Área do Direito: Processual; Administrativo; Arbitragem Resumo: o presente artigo objetiva contribuir com algumas reflexões sobre como boas práticas de mediação de conflitos podem favorecer a ampliação do acesso à Justiça e para o exercício da autonomia cidadã. Para tanto, investiga-se o funcionamento do Serviço de Mediação de Conflitos vinculado à Gerência de Resolução de Conflitos da Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos (SEMCIG) da cidade de Vitória, enfatizando-se os aspectos positivos e os desafios relacionados à sua institucionalização. O estudo empírico do programa, que consiste em centro de referência na região para a resolução consensual de conflitos, pretende oferecer subsídios para o planejamento e aperfeiçoamento de novas práticas de emancipação social no Brasil. Palavras-chave: Acesso à Justiça - Mecanismos alternativos de resolução de conflitos Programa de Mediação de Conflitos. Abstract: The present article aims to contribute to reflections on how good conflict mediation practices can lead to expanding access to justice and enable the exercise of citizen autonomy. Therefore, it analyses the functioning of Conflict Mediation Service linked to the Municipal Conflict Resolution Management of Citizenship and Human Rights of the city of Vitória, emphasizing the positive aspects as well as the challenges related to their institutionalization. The empirical study of the program, considered a reference center in the region for consensual conflict resolution, intends to provide information for planning and development of new practices of social emancipation in Brazil. Keywords: Access to justice - Alternative dispute resolution - Mediation program. Sumário:

"Tornar o direito, por causa de sua formação, apenas acessível àqueles que sobre ele eruditamente se debrucem, constitui injustiça igual àquela que o tirano Dionísio cometeu quando mandou postar as tábuas da lei tão alto que nenhum cidadão as pudesse ler". (Georg Wilhelm Friedrich Hegel) 1 Introdução Os historiadores são quase unânimes em reconhecer o séc. XX como o de maior Página 1

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importância para o desenvolvimento da humanidade. No espaço de cem anos foi possível alcançar um nível de desenvolvimento das ciências sem precedentes, elevando-se expressivamente a qualidade de vida dos cidadãos e democratizando-se o acesso a bens e serviços. Uma decorrência lógica desse fenômeno foi a transformação do Judiciário em receptáculo para as frustrações da sociedade de consumo, enfrentando, pela primeira vez, os conflitos recorrentes da litigância de massa. Na mesma linha, viu-se uma progressiva incorporação de novos entendimentos e regras ao Direito de Família, aptas a lidar com as relações familiares contemporâneas e refletir o avanço dos costumes. Em sentido oposto às mudanças, o Judiciário não desenvolveu novas metodologias de trabalho para se adequar à moderna concepção de pacificação social. As decisões são confeccionadas caso a caso, num ambiente conflituoso de pretensões processualmente resistidas, onde o magistrado assume o papel de declarar o direito e impor uma decisão ao vencido. O debate sobre as ineficiências do Judiciário tradicional põe em evidência os mecanismos alternativos de solução de conflitos, percebidos como um caminho possível para a 2 superação do estágio de menoridade culposa ainda tão presente nas sociedades contemporâneas. Diante desse novo cenário, o presente artigo objetiva contribuir com reflexões sobre a aplicabilidade de boas práticas de mediação para a ampliação do acesso à Justiça e para o fortalecimento da democracia. Para essa finalidade, a pesquisa empírica relatada nas próximas linhas investiga o funcionamento do Serviço de Mediação de Conflitos vinculado à Gerência de Resolução de Conflitos da Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos (SEMCIG) da cidade de Vitória. O estudo de caso abrangeu a análise de documentos e normas que o regulamentam, a realização de visitas para observação in loco e de entrevistas semiestruturadas com as mediadoras do programa. 2 Regulamentação e funcionamento do programa A Gerência de Resolução de Conflitos (GRC) da Casa do Cidadão foi instituída em janeiro de 2006 por meio do Dec. 12.635/2006 - que estabelece a forma de organização e regulamenta o funcionamento das unidades administrativas da Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória (SEMCID). Além da gerência, foram criados dois órgãos para operacionalizar suas atividades: a coordenação de Assistência Judiciária e a coordenação de Mediação de Conflitos que, em 2010, converteu-se na coordenação de Mediação de Conflitos (Dec. 14.834), ampliando os serviços ofertados também para os conflitos de vizinhança. Conforme dispõe o Regimento Interno da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de 3 Vitória, são atribuições da Coordenação de Mediação de Conflitos: (a) oferecer serviços de mediação de conflitos por meio de equipe técnica formada por profissionais da área do Direito, Serviço Social e Psicologia, a fim de promover a resolução pacífica de conflitos; (b) implantar e coordenar os Núcleos Populares de Mediação de Conflitos nos bairros de Vitória; (c) incentivar e propor a divulgação de estudos, pesquisas e inovações tecnológicas relativas às temáticas da mediação de conflitos; e, (d) subsidiar e participar de eventos e seminários sobre mediação de conflitos. Com o objetivo de capacitar uma equipe para atuar na mediação, a Prefeitura Municipal de Vitória, através da SEMCID, ofertou cinco cursos para os servidores. O primeiro foi ministrado em parceria com a ONG baiana Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, no 4 ano de 2005; o segundo, no ano seguinte, ministrado pela Clínica de Atenção Página 2

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Psicológica Social; o terceiro, em 2007, pelo Instituto Raízes da terra; e, finalmente, dois cursos pela Escola de Governo (2011 e 2014). Interessante observar que a última capacitação foi disponibilizada não apenas às mediadoras do setor, mas para 20 servidores que atuam no setor. O atendimento à população é realizado por uma equipe formada por assistentes sociais, assistentes administrativos e estagiários dos cursos de Direito e Serviço Social. O programa de mediação desenvolvido pela Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória estrutura-se a partir de duas etapas básicas e fundamentais (o pré-atendimento e as sessões conjuntas). Contudo, a mediação pode prosseguir para uma terceira etapa (sessões privadas) ou ainda uma quarta e derradeira etapa (atendimento pela Defensoria Pública). Vejamos a seguir. 2.1 O pré-atendimento O primeiro contato com o usuário do sistema (pré-atendimento) é feito por estagiários e assistentes administrativos sob a supervisão dos mediadores. Ainda que se trate de uma etapa preliminar da mediação, o papel do servidor incumbido do pré-atendimento é de suma importância para a rigidez do processo. Esse é o momento em que as partes têm o primeiro contato com o ambiente da mediação, os escopos da justiça conciliatória e com a postura dialógica que precisam adotar para que os resultados sejam positivos. Ainda nessa etapa inicial, que dura cerca de 20 minutos, os interessados também são esclarecidos sobre o papel do mediador e assegurados de que todas as informações fornecidas durante o procedimento permanecerão sigilosas. Normalmente, as partes que procuram o setor de mediação ainda estão imbuídas com a lógica adversarial da justiça comum e procuram convencer o mediador de que estão com a razão, apresentando em minúcias a sua versão dos fatos, ao mesmo tempo que desabona a conduta da parte contrária. Sobre esse ponto, é interessante registrar que uma das mediadoras ouvidas na pesquisa de campo reportou que, apesar das anotações feitas por um servidor nessa fase, muitas informações importantes acabam não sendo levadas a elas antes do início das sessões. Em sua opinião, o ideal seria que o pré-atendimento fosse realizado diretamente pela mediadora responsável pelo caso, em razão do contato direto com o interessado. Todavia, não se pode ignorar que a postura combativa adotada, inicialmente, pelo interessado, pode influenciar o mediador que conduzirá as sessões. Por isso, pesa-se sobre programa de mediação da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória o estabelecimento de que o profissional responsável pelo pré-atendimento seja pessoa diversa do mediador. Cabe ao servidor da acolhida controlar a ansiedade das partes e deixar claro que o mediador não dispõe do poder e das prerrogativas decisórias como os juízes, mas que, ao contrário, a sua função consiste em criar condições para que as partes desenvolvam uma comunicação eficiente e assumam o papel de decidir, em comum acordo, sobre o desfecho do litígio. Se o munícipe manifestar interesse em participar do processo de mediação, a outra parte envolvida no litígio é convidada a comparecer à sessão mediante o envio de carta-convite - que tanto pode ser entregue em mãos como remetida pelos correios com Aviso de Recebimento -, agendando-se dia e hora para a primeira sessão. Nesse caso, o servidor do pré-atendimento registra na Ficha de Atendimento as informações socioeconômicas do interessado, a versão dos fatos por ele apresentada, as impressões extraídas da sua linguagem corporal durante o atendimento (postura Página 3

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agressiva, submissa, amedrontada etc.) e os dados pessoais da parte contrária. Quando o servidor observa sinais de violência doméstica, deve suspender o atendimento e encaminhar o casal para a Coordenação de Atendimento às Vítimas de Violência e Discriminação (CAVVID) da Secretaria, onde são avaliados por uma equipe 5 multidisciplinar de assistentes sociais e psicólogos. Uma vez confirmada a suspeita de violência, o CAVVID assume a condução do caso. Se não, os interessados são redirecionados para o setor de mediação. Os dados colhidos no pré-atendimento são encaminhados às mediadoras e servem de subsídio para a condução das sessões. O não comparecimento de uma ou ambas as partes à sessão de mediação enseja a designação de nova data para o encontro. Contudo, após duas tentativas frustradas, declara-se extinta a tentativa de mediação e o munícipe interessado na solução do litígio é encaminhado à Defensoria Pública para ingressar com uma ação judicial. Por outro lado, se as partes comparecem no dia e horário agendados, dá-se início à segunda etapa do processo, denominada de sessão conjunta. 2.2 A sessão conjunta Antes de iniciar a primeira sessão de mediação, os mediadores expõem para as partes as regras básicas sobre o funcionamento do processo, salientando a necessidade de cada um escutar o que o outro tem a dizer sobre o conflito, sem interferências. As sessões de mediação duram em média cinquenta minutos e podem ser remarcadas 6 quantas vezes for necessário para a resolução do litígio. Após esclarecer eventuais dúvidas sobre o processo, o mediador inicia a escuta das partes. Em razão da informalidade das sessões e das especificidades dos casos trabalhados, não existe uma ordem cronológica predeterminada para a manifestação das partes. É comum, entretanto, que as mediadoras concedam a primeira oportunidade da fala àquele que procurou voluntariamente o Programa, para que exponha a sua versão dos fatos e justifique o interesse na mediação. Nesse momento inicial da sessão, a interferência do mediador é a menor possível, possibilitando que as partes exponham os seus interesses, necessidades, angústias e possibilidades. À medida que os mediados iniciam um diálogo mais produtivo entre si, as mediadoras abdicam aos poucos da função de escuta passiva e assumem uma postura mais diretiva na condução do processo, formulando perguntas e instigando os envolvidos a identificarem soluções satisfatórias para o caso concreto. 2.2.1 A questão da imparcialidade O programa de mediação desenvolvido pelo SEMCID procura garantir a imparcialidade das mediadoras na condução do processo. Como esclarecem Andrea Fachetti Vaillant Moulin dos Santos et alii em artigo sobre a atuação da Gerência de Resolução de Conflitos da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória: "É dada às partes a oportunidade de falar de seus sentimentos e expectativas, e o direito de apontar as possibilidades de solução do conflito. Também são dadas oportunidades iguais de as partes serem ouvidas. Prossegue-se a mediação com o profissional agindo de maneira imparcial, com vistas à resolução do conflito e, se possível, a construção do acordo entre 7 as partes". Contudo, uma das principais dificuldades relatadas pelas mediadoras do programa relaciona-se justamente à exigência de imparcialidade no tratamento das partes em conflito. Sobre a questão, a primeira mediadora ouvida relatou o seguinte: Página 4

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"[a imparcialidade] é o mais difícil para o mediador. Principalmente quando a gente atende conflito de família, porque todos nós pertencemos a uma família, todos nós temos os nossos conflitos. Aqui [no programa de mediação de conflitos da Casa do Cidadão], coincidentemente, todas as mediadoras são casadas e quase todas têm filhos. Como é o meu caso. Então, quando tem menor de idade - principalmente, se for muito pequeno e o pai não tem interesse na criança - a imparcialidade fica bem comprometida, mas a gente tenta fazer com que prevaleça. O que a gente coloca, às vezes, é uma reflexão maior sobre isso, sobre o papel deles, enquanto pai, enquanto mãe, até para saber. Uma vez atendi um casal que eles queriam tratar da pensão, mas, na hora do atendimento, a gente percebeu que eles não tinham definido a guarda, e [a criança] ficava às vezes com um, às vezes com outro, conforme a conveniência. E a gente começou a refletir: e aí, quem vai ter a guarda? Esse filho vai ter que saber que ele vai ter uma casa. Que casa ele vai ter como referência? Então, às vezes, principalmente no meu caso, quando envolve filhos, a gente tenta fazer uma reflexão maior com as partes. A gente fala: quem toma a decisão são vocês, porque eles estão subordinados a vocês, mas, ao mesmo tempo, vocês tem que pensar o que é melhor para a criança, e não para cada um. Então, às vezes, a reflexão acaba sendo maior e, assim, não que interfira na imparcialidade, mas a gente fica um pouco meio na berlinda nessas situações". Além disso, observou-se que as mediadoras do SEMCID não estavam familiarizadas com as divergências doutrinárias afetadas à possibilidade de o terceiro que atua no processo aproximar-se das partes ou intervir para reequilibrar as relações de força entre elas. Questionada sobre o seu posicionamento acerca da questão, a segunda mediadora afirmou: "Eu nem sabia que tinha esse debate sobre a imparcialidade. Nunca li nada a respeito. Mas você dizendo isso acabo me identificando um pouco mais, pois, não que eu tome partido da pessoa, mas eu tento buscar a pessoa daquele lugar de anulação para participar [do processo decisional]. Agora, é um desafio, porque, às vezes, a pessoa está participando, embora esteja perdendo [com aquele acordo] - e não importa a sua opinião naquele momento. O que importa é focar na reflexão e, se essa for a vontade deles (...). Mas dá vontade de inferir. Mas tem que ter esse compromisso com a imparcialidade, porque senão você foge um pouco da técnica. Imparcialidade é importante, mas, às vezes, é necessário que você seja um pouco parcial em relação àquela pessoa que não está conseguindo se posicionar. Não no sentido de favorecer um mais do que o outro, mas para que o outro tenha condições de tomar decisão (anexo II)". Obviamente, os dissensos proposicionais e programáticos relacionados à neutralidade e à imparcialidade são complexos e demandam reflexões profundas. Precisamente por isso, acredita-se que seria proveitoso que o programa investisse, futuramente, em cursos capazes de provocar, entre os profissionais, discussões críticas sobre os limites e a possibilidade de interferência dos terceiros nas relações mediadas. 2.3 As sessões privadas Embora as sessões privadas não sejam obrigatórias, em algumas circunstâncias a sua realização mostra-se necessária para o êxito da mediação. O agendamento das sessões privadas tanto pode ser requerido por uma das partes, como pela própria mediadora responsável. As sessões privadas costumam ser agendadas pelas mediadoras quando os ânimos entre as partes estão muito exaltados e é aconselhável fazer uma pausa para recobrar as possibilidades de diálogo; quando há um evidente desgaste emocional dos envolvidos; quando é necessário esclarecer dúvidas pessoais das partes sobre alguns pontos da mediação; para recuperar a motivação de uma parte no processo, mostrando-lhe os benefícios da decisão consensuada; para consultar as partes sobre a viabilidade do cumprimento dos termos de um acordo; para identificar fatos ou, motivações ocultas ou informações confidenciais que não foram reveladas na sessão conjunta; para confirmar Página 5

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ou afastar suspeitas de desequilíbrio de poderes; ou ainda, em conflitos familiares que 8 envolvam filhos, para identificar o melhor interesse da criança ou do adolescente. Os mediados, por sua vez, solicitam o agendamento de sessões privadas quando sentem a necessidade de apresentar suas razões, interesses, emoções, receios ou outras informações confidenciais que não seriam externadas na presença da outra parte; para sanar dúvidas sobre o processo de mediação; esclarecer sobre impressões equivocadas ou, finalmente, para expor os seus interesses e objetivos. O programa orienta que as mediadoras esclareçam a ambas as partes sobre a finalidade da sessão privada e a possibilidade de solicitá-las a qualquer tempo. Com isso, evita-se que as partes sintam-se preteridas ou ameaçadas no processo. 2.4 A sessão conjunta final e o encaminhamento à Defensoria Pública Após a realização da Sessão Conjunta (e também das Sessões Privadas, se for o caso), frequentemente as partes chegam a diversas possibilidades de acordo, exercitando de maneira livre a criatividade. O passo seguinte consiste em avaliar, à luz de critérios objetivos e considerados justos por ambas as partes, as soluções encontradas para o deslinde da controvérsia. Trata-se de uma etapa de fundamental importância, pois permite que as partes projetem para o futuro as consequências de suas escolhas e reflitam sobre a exequibilidade do que foi acordado. Esse exercício de abstração favorece a construção consciente e ponderada dos pactos, o que, consequentemente, aumenta as chances de cumprimento espontâneo. Identificado o acordo que melhor atenda aos anseios das partes, passa-se à formatação de suas cláusulas. Os acordos de vizinhança não são formalizados por escrito, mas apenas ajustados verbalmente. Já os acordos relacionados a conflitos familiares podem ser reduzidos a termo e homologados judicialmente. Assim, quando as partes manifestam interesse na homologação, as mediadoras encaminham a minuta do acordo celebrado para a Assistência Jurídica da Casa do Cidadão, que encaminhará o documento à Defensoria Pública Estadual ou dos Núcleos de Prática Jurídica conveniados para que sejam propostas as ações consensuais oportunas. O encaminhamento das minutas formuladas pelas mediadoras às instituições conveniadas serve, não somente ao propósito de homologação judicial do acordo, mas, antes disso, como um filtro jurídico apto a identificar possíveis ilegalidades no acordo, bem como cláusulas obscuras, contraditórias, omissas ou inexequíveis. Isso porque, como dito acima, as mediadoras que atuam no programa de mediação da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória possuem formação em Serviço Social, então nem sempre as soluções encontradas coadunam-se com o ordenamento jurídico vigente. 9

A redação do acordo deve levar em conta as consequências jurídicas pretendidas pelas partes e a formação adequada do título executivo judicial. Caso as partes não cheguem a um acordo - seja porque uma das partes desistiu de participar do processo, seja porque não foi possível conciliar os interesses e necessidades em conflito - as mediadoras redigem um termo de encerramento da mediação, nele identificando as partes envolvidas e registrando a finalização do processo sem a resolução do conflito. Os dados são arquivados apenas para fins estatísticos. Os motivos que inviabilizaram o acordo não são registrados, nem tampouco as informações reveladas pelas partes durante as sessões, em razão do dever de sigilo. A regra, contudo, pode ser excepcionada mediante expressa manifestação das partes em sentido contrário. Página 6

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3 Análise de casos mediados pelo programa A fim de exemplificar melhor o processo de mediação desenvolvido pela Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória, optou-se por apresentar dois casos de mediação conduzidos pelo programa. Por razões evidentes, garantiu-se a efetivação do princípio da confidencialidade através da substituição do nome verídico das partes por nomes fictícios. 3.1 Primeiro caso: o posicionamento da janela da vizinha Joana da Silva, de 37 anos, procurou o programa de mediação da SEMCID porque estava incomodada com uma janela construída na casa da vizinha Maria do Carmo, posicionada a menos de dois metros de sua casa e que supostamente violaria a sua privacidade e de sua família. Joana há havia participado de um processo de mediação anteriormente, por meio do qual ela conseguiu se divorciar consensualmente e decidiu questões relacionadas à guarda e visitação da filha. Justamente em razão do êxito obtido na primeira mediação, Joana decidiu retornar ao programa para solucionar o problema de convivência com Maria. A própria Joana assumiu a incumbência de entregar a carta-convite para a vizinha, convidando-a a participar do processo. No dia designado, ambas compareceram à sessão. Ainda no início da sessão de mediação foi possível observar que as razões do conflito não se restringiam à existência da janela, mas também concerniam à forma como a casa foi adquirida. Originariamente todo o terreno pertencia à família de Joana. Contudo, seu tio acabou vendendo um pequeno sobrado localizado no local a uma terceira pessoa, que, por sua vez, construiu uma casa maior e a vendeu à senhora Maria do Carmo. Portanto, os reais motivos da insatisfação de Joana estavam relacionados ao sentimento de invasão provocado pela presença daquela casa no terreno familiar. As palavras empregadas por ela para expor a sua versão dos fatos revelam com clareza as questões sentimentais subjacentes à demanda. Vejamos: "(...) Esse terreno é da minha família! Na verdade, nós perdemos dois pedacinhos: o pedaço da casa dela e o pedaço do vizinho dela, que foi comprado legalmente. Não, quer dizer, não estou dizendo que ela comprou ilegal não, ela fez um trato com uma pessoa lá, entende? Mas esse nosso vizinho, ele só não tem escritura, mas ele comprou direitinho, tem recibo, tem tudo. E o meu tio falou: '- Eu vendi!, entende?' Só que o pedaço dela o meu tio perdeu... Trocou por uma mobilete com um senhor que mora em Andorinhas, aí esse senhor pegou o barraquinho que estava lá, destruiu e construiu uma casa enorme lá. Aí deu um problema muito sério com o sobrinho... Com meu primo, da casa da frente, aí esse senhor teve que sair às pressas de lá e vendeu o terreno, de qualquer jeito, acho que ele falou que era da prefeitura, claro que ele não falou que era residência, senão ele não ia conseguir vender... Os meninos iam fazer coisa ruim com ele, ele tinha que sair de qualquer jeito. Aí, acho que ele vendeu de qualquer jeito também. (...) [quanto à questão da janela] Eu realmente preciso que retire. Tanto que uma janela já foi retirada, porque esse problema não foi só comigo. A família de baixo também teve problema. Tanto que eles são amigos hoje porque não tem mais a janela. A senhora acha que se tivesse janela lá hoje, na frente da casa deles, eles seriam amigos ainda?" Joana da Silva, no entanto, reconheceu que a posição da janela não é incômoda apenas para a sua família, interferindo igualmente na qualidade de vida da vizinha e de sua família: "[A janela] fica desconfortável para ela também. Porque a gente sabe que ela não gosta. Assim, da casa dela, minha escada é uma escada enorme, pra minha casa, casa da Página 7

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minha avó, são várias casas. E a gente, subindo e descendo, a gente olha sem querer pra casa dela e ela fica desconfortável, as filhas também ficam... Eu sei que a gente tá vendo isso, entende? Pra ela e pra gente também, fica muito ruim". Maria do Carmo concordou com o argumento de Joana de que a janela também retira a privacidade de sua família, além de expor com detalhes as dificuldades rotineiras enfrentadas por sua família para conviver pacificamente com os vizinhos e as concessões sacrificantes que precisa fazer para que isto seja possível. Ela também confidenciou que não teria comprado a casa se soubesse, à época, dos problemas familiares relacionados ao terreno. Nas suas palavras: "Realmente, é muito difícil. Tanto que eu nem abro a minha janela mais. Quando eu abro a janela, sempre ouço uma piadinha, entendeu? Então, para evitar problema, eu não estou abrindo a janela. Eu estou com um neto operado, e eu não posso estar com a janela fechada por causa das bactérias do ar, e eu tenho que manter a janela fechada. (...) Tudo bem que essa janela está erradíssima, só que foi o único método de eu ter a minha própria janela, porque a janela da frente, no caso, ficaria dois metros distante da casa. Mas eu tirei a janela de lá porque o tio dela chegou e me pediu para tirar a janela, porque ele já tinha tido problema com o inquilino, seu Joel. Pra eu não ter problemas - e meu irmão, na época, estava separado e morava comigo, meu irmão falou assim: '- Não, Maria, tira essa janela, vê se pode botar ali'. Aí, conversei com ela e a mãe dela e acabamos colocando para o outro lado. E para não ter problema com um vizinho, acabou arranjando com outro. (...) Aí, no caso, eu tenho que ficar numa casa sem janela? Por que se não incomoda um, incomoda o outro. E como eu vou ficar numa casa sem janela? (...) Eu nem sabia que ali era quintal de família, não conhecia ninguém. Por que quando eu fui comprar ninguém me avisou nada?" Após compreender as restrições impostas à rotina familiar da vizinha, Joana afirmou que preferiria manter o terreno exclusivamente com a família, mas reconheceu que isso não seria mais possível. Ela também admitiu que a vizinha havia investido muito dinheiro em benfeitorias na casa e que não seria justo puni-la por erros cometidos por sua família na 10 administração do bem. Joana aventou a possibilidade de alterar a posição da janela para outra parede, voltada para uma casa térrea, onde a construção da janela não ocasionaria prejuízos. Ela também se dispôs a conversar pessoalmente com o proprietário da casa contígua para explicar a situação e pedir autorização para a construção da janela. A solução apresentada mostrou-se satisfatória para ambas. Maria do Carmo afirmou que não via problemas na mudança e que a única questão que lhe incomodava era ter que permanecer com as janelas fechadas, pois isto inviabilizada a circulação de ar pela casa. 11 Joana, por sua vez, assegurou que isto não aconteceria novamente. O conflito foi resolvido em apenas uma sessão de mediação, que durou cerca de quarenta e cinco minutos. Ao final do processo, observou-se que a conversa sobre as questões de fundo do conflito - a sensação de perda vivenciada por Joana; os problemas ocasionados pela falta de circulação de ar na casa de Maria; a ausência de conhecimento prévio sobre as peculiaridades do terreno; os investimentos financeiros feitos para melhorar as condições de habitabilidade da casa etc. - gerou um sentimento de empatia entre as vizinhas, o que foi determinante para a formação do entendimento. Analisando-se objetivamente a questão, é possível inferir que, no contexto de um processo judicial, possivelmente as questões emocionais discutidas na mediação não emergissem à superfície e que o magistrado tivesse que decidir impositivamente o conflito. Noutras palavras, as reais motivações das partes permaneceriam ocultas, o que favoreceria o aparecimento de novos pretextos para o confronto no futuro. A mediação do conflito de vizinhança favoreceu a construção de uma solução integral para o conflito. Além disso, o canal de diálogo aberto entre as partes dá sinais de que o acordo verbal celebrado ao final do processo será cumprido espontaneamente. Página 8

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3.2 Segundo caso: o pensionamento do filho Mariana dos Santos, 17 anos, manteve uma união estável com Pedro Souza, de 22 anos, durante quatro anos, e desse relacionamento nasceu Gabriel, de 4 anos. Após o término do relacionamento, ocorrido há 7 meses, Mariana e Gabriel passaram a residir com Josi, avó de Gabriel. Como Mariana ainda se dedica apenas aos estudos, o sustento da família é custeado por Josi, que trabalha como costureira e aufere um salário-mínimo por mês. Pedro é mecânico, mas atualmente está desempregado e presta serviços esporádicos em oficinas de reparos. Apesar das dificuldades financeiras, ele contribui espontaneamente com o sustento de Gabriel por meio de pequenas compras de supermercado. Mariana e Pedro estavam de acordo quanto à necessidade de pensionamento do filho, mas dissentiam quanto à forma de pagamento e ao valor. Eles procuraram conjuntamente o SEMCID para participar do processo de mediação. Ambos compareceram à sessão no dia agendado, acompanhados também por Josi, uma vez que Mariana ainda não alcançou a maioridade civil. Iniciada a sessão, a mediadora explicou as regras de funcionamento da mediação, ressaltando a necessidade de participação voluntária das partes no processo e o papel decisório das partes na resolução do litígio. Além disso, ela frisou que a responsabilidade pelo sustento da criança é compartilhada entre o pai e a mãe, e que o valor deve refletir as possibilidades do pai e as necessidades do filho. O primeiro a se manifestar foi Pedro. Ele argumentou que trabalha como autônomo em uma oficina mecânica, não possui renda fixa e precisa auxiliar no sustento de sua mãe. Por esses motivos, disse que poderia contribuir com cerca de R$150,00 reais por mês para o sustento do filho. Mariana, por outro lado, alegava que cento e cinquenta reais por mês não seria suficiente. Ela considerava justo que Pedro pensionasse o filho com, ao menos, duzentos e cinquenta reais por mês. Diante do impasse quanto aos valores, a mediador passou a palavra para Josi. A avó da criança assumiu uma postura conciliatória, salientando que Mariana e Pedro possuíam razão em certa medida: por um lado, cento e cinquenta reais não seriam suficientes para custear a metade dos gastos de Gabriel; por outro lado, era preciso considerar que Pedro não possuía rendimentos fixos e que também precisava auxiliar a mãe com os gastos domésticos. Nas suas palavras: "Eu vou ser sincera. Já que ele falou que não trabalha de carteira assinada... Criança gasta, mas não adianta ela querer [que ele contribua com] R$250,00 e ele [ofertar] R$150,00. Cada um sabe do gasto. E [não adianta] falar R$250,00 e na hora não arcar com sua responsabilidade. Eu acho o seguinte... R$150,00 é pouco, mas eu sei que R$250,00 é muito para ele que não tem carteira assinada. Ele falou que ajuda na casa dele, mas aí ele também tem que ter a responsabilidade com a criança. Ele tem que pensar direitinho se R$150,00 vai fazer o custo do filho dele, entendeu?" Depois de ouvir os argumentos de Josi, Pedro concordou em contribuir com duzentos reais para o sustento do filho, mas Mariana ainda discordava do valor. Pedro, então, disse que não poderia se comprometer a depositar uma quantia maior e que se ela estivesse insatisfeita seria melhor discutirem a questão em juízo. Para conter o ânimo exaltado das partes, a mediadora optou por intervir na mediação e esclarecer as vantagens do acordo para a Mariana: "Mas Mariana, você entende que é a possibilidade dele hoje? Que ele trabalha sem carteira assinada, não tem uma comprovação de renda, né? Se vocês encaminharem Página 9

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uma ação sem um acordo, ele não tem comprovação de renda, então, a gente entende as despesas de vocês, a gente sabe quanto um filho gasta. Mas a gente tem que saber também a realidade de cada um. Quando sua mãe ia propor os R$ 200,00 - que eu já estava entendendo a proposta dela -, era justamente um meio-termo, né? Eu preciso que vocês duas tenham um acordo quanto a isso. E se ele ganhar mais, a pensão vai subir, porque esse valor que vocês estão determinando, a gente vai converter em percentual. Eu quero que você entenda que hoje, com a situação dele, seria essa a proposta. Eu sei que, às vezes, não é o ideal, eu também tenho filho e sei que filho gasta. Eu tenho um filho da mesma idade do seu, inclusive. Eu sei que gasta. Só que não adiante, também, pedir um valor muito alto, que ele não possa pagar". Nesse contexto, Pedro reforçou que o valor oferecido ainda era muito alto em vista de suas possibilidades atuais, mas admitiu que os gastos com a criança eram elevados e que ele deveria assumir aquele encargo. Mariana concordou com o pagamento da pensão alimentícia no valor de duzentos reais, que seriam depositados diretamente na conta de Josi nos dias dez de cada mês. A mediadora registrou os termos do acordo por escrito, incluindo a regulamentação da guarda e da visitação, e encaminhou a minuta para o Núcleo de Prática Jurídica responsável pela propositura da ação consensual. O acompanhamento das sessões de mediação do SEMCID permitiu concluir que mesmo os conflitos mais sensíveis podem ser eficazmente solucionados pelas vias conciliatórias. Observe-se que o primeiro caso relatado, apesar das inúmeras questões de fundo existentes, foi resolvido em apenas uma sessão de mediação, com duração de cinquenta minutos. Ou seja, a aparente complexidade do conflito foi desconstruída mediante a abertura de espaço para o diálogo e o entendimento. Por sua vez, o segundo caso relatado demonstrou que não apenas o papel do mediador é decisivo para o sucesso da mediação, mas também que a postura dialógica adotada por uma das partes pode influenciar positivamente no resultado processo. Finalmente, cabe salientar que o programa estudado preza pela participação voluntária e consciente dos interessados nos processo de mediação. Desde o pré-atendimento as partes são informadas sobre as etapas procedimentais e sobre o papel decisivo das partes na composição do conflito. Além disso, o programa trabalha apenas com conflitos familiares e de vizinhança, que são, por natureza, propícios para a mediação. 3.3 O impacto social do programa O programa de mediação desenvolvido pela Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória atende à população hipossuficiente de Vitória (munícipes com renda individual de até três salários-mínimos) há dez anos e tornou-se centro de referência na região para a resolução consensual de conflitos. Em 2006, quando a coordenação de Mediação de Conflitos foi implantada, foram realizadas 2244 mediações, sendo que, dessas, 567 foram finalizadas com acordo, o que significa que apenas um em cada três casos mediados alcançou a composição de vontade entre as partes. Transcorridos apenas nove anos desde o início dos atendimentos, o percentual de acordos firmados após as sessões de mediação triplicou. Em 2014, dos 961 casos atendidos, apenas 235 não chegaram a uma solução consensual sobre o litígio (anexo IV). Os números do programa indicam que apesar de a cultura da litigiosidade ainda estar 12 fortemente enraizada na mentalidade dos brasileiros, a expansão dos programas de mediação pode, efetivamente, favorecer o empoderamento das comunidades, educando-as para o exercício pleno da cidadania. Página 10

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O êxito conquistado pelo programa de mediação da SEMCID dá sinais de que a institucionalização da justiça conciliatória pelos atores do sistema de Justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública etc.) ou por instituições ligadas ao Poder Judiciário pode render favorecer consideravelmente a ampliação do acesso à justiça no país. Aliás, é importante salientar que não se trata de prenúncio sobre uma realidade distante ou inalcançável: há estudos sobre boas práticas de mediação em todas as regiões do país, que vão desde práticas comunitárias e restaurativas até a mediação praticada pelos Tribunais, como é o caso do Centro Judiciário de Jundiaí e o Núcleo 13 Permanente de Resolução de Conflitos do Mato Grosso do Sul. O estudo de caso apresentado demonstrou que um grande empecilho à atuação dos mediadores decorre dos limites interpretativos conferidos à exigência de imparcialidade. 14 Na linha do que defendem Sara Cobb e Janet Rifkin, será necessário um esforço para tornar o sentido de imparcialidade/neutralidade menos opaco, construindo-se um sentido adequado ao termo e consentâneo com as exigências de equilíbrio entre justiça e ideologia. Apesar dos desafios, não há dúvidas de que a mediação representa um importante instrumento de transformação social e que possibilitará a construção de um novo paradigma de acesso à Justiça. 4 Conclusão O presente artigo voltou-se ao estudo empírico do programa de mediação desenvolvido pela Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos do Município de Vitória. A investigação concreta demonstrou que os dez anos recém-completados do programa foram suficientes para firmá-lo como um centro de referência em mediação no Estado do Espírito Santo, disseminando a prática entre a população carente da cidade de Vitória. O estudo de caso também demonstrou que é preciso construir uma significação adequada para o termo "imparcialidade" - um conceito amplamente empregado no campo da mediação de conflitos e, por outro lado, tão pouco compreendido na prática. Demonstrou-se, finalmente, que a institucionalização da mediação tem o potencial de provocar uma mudança substantiva no entendimento sobre as complexidades estruturais dos litígios e sobre os mecanismos à disposição das partes para saneá-los (ou apenas regulá-los) de maneira eficaz. Além da dimensão pacificadora, a mediação também instrumentaliza o processo de emancipação social, pois autonomiza os indivíduos a assumirem o controle sobre o desfecho de seus relacionamentos conflituosos, instando-os ao debate e ao exercício de se colocar no lugar do outro para entender os seus anseios e as suas pretensões. No início do trabalho, questionou-se sobre a possibilidade de a mediação ensejar a superação do estágio de menoridade culposa ainda tão presente nas sociedades atuais. Ao final da investigação, já não resta a menor dúvida de que este é o caminho. 5 Referências bibliográficas ALMEIDA, Guilherme Assis de. "Centro de Integração da Cidadania (CIC): uma experiência inovadora de acesso à justiça e educação em direitos humanos". Revista Meritum. vol. VII, n. 02, jul.-dez. 2012 Disponível em: [www.fumec.br/revistas/meritum]. Acesso em: 25.07.2014. COBB, Sara; RIFKIN, Janet. Practice and Paradox: Deconstructing Neutrality in Mediation . Law and Society Inquiry, n. 16, p. 35-50, 1991. GRINOVER, Ada Pellegrini; SADEK, Maria Tereza; WATANABE, Kazuo; GABBAY, Daniela Monteiro; CUNHA, Luciana Gross (coord.); BRAGA NETO, Adolfo et al. (colaboradores). Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, 2014. Página 11

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KANT, Immanuel. "Resposta à pergunta: Que é 'Esclarecimento'? (Aufklärung)". In: Textos Seletos. Trad. Floriano de Sousa Fernandes. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. SANTOS, Andrea Fachetti Vaillant Moulin dos; SILVA, Andressa Zenande da; MOTTA, Mauro Souza; BELTRAME, Regina Mara Ramos de Miranda; SILVA, Sheila Raquel Christo. Gerência de Resolução de Conflitos (GRC), p. 145. In: Vitória: Direitos Humanos no Cotidiano. SANA, João José Barbosa; COLOMBO, Christóvão; PEREIRA, Tiago Alves (orgs.). Vitória: Semente Editorial, 2013.

1 Conferir as obras de Jorge Ferreira, um dos mais renomados historiadores do séc. XX e Geoffrey Blainey, conceituado tratadista da história contemporânea. 2 Menoridade culposa é o termo utilizado por Kant para definir as sociedades pré-iluministas, muito capturadas por dogmas doutrinários, ao conservadorismo moral e às superstições religiosas e evidencia a necessidade de os cidadãos assumirem suas escolhas e decisões. "O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação do outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo". KANT, Immanuel. "Resposta à pergunta: Que é 'Esclarecimento'? (Aufklärung)". In: Textos Seletos. Tradução de Floriano de Sousa Fernandes. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005, p. 11. 3 Regimento Interno da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos. Disponível em: [http://sistemas.vitoria.es.gov.br/docOficial/?cod="1582]." Acesso em: 27.09. 2014. 4 O Juspopuli Escritório de Direitos Humanos é uma organização não governamental que tem como missão contribuir para a efetivação dos direitos humanos, através da democratização do Direito e da promoção do acesso à Justiça. 5 Conforme explicam Andrea Fachetti Vaillant Moulin dos Santos et alii, "o serviço tem por objetivo trabalhar as dimensões das relações violentas, visando o fortalecimento dos mecanismos psicológicos e sociais para que a pessoa possa enfrentar e superar a situação de violência e/ou discriminação na qual está envolvida e, assim, alcançar mudança de comportamento e a garantia de seus direitos". SANTOS, Andrea Fachetti Vaillant Moulin dos; SILVA, Andressa Zenande da; MOTTA, Mauro Souza; BELTRAME, Regina Mara Ramos de Miranda; SILVA, Sheila Raquel Christo. Gerência de Resolução de Conflitos (GRC), p. 145. In: Vitória: Direitos Humanos no Cotidiano. SANA, João José Barbosa; COLOMBO, Christóvão; PEREIRA, Tiago Alves (Orgs.). Vitória: Semente Editorial, 2013. 6 Como explica a primeira mediadora: "Nós temos uma hora para atender cada casal. Geralmente a gente fala que são cinquenta minutos de mediação e dez minutos para produzir relatório, produzir ofício para a Defensoria, alguma coisa assim. Mas a gente sabe que, às vezes, esse tempo não é suficiente, a gente tem que agendar novas mediações. Quando é conflito de vizinhança, a gente deixa dois horários já pré-agendados, porque sabemos o que vai acontecer. Eu já fiz uma mediação de vizinhança em que vieram todos os moradores do prédio. Eram só dois moradores que estavam em conflito, mas eles chamaram os quatro proprietários para vir, e eu nem sabia! Então foi uma mediação que nem tinha cadeira para todo mundo sentar. Mas vizinhança acaba, às vezes, rendendo mais, demandando mais tempo. Então, geralmente, quando é vizinhança, a gente deixa dois horários. Seriam duas horas para o atendimento". Página 12

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7 SANTOS, et alii, 2013, p. 145. 8 Nas palavras da primeira mediadora: "(...) A gente sabe que, numa situação de desequilíbrio, a mediação fica comprometida. Então a gente tem que fazer com que essa parte possa chegar a este patamar, né? E isso é com muita reflexão, buscando que ela possa refletir, que possa dar respostas, que possa propor... e tem casos que a gente consegue realmente isso, como tem casos que a gente vê que, realmente, isso não acontece. Mas a gente busca esse equilíbrio entre eles, que nem sempre isso vem pronto pra gente, mas a gente tem que trabalhar isso, fazer com que reflitam. Tem caos que a gente tem que parar a mediação, fazer uma sessão privada, com uma das partes e com a outra para ajudar nesse empoderamento, para que a pessoa tenha condições de tomar a decisão final, e não simplesmente acatar. Decidir junto". 9 Impende anotar que as três mediadoras entrevistadas foram unânimes em sugerir, como medida de aprimoramento, que o programa incorpore também à equipe de mediação, profissionais formados em Direito, para que auxiliem na elaboração dos termos do acordo. Nas palavras da terceira mediadora: "[a incorporação de bacharéis de Direito à equipe] Seria extremamente importante, porque, como a formação das cinco mediadoras hoje é na área de Serviço Social, ainda que a gente tenha tido algumas capacitações na área de família, muitas vezes nós não temos condições de estar nos atualizando. Agora, principalmente, com os conflitos de vizinhança, a gente sente falta de orientação jurídica durante as sessões". 10 "Eu acho que sim [que existe possibilidade de acordo]. Tanto que eu vim aqui, eu procurei vocês, porque eu não quero ficar mais brigando, eu já discuti com ela no quintal, entende? Eu não quero mais isso. Eu quero uma coisa certa, direita, entende? Tudo bem, eu acho mesmo que ela foi passada para trás, entende? E nós fizemos errado de deixar ela construir, fazer aquele negócio todo... E a gente sabe que ela gastou muito dinheiro naquilo, entende? Mas ninguém falava nada, aí, deixou a situação chegar até esse ponto". 11 "Não, a gente vai dar um jeito, você não vai ficar sem janela. Você precisa de janela. Isso é pra não ter mais problemas, entendeu? Se é pra gente viver no mesmo quintal, vamos viver bem, não é verdade? É porque está muito desconfortável, não tá bom, não". 12 Como destaca a segunda mediadora, "a princípio, a parte que nos procuram com a intenção de judicializar. A maioria desconhece o processo de mediação, até da possibilidade de ficar no informal. Mas, quando vem o desdobramento, de ter um terceiro imparcial estar facilitando o diálogo, eles acabam ficando. Mas, o que a gente percebe que, no geral, fica a desconfiança no cumprimento deste acordo. Mas é uma questão cultural, de sempre delegar a uma pessoa a responsabilidade de resolver o seu problema. Porém, deixamos claro que, melhor do que ninguém, são eles que sabem o que é melhor para eles mesmos". 13 Os estudos estão relatados em Estudo qualitativo sobre boas práticas em mediação no Brasil. GRINOVER, Ada Pellegrini; SADEK, Maria Tereza; WATANABE, Kazuo; GABBAY, Daniela Monteiro; CUNHA, Luciana Gross (Coord.); BRAGA NETO, Adolfo [et al.]. (Colaboradores). Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, 2014. Também não se pode deixar de mencionar a experiência de acesso à justiça do Centro Integrado de Cidadania desenvolvido pela Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo que além de promover a resolução de conflitos, preocupa-se e educar os cidadãos para o exercício dos direitos humanos. Como explica o professor Guilherme Assis de Almeida, "a ausência quase completa de instituições de mediação institucional para constituição do sujeito de direito nas periferias de São Paulo pode ser vista como Página 13

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parte integrante de uma "ação política oficial" que não tem como prioridade a formação do cidadão, mas, pelo contrário, a repressão - de acordo com arbitrária avaliação do Estado - daqueles categorizados no rol de não sujeitos de direito. Diante desse quadro, o CIC deve ser encarado como uma presença não violenta do Estado nas periferias de São Paulo, em contraponto à atuação policial, que nas mais diversas ocasiões, mostra-se violenta, determinando a seu "bel prazer" quem é ou deixa de ser sujeito de direito. Nessa perspectiva, o CIC oferece outra gramática, radicalmente diversa, de acesso ao direito. Precisamente por essa diferenciada presença, o CIC possui a concreta possibilidade da construção de uma política de promoção dos direitos humanos e constituição do sujeito de direito que, fortalecendo e ampliando o Estado de Direito no âmbito local, seja capaz de oferecer à população das zonas de alta vulnerabilidade social da cidade de São Paulo o exercício de novas formas de emancipação". ALMEIDA, Guilherme Assis de. Centro de Integração da Cidadania (CIC): uma experiência inovadora de acesso à justiça e educação em direitos humanos. Artigo publicado no vol. VII, n. 02, jul.-dez. 2012 da Revista Meritum. Disponível em: [www.fumec.br/revistas/meritum]. Acesso em 25.07. 2014, p. 24. 14 A questão da imparcialidade do mediador foi o ponto central da atenção de Sara Cobb e Janet Rifkin no emblemático artigo "Practice and Paradox: Deconstructing neutrality in mediation". As professoras estadunidenses afirmam que embora a "neutralidade" seja um conceito central da teoria e prática da mediação, cultuado como um antídoto contra o preconceito condição sine qua non para a preservação do contexto comunicacional em que queixas possam ser ouvidas e acordos mutuamente construídos, contraditoriamente o seu conceito permanece indefinido pelas organizações profissionais e pouco debatido nos círculos escolares. Para Cobb e Rifkin, a ausência de contornos claros sobre como deveria funcionar a neutralidade na prática é uma função da retórica da neutralidade. Após analisar as definições de mediação usualmente empregadas no campo da mediação (neutralidade como sinônimo de imparcialidade ou de equidistância), assim como suas implicações concretas, as autoras concluem que a ideia de neutralidade deve ser entendida como uma prática no discurso. Veja-se o que elas dizem: "Neutrality becomes a practice in discourse, specifically, the management of persons' positions in stories, the intervention in the associated interactional patterns between stories, and the construction of alternative stories. These processes require that mediators participate by shaping problems in ways that provide all speakers not only an opportunity to tell their story but a discursive opportunity to tell a story that does not contribute to their own delegitimization or marginalization (as is necessarily the case whenever one party disputes or contests a story in which the per- son is negatively positioned)". COBB, Sara; RIFKIN, Janet. Practice and Paradox: Deconstructing Neutrality in Mediation. Law and Society Inquiry, n. 16, pp. 35- e 50, 1991.

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