Estudo de instrumentação comparada das fontes musicais do arquivo da banda da Polícia Militar do Ceará (1897-1932).

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ESTUDO DE INSTRUMENTAÇÃO COMPARADA DAS FONTES MUSICAIS DO ARQUIVO DA BANDA DA POLÍCIA MILITAR DO CEARÁ (1897-1932) Inez Beatriz de Castro Martins1 [email protected] Resumo: A presente comunicação consiste na apresentação de um estudo sobre instrumentação tendo as fontes musicais do arquivo da banda da Polícia Militar (PM) do Ceará como objeto de estudo. A importância desse trabalho fundamenta-se na divulgação da documentação musical localizada no arquivo da banda da PM, a mais antiga banda militar em funcionamento no estado do Ceará e ainda pouco conhecida da musicologia brasileira e portuguesa. O objetivo geral do artigo foi estudar as diferentes nomenclaturas adotadas pelos instrumentos de sopro no período do século XIX tendo por base a instrumentação apresentada na partitura transcrita por Luigi Maria Smido para o Prelúdio do 3° Ato da ópera “Os mestres Cantores de Nuremberg” de Richard Wagner. O texto levou em consideração a iconografia da banda de 1879 e 1897. Ao final do artigo, apresentou-se adaptação da peça para os instrumentos mais usados nas bandas de música atualmente. O referencial teórico tomou por base os livros Orchestration de Cecil Forsyth, Anatomy of the orchestra de Norman Del Mar e Studi di strumentazione per banda de Alessandro Vessela. Palavras-chave: Banda de música, instrumentação, transcrição. ABSTRACT: This paper consists of the presentation of instrumentation study based on the band's musical sources of the Military Police of Ceará (Brazil). The importance of this work is founded on the dissemination of musical documentation located on the archive of this band, the oldest military band in operation in the state of Ceará and still unknown by the Brazilian and Portuguese musicology. The overall aim was to study the transformations undergone by the woodwinds during the nineteenth century based on the score transcribed by Luigi Maria Smido to Prelude to the 3° act of the opera The Meistersingers of Nuremberg by Richard Wagner. The text took into account the iconography of the band from 1879 to 1897. In the end, the paper show the proposal for adaptation of this score for the most usual wind instruments currently appears in Ceará. The theoretical framework was based on the books of Orchestration by Cecil Forsyth, Anatomy of the Orchestra by Norman Del Mar and Studi di strumentazione per band by Alessandro Vessela. Keywords: Band music, instrumentation, transcription.

INTRODUÇÃO O século XIX foi bastante profícuo para o desenvolvimento dos instrumentos de metal. Com o surgimento dos processos industriais no fim do século XVIII foi possível diversificar os materiais metálicos os quais permitiram que os construtores pudessem fazer experimentações quanto à construção de novos instrumentos. Esta ampliação também foi impulsionada pela necessidade que os compositores românticos tiveram em querer expressar suas ideias por meio de diferentes matizes timbrísticas. A necessidade de melhorar a eficiência técnica, a efetividade musical e

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Professora assistente do Curso de Música da Universidade Estadual do Ceará, doutoranda em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista FUNCAP.

potência sonora estimulou construtores e proporcionou a evolução de muitos instrumentos. A orquestra, como grupo musical, estava cada vez mais se fortalecendo e ampliando como um importante conjunto instrumental. É nesse período que a orquestração torna-se uma área autônoma da composição musical Portanto, a busca por timbres diferentes foi a mola propulsora para a experimentação de novos instrumentos e a melhoria dos já existentes. Neste caso, alguns passaram a formar famílias. É o caso da clarinete que foi ampliado para oito modelos em tamanhos diferentes: requintas, clarinetes pequenos, sopranos, contraltos, basset horns, clarinete baixo, contrabasset horns e clarinetes contrabaixos (SACHS, [s.d.], p. 371-372). Diferentemente dos instrumentos de cordas friccionadas, os instrumentos de metais sofreram mais experimentações em diversas localidades. Países como França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha construíram ou adaptaram instrumentos similares entre si ou bem parecidos. Deste fato derivou um problema quanto ao estudo de instrumentação do século XIX: a compreensão com relação a determinação sobre qual instrumento está sendo usado na partitura estudada é dificultada por causa dessa adoção de uma nomenclatura diferenciada para um mesmo instrumento ou similar em países distintos realizada nessa época. Com o surgimento de novos instrumentos e com as melhorias na produção sonora e nos mecanismos, muitos instrumentos já existentes também se tornaram obsoletos. Eles foram paulatinamente perdendo espaço para os que atendiam melhor as composições compostas. Muitos acervos de bandas de música brasileiras guardam partituras do século XIX e começo no XX, apresentando disposições instrumentais com nomenclaturas de instrumentos muitas vezes não mais utilizados atualmente. Neste caso, surge um dilema quanto à execução de tais peças. Muitas vezes esse desconforto é motivado pela incompreensão quanto à adequação instrumental do período e sua adaptação para a formação instrumental das bandas de hoje. A proposta desse artigo é discutir a instrumentação usada no fim do período do século XIX e começo do XX a partir das partituras preservadas no acervo2 da

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A organização do acervo da banda de Música da Polícia Militar do Ceará foi realizada pela equipe da professora Inez Martins que contou com alunos bolsistas de Iniciação Artística UECE, bolsitas da monitoria de Prática Coral e da bolsista de Iniciação Científica UECE Kamila Rodrigues Serpa que trabalhou na pesquisa desde o início. Colaborou ainda com o trabalho a arquivista da banda da PM

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banda de música da Polícia Militar de Ceará3. Partindo da partitura Os mestres cantores de Nuremberg do compositor Richard Wagner, instrumentada para banda pelo maestro italiano Luigi Maria Smido em 1903, propõe-se discutir a nomenclatura dos instrumentos apresentados nessa partitura. Ao final desse artigo, apresentou-se a adaptação da primeira página da partitura do prelúdio do 3º ato instrumentado por Smido indicando uma formação instrumental mais próxima das usadas pelas bandas de hoje, particularmente no Ceará. O referencial teórico para este trabalho baseou-se nos livros Orchestration de Cecil Forsyth e Anatomy of the Orchestra de Norman Del Mar. Publicados inicialmente em 1914 e 1981 respectivamente os dois livros tem particularidades específicos. Forsyth escreve um livro dando bastante enfoque ao estudo dos instrumentos e suas transformações ao longo da história. Muito importante é a informação sobre como o mesmo instrumento é denominado nos países de língua inglesa, italiana, alemã e francesa e que ajuda a elucidar as questões relacionadas as nomenclaturas dos instrumentos. Norman Del Mar afirma que seu livro não é um tratado de instrumentação. Tem como objetivo dar uma visão a partir do executante e para o regente sobre as questões instrumentais concernentes nas partituras e na orquestra. Além desses, o Studi di strumentazione per banda de Alessandro Vessela foi bastante referenciado por ser um tratado voltado especificamente para os instrumentos de sopro e percussão usados em banda no século XIX e XX. Este trabalho é um recorte do projeto de doutorado da autora que tem como foco de estudo a banda da Polícia Militar do Ceará no período de sua criação em 1854 até 1932. Estão sendo usadas como fonte documental e de problematização da pesquisa, seis imagens da banda que vão de 1879 (?) a 1932. As duas primeiras fotografias serão aqui apresentadas para contribuir na visualização e compreensão dos instrumentos mencionados.

sargento Joiânia Marques. O trabalho teve como objetivo a organizar as partituras datadas do período de 1897 a 1950. 3 Considerada a banda militar mais antiga desse estado, a banda da PM foi criada em 1854 como Corpo Policial. Seu acervo preserva a partitura mais antiga encontrada até o momento em solo cearense, a marcha “Corporação” de Euclides Paiva de 1897.

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1. OS MESTRES CANTORES DE NUREMBERG A ópera “Os Mestres cantores de Nuremberg” (Die Meistersinger von Nürnberg – WWV 96) de Richard Wagner (1813-1883), escrita em três atos, foi apresentada pela primeira vez em 21 de junho de 1868. A instrumentação original da ópera é composta de flauta, flautim, clarinete, oboé, fagote, trompete, trompa, trombone, tuba, violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, tímpano, bumbo, pratos, triângulo, glockenspiel, harpa, alaúde, órgão. No arquivo da banda da Polícia Militar existe uma partitura catalogada sob o número 1071 e que reúne três trechos em sequência do terceiro ato da ópera: o prelúdio inicial, a canção de Walter e o concertato final. A transcrição foi realizada pelo maestro italiano Luigi Maria Smido que esteve no Ceará regendo a banda da PM no período de 1910. Neste período consta que a banda militar podia ser regida por civis, fato que também aconteceu com a banda da PM do estado do Rio Grande do Norte onde existe referência que esse maestro também regeu. Até o presente momento as informações a respeito da vida de Luigi Maria Smido são escassas. Sabe-se que escreveu, transcreveu e arranjou algumas partituras para a banda da Polícia do Ceará conforme consta na relação das partituras depositadas no acervo desta corporação. No caso da partitura dos Mestres Cantores o referido maestro transcreveu-a antes de sua chegada a Fortaleza. No ano de 1903 ele estava em Belém (PA). Esta informação é conhecida porque ao final da transcrição da partitura Smido assina o nome dessa cidade e indica a data final do seu trabalho: 24 de janeiro de 1903. Em 1904 ele já está em Natal (RN). Segundo Câmara Cascudo, o Teatro Alberto Maranhão em Natal foi inaugurado com a presença da banda do Batalhão de Segurança e da orquestra do referido Teatro que foi regida por Luigi Maria Smido4. A referência sobre Smido em Fortaleza é do dia 17 de junho de 1910 quando ele regeu, juntamente com o maestro cearense Henrique Jorge, a Banda Sinfônica do Batalhão de Segurança Pública (nome à época da banda da PM) (NIREZ, 2006, p. 41). Em Fortaleza ele

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Conferir informação no site Acesso: 05 nov. 2013.

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fundou ainda a Escola de Música Carlos Gomes com Edgar Nunes. Morreu em 16 de agosto de 1943 no Rio de Janeiro5 (IDEM, 2006, p.101)

Figura 1: página de abertura do prelúdio do 3° Ato dos Mestres Cntores de Nuremberg foto: Kamila Serpa

Para o prelúdio inicial Smido usa a seguinte instrumentação (mantendo a nomenclatura conforme aparece na partitura sem as abreviações): flautto e ottavino Réb, clarini Mib, clarinetti Sib, saxofoni (ad lib) soprano, alto, tenore e clarone, barítono, cornette Sib, flicorni Sib, corni e genis Mib, bassiflicorni Sib, tromboni 1° 2° 3°, bombardini 1° 2° 3°, bombardoni Mib, Cbasso Sib, batteria. 2. ICONOGRAFIA DA BANDA

O arquivo da banda da Polícia Militar dispõe de 06 imagens tiradas dos seus músicos e instrumentos no período de 1879 (?) a 1932. Cinco delas estão dispostas em quadros na atual sala de ensaios da banda. As duas mais antigas imagens (uma 5

É possível conferir a imagem de Luigi Maria Smido que está publicada no site Sentinelas do Apodi. Disponível em: Acesso 05 nov. 2013.

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delas não está exposta nessa sala) encontram-se no livro do Resumo Histórico da Polícia Militar (RODRIGUES, 1955, p.48). A seguir, foram reproduzidas essas duas imagens em que se é possível ver alguns instrumentos elencados na partitura em 1903, bem como outros diferentes. Importante frisar que nenhuma das duas imagens representa a banda para a qual Smido fez a transcrição da partitura dos Mestres Cantores. É importante recordar que a música foi escrita em outro estado e para outra banda tocar. As imagens aqui servirão aqui como suporte para visualização dos instrumentos usados na época.

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Figura 2: Banda de música da Polícia Militar do Ceará – foto: anônimo Reprodução: Inez Martins

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Original da foto gentilmente cedida por Miguel Ângelo Azevedo (NIREZ). A data destas duas fotografias ainda é controversa. Para Nirez a foto da figura 2 é de 1879 e a da figura 3 de 1897 (conforme a marcação a lápis no verso de cada fotografia). Mas existem reproduções dessas mesmas imagens no livro de Abelardo Rodrigues (1955, p. 48) onde elas aparecem datadas de 1885 e 1879 respectivamente. As datas que a autora considera mais pertinente é a levantada por Nirez. A razão reside na presença das crianças na banda (figura 3). A foto seguinte a esta é uma de 1910 onde se pode ver um número muito maior de crianças e instrumentos. Desta maneira, as três imagens comporiam uma “ordem” e que a presença das crianças está ligada às questões educacionais assumidas ao longo dos anos pela banda da Polícia. Este aspecto ainda está sendo investigado.

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Partindo da esquerda para direita, na primeira fila embaixo, iniciando com o músico do lado oposto à colocação do bombo: oficleide, trombone de pistão, bombardino ou eufônio, maestro, cornetim, sax horn barítono, tuba em mib, oficleide. Na segunda fila atrás: Sax horn alto, cornetim, trombone de pistão, (?)7, Sax horn barítono, Flicorno, sax horn alto, oficleide. Terceira fila: (?), flauta transversa, cornetim, requinta, clarinete, clarinete (?), requinta, oficleide. Quarta fila (no alto): Flauta, (?), (?) (?)8, clarinete.

Figura 3: Banda de música da Polícia Militar do Ceará – foto: anônimo Reprodução: Inez Martins

Esta segunda imagem apresenta outra composição da banda de música com outros instrumentos que não foram incluídos na foto anterior. Observe que nesta foto não se vê a presença de trombones. Partindo da esquerda para direita, na primeira fila embaixo, do mesmo lado onde se vê o bumbo e a caixa: oficleide, bombardino ou eufônio, bombardino, bombardino, sax horn barítono, clarinete, sax barítono, 7 8

Quando o instrumento não esiver sido identificado aparecerá a interrogação entre parêntesis (?). Como este músico apresenta uma faixa transversal, talvez ele seja o tocador do bumbo.

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oficleide, helicon, helicon. Na segunda fila atrás: (?), clarinete, eufônio, sax horn barítono, sax horn barítono, sax horn barítono, eufônio, sax horn barítono. Terceira fila: flauta, flauta, requinta(?), sax horn barítono, sax horn barítono, cornetim, (?), sax horn alto ou genis. Quarta fila (no alto): cornet, cornis, cornetim, sax horn alto, sax horn alto e lira 9.

3. INSTRUMENTAÇÃO Um dos grandes desafios no estudo dos instrumentos de sopro no período do século XIX é decifrar que instrumento está sendo descrito na partitura analisada. A nomenclatura para o mesmo instrumento diferenciou nos países europeus. Além disso, nomes como flicorne, fugelhorn, bombardino, sax horn têm origens nacionais distintas. \traduções, livros de música, tratados, documentos ajudaram a promover mais ainda essa miscelânea terminológica. Neste tópico, pretende-se discorrer sobre os instrumentos de sopro partindo do referencial da instrumentação elencada por Luigi Maria Smido na partitura dos Mestres Cantores. Antes de enfocar diretamente cada instrumento, é importante comentar que os dois livros que tomamos por base de estudo - Cecil Forsyth e Norman Del Mar dão um enfoque maior aos instrumentos atuais e usados na orquestra sinfônica. É o caso do saxofone, por exemplo. No livro de Del Mar existe uma diferença bastante significativa sobre o enfoque dado aos outros integrantes da família das madeiras que participam ativamente da orquestra sinfônica e deste instrumento de palheta bastante característico das bandas. Outra questão importante é que, como compositor italiano, Smido deve ter conhecido a proposição da divisão organizacional da banda proposto por Alessandro Vessela em seu Studi di Strumentazione per banda que teve sua primeira elaboração em 1894. A divisão da banda proposta por Vessela dividia-a em três tamanhos conforme o número de instrumentos e executantes: a pequena (35 executantes), média (54 executantes) e a grande banda (102 executantes). A divisão da pequena banda é muito semelhante à organização da partitura dos Mestres Cantores: 1 flauta em Dó (com ottavino obligato), 1 clarinete piccolo em Mib (requinta), 4 primeiros clarinetes em Sib, 4 segundos clarinetes em Sib, 1 clarinete 9

A discussão sobre a instrumentação nas duas fotografias teve a participação do musicólogo Rui Magno da Silva Pinto a quem a autora agradece a colaboração.

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contralto em Mib, 1 saxofone soprano em Sib, 1 saxofone contralto em Mib,1 saxofone tenor em Sib (com clarinete baixo - clarone - in Sib), 1 saxofone barítono em Mib, 2 trompas em Mib ou em Fá, 2 cornet em Sib, 3 trombone tenores em Sib (ou dois tenores e um baixo em fá), 1 flicorno sopranino em Mib, 2 flicorno soprano em Sib, 2 flicorno contralto in Mib,1 flicorno tenor, 2 flicorno baritono, 1 flicorno baixo grave em Fá ou em Mib, 1 flicorno contrabaixo in Sib, 1 bumbo (com tímpano obligato), 1 caixa e 1 prato (VESSELA, [s.d], p. 115). Dessa formação não compõem a instrumentação dos Mestres Cantores somente o clarinete contralto, o flicorno sopranino e o bumbo. Os outros instrumentos aparecem, mas recebem outros nomes. Se pensarmos que é necessário pelo menos um instrumentista para tocar cada linha proposta, e sem preocupar-se com o equilíbrio sonoro entre os instrumentos, a instrumentação de Smido é para, no mínimo, uma banda de 30 músicos (incluindo os saxofones e o clarone que são instrumentos ad libitum). Smido escreve para a flauta transversa em Réb e flautim também em Réb. Essas flautas eram particularmente usadas em banda porque era comum escrever peças com tonalidades de muitos bemóis. Observe que a tonalidade real desta partitura é Lá bemol Maior, uma tonalidade com quatro bemóis. Então, para ajudar o flautista e facilitar a execução da composição optava-se pelo instrumento em Réb ao invés do afinado em Dó (VESSELA, [s.d.] p. 6). Transcrever então para a flauta em Dó como atualmente se usa nas bandas retoma-se o “inconveniente” de se tocar em tonalidade com muitos bemóis, questão que era evitada com o uso do instrumento de transposição. A família das clarinetes foi bastante ampliada desde a segunda metade do século XVIII sendo a que mais apresenta variedade qualitativa de instrumentos da seção das madeiras. Segundo Vessela ([s.d.], p. 9), os instrumentos mais utilizados na banda são clarinete piccolo em Láb e Mib (requinta), clarinete soprano em Sib; clarinete contralto em Mib e clarinete baixo em Sib (clarone). Nesta peça, Smido emprega os instrumentos que mais são usados nas bandas tradicionais brasileiras: a requinta, o clarinete em Sib e o clarone (menos usual). O saxofone é um instrumento híbrido construído em 1840 pelo construtor franco-belga Adolphe Sax e derivado do clarinete. Forsyth o coloca na seção dos instrumentos de metal porque leva em consideração o material com que ele é feito. No início de seu livro, entretanto, ele explica que a divisão dos instrumentos em 9

“madeiras”, “cordas”, “metais” e “percussão” é funcional para um livro de instrumentação, mas pouco científica. O saxofone poderia ser classificado tanto como instrumento de madeira já que se assemelha aos clarinetes pelo uso da palheta simples embora seu tubo não seja cilíndrico e sim cônico, como também poderia ser classificado como instrumento de metal já que é feito deste material. Como seu livro está dividido por material ele opta por colocar o saxofone na seção dos metais (FORSYTH, 1982, p.13-21). Vessela propõe que um dos empregos dos saxofones é servir de base ou complemento para a família das madeiras em particular nas instrumentações completas onde não figuram clarinete contralto, clarinete baixo e fagote. A presença ou sua supressão nesta música está intimamente ligada a essa proposição (VESSELA, [s.d.], p.24). Observe na partitura a opção por ad libitum para o naipe dos saxofones10. Da família dos metais o trompete e a trompa são os instrumentos que exigem mais atenção devido às experimentações que sofreram ao longo da história e aos diferentes nomes que receberam em alguns países para o mesmo instrumento. O “bugle-horn” é um exemplo que, mesmo com este nome, é um instrumento da família dos trompetes. Este tema merece um estudo separado e mais aprofundado11. Rerforça-se que o objetivo desse artigo porém, é apenas discutir os instrumentos usados na partitura referenciada. O instrumento que Smido propõe não é ainda o trompete que é usado atualmente. Este é um instrumento menor chamado de cornetim (ver a tabela de nomes a seguir), um instrumento bastante usado nas peças do início dos anos de 1880 até as primeiras décadas do século XX (MAR, 1983, p. 276). O trompete atual era designado como trompete a pistões. No século XIX, este trompete era chamado de tromba ventile (italiano), trompette à pistons (francês), ventiltrompete (alemão) (FORSYTH, 1982, p. 89-103). Tanto o cornetim quanto o trompete a pistões são afinados em Sib, com apenas uma ligeira diferença de sonoridade. A transcrição desta linha para o trompete atual não causaria problema de adaptação e extensão, deixando claro que a diferenciação consiste em relação à sonoridade.

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O clarone compartilha a linha do sax tenor. Contudo, entendemos que a proposição do ad libitum seja especificamente para os saxofones. Esse instrumento deveria ser usado, portanto. 11 Paulo Castagna e Fernando Binder (2005) já levantaram essa dificuldade em pesquisa sobre o trompete e suas derivações investigando tratados de época. Existe uma tendência de se achar que clarins, trombetas, pistões e cornetas são os mesmos instrumentos. A autora entende que o uso da iconografia poderá se um importante recurso para a elucidação dessa matéria.

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Antes de falarmos da família do flicorno, o cornis aqui mencionado é a trompa de válvulas, ou como simplesmente chamamos hoje trompa. Observando a figura 3, é possível ver o tubo enrolado do instrumento segurado na mão esquerda do músico. Vessela ([s.d], p.45) informa que a trompa de válvulas em Mib tem seu uso mais comum na banda (“cormo em Mib a pistoni “). A presença da válvula em 1903 já era uma realidade. Logo, a supressão do termo “pistoni” na partitura não é de se estranhar. O uso da trompa em Fá é mais raro na banda e mais comum nas orquestras. O flicorno (fiscorno) ou sax horn é outro instrumento híbrido construído por Adolphe Sax e que representa uma grande família de instrumentos bastante usada nas bandas. Segundo Vessela, o flicorno vem das transformações do “bugle a pistoni” o qual foi denominado em 1843 de “sax horn” e que depois se estabeleceu com o nome de flicorno (IDEM, [s.d.], p. 52). Os dois termos são mantidos até hoje: flicorno é mais usado na Itália e saxhorn mais presente na França. No Brasil, permaneceu a tradição francesa da terminologia. O instrumento mais comum ainda usado hojena banda é o sax-horn em Mib. Vessela apresenta a família compreendendo seis flicornos. A tabela de Cecil Forsyth é quase a mesma. A diferença é que este separa o flicorno tenor e o baixo mantendo a mesma afinação. Neste caso, o total de sax-horns12 para este autor é, de pelo menos, 07. Ele não menciona instrumento afinado em Fá como Vessela.

TABELA 1: Alessandro Vessela ([s.d.], p. 52)

a) Flicorno Sopranino ........................................ em Mib b) Flicorno Soprano ........................................... em Sib c) Flicorno Contralto ........................................... em Mib d) Flicorno Tenor, Barítono, Baixo ...................... em Sib e) Flicorno Basso – grave ................................... em Fá e Mib f) Flicorno Contrabasso ....................................... em Mib

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Forsyth utiliza o termo sax-horn à flicorno.

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TABELA 2: Cecil Forsyth (1982, p. 163-164)13

a) Sopranino em Mib [praticamente o pequeno Mib-Cornet] Na Alemanha, Piccolo-em-Mib] b) Soprano em Sib [praticamente o Sib-Cornet] Na Alemanha, Flügelhorn-em-Sib] c) Alto em Mib [praticamente Althorn] d) Tenor em Sib [praticamente um Sib-Barítono] Conhecido na Alemanha e Áustria respectivamente como Tenor-horn-em Sib e de Bassflügelforn] e) Baixo em Sib [praticamente o Eufônio] Conhecido na Alemanha como Euphonium, Baryton ou Tenor-Bass-emSib. f) Baixo em Mib [praticamente o Eb-Baixo] g) Contrabaixo em Mib [Praticamente o BBb-Baixo, mas com a quarta vávula preenchendo os cinco semitons acima da fundamental Bb. Conhecido na Alemanha como Kontrabass Tuba]

Como se vê acima, Forsyth também faz uma correspondência com outros instrumentos demonstrando que são os mesmos apenas com nomenclaturas diferentes. Além disso, os quatro primeiros listados são instrumentos de meio tubo; os três últimos são as tubas. Norman Del Mar (1983, p. 332) indica que o francês Vicent D’indy (1851-1931) usou os nomes “petit bugle em Mib” e “bugle em Sib” na realidade como sendo, respectivamente, o sax horn sopranino e soprano. Norman Del Mar informa ainda que o instrumento correspondente aos que os italianos chamam de Flicorno em Sib seria o Flugelhorn, nome de uso comum no Brasil. Forsyth também o inclui na família dos saxes horns. É um instrumento típico de bandas. O genis é o outro nome dado para o saxhorn em Mib. No arquivo da banda aparece em algumas partituras o instrumento coralto. Na realidade, esse instrumento é o sax horn em Mib numa inversão aportuguesada da palavra em

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Traduzimos do inglês para o português todo o texto com exceção dos nomes dos instrumentos que estão em itálico que permaneceram como apresentado no livro. Neste caso, traduzimos apenas sua respectiva afinação.

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inglês: althorn = altocor; invertendo temos a associação coralto (cor+alto). Nas bandas militares francesas, ainda persiste a escrita dos saxes horns e tubas como instrumentos transpositores, escritos na clave de sol. Essa escrita transposta e na clave de sol era característica da linha do Sax horn Barítono. Na partitura dos Mestres Cantores, esse instrumento está designado pelo Bassiflicorni em Sib escrito na clave de sol. O Eufônio ou bombardino, como chamamos no Brasil, é um instrumento que descende da família da tuba, uma tuba tenor ou ainda, a pequena tuba em sib. Não é instrumento transpositor e sua linha escreve-se na clave de Fá com afinação em Dó. É um instrumento muito parecido com o Barítono, mas ligeiramente diferente em relação ao calibre do tubo. O trombone é um instrumento de metal que sofreu pouca variação ao longo da sua história. O instrumento que vemos na figura 2 é o trombone com pistões, de uso característico das bandas. A presença dos pistões no trombone facilita a execução de notas rápidas, mas mantêm os problemas de afinação devido o uso de desse mecanismo (PISTON, 1984, p. 301). Na fotografia da banda é possível observar dois formatos de tuba: uma vertical e outra no formato espiralado (helicon). Tanto as tubas baixos, afinadas em Fá ou Mib (mais freqüentes nas bandas), como as tubas contrabaixos (também chamados de BB baixo), afinadas em Sib nas bandas e Dó na orquestra, podem ser construídas nos dois formatos. O helicon foi provavelmente criado em 1849 na Rússia por Ignaz Sowasser, de Viena. Sua forma ajuda ao executante levar o peso do instrumento sobre o ombro. Existem nos Estados Unidos e também no Brasil um tipo particular de tuba chamado de Sousafone em homenagem ao maestro de banda norte americano John Philip Sousa que sugeriu a construção deste formato (SACHS, [s.d.], p. 410-411). A percussão aqui designada por Batteria é o uso de dois instrumentos: a caixa e o prato. Com o bumbo formavam o trio básico da percussão das bandas militares deste período.

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Tabela de nomenclatura dos instrumentos14: Italiano15

Inglês

Flauto

Flute

Ottavino

Francês

Alemão

Português

Flûte

Flöte

Flauta

(ou Piccolo

Petite Flûte

Kleine Flöte

Flautim

Mib Eb-Clarinet

Petite clarinette Eb-Klarinette17

Requinta

Clarinette

Klarinette

Clarinete (a)

Bass-

Clarinette

Bass Klarinette

Clarone

Clarinet

basso Saxophone

Saxophon

Saxofone

Cornet-à-

Cornett

Cornetim

flauto piccolo) Clarino (ou

in

Clarinetto

piccolo16) Clarinetto (o) (ou Clarinet clarino18) Clarone

Sassophone (ou Saxophone saxofoni19) Cornetto (a)

Cornet

pistons Flicorni em Sib20

Flugelhorn

Bugle

B-Flugelhorn

Flugelhorn

Corno Ventile21

Valve-Horn22

Cor

Horn

Trompa

Genis

Althorn

Sax horn Alto

Sax horn Alto

Genis

Bassiflicorni

Baritone

Bugle tenor

Tenor horn

Barítono

Tromboni

Trombone

Trombone

Pousanen

Trombone

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Nomenclatura apresentada tendo por base as nomenclaturas apresentados por Cecil Forsyth. Na falta dessas informações foram incluídas as informações apresentadas por Curt Sachs [s.d.] Alessandro Vessela [s.d]. A tradução para o português é da autora. 15 Na partitura, Smido indica alguns instrumentos terminando em “I” ou “E” numa indicação clara que é mais de um instrumento. Neste caso estamos indicando a nome no singular e conforme emprega Forsyth. 16 Proposta de nomenclatura em italiano e francês proposto por Norman Del Mar (1983, p. 148). 17 O nome deste instrumento não aparece em Forsyth. Optou-se pela denominação do instrumento e sua afinação. 18 Forsyth (1985, p. 251) indica que clarino seria o nome mais comum a ser usado pelos italianos, enquanto que clarinetto o menos comum. Optou-se por indicar o primeiro já que é assim que aparece na partitura dos Mestres Cantores. 19 Alessandro Vessela escreve Saxòfono (singular) e Saxofoni (plural) da mesma maneira que aparece na partitura de Smido (VESSELA, s.d. p. 21). 20 Nomenclatura usada por Curt Sachs (p. 409) 21 Vessela (s.d., p. 44) utiliza apenas o termo Corno para indicar “trompa” em italiano da mesma forma que na partitura de Smido. A imagem que está desenhada neste tratado é de uma trompa com válvulas; Cors em francês e Horn em alemão. 22 Forsyth (p. 109) informa na nota de rodapé 1 que o nome usual em inglês para trompa, com ou sem válvulas é French- Horn

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Bombardini23

euphonium

Basse

à baryton

pistons Bombardon

Bombardino/E ufônio

em Eb Bass

Eb-Tuba

Eb-Tuba

Baixo em Mib

em BBb Bass

BbTuba

BB-Tuba

Tuba em Sib

Tambour

Kleine Trommel

caixa

Becken

Prato

Mib Contrabassi Sib Tamburo militaire Side-drum

(militaire) Piatti

Cymbales

Cymbales

4. ADAPTAÇÃO DA PEÇA

Para a adaptação da partitura dos Mestres Cantores foram feitas as seguintes alterações:

1. A flauta e flautim em Réb foram transpostos para a tonalidade real da peça para serem tocados pelos instrumentos afinados em dó. 2. Atualizaram-se os nomes dos instrumentos para os que são usados. O Cornetto em Sib para trompete, Flicorni para Flugelhorn; Corni em Mib para a trompa em F, genis para a trompa em Mib (assim que é designado nas partituras das bandas atualmente o sax horn em Mib); as duas tubas aparecem com suas afinações, mas não têm suas linhas transpostas., mantendo a tonalidade de som real da transcrição. 3. Observe que a partitura aparece uma linha para o eufônio e outra para o bombardino. Mesmo representando o mesmo instrumento, optou-se em escrever dessa forma para evidenciar a existência de linhas diferentes para o sax horn barítono e o bombardino. Como as bandas de música do Ceará e de muitas partes do Brasil não utilizam o sax horn barítono manteve-se a sua linha de origem adaptando para o bombardino. Portanto, o eufônio está aqui representando a linha do sax horn barítono e o bombardino, ele próprio.

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Segundo Curt Sachs, os italianos chamam bombardino de eufônio. Já os espanhóis chamam de bombardino. O uso de bombardino nessa partitura pelo italiano Smido já signifique o uso comum do termo no Brasil e a apropriação do uso pelo instrumentador.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, o objetivo final deste trabalho foi adaptar a partitura dos Mestres Cantores de Nuremberg de Richard Wagner, instrumentada por Luigi Maria Smido, localizada no acervo da Banda da Polícia do Ceará, partindo de um estudo sobre o uso dos instrumentos de metais usados no período do século XIX e começo do XX, numa readaptação da obra para os instrumentos de sopro mais usados hoje nas bandas de música tradicionais. O objetivo foi realizar um trabalho funcional, ou seja, uma adaptação que tornasse acessível à execução dessa obra por um maior número de bandas, particularmente no Ceará. O trabalho de análise comparativa da partitura original de orquestra com a peça transcrita bem como a execução histórica dessa transcrição poderão vir a ser objetivos futuros de pesquisa decorrentes de forma direta das investigações produzidas nesse importante acervo cearense.

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REFERÊNCIA E BIBLIOGRAFIA

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