Estudo de ontogenese psíquica

May 26, 2017 | Autor: Adamo Veiga | Categoria: Gilbert Simondon
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A interpretação lacaniana, pela sua complexidade extensão da psicanálise seria apenas possível mediante um estudo separado.
O termo Isso, em alemão, da sEs, remonta, em última instância, a Nietzsche que utilizava "habitualmente este termo gramatical para tudo que é impessoal em nossa natureza e, por assim, dizer, sujeito a lei natural". (Freud, 1996, V. XIX, p. 37.)
Vale notar que Bento Spinoza já havia, nos primórdios da modernidade, aberto tal possibilidade teórica, sobretudo em seu Tratado Político e também na Ética.
O termo catexia, inspirado na biologia, remete a concentração de energia em determinado ponto.
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Na medida em que o indivíduo psíquico é uma individuação prolongada, diferentemente do físico.
Sob este ponto, vide Figura 1.
Em uma nota rodapé da sua Narcisismo: uma introdução já havia associado a temporalidade a atividade do Cs, e igualmente, ao que futuramente, se transformaria no superego: " o desenvolvimento e o fortalecimento deste agente observador pode encerrar em si mesmo a gênese subsequente da memória ( subjetiva) e o fator tempo, não tendo qualquer aplicação ao sistema inconsciente." (Freud, 1996, V. XIV, p.86)
De fato, para Simondon, vivente caracteriza-se principalmente por uma coincidência entre topologia e cronologia.
Isto não quer dizer, no entanto, que a não haja simbolização dos objetos externos nem que não haja percepção da realidade pulsional interna. Os dois movimentos são complementares.
Estudo de ontogênese psíquica:
Freud e Simondon.

Resumo:
O presente artigo se pretende uma análise da psicanálise freudiana sob a ótica da ontologia da individuação em Simondon. O que pretenderemos é analisar as três instâncias da topologia mental em Freud – Ego, Id e Superego – à luz dos três momentos da individuação em Simondon – o pré-individual, individual e transindividual. Acreditamos que tal propósito se justifica pela grande e crescente importância dos estudos de Simondon no Brasil e no mundo, e igualmente, pela dificuldade apresentada pelo autor na parte específica de sua obra concernente ao problema da individuação psíquica. Pretendemos assim, oferecer uma solução para tal questão ao retrabalhar a questão da gênese do psíquico, não mais pela psicologia norte-americana como faz o autor, mas pela psicanálise.

Palavras-Chave: Simondon, Freud, individuação, psicanálise, ontologia.












I) Introdução
O que pretenderemos no presente estudo é uma transdução entre a filosofia da diferença de Gilbert Simondon e a topologia psíquica da psicanálise freudiana. Simondon, com efeito, aplica ele próprio a sua teoria da individuação à ontogênese do psíquico; no entanto, suas referências são voltadas, sobretudo, para as teorias psicológicas norte-americanas como gestalt e o behaviorismo. Simondon se dedica pouco a psicanálise, oferecendo poucas referências e, no geral, críticas. O leitor acaba com a impressão de que a aparente maior rigidez científica dos estudos psicológicos se mostrou mais interessante do que as ideias um tanto abstratas do estudo psicanalítico. No entanto, o costumeiro rigor de Simondon, as infinitas referências a trabalhos científicos, os infindáveis exemplos, no que tange a individuação psíquica, tem como resultado um texto excessivamente intricado, obscuro, e, em alguns momentos, até mesmo contraditório. Estas incoerências e labirintos conceituais, infelizmente, não poderão ser trabalhos aqui, sendo objeto de um próximo de estudo. Nossa intenção será de contornar esta dificuldade no pensamento da individuação psíquica trabalhando a filosofia de Simondon no campo da psicanálise freudiana.
Acreditamos que, de fato, a psicanálise oferece um campo de aplicação mais interessante à teoria da individuação do que a psicologia. Na filosofia contemporânea, ela se constitui enquanto inspiração e referência teórica para diversos autores, como Deleuze e Guattari, Jacques Derrida, Michel Foucault, Alain Badiou, Slavoj Zizeck, dentre muitos outros. Desde que ela surgiu, na virada do século retrasado, a filosofia não pôde, com efeito, deixar de responder a ela. A descoberta do inconsciente em Freud foi como um impacto sísmico sob o pensamento filosófico de então, principalmente pela sua cisão prático-teórica com a concepção tipicamente novecentista do sujeito – representada, sobretudo, na figura do sujeito transcendental kantiano. Em Freud, não há mais a identificação da totalidade psíquica a uma consciência auto-referente, como o sujeito inquestionável da dúvida de Descartes; a consciência, agora descrita enquanto sistema, não mais resume a totalidade da vida psíquica, nem aquilo que pode ser determinado como pensamento. O Eu torna-se parte de um sistema mais vasto, um país em um continente monumental no qual o grande mérito de Freud foi o de ter sido o primeiro a explorá-lo; o inconsciente e depois o Isso, abrem sob o pensamento filosófico do Eu todo um novo horizonte ao qual a filosofia não pôde resistir à tentação de adentrar.
Deste modo, pela sua riqueza teórica, optaremos, de forma, talvez, um tanto arriscada, por desenvolver o pensamento da individuação não sob a psicologia, mas sob a psicanálise, focando-se, sobretudo, no texto freudiano.Para tal, será necessário operar certos deslocamentos, tanto dos conceitos específicos de Simondon no que concerne a individuação psíquica, como nos de Freud. Tais deslocamentos se veem justificados no próprio pensamento de Simondon, que como coloca Jean Chateau, se pretende uma análise de "como diferentes domínios totalmente separados por princípio, ontológica e metodologicamente, podem ser postos em relação uns com outros dentro do quadro de um novo enciclopedismo.''(CHATEAU in: Simondon, 2015, p. 11) Trata-se sempre de uma pesquisar relações analógicas entre os diversos estratos do ser (físico, vital e psíquico) e os diferentes campos do conhecimento sem que eles sejam reunidos sobre uma totalidade unificante, mas, pelo contrário, sendo dados na sua própria especificidade e diferença. O conceito de transdução opera justamente nisto: colocar em relação às heterogeneidades conceituais de forma a produzir pela sua tensão uma nova individuação teórica.
O que pretenderemos, então, é o pensamento da ontogênese psíquica a partir da conjunção da topologia mental de Freud, o Ego, Id e Superego, assim como dos sistemas que lhes são coextensivos (consciência -percepção, pré-consciente, inconsciente) com os três momentos da individuação em Simondon, pré-individual, indivíduo e transindividual do mesmo modo que aos três caracteres operatórios deste processo – estrutura, energia e acontecimento.











II) O Id. e o pré- individual.
II.1) O ponto de vista topográfico, dinâmico e econômico: estrutura, acontecimento e energia.
Para Freud, o psíquico compõe-se da interação entre três sistemas principais: o Id (ou Isso), o Ego( ou Eu) e o Superego ( ou Supereu). A postulação do inconsciente – ainda que diferente do Isso, como veremos - é verdadeiramente a grande invenção conceitual da psicanálise. A utilização do termo inconsciente, mesmo que não seja original de Freud, assume nele uma nova significação: trata-se da postulação de princípios psíquicos que não coincidem com a atividade consciente – o velho cogito – a partir de uma observação empírica dada pela clínica. A observação e análise de patologias mentais através, em um primeiro momento, da hipnose e depois, pela técnica da associação livre, revelaram a presença de "atos psíquicos que só podem ser explicados pela pressuposição de atos outros aos quais a consciência não oferece qualquer prova." (Idem, 1996, V. XIV, p. 172.) A compreensão e tratamento da neurose e da histeria só se mostrou possível a partir do reconhecimento que há conteúdos mentais a princípio inacessíveis à consciência; há um algo mental que existe mesmo que não pensado. Este se identifica, primeiramente, a conteúdos reprimidos pela consciência tornado inteligíveis não só a partir da análise do quadro grave da patologia, mas igualmente, a partir da sua manifestação no processo onírico e no chiste, por exemplo. O inconsciente aparece enquanto uma alteridade interna a própria identidade do sujeito, análoga a alteridade primeva do mundo exterior em relação a ele: "não temos outras opção senão afirmar que os processos mentais são inconscientes em si mesmos, e assemelhar a percepção deles por meio da consciência à percepção do mundo externo por meio dos órgãos sensoriais." (Ibidem, p. 176)
No entanto, o progresso da psicanálise leva Freud, a partir de Ego e Id (Idem 1996, V. XIX.), a expandir o conteúdo do seu conceito de inconsciente: o reprimido torna-se apenas uma parte do inconsciente, e não mais a sua totalidade ou instância privilegiada: " reconhecemos que o inconsciente não coincide com o reprimido; é ainda verdade que tudo que é reprimido é inconsciente."(Ibidem, p. 31) Antes, a dinâmica do inconsciente parecia se desenvolver sob o ponto de vista da consciência, como aquilo que ela ativamente rechaça ou como simplesmente aquilo que se opõe antiteticamente a ela; o inconsciente é subordinado a consciência como aquilo que, em nós, não nos é permitido acessar na percepção imediata de nós mesmos. Posteriormente, no entanto, a partir de Ego e Id, temos um ganho de independência do inconsciente, agora feito Isso, no qual o ego e a consciência passam a ser compreendidos a partir de uma diferenciação do mesmo.
O inconsciente, neste momento torna-se um reservatório de energia pulsional. Ele, enquanto Isso, na sua camada mais profunda, nada mais é do que um algo ou um onde as pulsões têm lugar; um apeiron. Já nos artigos de metapsicologia de 1914, quase uma década antes do Ego e o Id, Freud demonstrava uma indecisão entre uma abordagem do inconsciente sob um ponto de vista topográfico, dinâmico ou econômico. A primeira remeteria a uma determinada região na configuração mental – anatomicamente indeterminada ou mesmo indeterminável – na qual os conteúdos inconscientes estariam alojados. A passagem de um conteúdo mental a consciência seria como um deslocamento do ponto A para o B, "isto é que a fase Cs. (consciência) de uma ideia acarreta um novo registro desta ideia, situado em outro lugar."(Ibidem, p. 180) Segundo esta perspectiva, poderíamos ter duas ideias simultaneamente presentes na consciência e no inconsciente, o que explicaria, por exemplo, a permanência de determinado conteúdo reprimido mesmo após a revelação da sua natureza pelo analista. Neste caso, haveria uma ideia de conteúdo idêntico, mas de diferente significação, em dois registros distintos.
Já o ponto de vista dinâmico pressupõe a passagem de um conteúdo representativo inconsciente ao sistema consciente sob uma ótica funcional; esta transposição consistira " em uma mudança no estado da ideia, mudança que envolve o mesmo material e ocorre na mesma localidade."(Idem) Uma mudança qualitativa da ideia que a faria variar topologicamente e não a reduplicação ou deslocamento de uma ideia presente em um sistema para o outro.
Por fim, o ponto de vista econômico se refere a variação quantitativa de energia libidinal catexizadaem determinado conteúdo mental. Este "se esforça por levar às últimas consequências às vicissitudes de quantidades de excitação e, assim, chegar pelo menos a uma estimativa relativa da sua magnitude." (Idem) Sob o ponto de vista econômico, a interação entre os sistemas psíquicos se dá a partir de mecanismos de deslocamento e concentração de energia pulsional/libidinal. O processo de repressão, por exemplo, seria operado pela retirada de catexia do objeto, redirecionando-a para um substituto ou para o próprio ego (dentre outras possibilidades).
A conjugação destes três pontos seria o cerne de uma verdadeira concepção metapsicológica. No que concerne ao nosso atual propósito, esta abordagem metodológica triádica pode servir como um primeiro momento de aplicação da lógica da individuação simondoniana. Primeiramente, a dimensão topográfica para Simondon é coextensiva a uma dimensão cronológica/dinâmica; todo ente individuado existe enquanto expressão de uma interação mútua entre condições estruturais e energéticas, e tem sua gênese operada pela emergência de um fator acontecimental que atualiza as condições energéticas (potencial pré-individual) em uma estrutura. Tomemos o exemplo clássico de Simondon: em uma solução química sobressaturada, há potenciais disponíveis, energia disponível, que durante o processo de cristalização, individuação da solução em cristal, são atualizados na forma de cristais a partir da ação de um gérmen estrutural, uma molécula já estruturada na forma de cristal que amplifica a sua forma na solução inteira. Uma abordagem econômica remete diretamente a uma análise dos potenciais disponíveis e das diferenciais entre eles nos vários mecanismos de catexia; é uma análise quantitativa que trabalha com regimes de intensidade diferencial dos investimentos libidinais. Uma análise topográfica, por sua vez, corresponde a uma estrutura ou sistema ao qual correspondem às características dos conteúdos ideacionais, podendo eles serem inconscientes, conscientes ou pré-conscientes, dependendo da resultante intensiva entre diferentes catexias. Por fim, o aspecto dinâmico expressa o estado atual de determinado conteúdo, segundo a sua funcionalidade em uma estrutura; a estrutura topográfica aliada a distribuição econômica determinam, individuam, qualitativamente, determinado conteúdo mental. O ponto de vista funcional e dinâmico, então, expressa o estado individual da ideia a partir do duplo condicionamento topográfico e energético. Deste modo, ele corresponde a operação de amplificação estruturante, ao caráter acontecimental, que dá gênese ao indivíduo ( no caso, um conteúdo mental-ideacional qualquer).
Esta questão, a princípio bastante metodológica, revelará sua relevância conforme nos esforcemos para abstrair uma concepção de pré-individual a partir do Isso. É necessário ressaltar que a tríade anteriormente exposta se deu a partir de textos anteriores a postulação do Isso, quando Freud ainda se remetia ao sistema Incs.(inconsciente). A principal diferença entre os dois é que o Isso é mais amplo, como a base de um cone no qual o Ego e o reprimido inconsciente figuram como a camada intermediária e a ponta. Isto não impede, no entanto, que a maior parte das características do sistema Incs tenham se mantido após a postulação do Isso. De todo modo, estes três pontos de vista constituem um esquema para se pensar a individuação de conteúdos mentais.



II.2) Característica do sistema Incs. e o pré-individual

De forma resumida, o inconsciente caracteriza-se "pela isenção de contradição mútua, pelo processo primário (mobilidade das catexias), pela atemporalidade e a substituição da realidade externa pela psíquica." (FREUD, 1996, V. XIV, p. 192.) Primeiramente, a isenção de contradição mútua, de negação, significa tanto que o inconsciente não compreende em si mesmo o freio aos seus impulsos pulsionais – freio dado através do ego e do superego com seu princípio de realidade – e, igualmente, que ele não reconhece contradições lógicas: " as leis lógicas do pensamento não se aplicam ao Id., e isto é sobretudo verdadeiro quanto a lei da contradição."(Idem, 1996, V. XXII, p. 83) Em um sonho, eu posso voar e nadar ao mesmo tempo, estar em dois lugares simultaneamente, e quem sabe até mesmo ver um quadrado redondo. No inconsciente, diferentes conteúdos, diametralmente opostos e mutuamente exclusivos, podem conviver sem se anularem.
Para Simondon, por sua vez, a contradição lógica presente no princípio do terceiro excluído só se aplica a realidade já individuada. O ser, enquanto pré-individual, correspondendo a uma pluralidade intensiva não resolvida, não possui qualquer contradição lógica, pois esta só pode ser dita a partir da relação de indivíduos relativamente coerentes em si mesmos. No pré-individual, a contradição – ou melhor, a diferença ou disparação - é tão somente genética. Nas suas palavras:
Segundo a doutrina que apresentamos, o ser nunca é Uno; quando é monofásico, pré-individual, é mais que uno; é uno porque não pode ser decomposto, porém tem em si mesmo com que ser mais do que é em sua atual estrutura; o princípio do terceiro excluído só se aplicaria em um ser residual incapaz de devir; o ser é muitos, no sentido de uma pluralidade realizada; o ser é mais rico que a coerência consigo mesmo.( Simondon, 2012, p. 316)

A contradição só se dará para e no Ego; o inconsciente em si mesmo, por mais que possa apresentar componentes "altamente organizados, livres de autocontradição" (FREUD, op. cit, p. 193) – como no caso de uma memória –, o faz através das "aquisições do sistema Cs."(Idem) A proximidade com o Ego a superfície do psiquismo com o mundo exterior, se dá em uma gradação de individuações. Novamente, como em um cone a base se afasta de qualquer individualidade enquanto na ponta teremos conteúdos mentais mais e mais coerentes, mais e mais individuados.
O processo primário remete as vicissitudes da dinâmica pulsional segundo graus variados de catexia: "no Ics. só existem conteúdos, catexizados com maior ou menor força." (Ibidem, p. 135). A mobilidade pulsional pode ser interpretada como uma relação diferencial e intensiva entre diversos instintos, que podem se agrupar – pela condensação – ou se deslocar, em uma miríade de relações possíveis aos quais correspondem – pela intensidade de catexia – a posição funcional de determinado conteúdo ideacional em um ou mais dos três sistemas. Com efeito, a repressão, que constitui em parte significativa o ego, se dá através de anticatexias pelas quais se procura deslocar determinado conteúdo através de uma realocação do investimento pulsional correspondente. O aspecto relevante aqui é que a individuação de determinado conteúdo mental em sua participação em um ou mais sistemas depende das relações intensivas de cunho pulsional no inconsciente.
A intemporalidade corresponde ao fato de que os conteúdos inconscientes "em, primeiro lugar, que não são ordenados temporalmente, que o tempo de modo algum os altera e que a ideia de tempo não lhes pode ser aplicada." (Idem, 1996, V. XVIII, p.38)A referência ao tempo vincula-se ao trabalho do sistema Cs., sobretudo, pela percepção: "nossa idéia abstrata de tempo parece ser totalmente derivada do método de funcionamento do sistema Pcpt-Cs( percepção – consciência)" correspondendo a " uma percepção de sua própria parte neste método de funcionamento, o qual pode corresponder a uma outra maneira de fornecer um escudo contra estímulos." (Idem) Esta "própria parte" será melhor trabalhada quando analisarmos o Ego, mas deve ser adiantado que o núcleo do Eu é sua relação membranosa com o mundo exterior, tendo mesmo relação de derivação filogenética com as membranas vivas. O ego é uma proteção contra pressão centrípeta do meio exterior, centrando-se, na sua camada exterior, na percepção e mobilidade, como veremos melhor na próxima seção.
Na individuação de Simondon , a temporalidade também só existe a partir do processo mesmo de individuação, estando ausente no pré-individual. O passado e o futuro são derivados do processo de individuação e não são anteriores a ele. Dar a ontogênese à ela mesma, como pretende toda a sua obra, deve necessariamente envolver o tempo no seu modo genético e constituinte. A individuação enquanto devir do ser é presentificação. O passado e o futuro se dizem a partir dela. O pré-individual, a tensão antes da solução, só se torna passado a partir do processo de individuação: "o devir é o ser como presente na medida em que se defasa atualmente em passado e futuro." (Simondon, op. cit. , p. 481) A partir da aparição de fases no ser é que uma temporalidade, enquanto a própria sucessão de fases, será possível. Antes, no entanto, não há temporalidade, e é com base nisso que ele pode afirmar que o pré-individual se mantém contemporâneo ao indivíduo. Na medida em que o presente se presentifica temos um prolongamento da individuação que operará concomitante a uma polarização em passado e futuro; o presente não se dá de uma única vez, mas se prolonga estabelecendo neste prolongamento tanto o passado, quanto o porvir.
Por fim, a "substituição da realidade externa pela psíquica" nos apresenta de imediato um problema. Parece-nos que a postulação leva a derivação de uma disjunção entre realidade externa e interna, sem levar em consideração o ponto em que se forma a exterioridade e a interioridade, no caso, o ego em sua função membranosa. O termo substituição indica a existência de duas realidades distintas, independentes, que podem ser cambiadas uma pela outra. O Id, sendo pré-individual, não comporta ainda esta disjunção, e sendo mais amplo que o ego nele inserido, como podemos falar de um indivíduo através do qual haveria uma realidade externa e uma realidade psíquica interna? Este problema, de fato, levanta um problema ainda mais complexo no pensamento freudiano: o inconsciente é individual ou coletivo? Se o individuo corresponde ao ego, este enquanto parte do Id, não pode possuir um Id pessoal, individual, pela simples razão de que ele que está no Id e não o contrário. Seria necessariamente coletivo, por conseqüência. Mesmo que Jung (2002, p. 15) afirme que Freud tenha abandonado uma concepção individual do inconsciente a partir justamente do conceito de Id e de supereu e Lacan afirme que o inconsciente é transindividual (Lacan, 2014, p. 123), a nossa impressão particular é que é possível depreender tanto uma interpretação quanto a outra. No entanto, aos nossos propósitos aqui, uma interpretação do inconsciente freudiano que o tome como individual e não coletivo nos imporia grandes limitações teóricas. Optaremos, então, pela interpretação oposta, tomando-o como coletivo, ou melhor, transindividual (como veremos mais adiante).
Deste modo, esperamos ter demonstrado como o Id é pré-individual na medida em que consiste de catexias, diferenças intensivas entre pulsões, que se defasam em estruturas atuais na forma de conteúdos mentais e mesmo na forma do Ego. A intemporalidade e a ausência de contradição lógica sustentam tal aproximação. Não há tempo, senão para a consciência e a percepção do indivíduo relativamente constituído; nem contradição possível em uma relação cujos termos ainda não foram individuados.








III) O Ego e o Indivíduo
III.I) Consciência e Percepção

Muito sobre o Ego já foi dito na sessão acima. Prosseguiremos agora com um pouco mais de detalhe. O Ego em Freud é a "parte especialmente diferenciada do Id a partir da influência do meio externo."(Freud, 1996, V.XIX, p. 12) O Ego torna-se uma gradação entre o Id e o mundo externo; ele se individua pela relação deste com aquele. Define-se, mais precisamente, como uma "estrutura coerente de pensamento"(Ibidem, p. 34) e como aquilo que controla parcialmente a motilidade, ou seja, a ação física no mundo exterior. Ele, de forma mais precisa, é uma zona do Id pressionada simultaneamente pela pulsão e pelas exigências do meio. É mediação entre os dois. Na medida em que tem sua gênese a partir do Id e do mundo, ele é uma individuação que soluciona, continuamente, estas duas pressões. Em Simondon uma das características da individuação vivente e psicossocial é, diferentemente de uma individuação física, a continuação do processo de individuação a partir de sucessivos aportes de informação e da permanência da metaestabilidade. A individuação não é dada de um lance só, como no ser físico, mas se prolonga em diversas camadas de individuações sucessivas. O ego na medida em que se individua a partir destas duas tensões, comporta individuações contínuas a partir dos problemas que lhe são aportados tanto do Id, quanto da realidade exterior.
O ego se desenvolve topograficamente a partir do mecanismo dinâmico do sistema Perceptivo-consciente. Na realidade, a consciência nada mais é do "que a superfície do aparelho mental, ou seja, função de um sistema que, espacialmente é o primeiro a ser atingido a partir o mundo externo." (FREUD, 1996, V. XIX p.33) Por esta razão, o ego é primeiramente perceptivo. A consciência, se tradicionalmente comporta a essência da individualidade humana, em Freud, torna-se tão somente a percepção imediata do meio exterior ou da pressão interior instintiva.
A percepção, em Simondon, por sua vez, estará ligada a uma atividade individuante e não a uma mera apreensão de forma. Pela percepção, "o indivíduo se individua na medida que percebe seres, constituindo uma individuação através da ação ou da construção fabricadora, e forma parte do sistema que compreende sua realidade junto dos objetos que percebe ou que constitui." (SIMONDON, op. cit, p. 366)) A percepção opera em uma gênese coextensiva ao indivíduo e ao meio; ao mesmo tempo que é uma atividade seletiva pela qual o meio torna-se um objeto para o indivíduo, também é através dela que o indivíduo (psicossocial) se torna propriamente individuo pela atualização dos potenciais aportados pelo mundo em um paridade coerente. A questão da membrana viva - por mais que para Simondon ela não seja ainda capaz de percepção, mas apenas de tropismos - expressa muito bem a produção contemporânea de uma interioridade orgânica e uma exterioridade inorgânica. Ela "caracteriza-se como aquilo que separa uma região de interioridade e de exterioridade" (Ibidem, p. 335.) É a partir da membrana que teremos um indivíduo e um meio associado. Ela nada mais é do que uma polarização ativa entre os dois. Se a representação que usualmente temos dela é a de uma linha, ela é antes uma atividade seletiva que regula a entrada e saída de componentes. Ela institui a polaridade constitutiva de um dentro e de um fora, é um traçado ativo que recorta topologicamente o espaço, definindo estas duas direções. Como no Ego, a polarização ativa corresponde a uma solução contínua da tensão entre estímulos exteriores e um movimento interior. Ela define o dentro e o fora que por sua vez será associado ao surgimento de uma temporalidade.
A membrana instaura um passado topologicamente integrado na sua interioridade, nas substâncias absorvidas do meio exterior e aos processos constitutivos de digestão, de interações químicas e etc, e um futuro enquanto estímulo externo e potencial material de absorção. Ela é o que opera, em nível mais cru, a individuação ativa e contínua, ontogênese prolongada, que define o vivente em relação ao ente meramente físico. Se, em Freud, o Ego em sua camada mais superficial, provém filogeneticamente da membrana, e esta, constitui a individuação em ato, podemos ver como o eu opera na função indivíduo na tríade simondoniana

II.3) O Pré-consciente e o regime simbólico.
O sistema Pcpt.- Cs não é, contudo, todo o Ego. Grande parte deste sistema coerente de pensamento e conduta está no inconsciente. Em outro nível, menos profundo que o Id., o pré-consciente corresponde a conteúdos inconscientes do Ego, dispostos em estado de latência e assim passíveis de serem trazidos a consciência. O pré-consciente funciona como uma camada intermediária entre o Id e o Eu, sendo sobremaneira caracterizado pela simbolização verbal. Como escreve Freud:
[...] a diferença real entre uma idéia (pensamento) do Ics ou do Pcs consiste nisso: a primeira é efetuada em algum lugar material que permanece desconhecido, enquanto que a última( a do Pcs) é, além disso, colocada em vinculação com representações verbais. Esta é a primeira tentativa de indicar marcas distintivas entre os dois sistemas, o Pcs, e o Ics, além de sua relação com a consciência. A pergunta 'Como uma coisa se torna consciente?'seria mais vantajosamente enunciada 'Como uma coisa se torna pré-consciente?'. E a reposta seria: Vinculando-se às representações verbais que lhes são correspondentes. (FREUD, 1996, V. XIX, p. 34)

O pré-consciente, então, consiste no momento em que determinado conteúdo simbólico é individuado a partir do Id, sem que este necessariamente passe a consciência imediata, mesmo que seja assim possível pelo seu caráter latente. Para Simondon, a simbolização é análoga à percepção enquanto atividade de integração: "a integração simbólica [...] supõe as integrações perceptivas, mas estas encontram uma grande possibilidade de expansão a partir do emprego de símbolos." (SIMONDON, 2015, p. 315.) A integração perceptiva necessita do estímulo atual do meio exterior, enquanto a simbolização permite a formação de uma unidade para além desta presença, o que torna possível a antecipação, a previsão e etc; o objeto pode ser trabalhado, pensado, sem estar atualmente presente. A simbolização então, é como a percepção; se a primeira trabalha a partir dos estímulos do exterior, constituindo uma individuação deste em objetos integrados, a simbolização, no que tange ao psiquismo humano, exercerá a mesma função em relação aos estímulos vindos do interior, do inconsciente e do Isso. Os conteúdos inconscientes precisam se individuar, se integrar, em símbolos verbais (ou mesmo imagéticos) antes de passarem a consciência. As duas operações são os índices de individuação do ego a partir dos dois vetores diferentes de força do qual ele é a solução.










II.4) A gênese do Ego a partir da identificação.

Para Freud, a estruturação do ego a partir das tensões pulsionais e reais se dá a partir da identificação. Inicialmente, a catexia é narcísica; o gozo do bebê vem associado à autoeroginia dos seus próprios órgãos sensoriais. Em dado momento, esta catexia se desloca para o mundo exterior, motivada pela necessidade de satisfação de impulsos orgânicos, como a fome, por exemplo. Agora, a pulsão do Id emana em direção aos objetos do mundo exterior, e com ele, a frustração desta satisfação pela indisponibilidade ou inacessibilidade do objeto. O Ego, débil nesta fase do desenvolvimento, reage a catexia agora objetal através da "introjeção", em uma operação dupla. Por um lado, correspondendo a uma fase particular do desenvolvimento (fase oral) sexual infantil, na qual "introjeção" tem o significado literal de comer, pôr para dentro; por outro lado, quando a satisfação não é possível, ele reage através da identificação, mecanismo pelo qual o Ego se põe no lugar do objeto enquanto seu substituto, deste modo, fazendo a libido depositada no objeto se tornar, mais uma vez, libido narcísica. A pulsão abandona a direção do objeto se voltando novamente para o ego; na verdade, é este o momento basilar de constituição do mesmo. Este, como coloca Freud "é formado, em grande parte, a partir de identificações que tomam o lugar de catexias abandonadas pelo Id." (FREUD, 1996, V. XIX, p. 31) A pressão centrífuga do meio exterior, expressa pelo principio de realidade, é a responsável pela remissão da libido objetal em libido narcísica. O ego, então, se constitui assim enquanto objeto de investimento libidinal do Id a partir de uma reação a resistência do mundo exterior; a partir deste processo teremos a diferenciação do Isso em Eu. Nas palavras de Freud:
O ego, afinal, é apenas uma parte do id, uma parte que foi adequadamente modificada pela proximidade com o mundo externo, com sua ameaça de perigo. Do ponto de vista dinâmico, ele é fraco, tomou emprestadas ao id as suas forças, e em parte entendemos os métodos - poderíamos chamá-los subterfúgios - pelos quais extrai do id quantidades adicionais de energia. Um dentre tais métodos, por exemplo, consiste em identificar-se com objetos reais ou abandonados. As catexias objetais procedem das exigências instintuais do id. O ego tem de, em primeiro lugar, registrá-las. Mas, identificando-se com o objeto, o ego recomenda-se ao id em lugar do objeto e procura desviar a libido do id para si próprio. Já vimos [[1]] que, no decurso de sua vida, o ego assume dentro de si um grande número de precipitados, como este das mencionadas catexias objetais. (Idem, 1996, V. XXII, p. 86.)
Freud, no seu principal texto sobre o narcisismo, coloca tal questão nos termos de uma "catexia libidinal original no ego, parte da qual é posteriormente transmitida objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada com as catexias objetais, assim como o corpo e uma ameba está relacionado com os pseudópodes que produz." (Idem, 1996, V. XVI, p. 83) A identificação, assim, consiste no modo de individuação do Id a partir da tensão entre os dois vetores, a pulsão e o mundo; ela é a membrana, sua atividade seletiva, uma modulação. Cabe se indagar, no entanto, se este auto-erotismo primário, anterior à identificação, não estaria ligado à simples recepção de estímulos, à orientações tropísticas e não a uma atividade de integração seletiva, que como vimos, é própria ao ego. Esta integração só pode ser dar a partir da percepção e pelo simbolismo, então, nos parece razoável, mesmo que nos afastando de Freud, reservar o termo ego a um grau mais elevado de coerência e ipseidade.
De forma resumida, o ego, enquanto estrutura coerente só se individua a partir destes dois níveis, a percepção e a simbolização, sendo a identificação este processo de individuação, enquanto solução da tensão entre o mundo externo, objetal – integrado pela percepção - e a demanda interna da pulsão – integrada pela simbolização. O momento em que a libido vai para fora e retorna sobre o influxo da resistência exterior é a ontogênese do ego; e isto, será justamente, o processo de identificação. Em Simondon, o processo de individuação precisa de um caráter acontecimental que será identificado a atividade amplificante que traduzirá o caráter energético, os potenciais disponíveis, em estrutura. Estes gérmens estruturais correspondem, no caso analisado aqui, precisamente às identificações. Elas são as singularidades através do qual o ego se estrutura atualizando os potenciais da libido em uma organização coerente. Por outro lado, serão as responsáveis pelo fundamento do coletivo enquanto estrutura superegóica. A identificação será o fundamento do transindividual na qual as cargas de natureza associada de indivíduos relativamente individuados se comunicam em uma outra individuação mais vasta. Veremos agora, como o transindividual pode ser relacionado ao superego em Freud.








IV) O supereu transindividual
O que nos interessará nesta seção será a operatória por trás da constituição de uma instância propriamente social no ego a partir da carga pulsional ( ou natureza associada) do Id.. Trata-se da mútua gênese do coletivo e o ego a partir da identificação. Isto nos permitirá, por um lado, demonstrar com mais profundidade como o Id não é individual no texto freudiano – o que seria contrário a nossa aproximação com o pré-individual, - e como os diferentes egos se estruturam em uma relação transindividual em um socius.

IV.1) O problema Édipo.
O superego, em Freud, se caracteriza por ser uma instância crítica, observacional em relação ao ego, e mais ainda, por ser a responsável pelas condutas sociais, culturais e morais. O superego é um sistema de repressão que força o ego à sua satisfação, do mesmo modo que o Id., igualmente, o faz através das exigências das catexias objetais. O Eu, como coloca ironicamente Freud, é "uma pobre criatura que deve serviços a três senhores e, conseqüentemente, é ameaçado por três perigos: o mundo externo, a libido do Id e a severidade do superego."(FREUD, 1996, V. XIX, p. 34-35.) Topologicamente, o superego possui a particularidade de ser, simultaneamente inconsciente, consciente, e coletivo. Possui elementos inconscientes – como a culpa ou a sensação de ser observado na paranóia –mas, ao mesmo tempo figura à consciência sob muitas formas, como a do dever moral e do julgamento racional, por exemplo. Ele é mais do que individual, mais vasto do que o Eu, pois é sempre social, regendo e tornando possível a relação entre indivíduos, sobretudo, pela repressão da consecução imediata das suas necessidades instintivas. Um estado de natureza hobesiano, para Freud, seria análogo a inexistência de um superego; este, como um Leviatã, impõe as demandas do Id um limite, um caminho e uma norma.
O supergo é transindividual, na medida em que, sendo inconsciente, e também contemporâneo ao ego, é fundamento do coletivo. É a alteridade intestina, o excesso do ego em relação a si mesmo, que comunicando-se com o excesso de outros egos relativamente individuados, estabelece um regime de determinação recíproca, uma integração de outra ordem que resolve esta carga remanescente. Ele é externo e interno, é uma mediação, como o ego, mas em um outro nível que o engloba, e prolonga a sua própria individuação.
Este Leviatã freudiano, no entanto, é pensado a partir de uma perspectiva bastante individual, expressa pelo primado do complexo de Édipo. Dissemos individual, pois, mesmo que ele exerça a função de uma invariável e de uma estrutura transhistórica responsável pela instituição da existência coletiva, ele é pensado a partir da perspectiva do individuo e sua narrativa familiar, das relações primeiras com os seus pais. Freud parte da indução elevando a norma geral uma situação particular. O supereu, para ele, seria derivado do Édipo em um duplo movimento: primeiro, a partir da identificação com um dos progenitores através da catexia objetal primária, e em seguida, pelo deslocamento da libido objetal produzida por tal escolha para o Ego pela repressão. A escolha objetal do menino pela mãe gera uma identificação com o pai, que ao mesmo tempo, surge como empecilho para a realização dos seus desejos com a mãe, o que produz, em consequência, uma posição ambígua em relação ao mesmo: deseja-se ser o pai, mas ele é simultaneamente odiado. Esta ambigüidade seria superada a partir da repressão (operada pela identificação com a força repressora do pai) que lança este conteúdo libidinal de volta ao Id. A tirania da repressão parental se aglutina ao desejo objetal por um dos parentes, e descendo até o inconsciente, assume a figura do superego, que carrega toda potência das pulsões do Id: "o ideal do ego, portanto, é o herdeiro do complexo de Édipo, e, assim, constitui a expressão dos mais poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais do Id."(FREUD, 1996, V. XIX, p. 50) Deste modo, se vimos que o ego se constitui através das identificações, o superego o é igualmente, sendo nada mais do que uma "identificação privilegiada", primitiva e determinante do futuro desenvolvimento deste. A ontogênese então do superego é paralela a do ego, ambas se dando a partir de uma diferenciação prolongada do Id.
A narrativa edipiana será, nos textos culturais de Freud, elevada à condição de estrutura da vida coletiva. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, (FREUD, 1996, V. XVIII) Freud identifica a formação do coletivo à identificação e, consequentemente, ao compartilhamento de um mesmo ideal de ego. Ela é a "mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa."(Ibidem, p. 109) Desde Totem e Tabu, (Ibidem, V. 13), a vida coletiva em seu nascimento é identificada à cena parental, ao pai primevo da horda primitiva que posteriormente é assassinado e ritualisticamente devorado pelos seus filhos (introjeção e identificação). A origem dos vínculos afetivos entre os membros de certo grupo é, então, pensada a partir de uma Édipo coletivo, cuja figura de liderança assume o papel do pai; no caso de grupos sem liderança clara, Deus ou um outro substituto pode exercer o mesmo papel. Tal vínculo se dá, então, entre o líder (pai) e cada parte do coletivo, ou entre os membros do coletivo entre si. Este segundo aspecto, se estrutura sob a opressão vivenciada em conjunto, e, que, dentro da narrativa da horda, será a responsável pelo parricídio. A figura do líder, enquanto representando do pai junto à identificação privilegiada dos progenitores, será a responsável pela instituição de um superego na sua dupla natureza, individual e coletiva, o que Freud demonstra de forma particularmente detalhada no caso do povo judeu em Moisés e o Monoteísmo.(Freud, 1996, V. XXIII.) Deste modo, a existência do grupo é estabelecida pelo compartilhar do mesmo superego, do mesmo conjunto de valores através de uma identificação (ou um conjunto de) em comum, mesmo que esta seja sempre articulada sob a relação com os pais.
Uma aproximação deste esquema com o transindividual em Simondon tem no primado edipiano um empecilho inicial. De fato, o remetimento da gênese do coletivo a uma situação individual – o desamparo da criança diante dos pais -, em Freud, torna-se uma invariável estrutural e mesmo transishistórica; temos, não um método transdutivo, mas uma indução que vai do particular a generalidade humana.
Deleuze e Guattari (2011) elaboraram uma grande crítica a esta abordagem dos processos mentais pelo ponto de vista do indivíduo isolado, afirmando que tão logo Freud descobriu o reino das singularidades intensivas no inconsciente, o totalizou e unificou sobre a égide do romance familiar. Com efeito, a narrativa edipiana se dá sob o ponto de vista de um desenvolvimento individual, posteriormente atribuído violentamente a história, a sociedade, ao Estado. Isto dá margem a uma conceptualização do superego não como transindividual, mas interpessoal; relação entre indivíduos já constituídos e não relação constituinte de indivíduos. Esta questão se relaciona diretamente com a problemática que colocamos anteriormente sobre a natureza coletiva ou individual do inconsciente. Na primeira hipótese, teríamos um superego privado no inconsciente de cada indivíduo, mesmo que semelhante em natureza ao dos outros membros do coletivo, expresso na forma de indivíduos separados se identificando simultaneamente ao mesmo ideal de ego. No segundo, teríamos uma instância verdadeiramente coletiva associada a um processo de identificação enquanto ontogênese do indivíduo e, simultaneamente, instância efetuadora do socius. A partir da mesma opção que fizemos anteriormente, ficaremos com a interpretação de um consciente coletivo (e, por conseqüência, transindividual) e assim, de um superego – mesmo que para isso nos afastemos de Freud – independente da cena edipiana em particular. Diversas outras identificações podem assumir o privilégio na constituição de um superego, não só a parental apesar de, aturalmente, ser um caso provável na nossa configuração social, ocidental e burguesa. Deleuze e Guattari (Idem) demonstram bem como não há uma relação vertical entre as identificações – o pai nunca é o pai, mas também o empregado, o marido e etc – mas, sim ,horizontal ou mesmo rizomática na qual o Édipo perde a função arquétipica, a função de origem sempre presente e de destino manifesto do desenvolvimento psíquico. O Édipo é um ponto na obra freudiana em que analiticamente o social perde a sua coextensividade ao individual, sendo a mesma substituída por uma relação de derivação indutiva como em uma reversão da fórmula durkheimiana. Infelizmente, adentrar no detalhe da crítica deleuze-guattariana nos levaria a uma exposição por demais extensa para os nossos propósitos aqui.

IV.4) A repressão seletora.

Uma outra dificuldade em associar o superego ao transindividual reside na ênfase aos caracteres repressivos deste. O transindividual não é um fato social durkheimiano exercendo uma coerção externa sobre o individuo singular; ele é genético muito mais do que repressor. Por outro lado, como vimos a partir do Édipo, em Freud, grande destaque é dado ao caráter repressivo do superego. Superficialmente, podemos nos sentir inclinados, ao analisar tal temática na obra freudiana, a concebê-lo apenas como um crítico cruel, o peso de um ideal inatingível herdado das relações parentais, ao qual, produzindo um mal estar propriamente civilizacional, far-nos-ia renunciar ao gozo pulsional. No entanto, em certos textos, a função repressiva é colocada junto de outras: em O Humor (1996, V. XX.) Freud nos fala de uma identificação redobrada com o ideal de ego que permite um afastamento da situação concreta produzindo, deste modo, alívio e prazer. Para Lacan, por sua vez, o superego poderá mesmo incitar ao gozo insaciável ao invés de reprimi-lo, o que seria característico de nossa época. Igualmente, certas funções como o asseio e o próprio amor são igualmente derivados do ideal de ego. Deste modo, ele não é de modo algum apenas repressivo.
Por outro lado, como esboçamos antes, a repressão, a censura, como trabalhada por Freud, é interpretada por Simondon como uma modulação própria ao indivíduo: "em um certo sentido, a psicanálise, com a noção de censura, apresenta a noção de seleção."(SIMONDON, 2015, p. 385). A seleção, ou melhor, a seletividade é a operatória pela qual a estrutura se atualiza em indivíduo. A função membranosa do ego, como vimos, é em si uma seleção de caráter ontogenético. Escreve Simondon:
Aquilo que no indivíduo é insubstituível, é a sua função moduladora; não é senão nele que as atitudes podem disparar as energias, não é senão nele que as energias potenciais podem se atualizar sob uma carga social determinada. [...] a psicossociologia existe como o saber definido na medida em que estes processos de atualização não podem se cumprir senão por uma tomada de consciência da informação recebida por uma atualização consciente visando situações sociais.(Idem)
O socius, para Simondon, sendo transindividual, é um sistema de ressonância interna de informação; é um sistema que integra ordens de grandeza díspares, como um organismo (não em um sentido mecanicista, necessário frisar) onde as diferentes funções vitais se integram em um nova individuação de ordem superior. Um seletor definindo-se como "receptor de informação ou operador de um trabalho de cunho seletivo, isto quer dizer, de acordo com uma categoria eventos possíveis" (Ibidem, p. 379), corresponde, na tríade do processe individuação, ao caráter acontecimental, ao progresso estruturante que atualiza potenciais em estrutura. Um gérmen estrutural é essencialmente um modulador, e a operação transdutiva, uma modulação. Uma determinada estrutura, em sua atualização, fecha o campo de possíveis, produz uma gradação de identidade na diferença. A "seletividade fecha o receptor ao reduzir o campo de possíveis" (Ibidem, p. 380), o que leva a constituição de padrões de comportamento (patterns); uma produção de homogeneidade a partir da heterogeneidade intensiva do pré-individual. A repressão, assim, possui seu caráter genético enquanto modulação, polarização ativa.
Por fim, uma determinada identificação, determinado ideal de ego, opera justamente como uma tal modulação, podendo se dar entre vários níveis, ressoando em maior ou menor grau em um sistema de modo a se tornar mais ou menos proeminente em dado socius. O indivíduo atualiza os seus potenciais latentes segundo a atividade amplificante das suas identificações. Elas são o gérmen estrutural, a tensão de informação incorporada ao funcionamento do receptor; uma identificação é sempre uma in-formação, uma tomada de forma, mesmo que parcial e incompleta – o que significa tão somente que ela não esgota o potencial pré-individual. O coletivo transindividual, então, como sistema de ressonância interna de informação é uma série de identificações moduladoras se atualizando a partir da seletividade enquanto indivíduo; os dois aspectos, social e individual, conjugam-se em um mesmo movimento, dado que o superego e o ego são ambos gestados por esta modulação. E ela, por sua vez, se alimenta dos potenciais libidinais do Id., a carga de natureza associada, estabelecendo um regime de integração de ordem superior em uma individuação mais ampla.








V) Conclusão: O sujeito é o Isso.

Esperamos, ao término do presente trajeto, termos conseguido operar a transdução entre a tríade Ego-Id-Superego com a tríade do processo de individuação em Simondon. O Id, enquanto pré-individual, não pode justamente por isso, ser individual, é coletivo, transdutivo e transindividual; o individuo é uma resolução dos seus potenciais disponíveis, a solução entre o vetor centrípeto da pulsão e a resistência do meio exterior; enquanto tal, ele mesmo é uma operação transdutiva, amplificação estruturante enquanto seletor, sendo tal operação realizada no socius. O supereu é transindividual na medida em que é parte inconsciente, parte consciente, e ao mesmo tempo, zona de convergência identificadora na formação do grupo. Ele é uma atualização da carga de natureza associada remanescente em cada indivíduo em uma nova individuação que a o recobre. O regime de integração de cada grupo é dado deste modo em uma gênese recíproca do ego e do superego. De fato, o ideal do ego é genético ao ego e vice versa na medida em que ambos se estruturam a partir das identificações, sendo o próprio superego um tipo privilegiado de identificação, a primitiva parental, e o ego, um conjunto de identificações. Ela, como vimos, nada mais é do que uma atividade estruturante e amplificante, e pela sua coextensividade ao ego e superego, opera como fundamento do socius transindividual.
Por fim, caráter pré-individual do Id, deve ser frisado em sua relatividade; em sentido restrito indica certo grau de individuação que ainda comporta potenciais de variação, uma permanência de metaestabilidade, o que corresponderia ao ego; em sentido geral, remete a natureza inteira e ao próprio devir do ser. Se nos aprofundarmos no Id deixaremos para trás os traços do Ego, mesmo o pré-consciente, o reprimido em direção a própria natureza enquanto apeíron. Por outro lado, conforme nos aproximamos da sua superfície em direção à consciência, à mobilidade e à percepção, teremos um grau mais e mais coerente de individuação, seja primeiramente pela figura do Ego com a sua memória e seus conteúdos latentes, até, por fim, a percepção e consciência atual. Tudo se passa como em um cone, no qual a consciência atual é a ponta e, a natureza, a base. O transindividual, por sua vez, opera como uma esfera composta pela integração de diferentes cones, mantendo em sua base, do mesmo modo, a natureza. Na Figura 1, esboçamos uma representação gráfica bidimensional deste esquema.
A título de conclusão, gostaríamos de trazer uma distinção conceitual relevante definida por Simondon: a diferença entre sujeito e indivíduo. O indivíduo distingue-se do sujeito como o Ego do Isso. Ele é a parte individuada de qualquer ser, que, no entanto, o expressa apenas parcialmente. Para ele, o termo individuo no sentido comum seria "dado abusivamente a uma realidade mais completa, a do sujeito completo, que comporta nele, além da realidade individuada, um aspecto não individuado, pré-individual, ou ainda natural." (SIMONDON, Ibidem, p. 380) O sujeito é o par pré-individual e indivíduo, e, por consequência, a tríade pré-individual-indivíduo-transindividual, pois quando os indivíduos estão "reunidos um com os outros" este aspecto pode fazer com que eles sejam "correlativamente teatro e agente de uma segunda individuação que faz nascer o coletivo transindividual os ligando a outros sujeitos."(Idem) Deste modo, o sujeito verdadeiramente completo, para Simondon, é " a unidade condensada e sistematizada das três fases do ser."(Idem) Pelo que expomos até aqui, podemos ver como esta unidade só pode ser a do Isso; é ele, que como pré-individual e assim, no sentido geral, o próprio ser, se defasa em relação a si mesmo, se diferenciando em indivíduo e transindividual. Deste modo, podemos afirmar, com base em tudo que foi exposto, que o verdadeiro sujeito não é a consciência, nem mesmo Eu: o único e verdadeiro sujeito é o Isso.














Figura 1:









Bibliografia

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JUNG, Carl. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Inês Oseki-Depré. São Paulo: 2014.

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