ESTUDOS COLONIAIS E GLOBALIZAÇÃO: FLUXOS, FRICÇOES E CONFLUÊNCIAS

June 29, 2017 | Autor: Marianne Sallum | Categoria: Globalization, Colonialism, Antropología
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ESTUDOS COLONIAIS E GLOBALIZAÇÃO: FLUXOS, FRICÇOES

Resumo: o presente ensaio tem por finalidade discutir a complexa teia de relações estabelecida entre grupos humanos, no contexto específico dos estudos coloniais de nossa contemporaneidade, considerando as dinâmicas de fluxos, fricções e confluências. Estas, observadas a partir da perspectiva antropológica, suscitam questionamentos fundamentais à pesquisa científica latino-americana, tendo em vista os desafios e possibilidades que emergem no contexto da globalização. Palavras-chave: Estudos coloniais. Fluxos. Confluências. Globalização. América-latina.

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discussão contemporânea em torno dos estudos coloniais seja esta realizada a partir de uma perspectiva “ocidental” - mais especificamente os países do hemisfério norte responsáveis pela produção acadêmica de maior influência e relevo internacional -, ou, por outro lado, “periférica” - ou seja, o continente africano e a América Latina - exige, talvez mais do que em qualquer outro tempo, uma postura crítica aguçada por parte dos cientistas sociais atuantes neste princípio do século XXI, tendo em vista os desafios e possibilidades que se vislumbram em nosso horizonte. Mas por qual(is) motivo(s), mais especificamente, propõe-se que a dimensão crítica do pensamento teria se tornado ainda mais indispensável do que em outros

* Recebido em: 02.04.2015. Aprovado em: 27.05.2015. ** Doutoranda em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo/ SP. Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo/SP. Graduada em Artes Visuais pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo. E-mail: marianne.sallum@ gmail.com.

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MARIANNE SALLUM**

ARTIGO

E CONFLUÊNCIAS*

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tempos? Em primeiro lugar, por uma razão de natureza geopolítica: a constante ampliação, sistematização e circulação do conhecimento, aliada à crescente disponibilidade de recursos tecnológicos/comunicacionais, amplificam, por si sós, as responsabilidades e desafios atribuídos a pesquisadores e estudiosos ao redor do mundo, uma vez que a distância geográfica (e psicológica) das principais universidades do hemisfério norte - antes um eventual fator de isolamento para pesquisadores “não-ocidentais” - representa, cada vez menos, um empecilho no que diz respeito ao compartilhamento e análise dos dados de pesquisa colhidos em campo. Assim, pode-se deduzir que uma colaboração mais intensa e constante de pesquisadores estabelecidos em localidades consideradas “periféricas”, propiciando uma participação mais efetiva nas discussões e pesquisas de maior relevo, também exige um preparo ainda maior destes, no que diz respeito ao arcabouço crítico e conceitual disponível - fundamental, de nosso ponto de vista, para a emergência de perspectivas instigantes, que contribuam de modo consistente para os debates e pesquisas internacionais. Em segundo lugar, temos consciência de que refletir sobre os estudos coloniais, no contexto das culturas/sociedades que se desenvolveram ao longo da história latino-americana - incluindo, obviamente, as relações de cooperação, dominação e insubordinação - obriga-nos, de modo inescapável, a tecer raciocínios a partir de uma perspectiva global, ainda que possamos incorrer no risco de sermos, em princípio, mal interpretados - tendo em vista a banalização, e consequente desgaste, do termo globalização. Portanto, especificamente no que diz respeito às atividades de pesquisa realizadas na América Latina, uma questão - tão ampla quanto sugestiva - parece estar colocada no âmbito da práxis etnográfica, considerando este princípio de século XXI repleto de desafios e possibilidades em escala global: como atuar de modo crítico - e relevante - no cenário contemporâneo das pesquisas em etnografia? Assim, é deste ponto que, acreditamos, deve-se partir: o contato humano em escala global vem sendo crescentemente marcado por um aumento sem precedentes dos fatores velocidade e densidade - constatação esta que, por si só, estimula o surgimento de inúmeras questões relativas a possíveis configurações, riscos e limites no que diz respeito às interconexões estabelecidas entre os diversos grupos e sociedades humanos espalhados ao redor do planeta Terra - não sendo uma exceção, como sabemos, a América Latina, palco de fundamentais desdobramentos históricos desde o advento de um dos marcos da modernidade (e, concomitantemente, da globalização): a descoberta do Novo Mundo. Neste sentido, Blaser (1994) contribui para corroborar a perspectiva aqui suscitada: Do meu ponto de vista, entendo que é impossível entender as culturas locais (suas ações, discursos e textos) sem ter em mente a existência, desde o século XIX (e possivelmente antes), de uma cultura global de dimensões planetárias (BLASER, 1994, p. 86)1. E os inúmeros exemplos que se apresentam em nossa contemporaneidade, acreditamos, também contribuem para confirmar a pertinência dos aspectos da cultura global que encontram suas origens na própria gênese da modernidade, particularmente no que diz respeito ao período histórico relativo à chegada dos europeus no continente americano, ao final do século XV. E esta complexa interação entre povos de distintas localidades será permanentemente replicada através dos séculos, adotando incontáveis formas de subordinação e insubordinação, conforme é apontado pelo mesmo autor:

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É possível, deste modo, estabelecer conexões diversas entre as circunstâncias observadas na América do período colonial e nossa contemporaneidade, já circunscrita à realidade tecnológica do século XXI. Pode-se tomar em consideração, por exemplo, o campo da virtualidade computacional, que vivenciamos através da grande teia eletrônica mundial conhecida por internet: redes de computadores interconectando virtualmente as pessoas, independentemente de sua localização, condição social, econômica ou política, em absolutamente todos os recantos do planeta. Uma rede que, como sabemos, não está limitada a indivíduos, mas inclui entidades de natureza pública e privada, de ONGs a grandes corporações, de governos a grupos terroristas, reconfigurando de modo surpreendente, e imprevisível, as dinâmicas de coexistência entre as diferentes culturas e sociedades humanas. Ao mesmo tempo, no mundo real, contingentes crescentes de indivíduos atravessam fronteiras, legal ou ilegalmente, seja devido à permanente - e ancestral - busca por condições mais favoráveis de sobrevivência ou, não menos frequentemente, em função de necessidades marcadas pela extrema urgência: fuga de guerras e perseguições, além de ameaças de toda ordem à integridade física e psicológica ou mesmo à própria sobrevivência destes contingentes humanos desterritorializados. Pode-se arriscar, portanto, uma avaliação estimulada pela percepção crítica, e em nível global, da realidade contemporânea: vivemos em um planeta habitado por crescentes fluxos migratórios neste princípio do século XXI - e os cientistas sociais necessitam dar conta, também, desta complexa realidade que se configura. No entanto, também é possível considerar os inúmeros fatos percebidos em nossa contemporaneidade - e particularmente no que diz respeito a nossa realidade latino-americana - a partir de uma perspectiva de tempo ainda mais abrangente, o que pode nos sugerir a seguinte questão: estaríamos, neste início do terceiro milênio, diante de fluxos, fricções e confluências inéditos de fato? Ou, contrariamente à percepção comum ou midiática, tratar-se-ia, tão somente, do contínuo desenrolar de uma mesma realidade, já observada anteriormente nos processos de colonização, independência e posterior desenvolvimento das Américas? Tsing (2000, p. 333) contribui para a reflexão ao iluminar particularmente esta perspectiva, destacando que “Em História e Antropologia, por exemplo, a ideia de que interconexões globais são antigas foi revitalizada apenas recentemente, abafada como foi pela maior parte do século XX”3. Antes, porém, de arriscarmos qualquer resposta ao questionamento acima mencionado, há que se observar um pouco melhor a experiência contemporânea de sociedades humanas e os principais elementos envolvidos na complexa equação de coexistência entre culturas locais e circunstâncias potencialmente globais - equação esta marcada, via de regra, por desigualdades políticas, sociais e econômicas. Afinal, ao mesmo tempo em que testemunhamos inúmeras mobilizações migratórias de grupos humanos, em escala crescentemente global, também tomamos co-

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No caso das culturas locais subordinadas a outra cultura local, os nativos não brancos de várias partes do mundo foram empurrados e pressionados a compreender e seguir os modos da cultura ocidental. Algumas vezes com violência e outras vezes sem ela, as culturas locais começaram a participar, em diversos níveis, da cultura global. Algumas destas culturas locais puderam introduzir algo de seus próprios estilos discursivos e tópicos nesta rede chamada Cultura Global. Esta introdução de outros discursos locais – não ocidentais – ocorreu em períodos históricos distintos e é presumível que continuará acontecendo no futuro (BLASER, 1994. p. 85)2.

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nhecimento de um complexo fluxo de capitais entre os cinco continentes. Vidas humanas e capital deslocam-se em constante - e possivelmente contraditório – movimento, que pode ser traduzido em uma única palavra: fluxo. Tratam-se, propriamente, de fluxos incontáveis em sua totalidade, potencialmente infinitos, cabendo aos pesquisadores atuantes no campo das ciências humanas mapear, ainda que provisoriamente, as manifestações desta realidade particularmente circunscritas ao território latino-americano. Porém, estes fluxos compreendem uma complexidade ainda maior do que poderíamos supor numa primeira análise, uma vez que estão vinculados, simultaneamente, à manifestação constante de dois outros elementos, igualmente dinâmicos: as fricções e as confluências - que também se desdobram em progressão geométrica em nossos dias. Afinal, falamos aqui de quantidades crescentes de indivíduos - paralelamente a recursos materiais, informacionais e financeiros - deslocando-se continuamente e, portanto, multiplicando indefinidamente as possibilidades e modos de existir. Particularmente no que diz respeito aos fluxos, fricções e confluências experimentados por sociedades estabelecidas na América Latina, objeto central de nosso interesse, estes se encontram permanentemente embaralhando e reconstruindo fronteiras físicas, psicológicas e culturais. Assim, novas possibilidades e desafios emergem a todo o momento, permitindo o surgimento de interconexões - em circunstâncias mais ou menos desejáveis - inéditas entre os mais diferentes grupos e culturas humanos. Este ambiente de crescente complexidade, de difícil mapeamento e análise, pode, eventualmente, ser compreendido através de recursos metafóricos, conforme pontua abaixo a autora, ao comparar a mudança do cenário contemporâneo às mudanças provocadas por um riacho que corta a encosta de uma montanha: Por muitos anos, o riacho faz apenas mudanças graduais na paisagem. Então, uma tempestade empurra seu fluxo além dos limites estabelecidos até aquele momento, afetando suas margens e correntes. Árvores são arrancadas, e o que antes estava do lado direito agora está do lado esquerdo. Do mesmo modo, o mundo social tem mudado ao nosso redor4 (TSING, 2000. p. 328). Quando pensamos em sociedades, sabemos que nenhuma condição ou posicionamento tem caráter imutável. E em nossos dias, se tomarmos como exemplos apenas alguns acontecimentos considerados de amplitude global, no intervalo de tempo entre a segunda metade do século XX e o princípio deste novo milênio, os fatos falam por si: potências militares e econômicas, antes hegemônicas, tornam-se vulneráveis; estados nacionais aparentemente inabaláveis encontram-se repentinamente prostrados diante de crises engendradas pelo capital financeiro; movimentos sociais influenciam decisões políticas em escala global; grupos terroristas ameaçam o equilíbrio geopolítico planetário. E a comunicabilidade entre os indivíduos, ao depender cada vez menos de fronteiras físicas, devido à fluidez e mobilidade de recursos virtuais, passa a configurar-se como um elemento de instabilidade para os poderes estabelecidos. A realidade assume configurações inéditas, e inesperadas, ao mesmo tempo em que as dúvidas multiplicam-se cada vez mais rapidamente. Diante deste problemático emaranhado de informações, como devem proceder, então, os cientistas sociais? Não se trata de discutir fórmulas, certamente, porém deve-se ter em mente que as ciências humanas também vêm conhecendo transformações profundas nas últimas décadas - afinal, a perspectiva de práticas e discursos “globais”

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Tal ‘auto-conhecimento’, por sua vez, pode ser expresso apenas de forma circular: o antropólogo origina-se de uma cultura/sociedade que ‘possui’ um conceito de cultura/sociedade. Se os antropólogos estão na sociedade enquanto antropólogos, isto é um fato que independe destes referirem-se enquanto malaios, pertencentes aos ciganos ou terem nascido em Essex; está decidido pela relação entre suas técnicas de organizar o conhecimento e a maneira como as pessoas organizam o conhecimento sobre si mesmas5 (STRATHERN, 1987, p. 18). América Latina, África e Ásia deixam de ser “apenas” objeto de estudo, tornando-se colaboradores efetivos e constantes na produção acadêmica internacional. Os parâmetros adotados nos grandes centros europeus e norte-americanos tendem a ser menos “ocidentais”, dialogando crescentemente com referências múltiplas - o que exige, por consequência, capacidade crítica cada vez mais acurada de acadêmicos e pesquisadores em geral. Estaríamos, então, diante de uma inédita e promissora reconfiguração das dinâmicas de produção internacional de conhecimento científico/acadêmico, em sintonia com um novo mundo, dito globalizado? Provavelmente o cenário a ser vislumbrado seja não apenas mais complexo do que supõem algumas narrativas mas, possivelmente, menos otimista do que pode-se deduzir de uma análise prematura. Afinal, devemos nos recordar de que este otimismo com perspectivas “globalizantes” não é exatamente inédito - estas já haviam contagiado, de modo semelhante, cientistas sociais envolvidos no processo de reconstrução no pós-Segunda Guerra Mundial, conforme é destacado a seguir: Os trabalhos de reestruturação agregaram especialistas acadêmicos, legisladores, políticos e ativistas sociais em um programa comum de melhoria social. Este oferecia a esperança de avanços, superando a separação colonial entre europeus e nativos e criando um mundo no qual todas as nações pudessem aspirar aos mais altos padrões de subsistência e cultura 6 (TSING, 2000, p. 328).

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Estaríamos, talvez, frente a novas armadilhas, quando pensamos nas teorias e discussões propostas por cientistas sociais, digamos, engajados nas possibilidades “progressistas” deste fenômeno que chamamos de globalização? É importante lembrar que, assim como ocorreu em passado recente com a palavra-conceito “modernização”, o

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coloca em cena novos atores, com perspectivas analíticas distintas. O debate acadêmico e a produção de conhecimento - antes orientados fundamentalmente por profissionais originários do hemisfério norte, e vinculados majoritariamente às universidades europeias e norte-americanas - passa, conforme já mencionamos, a contar com representantes de “países distantes”, originários de regiões ao sul e a leste dos grandes centros de influência, forçando a abertura das pesquisas e discussões para novas perspectivas. Neste sentido, podemos ir além e pensar a respeito de uma possível “condição do etnógrafo” na América Latina em comparação a seus pares atuantes em qualquer outra localidade do planeta, sendo razoável salientar, no sentido proposto por Strathern (1987), o que distinguiria a condição do antropólogo – e, acrescentaríamos, dos cientistas sociais de um modo geral: uma classe universal que compartilha procedimentos e preocupações específicos e, em sua produçãos escrita, maneja dados de formas igualmente assemelhadas. Ou nas palavras da autora:

termo globalização tende a ser extremamente sedutor intelectualmente - e sabemos que foi preciso algum distanciamento de tempo para a comunidade de cientistas sociais reconhecerem os limites, bem como especificidades culturais e institucionais dos projetos de modernização pós-Segunda Guerra Mundial. E não apenas isso: foi necessário que um antes incontestado projeto de modernização começa-se a esvair-se para que, somente então, os cientistas sociais começassem a se questionar sobre as razões de tal projeto ter sido capaz de cativar, ao mesmo tempo e de modo acrítico, corações e mentes de inúmeros especialistas e acadêmicos. As teorias de desenvolvimento do Terceiro Mundo - das quais temos inúmeros exemplos na América Latina - formam uma evidente e ampla amostra desta constatação. Uma das características evidentes destas teorias, conforme aponta Fersguson (1990, apud TSING, 2000), é que estas se desenvolveram mais em função de sua própria lógica interna - a torre de marfim da modernização? - do que devido a insights ocorridos efetivamente em meio às circunstâncias sociais nas quais pretendiam intervir.

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GLOBALIZAÇÃO E ESTUDOS COLONIAIS A esta altura de nossa argumentação, faz-se necessário focar um pouco mais a análise, numa tentativa de pensarmos algo genérico como o conceito de globalização aplicado a um universo específico de pesquisa e reflexão - os estudos coloniais. E este esforço de conceituação é importante à medida que certos conceitos podem ser interpretados, no limite, em sentidos opostos - ou, mais precisamente, na argumentação de Jameson (1998, apud TSING, 2000, p. 334): Jameson (1998a) argumenta que a globalização pode ser melhor compreendida através da dialética Hegeliana: seu raciocínio ideológico produz tanto um lado iluminado quanto um lado escuro. Este é um lembrete útil de que os avanços globais que nós, enquanto analistas sociais, consideramos promissores são, frequentemente, ligados de modo intrínseco àqueles que consideramos perigosos7. Portanto, cabe tentar esclarecer, antes de prosseguirmos: do que estamos tratando, mais exatamente, ao falarmos de uma dimensão “global” da cultura, tendo em vista o contexto dos estudos coloniais? Para as finalidades deste trabalho, a limitação estabelece-se, fundamentalmente, em termos de discurso - ou como afirma Blaser (1994), que se apropria de uma metáfora criada por Geertz (1972, p. 84), ao comparar, de modo irônico, a ideia de cultura a uma coleção de textos: Textos que lutam entre si, que se contradizem uns aos outros, textos que encontram sua justificação em outros textos, textos que emergem sob condições histéricas e sob condições históricas são abandonados8 . No entanto, o autor avança além da ironia e nos faz lembrar que a ideia de cultura global, além de qualquer discurso contemporâneo, possui uma história - e uma origem - e, afinal, é preciso que o cientista social mantenha-se atento ao caráter processual da cultura. Deve-se, obrigatoriamente, ter em mente que, no passado, existiram e coexistiram culturas globais. Ou nas palavras do próprio Blaser (1994, p.

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84): “No passado existiram e coexistiram culturas globais. Poderíamos dizer que ali onde existiu um império foi criada uma cultura global”9. Na atualidade, tendo em vista a imensa produção acadêmica, e a amplificação do debate em âmbito internacional, não restam dúvidas de que uma “cultura global” atualmente vigente - diga-se, aliás, vigente nos termos difundidos e popularizados através dos conglomerados midiáticos locais e globais -, não obstante possíveis matizes conceituais é, fundamentalmente, resultado dos desdobramentos históricos identificados a partir da chegada dos europeus no continente americano, conforme já mencionado anteriormente. E, de toda forma, será no século XX que conheceremos os desenvolvimentos tecnológicos que irão engendrar os elementos necessários para a construção do que McLuhan (1989) viria chamar de Aldeia Global. Deve-se reafirmar, portanto que, ao longo de todo o período de colonização das Américas, chegando em nossa contemporaneidade, o Ocidente irá impor seus próprios estilos discursivos, além de seus próprios tópicos e agendas, às culturas eventualmente subjugadas, sendo estas obrigadas a compartilhar, de diferentes formas e em diversos níveis, de um arcabouço cultural já então caracterizado como “global”. Assim, a participação ou diálogo de culturas locais no contexto de uma cultura global dominante foi determinado em função das diferentes competências, ou possibilidades, observadas nas culturas locais, no que diz respeito ao manejo de����������������������� tópicos e e����������� stilos discursivos do Ocidente (BLASER, 1994). Por sua vez, os estudos coloniais em nossa contemporaneidade viveram nas últimas duas décadas uma das mais notáveis revisões feitas pelo mundo Ocidental - sobre sua própria historia. No entanto, cabe destacar, muitos pesquisadores passaram a se interessar pelo colonialismo somente quando os impérios coloniais modernos perderam sua legitimidade internacional (COOPER, 2002). Já em décadas passadas o colonialismo, como sabemos, foi amplamente criticado, particularmente por movimentos de mobilização social, onde estudantes e intelectuais se engajavam por ideias de libertação e pelas possibilidades de “modernização” e “desenvolvimento” para as pessoas a quem o colonialismo e o racismo excluíram socialmente. Porém, o ímpeto contemporâneo por pesquisas e textos que discutem situações coloniais do passado serve, também, para demonstrar como as reivindicações feitas por europeus eram, muitas vezes, hipócritas e buscavam impor, modelos ideais de democracia politica, eficiência de sistemas econômicos, bem como mostrar - por meio de uma abordagem supostamente “racional” - a “evolução” observada no mundo. E, assim, conectavam essas mesmas ideias a história pregressa do imperialismo ocidental outrora estabelecido pelas nações europeias. Dessa forma, alguns pesquisadores foram levados a estudar minuciosamente a complexidade em que a Europa foi formada a partir de suas colônias, e como muitas categorias compreendidas como colônias do passado e ex-colônias moldaram-se pelo processo de colonização (COOPER, 2005). A ideia de que o contato entre colonizadores e povos nativos modifica a maneira de ser dos dois, tem sido discutida largamente por muitos cientistas sociais da atualidade. Assim, torna-se imprescindível, para pensar alternativas ao colonialismo, acabar com a imagem de indígenas assimilados e passivos diante de um sistema imperialista ocidental (HOWARD, 2002), mas sim em sociedades enredadas e em constante confluência.

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Pode-se tomar como exemplo a experiência dos indígenas do noroeste amazônico (alto rio negro, ARN) junto às missões salesianas onde, durante o ciclo da borracha e pressionados por seringueiros, os mesmos foram obrigados, em troca da proteção dos padres, a modificar profundamente suas praticas culturais. No entanto, por reconhecimento dos demais grupos indígenas, as posições hierárquicas dos clãs não sofreram modificações (ANDRELLO, 2008). Assim, para discutir colonialismo e pós-colonialismo nos dias de hoje é de suma importância pensar nos conceitos de confluência e fluxo, proposto por Tsing (2000), onde a lógica cultural não é a única responsável em dar significação às transformações da vida cotidiana durante o contato, uma vez que as mudanças estão relacionadas, também, às múltiplas intervenções de projetos, eventos e agentes (MONTEIRO, 2012). Dessa forma, os novos significados que as praticas culturais assumem são, via de regra, intencionalmente pensados e elaborados pelos diversos grupos envolvidos - portanto, em um constante exercício de fricção e construção relativos às redes de saberes circunscritas a uma cultura convencionalmente estabelecida como global. Pensar a relação entre saberes, considerando os contextos sociais, políticos e econômicos específicos da América Latina, pode trazer para o etnólogo novas possibilidades de questionamento e novos desafios conceituais e analíticos em sua prática de pesquisa. Porém, não obstante o vasto arcabouço conceitual à disposição dos pesquisadores contemporâneos sejam estes vinculados às mais prestigiadas instituições internacionais ou baseados em localidades menos privilegiadas, o encaminhamento analítico dos dados coletados em campo, e sua interpretação em diferentes níveis de complexidade, irá exigir dos etnógrafos atuantes em países latino-americanos habilidade suficiente para superar dificuldades próprias desta região, particularmente de ordem política, como veremos nos parágrafos que seguem. Tomemos por exemplo a produção de etnógrafos contemporâneos dedicados a estudar povos indígenas estabelecidos em países como Brasil e Venezuela, especificamente no que diz respeito ao uso que membros representantes destes povos podem fazer, em situações diversas, de ideias e conceitos já amplamente difundidos tanto em suas próprias comunidades quanto nas sociedades políticas - ou Estados-nação - em que esses grupos estão inseridas. Mais especificamente, nos casos que aqui serão brevemente comentados, a relação estabelecida principalmente com as ideias de etnicidade e cultura. Diante desta proposição, contudo, seria razoável questionar: por qual motivo um exercício interpretativo, com foco no objeto acima descrito, encerraria dificuldades de alto nível a um pesquisador, tendo em vista que os conceitos de etnicidade e cultura são vastamente conhecidos e estudados há muitas décadas? Acreditamos que a resposta pode resumir-se a dois aspectos distintos, ainda que intimamente relacionados: as dimensões política e comunicacional do problema aqui apresentado, as quais podem, eventualmente, transcender os recursos analíticos - práticos e teóricos - à disposição de um etnógrafo, ainda que experiente, em sua atividade interpretativa da realidade. No caso do Brasil, exemplos das tribos Kayapó e Xavante são numerosos e emblemáticos, tendo em vista a vasta repercussão midiática de inúmeras ações de natureza política realizadas por membros representantes destas tribos indígenas, com vistas a repercutir demandas destes povos - em questões diversas, como posse de terra ou uso de recursos naturais - em escala nacional e internacional. Em qualquer um dos casos que possam ser mencionados, os representantes tribais, invariavelmente, estabelecem um diálogo consciente – e, como veremos, estratégico - com os canais midiáticos que deles se aproximam, a exemplo de

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Estes relatos mostram que, ainda que indivíduos Kayabi estejam desenvolvendo noções de “cultura” e “etnicidade indígena” no diálogo com não-Kayabis em diversos eventos fora da

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grupos privados multinacionais de radiodifusão interessados em repercutir as demandas dessas comunidades frequentemente referidas como “povos das florestas”. Assim, uma vez identificada por membros representantes de grupos indígenas a potencialidade, por exemplo, dos meios de radiodifusão veicularem demandas de suas comunidades, através da amplificação da voz de seus����������������������������������� líderes��������������������������� , tornou-se recorrente, enquanto estratégia de comunicação, mais ou menos articulada - a utilização de aspectos ligados à ideia de identidade indígena, enquanto meio eficaz de influenciar a chamada opinião pública a favor de grupos específicos – em nível nacional e/ou internacional. Naturalmente, avaliar a eficácia política e/ou comunicacional do uso de qualquer conceito caro à etnografia não é objeto central do presente estudo, ainda que seja possível assinalar, de imediato, o evidente desequilíbrio de recursos técnicos ou materiais entre os povos emissores das mensagens, através de seus representantes tribais, e os mediadores destas, digamos, “ações comunicativas” encenadas por comunidades indígenas. Já no caso da Venezuela, queremos mencionar particularmente os cortejos de alcance nacional promovidos por grupos de dança pertencentes ao povo Warão, conscientemente realizados com vistas a divulgar elementos considerados emblemáticos daquela cultura indígena, demonstrando - assim como no caso das tribos brasileiras consciência do uso político/midiático de conceito, noções ou ideias de alguma forma (positivamente) relacionados a estes povos – e, portanto, potencialmente “manipulável” a favor das causas defendidas por estas comunidades indígenas. Neste caso venezuelano, tratar-se-ia, mais especificamente, do conceito de cultura, conforme observa Oakdale (2004). E, além de exemplos retirados da realidade sul-americana, casos semelhantes, em outras localidades do globo, poderiam ser citados - a exemplo de povos indígenas estabelecidos em diversas localidades da Oceania. De um modo geral, particularmente nos últimos 20 anos - usando como referências de escala global a conferência ECO-92 da ONU, no Rio de Janeiro, e o advento da Internet - �������������������������������� é������������������������������� evidente o crescimento da participação de povos indígenas em eventos de natureza política marcados por elementos interculturais ou interétnicos a exemplo de festivais, encontros e protestos nacionais e internacionais, dentre inúmeros outros (OAKDALE, 2004). Voltando aos grupos brasileiros, Oakdale (2004), após coletar relatos de dois líderes Kayabi, nos traz algumas observações valiosas para nossa análise das relações entre saberes, considerando os diferentes modos de inserção dos povos indígenas nos Estados-nação aos quais encontram-se vinculados – bem como da sociedade global na qual também encontram-se inegavelmente inseridos: mesmo estando a etnóloga presente durante a apresentação destes relatos, seus líderes dirigiam-se, principalmente, aos membros do sexo masculino daquela comunidade indígena; as falas eram integralmente relacionados à negociação de liderança em suas aldeias; ambos líderes usavam seu relatos, tanto para brasileiros quanto para estrangeiros, para expor sua condição indígena, além de imagens reificadas da cultura indígena, visando promover sua elegibilidade para posições de autoridades dentro de suas comunidades. Tais observações, ainda que meramente pontuais, nos estimulam a refletir um pouco mais detidamente a respeito de ideias eventualmente cristalizadas quando coloca-se em discussão conceitos complexos tais como identidade ou cultura indígenas. Ou conforme pontua a mesma autora (2014) a respeito dos relatos coletados em campo:

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aldeia, ao mesmo eles também estão engajados, junto de seus companheiros Kayabi, (...) na disputa de questões locais (OAKDALE, 2014, p. 61). Deste modo, torna-se razoável pontuar que a construção da noção reificada de cultura e identidade indígena não se resume a uma simples disputa conceitual entre representantes de povos indígenas e atores não-indígenas. Muito pelo contrário, uma análise mais cuidadosa de toda a exposição midiática a que estes grupos indígenas – ou, mais especificamente, alguns de seus representantes atuantes além das fronteiras tribais – estão, de modo mais ou menos conivente, submetidos, sugere fortemente que povos são capazes de remodelar - e, conscientemente, a seu favor - os aspectos identitários que lhes são comumente atribuídos a partir do Estado-nação – ou, ainda, dos atores globais – com o qual estão relacionados ou ao qual estão submetidos, tornando possível, deste modo, encaminhar suas demandas e necessidades enquanto grupo. Outra possibilidade fundamental a ser considerada, conforme pontua Tossing (1987, apud OAKDALE, 2014), ainda em relação à elaboração e reconstrução permanente das identidades tribais ou indígenas, diz respeito à observação de possíveis limites estabelecidos por uma comunidade, a qual eventualmente aceita ou assume um aspecto identitário que lhes foi atribuído a partir do colonizador, construindo assim parte de sua autoimagem. Ou ainda, no mesmo sentido, quando indígenas habilmente assumem certos aspectos ligados à identidade apenas circunstâncias pontuais, demonstrando – ou representando - características que estes sabem ser normalmente julgadas pelos não-indígenas como próprias aos “selvagens”. Assim, é possível concluir a análise reforçando o conceito de que as práticas culturais assumem intencionalidades diversas, tanto por parte do colonizador quanto do colonizado, não sendo válida, desta forma, a ideia do indígena enquanto ser “passivo” e “aculturado”, simplesmente vitimizado pelas condições – ainda que comprovadamente cruéis e injustas – impostas a estes grupos étnicos, povos e comunidades. Sempre há fluxos, fricções e confluências presentes quanto estamos tratando de interação entre seres-humanos, seja qual for sua origem ou condição, em qualquer localidade ou circunstância mensurável no tempo ou no espaço. COLONIAL STUDIES AND GLOBALIZATION: FLUXES, FRICTIONS AND CONFLUENCES Abstract: the present essay aims at discussing the complex web of relations established among different peoples, amidst the specific context of post-colonial studies developed in the contemporaneity, considering the dynamics of flow, frictions and confluences. These ones, observed from the anthropological perspective, evoke a fundamental debate upon the scientific research in Latin-America, considering the challenges and possibilities in the globalization scenario. Keywords: Post-colonial studies. Flows. Confluences. Globalization. Latin-America. Notas 1 “Desde mi propio punto de vista entiendo que es imposible entender las culturas locales (sus acciones, discursos y textos) sin tener en mente la existencia desde el siglo XIX (y posiblemente antes) de una Cultura Global de magnitud planetaria.”

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Referências

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2 En la situación de culturas locales subordinadas a otra cultura local, los nativos no blancos de varias partes del mundo fueron empujados y presionados a comprender y seguir los modos de la cultura occidental. Algunas veces con violencia y otras veces sin ella, las culturas locales comenzaron a participar en variados grados en la cultura global. Algunas de estas culturas locales pudieron introducir algo de sus propios estilos discursivos y tópicos en esta red que he llamado Cultura Global. Esta introducción de otros discursos locales — no occidentales - sucedió en distintos periodos históricos y es presumible que seguirá sucediendo en el futuro (BLASER, 1994. p.85). 3 “In history and anthropology, for example, the idea that global interconnections are old has only recently been revitalized, muffled as it was for much of the 20th century.” 4 “For many years, the creek makes only gradual changes in the landscape. Then a storm sweeps the flux beyond its accustomed boundaries, shifting every bank and eddy. Trees are uprooted, and what was once on the right side is now on the left. So, too, the social world has shifted around us.” 5 Tal “auto-conocimiento” a su vez puede sólo ser expresado en forma circular: el auto-antropólogo procede de una cultura/sociedad que “tiene” un concepto de cultura/ sociedad. Si los antropólogos están en su sociedad qua antropólogos, no hay que decidirlo por el hecho de que se llamen ellos mismos malayos, pertenezcan a los gitanos o hayan nacido en Essex; está decidido por la relación entre sus técnicas de organizar el conocimiento y la manera en que la gente organiza el conocimiento sobre sí misma. 6 “Modernization frameworks brought together scholars, policy makers, politicians, and social activists in a common program for social betterment. It offered the hope of moving beyond the colonial segregation of Europeans and natives to a world in which every nation could aspire to the highest standards of livelihood and culture.” 7 “Jameson (1998a) argues that globalization is best understood through the Hegelian dialectic: its ideological logic produces both a dark and a light side. This is a useful reminder that the global developments that we, as social commentators, find promising are often deeply connected to those we find dangerous”. 8 “Textos que luchan entre si, que se contradicen unos a otros, textos que encuentran su justiicacién en otros textos, textos que emergen bajo condiciones histéricas y bajo condiciones historicas son abandonados.” 9 “In history and anthropology, for example, the idea that global interconnections are old has only recently been revitalized, muffled as it was for much of the 20th century.”

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