Estudos de Direito Tributário

May 22, 2017 | Autor: Sergio André Rocha | Categoria: Direito Tributário (Tax Law), Direito Tributário Brasileiro, Direito Tributario
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Estudos de Direito Tributário

Teoria Geral, Processo Tributário, Fim do RTT e Tributação Internacional

Sergio André Rocha www.lumenjuris.com.br Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida Conselho Editorial Adriano Pilatti Alexandre Bernardino Costa Alexandre Morais da Rosa Ana Alice De Carli Beatriz Souza Costa Bleine Queiroz Caúla Caroline Regina dos Santos Daniele Maghelly Menezes Moreira Diego Araujo Campos Emerson Garcia Firly Nascimento Filho Flávio Ahmed Frederico Price Grechi

Geraldo L. M. Prado Gina Vidal Marcilio Pompeu Gisele Cittadino Gustavo Noronha de Ávila Gustavo Sénéchal de Goffredo Helena Elias Pinto Jean Carlos Fernandes Jerson Carneiro Gonçalves Junior João Carlos Souto João Marcelo de Lima Assafim João Theotonio Mendes de Almeida Jr. José Emílio Medauar Leonardo El-Amme Souza e Silva da Cunha

Lúcio Antônio Chamon Junior Luigi Bonizzato Luis Carlos Alcoforado Luiz Henrique Sormani Barbugiani Manoel Messias Peixinho Marcellus Polastri Lima Marcelo Ribeiro Uchôa Marco Aurélio Bezerra de Melo Ricardo Lodi Ribeiro Roberto C. Vale Ferreira Sérgio André Rocha Victor Gameiro Drummond Sidney Guerra

Conselheiro benemérito: Marcos Juruena Villela Souto (in memoriam) Conselho Consultivo Andreya Mendes de Almeida Scherer Navarro Antonio Carlos Martins Soares Artur de Brito Gueiros Souza

Caio de Oliveira Lima Francisco de Assis M. Tavares Ricardo Máximo Gomes Ferraz

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Teoria Geral, Processo Tributário, Fim do RTT e Tributação Internacional

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Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2015

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Sumário

Categoria: Direito Tributário Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Diagramação: Bianca Callado A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu Autor. É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE ________________________________________

Parte 1 - Temas de Teoria Geral do Direito e de Teoria Geral do Direito Tributário........................................................................ O que é Formalismo Tributário? (2014)................................................... 1. Introdução............................................................................................. 2. Quais são os traços de uma teoria formalista do direito?...................... 2.1. Formalismo como crença na determinação das palavras................. 2.2. Formalismo como negação da possibilidade de não aplicação de normas claras..................................................................................... 2.3. Formalismo como crença na dedução silogística mecânica............. 2.4. Formalismo como interpretação literal dos textos jurídicos............ 2.5. Formalismo como isolamento do sistema jurídico........................... 3. Formalismo e qualificação dos fatos...................................................... 4. Formalismo e opção por princípios constitucionais............................... 5. Formalismo como uma certa leitura dos princípios tributários............. 6. Conclusão.............................................................................................. Evolução Histórica da Teoria Hermenêutica: Do Formalismo do Século XVIII ao Pós-Positivismo (2007)............................................ 1. O formalismo jurídico na Alemanha, na Inglaterra e na França.......... 1.1. A jurisprudência dos conceitos e o formalismo jurídico alemão do Século XIX............................................................................ 1.1.1. A escola histórica do direito....................................................... 1.2. A jurisprudência dos conceitos........................................................ 1.3. A escola da exegese e o formalismo jurídico francês do Século XIX........................................................................................ 1.4. A escola analítica e o formalismo jurídico inglês do Século XIX........................................................................................ 2. Movimentos de contestação ao formalismo.......................................... 2.1. François Gény e a livre investigação científica................................ 2.2. A segunda fase do pensamento de Rudolf von Ihering................... 2.3. A jurisprudência dos interesses.......................................................

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2.4. O Movimento para o Direito Livre................................................. 3. O realismo jurídico, americano e escandinavo...................................... 4. O retorno do formalismo no século XX................................................. 4.1. O positivismo jurídico de Hans Kelsen............................................ 4.2. O positivismo jurídico de Herbert L. A. Hart................................. 5. A hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer............................. 5.1. Uma crítica ao método.................................................................... 5.2. A hermenêutica gadameriana e a hermenêutica jurídica................ 5.3. Interpretação e aplicação................................................................. 6. A jurisprudência dos valores................................................................. 7. O pós-positivismo.................................................................................. 7.1. O pensamento por problemas: A tópica de Theodor Viehweg......... 7.2. A teoria da argumentação............................................................... 8. Síntese conclusiva..................................................................................

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A Hermenêutica Jurídica sob o Influxo da Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer (2005)............................................. Introdução................................................................................................. 1. Uma crítica ao método.......................................................................... 2. A hermenêutica gadameriana e a hermenêutica jurídica...................... 3. In claris cessat interpretatio................................................................... 4. Interpretação e aplicação....................................................................... 5. Conclusão .............................................................................................

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Existe um Princípio da Tipicidade no Direito Tributário? (2007)......... 1. Introdução............................................................................................. 2. Tipicidade e tipo na teoria geral do direito........................................... 3. O princípio da tipicidade no Direito Tributário.................................... 4. A interpretação dos tipos jurídicos........................................................ 5. Conclusão..............................................................................................

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Mudanças Legislativas e sua Força Persuasiva sobre o Passado: Os Exemplos do Ágio Interno e do Conceito de Receita Bruta (2015)............................................................................. 1. Introdução............................................................................................. 2. Em Busca de um Critério ..................................................................... 3. Estudo dos Casos: Ágio Interno e Conceito de Receita Bruta..............

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3.1. Controvérsias sobre Ágio Interno e os Efeitos da Lei 12.973........... 115 3.1. O Conceito de Receita Bruta e os Efeitos da Lei 12.973.................. 117 4. Conclusão.............................................................................................. 119 A Deslegalização no Direito Tributário Brasileiro (2005)...................... Introdução................................................................................................. I. Notas Sobre a Deslegalização no Direito Constitucional....................... 1. A passagem do Estado Liberal para o Estado Social e o crescimento das atividades desenvolvidas pelo Poder Executivo............ 2. A superação da supremacia do Poder Legislativo sobre o Executivo................................................................................... 3. A deslegalização como consequência da preponderância do Poder Executivo................................................................................. 4. Notas sobre a delegação legislativa..................................................... 5. Conclusão da parte I.......................................................................... II. A Deslegalização no Direito Tributário................................................ 1. Visão tradicional do princípio da legalidade tributária....................... 2. Revés da visão tradicional: A interpretação como uma atividade criativa............................................................................ 3. A utilização de conceitos indeterminados em matéria tributária....... 4. A presença de tipos no Direito Tributário.......................................... 5. A deslegalização no Direito Tributário............................................... 5.1. Transferência para o Executivo de competências legislativas na seara fiscal.................................................................... 5.2. A utilização de conceitos indeterminados como instrumento de deslegalização, via delegação de competência, no Direito Tributário..................................................... 5.3. A utilização de tipos como instrumento de deslegalização, via delegação de competência, no Direito Tributário.......................... 5.4. São os conceitos indeterminados e os tipos compatíveis com o princípio da legalidade tributária?............................................ 5.5. O julgamento do Supremo Tribunal Federal no caso do Seguro de Acidentes de Trabalho.................................................. 5.6. Do controle da atividade delegada ao Poder Executivo................ 6. Conclusão...........................................................................................

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Parte 2 - Temas de Processo Tributário........................................... 153 Modulação de Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade e Consequencialismo: Instrumentos de Desconstitucionalização do Direito Tributário (2013)...................................................................... 1. Introdução............................................................................................. 2. Consequencialismo e o Direito Tributário............................................ 3. Modulação dos efeitos da decisão declaratória da inconstitucionalidade de ato normativo.................................................... 3.1. O controle da constitucionalidade das leis no Brasil....................... 3.2. Dos efeitos da decisão proclamatória da inconstitucionalidade de norma tributária no âmbito do controle da constitucionalidade das normas..................................... 3.3. Dos efeitos da decisão proclamatória da inconstitucionalidade de norma tributária benéfica ao contribuinte..... 4. Conclusão.............................................................................................. Processo Fiscal e Justiça Tributária (2005).............................................. 1. Introdução............................................................................................. 2. O papel dos tributos em um Estado Social............................................ 3. A inclinação dos contribuintes ao inadimplemento dos deveres fiscais...................................................................................... 4. Delegação das atividades de liquidação e arrecadação tributária aos contribuintes....................................................................... 5. A relevância assumida pelas atividades de fiscalização......................... 6. Análise das premissas firmadas............................................................. 7. A Necessidade de uma reforma do processo judicial tributário............. 8. Conclusão.............................................................................................. Meios Alternativos de Solução de Conflitos no Direito Tributário Brasileiro (2005)...................................................................... 1. Introdução............................................................................................. 2. Sociedade de risco, complexidade e delegação de competências liquidatórias aos contribuintes................................................................... 3. A problemática envolvendo os conceitos indeterminados..................... 3.1. Breves apontamentos sobre os conceitos indeterminados................ 3.2. A interpretação como uma atividade criativa.................................

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3.3. Conceitos jurídicos indeterminados no Direito Tributário.............. 4. Conceitos indeterminados e litigiosidade tributária.............................. 5. Meios alternativos de solução de conflitos na área fiscal...................... 5.1. Uso de meios alternativos para a solução de controvérsias em matéria tributária e a suposta violação dos princípios da legalidade, da indisponibilidade do crédito tributário e da capacidade contributiva – Uma abordagem teórica.......................... 5.2. Complexidade dos fatos................................................................... 5.3. Problemas quanto à utilização de meios alternativos no Direito Tributário Brasileiro.............................................................. 5.4. O que mudaria na realidade brasileira com a adoção de tais métodos alternativos?.................................................................. 5.5. Técnicas arbitrais no Direito Tributário pátrio?.............................. 5.6. A transação no Direito Tributário pátrio........................................ 6. Conclusão.............................................................................................. Questionamento Judicial, pela Fazenda Nacional, de Decisão Administrativa Final – Análise do Parecer PGFN/CRJ nº 1.087/2004 (2004)............................................................. 1. Introdução............................................................................................. 2. A doutrina sobre o tema....................................................................... 2.1. A insegurança jurídica e a desvalorização do processo administrativo........................................................................................ 2.2. Da relação existente entre a Administração Ativa e a Administração Judicante.................................................................. 2.3. O artigo 42 do Decreto nº 70.235/72 e a eficácia da decisão final no processo administrativo........................................... 3. O princípio da inafastabilidade da jurisdição e seu papel na presente discussão................................................................................ 4. Hipóteses de anulação da decisão do órgão julgador administrativo: identificação de condutas criminosas ou em fraude à lei........................... 5. Conclusão..............................................................................................

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Confissão Cria Tributo? Efeitos da Vontade do Contribuinte sobre o Crédito Tributário (2008)............................................................ 233 1. Introdução............................................................................................. 233

2. Constituição do crédito tributário pelo contribuinte............................ 2.1. Crédito tributário sem lançamento? ............................................... 2.2. Lançamento tributário feito pelo contribuinte?............................... 2.3. A questão na jurisprudência do STF e do STJ, e na legislação tributária federal.................................................................... 3. Consequências da constituição do crédito tributário pelo contribuinte............................................................................................... 3.1. Não cabimento do processo administrativo fiscal nos casos em que o crédito tenha sido constituído pelo contribuinte........... 3.2. Inaplicabilidade da multa de ofício.................................................. 3.3. Incidência do prazo prescricional.................................................... 3.4. Inaplicabilidade da denúncia espontânea........................................ 4. Constituição do crédito tributário pelo contribuinte e depósito judicial...................................................................................... 5. Meios alternativos de solução de controvérsias e manifestação de vontade do contribuinte....................................................................... 6. Conclusão..............................................................................................

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O Protagonismo do STF na Interpretação da Constituição Pode Afetar a Segurança Jurídica em Matéria Tributária? (2011)......... 255 Sobre o Direito a um Processo Administrativo com Duração Razoável (2007).......................................................................... 1. Introdução............................................................................................. 2. Duração razoável do processo: Direito, princípio ou ambos?................ 3. Conteúdo do princípio da duração razoável do processo....................... 4. Duração razoável do processo e impossibilidade material de um processo sem dilações indevidas: Os direitos e seu custo............... 5. Duração razoável e processo administrativo fiscal................................ 6. Instrumentos para a garantia da duração razoável do processo administrativo fiscal.................................................................... 6.1. Previsão de prazos, com sanção ao servidor no caso de descumprimento e suspensão dos juros de mora................................ 6.2. Limites de alçada para recurso........................................................ 6.3. Uniformização dos critérios decisórios e vinculação dos órgãos de aplicação.......................................................................... 6.4. Reconhecimento do direito do contribuinte....................................

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6.5. Prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal.............. 281 6.6. A adoção de medidas para evitar a corrupção na atividade de fiscalização tributária........................................................................ 283 7. Conclusão.............................................................................................. 284 A Contabilidade como Prova no Processo Administrativo Fiscal (2010)................................................................................................ 1. Delineamentos preliminares sobre o conceito de prova......................... 2. O Princípio da Verdade Material.......................................................... 3. Ônus da Prova e “Dever de Provar”...................................................... 4. Do Valor Probatório dos Documentos Elaborados pelos Administrados no Processo Administrativo Fiscal................................... 5. A Lei nº 11.638/2007 e a adoção dos IFRS no Brasil............................ 6. Fundamentação de ágio na aquisição de participação societária após a Lei nº 11.638/2007.......................................................................... 7. Conclusão..............................................................................................

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Parte 3 - A Lei no 12.973/2014 e o Fim do Regime Tributário de Transição....................................................................................... 305 Questões Fundamentais do Imposto de Renda Após a Lei n. 12.973/14 (2015)........................................................................... 1. Introdução............................................................................................. 2. O Artigo 6º do Decreto-Lei nº 1.598/1977 e o Sistema de Adições e Exclusões.............................................................................. 3. RTT não era Opção.............................................................................. 4. Quais são os Limites entre a Nova Contabilidade e o Imposto de Renda.................................................................................. 5. Nem Todas as Requalificações são Contrárias ao Conceito de Renda.................................................................................... 6. Neutralidade de Futuras Requalificações pela Contabilidade............... 7. Todos Ajustes no Valor de um Ativo ou Passivo devem ser Neutros até que Realizados.................................................................. 8. Conclusão..............................................................................................

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Quem Disse que a Lei não tem Palavras Inúteis? Uma Leitura do Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 e da IN nº 1.492/2014 (2014)........ 321

1. Introdução............................................................................................. 2. Antecedentes do Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 ............................... 3. O Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 e o Novo Artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013...................................................... 4. A Ilegalidade do Artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013...... 4.1. Mais uma Vez: O Alcance do RTT no Artigo 16 da Lei nº 11.941/2009............................................................. 4.2. Qual o Efeito do Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014?......................... 4.3. Poderia o Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 ser Considerado uma Regra de Isenção ou Remissão?................................. 5. Pelo Prestígio do Princípio da Moralidade............................................. 6. Conclusão: Nasce um Litígio.................................................................

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Parte 4 - Tributação Internacional.................................................. 335 A Lei n. 12.973/2014 e os Tratados Internacionais Tributários Celebrados pelo Brasil (2015)................................................ 1. Introdução............................................................................................. 2. A Entrada em Vigor da Lei 12.973 Alterou os Termos do Debate Acerca da Aplicação dos Tratados Internacionais?.................. 3. Qual o Efeito da Aplicação do Artigo 7 das Convenções Internacionais Tributárias Celebradas pelo Brasil?.................................... 4. Os Tratados Internacionais Afastam a Incidência da CSLL?................ 5. Conclusão.............................................................................................. A Sujeição Passiva no IRRF de Não Residentes (2015).......................... 1. Introdução............................................................................................. 2. Da Sujeição Passiva do IRRF................................................................ 3. Posição Jurídica do Contribuinte e do Agente de Retenção.................. 3.1. Legitimidade Ativa para a Repetição de Indébito de IRRF............. 3.2. Legitimidade Passiva para a Exigência Fiscal.................................. 3.3. Legitimidade Ativa para Formular Consulta à Receita Federal do Brasil..................................................................................... 4. Conclusão..............................................................................................

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Parte 1 Temas de Teoria Geral do Direito e de Teoria Geral do Direito Tributário

O que é Formalismo Tributário? (2014)

1. Introdução De uns anos para cá, nota-se uma interessante mudança no ideário tributário nacional. As teorias jurídico-tributárias dividiram-se entre um grupo de autores que recebeu a denominação genérica de “formalistas” e um outro grupo, que não possui uma alcunha específica, mas que poderia ser chamado “substantivista” ou “valorativo”. Nessa batalha ideológica, ser chamado pelo adjetivo “formalista” ganhou tons pejorativos em alguns círculos. Autores que nem sempre possuem pontos de aproximação em suas teorias são agrupados sem maior rigor científico em tal categoria. Mas afinal, o que é ser um “formalista”? Esta é uma questão não respondida pela doutrina tributária pátria. Usa-se esta palavra sem um norte teórico comum, colocando-se, como referido, em uma mesma cesta autores que sustentam linhas de pensamento muitas vezes irreconciliáveis. O propósito deste breve estudo é tentar lançar alguma luz sobre os critérios que podem ser utilizados para classificar determinada linha de pensamento como “formalista”. Considerando, como já destacamos, o caráter muitas vezes ideológico deste debate, faço questão de esclarecer, desde já, que este artigo não é uma defesa do formalismo, já que, de uma maneira geral, minhas posições teóricas se aproximam mais dos autores identificados como «substantivistas» ou «valorativos»1. Tampouco é uma crítica ao “formalismo”. Meu objetivo é apenas apresentar critérios para a identificação de correntes de pensamento tributário como “formalistas”.

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Ver, por exemplo: ROCHA, Sergio André. A Tributação na Sociedade de Risco. In: Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 18-51; ROCHA, Sergio André. A Deslegalização no Direito Tributário Brasileiro Contemporâneo: Segurança Jurídica, Legalidade, Conceitos Indeterminados, Tipicidade e Liberdade de Conformação da Administração Pública. In: ROCHA, Sergio André; RIBEIRO, Ricardo Lodi (Coords.). Legalidade e Tipicidade no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 220-259.

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2. Quais são os traços de uma teoria formalista do direito? Um dos mais interessantes trabalhos a respeito do formalismo jurídico foi elaborado pelo professor americano Frederick Schauer na década de 802. Em seu artigo Schauer identifica cinco espécies de teorias formalistas, conforme abaixo: 1. Formalismo como negação da indeterminação das palavras. 2. Formalismo como negação da possibilidade de não aplicação de normas claras. 3. Formalismo como crença na dedução silogística mecânica. 4. Formalismo como interpretação literal dos textos jurídicos. 5. Formalismo como isolamento do sistema jurídico. A leitura desses itens já mostra sua aproximação com diversas doutrinas tributárias contemporâneas. Vamos examinar, mesmo que superficialmente, cada um desses tipos de formalismo jurídico.

2.1. Formalismo como crença na determinação das palavras Ao analisar o formalismo como crença na determinação das palavras, Schauer volta às lições de Herbert Hart3. O professor britânico partiu da “textura aberta” das palavras4 e da indeterminação dos fatos e dos fins das regras para concluir que há casos onde o aplicador terá que escolher como aplicá-las. Segundo Hart “se o mundo no qual vivemos fosse composto apenas por um número finito de características, e estas e o modo como elas combinam fossem conhecidas por nós, então uma regra poderia ser feita com antecedência para todas as possibilidades”5. Assim, a indeterminação dos fatos quando da 2

SCHAUER, Frederick. Formalism. The Yale Law Journal, v. 97, Mar. 1988, p. 508-548.

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SCHAUER, Frederick, Formalism, 1988, p. 514.

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Segundo Hart “a textura aberta da lei significa que há, de fato, áreas de conduta onde muito deve ser deixado para ser desenvolvido por cortes ou autoridades que buscarão um equilíbrio, diante das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam de peso de caso a caso” (HART, H. L. A. The Concept of Law. 2nd. Ed. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 135).

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HART, H. L. A., The Concept of Law, 1998, p. 128.

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elaboração do texto normativo impede que se antecipe de forma clara todos os casos aos quais ele será aplicado. O mesmo acontece com os fins da regra. Por mais que se tenha uma finalidade a ser alcançada quando o texto foi feito, as circunstâncias fáticas podem por em xeque o fim que se pretendia alcançar. Partindo desses comentários, Hart sustenta que “o vício conhecido pela teoria jurídica como formalismo ou conceitualismo consiste numa atitude diante de regras formuladas verbalmente que busca disfarçar e minimizar a necessidade de tal escolha uma vez que a regra tenha sido editada. Uma forma de fazer isso é congelar o significado da regra de forma que seus termos gerais devam ter o mesmo significado em qualquer caso onde sua aplicação esteja presente”6. Portanto, uma teoria jurídica pode ser considerada “formalista” caso tenha como ponto de partida a certeza conceitual das palavras, ou, como destaca Richard Posner, parta de “uma crença exagerada na transparência da linguagem das provisões legais e constitucionais e, portanto, na possibilidade de oferecer respostas definitivamente corretas a questões interpretativas complexas”7. Trazendo este debate para o campo tributário, uma teoria será classificada como formalista, por este aspecto, caso tenha como premissa a capacidade da linguagem de servir de base para textos legais claros, certos e determinados, que não se valham da utilização de conceitos indeterminados e tipos jurídicos.Trata-se de versão de formalismo comum na seara tributária, a ideia de que os textos jurídico-tributários podem ser vertidos em uma linguagem determinada, simples e clara. Esta forma de formalismo jurídico se aproxima do chamado princípio da tipicidade tributária8, o qual foi ilustrado por Alberto Xavier nos seguintes termos: “Se o tipo tributário exprime, assim, uma especificação do conceito de imposto, cada tipo, por si, deve conter todos os elementos que caracterizam aquele mesmo conceito. Encarando a realidade de um ponto de vista normativístico, que o mesmo é dizer, partindo da norma para a

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HART, H. L. A., The Concept of Law, 1998, p. 129.

7

POSNER, Richard A. Problemas de Filosofia do Direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 52-53.

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Como já deixei registrado em outro texto, entendo que o princípio da tipicidade, da forma como externado pela maioria da doutrina pátria, simplesmente não existe. Ver: ROCHA, Sergio André. Existe um Princípio da Tipicidade no Direito Tributário? Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 136, jan. 2007, p. 68-79.

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vida, dir-se-á que objeto da tipificação são os ‘elementos essenciais’ do tributo enumerados no art. 97 do Código Tributário Nacional. [...] O órgão de aplicação do direito deve ter na lei predeterminado o conteúdo da sua decisão, donde resulta que se procura subtrair ao seu arbítrio ou critério subjetivo a eleição dos fatos tributários (como no Direito Penal se retira ao juiz a livre incriminação dos fatos) mas, mais ainda, que se lhe pretende retirar o critério da sua tributação, isto é, a fixação da medida do tributo. O órgão de aplicação do direito encontra-se, deste modo, submetido, quer aos tipos legais de fatos tributários, quer aos tipos de efeitos jurídicos decorrentes da verificação dos fatos, abrangendo a medida do tributo9.

A relação entre tipicidade e certeza encontra-se ainda mais evidente na pena de Roque Antonio Carrazza, para quem “o tipo tributário (descrição material da exação) há de ser um conceito fechado, seguro, exato, preciso e reforçador da segurança jurídica»10. Essas correntes, que associam o texto legal tributário com a certeza e a determinação linguística, de forma a subtrair do órgão de aplicação do direito qualquer margem de conformação, serão consideradas formalistas de acordo com esta primeira noção de formalismo jurídico.

2.2. Formalismo como negação da possibilidade de não aplicação de normas claras Depois de analisar a o alcance da determinação da linguagem, Schauer passa a examinar uma outra forma de formalismo, que seria a possibilidade de se optar pela aplicação ou não de uma norma clara. Em suas palavras “uma variável da espécie de formalismo que acabamos de discutir vê formalismo como envolvendo não a negação da existência de escolhas dentro de normas, mas a negação de que há frequentemente escolhas a respeito de se aplicar ou não uma regra clara”11.

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XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 72-73.

10 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20 Ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 235. 11 SCHAUER, Frederick, Formalism, 1988, p. 515.

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Considerando a aplicação de normas tributárias impositivas, parece que, neste aspecto, o Direito Tributário é formalista. De um modo geral, havendo uma clara disposição legal determinando a incidência do tributo12, considerações outras não poderão ser levadas em conta pelo intérprete/aplicador diante do caso concreto para deixar de aplicar a disposição legal. Nesse aspecto, a atuação da autoridade pública é, como destaca o Código Tributário Nacional, plenamente vinculada (artigo 3º e parágrafo único do artigo 142). Apenas no campo das obrigações acessórias ou na aplicação de regras procedimentais se poderia cogitar de uma quebra dessa tradição formalista. Com efeito, considerando o princípio geral da instrumentalidade das formas13, é possível que, em determinado caso concreto, afaste-se claro comando legal em respeito a princípios e fins mais relevantes ao ordenamento jurídico. Exemplo desta situação temos na apresentação da prova documental no âmbito do processo administrativo fiscal federal. Com efeito, de acordo com o § 4º do artigo 16 do Decreto nº 70.235/72, há no processo administrativo uma regra de concentração da prova documental no momento em que é apresentada a impugnação. Segundo tal dispositivo: § 4º. A prova documental será apresentada na impugnação, precluindo o direito de o impugnante fazê-lo em outro momento processual, a menos que: a) fique demonstrada a impossibilidade de sua apresentação oportuna, por motivo de força maior; b) refira-se a fato ou a direito superveniente; c) destine-se a contrapor fatos ou razões posteriormente trazidas aos autos.

Há, portanto, uma regra clara de que a prova documental deve ser apresentada na impugnação. Contudo, em homenagem ao princípio da verdade material e à função de proteção da legalidade objetiva do processo administrativo fiscal, em diversas oportunidades o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tem aceitado provas documentais apresentadas após a impugnação do 12 Neste ponto é importante uma ressalva. A adesão à visão de que a linguagem tende a ser indeterminada e que indeterminação, ambivalência e complexidade tendem a fazer parte do sistema jurídico não significa que todas os textos normativos sejam indeterminados, complexos e ambivalentes. Em outras palavras, aduzir que nem sempre as regras são claras não é o mesmo que afirmar que elas são sempre obscuras. 13 Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 101-104.

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auto de infração14. Trata-se de claro afastamento de regra clara em obediência à própria função teleológica do processo administrativo fiscal. Assim sendo, no que se refere ao formalismo entendido como rejeição à possibilidade de se deixar de aplicar uma regra clara é possível afirmar que, em relação às normas tributárias impositivas, a teoria tributária brasileira é, em geral, formalista. A seu turno, no que se refere às normas procedimentais ou relacionadas a obrigações acessórias, em determinados casos é possível afastamento de uma regra considerada clara diante de considerações teleológicas ou axiológicas.

2.3. Formalismo como crença na dedução silogística mecânica Outra forma de formalismo é aquele que reduz o fenômeno hermenêutico a uma aplicação silogística mecânica15. Segundo Richard Posner, “o raciocínio silogístico é tão convincente e conhecido que os advogados e juízes, sempre ávidos por fazer sua atividade parecer o mais objetiva possível, tentam fazer com que o raciocínio lógico pareça o mais silogístico possível”16. O formalismo baseado no silogismo não se distancia muito da crença no sentido literal das palavras. De fato, se a premissa maior, no raciocínio silogístico, é o texto legal, aquele somente será objetivo caso este seja determinado. Por outro lado, a outra peça da objetividade do raciocínio silogístico é a simplicidade dos fatos que compõem a premissa menor. A ideia por trás de uma teoria formalista baseada no silogismo é de que o texto normativo tributário, vertido em linguagem clara, certa e determinada, será aplicado a um conjunto de fatos também claros, certos e determinados, chegando-se então à conclusão, que deveria ser facilmente apreensível por qualquer homem médio. A crença na lógica silogística parece estar no centro de uma visão da interpretação da legislação tributária como instrumento para se alcançar uma simples dedução da tributação aplicável às transações realizadas pelas pessoas físicas ou jurídicas, para Alberto Xavier “a aplicação da norma tributária a um caso concreto traduz-se num raciocínio lógico subsuntivo que tem como premissa maior a norma tributária geral e abstrata, como premissa menor a 14 ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 351-358.

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situação fática da vida apresentada ao órgão de aplicação do Direito e como conclusão um juízo afirmativo ou negativo acerca da correspondência da referida situação fática à hipótese normativa”17.

2.4. Formalismo como interpretação literal dos textos jurídicos Uma das formas de formalismo é aquela que tem como base a possibilidade da interpretação literal dos textos legais. Esse debate se inicia com a discussão a respeito da existência de um sentido literal mínimo que os textos normativos possuam, mesmo quando tomados fora de seu contexto. A pergunta que Schauer nos apresenta é: os textos normativos têm um sentido mínimo apreensível pelo intérprete considerando apenas a análise da linguagem? A resposta do citado autor a essa questão é positiva, no sentido de que há um sentido literal mínimo dos textos normativos, apreensível apenas a partir da análise da linguagem. Como ele mesmo pontua, “que nós possamos aprender mais pela consideração de fatores adicionais ou por entendermos plenamente as intenções do emissor da mensagem não significa que não aprendamos nada consultando a linguagem das regras por si sós”18. Sendo possível uma apreensão mínima de significado a partir do exame isolado da linguagem dos textos normativos, uma vertente do formalismo jurídico defende a impossibilidade do resultado de tal análise meramente linguística ser afastada por outras considerações, de modo que implicações de ordem sistemática, teleológica ou axiológica não seriam suficientes para afastar a interpretação com base em análises linguísticas. Não identificamos do Direito Tributário Brasileiro uma tendência formalista nesse sentido. Mesmo autores que sustentam visões no sentido de que a linguagem é clara e certa o bastante para garantir uma compreensão dos mandamentos dos textos normativos tributários vão concordar que o processo hermenêutico não se resume a analises sintáticas e semânticas. Se não há uma tendência teórica em direção a um formalismo baseado na interpretação literal não podemos esquecer que há previsão nesse sentido no artigo 111 do Código Tributário Nacional, segundo o qual “interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I - suspensão ou exclusão

15 SCHAUER, Frederick, Formalism, 1988, p. 522-523.

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16 POSNER, Richard A., Problemas de Filosofia do Direito, 2007, p. 52.

18 SCHAUER, Frederick, Formalism, 1988, p. 528.

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XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001. p. 34.

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do crédito tributário; II - outorga de isenção; III - dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias”. Este dispositivo, que é alvo de severas críticas formuladas pelo Professor Ricardo Lobo Torres19, com as quais concordamos integralmente, talvez reflita a única inserção do formalismo baseado na interpretação literal no âmbito do Direito Tributário Brasileiro.

2.5. Formalismo como isolamento do sistema jurídico Uma outra forma de formalismo seria aquela que considera o sistema jurídico suficiente para prover todas as respostas aos problemas sociais a que se propõe a resolver. Como descreve Schauer “vimos que regras podem gerar respostas ou excluir de consideração respostas que de outra forma seriam elegíveis. Também vimos que há regras, como a que proíbe atirar em pelicanos, cuja aplicação em muito do seu escopo requer recurso apenas à regra e julgamentos incontroversos de significado e identificação de particularidades discretas. Portanto, é possível que haja sistemas cujas operações requerem recurso apenas a normas do sistema e a habilidades linguísticas e observacionais aceitas”20. A ideia de fechamento de um sistema se relaciona com outra, típica do pensamento positivista, que é a crença na completude do sistema. Conforme descreve Norberto Bobbio “com o requisito da completude, o positivismo jurídico afirma que, das normas explicita ou implicitamente contidas no ordenamento jurídico, o juiz pode sempre extrair uma regula decidendi para resolver qualquer caso que lhe seja submetido: o positivismo jurídico exclui assim decididamente a existência de lacunas no direito”21. A relação entre fechamento e completude não passou despercebida por Schauer, que destacou, contudo, que “fechamento e completude são propriedades distintas. Fechamento se refere à capacidade de um sistema de decidir casos dentro dos confins do próprio sistema, enquanto completude se refere à extensão em que um sistema lida com tais casos”22.

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Segue o professor americano afirmando que, para tentar alcançar o objetivo da completude, e apresentar respostas para a maioria dos casos, o sistema jurídico tende a se valer de normas mais fluidas e imprecisas. Por outro lado, tal abertura tenderia a abrir o sistema jurídico para mais influências externas23. Diante dessa análise, a conclusão de Schauer foi bastante categórica. Segundo ele, “sistemas jurídicos normalmente rejeitam o fechamento porquê eles têm que lidar com um vasto conjunto de problemas apresentado por um mundo complexo e fluido. Mas isso é o mesmo que dizer que comparativamente sistemas fechados podem ser por vezes indesejáveis, não que eles não sejam possíveis”24. A versão do formalismo como isolamento sistêmico não é estranha ao direito tributário. Encontramos posição nesse sentido, por exemplo, na obra de Paulo de Barros Carvalho, para quem: De tudo quanto se expôs, cabe ressaltar que a doutrina da autopoiese, que chega timidamente ao meio jurídico nacional, ao superar a visão dos sistemas abertos, em constante intercâmbio direto, vem trazer enorme reforço à compreensão sistemática do direito positivo, chamando a atenção para sua autonomia operacional e mostrando que o único modo de aprender-lhe as mensagens prescritas é interpretando-o juridicamente, isto é, a partir de suas estruturas, categorias, processos e formas. Não já como aceitar uma interpretação econômica do direito ou uma interpretação histórica do direito, mecanismos espúrios que ainda contaminam nossa cultura jurídica. Mais a mais, um sistema não age sobre outro sistema, modificando-o. O que pode acontecer é o sistema S’ tomar conhecimento de informações do sistema S’’ e processar esses dados segundo seu código de diferença, vale dizer, submetendo-o ao se peculiar critério operacional. Em linguagem jurídica, é o direito recebendo fatos econômicos, por exemplo, em suas hipóteses normativas e, a partir delas, produzindo novas relações jurídicas por meio dos operadores deônticos (V, P e O). Já se vê que a identidade auto-referencial do sistema jurídico impede qualquer esforço externo no sentido de seu conhecimento operacional, que somente será possível à medida que se considere o conjunto na complexidade de sua organização interior.25

19 Ver, por todos: TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 4 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 195-210. 20 SCHAUER, Frederick, Formalism, 1988, p. 535.

23 SCHAUER, Frederick, Formalism, 1988, p. 536.

21 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 133.

24 SCHAUER, Frederick, Formalism, 1988, p. 536.

22 SCHAUER, Frederick, Formalism, 1988, p. 535-536.

25 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 151.

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Portanto, pode ser classificada como formalista a teoria que tem como premissa a independência e fechamento operacional do sistema jurídico em relação a outros sistemas cognoscitivos. Um reflexo desse tipo de formalismo aparece na discussão a respeito da moral tributária do contribuinte. A questão que se apresenta refere-se à existência ou não de um dever moral de contribuir aos cofres públicos. Esta questão está no centro dos debates sobre planejamento tributário, aparecendo em discussões como a travada no projeto da OCDE de combate à erosão de base tributária e à transferência de lucros (em inglês BEPS - Base Erosion and Profit Shifting). Uma teoria tributária formalista irá negar a existência de um dever tributário de fonte moral, reforçando que apenas nas situações expressamente previstas em lei é possível falar em um dever de contribuir. Posição nesse sentido já era defendida há décadas atrás por Antônio Roberto Sampaio Dória, em seu surpreendentemente atual livro Evasão e Elisão Fiscal, como se infere da passagem abaixo transcrita: “O verdadeiro rationale que está por detrás das várias teorias da ilegitimidade da elisão fiscal e, principalmente, de decisões judiciais a ela desfavoráveis, apesar de jurídicas em seu aparato exterior, técnica e argumentação, o verdadeiro rationale, dizíamos, são inspirações éticas. Repugna a muitos admitir que possa alguém, com habilidade e inteligência, manipular as formas para escapar a uma responsabilidade fiscal, quando outros não o logram. Desagrada endossar o astucioso arranjo dos negócios, especialmente dos poderosos, feito com o visível intuito de se forrar ao pagamento de tributos, baseados na capacidade contributiva. É sempre amargo o desapontamento, que deve assaltar os julgadores, de terem que coonestar, por motivos de lógica jurídica formal, o que a seus olhos parece uma prestidigitação tributária. Não estimamos realístico falar-se em Moral Tributária num setor em que o comportamento dos indivíduos é rigorosamente condicionado pela cogência da norma. Em primeiro lugar, devido ao princípio do utilitarismo que governa toda a vida econômica. Depois, tanto jurídica como moralmente, seria irrisório pretender-se generosidade por parte dos contribuintes, sendo a compulsoriedade, e não a adesão espontânea do indivíduo, a nota essencial da tributação. O erário público (já disse-

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mos, escrevendo a propósito da elisão) não se nutre precipuamente de donativos e espórtulas, mas de contribuições forçadas.26

3. Formalismo e qualificação dos fatos Talvez o tipo de formalismo que mais ganhou notoriedade no Direito Tributário Brasileiro na última década não seja nenhum dos descritos acima. Com efeito, nos marcos do controle da legitimidade dos chamados planejamentos tributários abusivos, ganhou evidência o formalismo como teoria que pugna a qualificação dos atos praticados pelos contribuintes a partir de sua forma jurídica de Direito Privado, independentemente de sua substância econômica. Partindo da separação entre os momentos de interpretação da norma jurídica e sua aplicação, há autores que sustentam uma distinção entre interpretação e qualificação. Enquanto a primeira seria a compreensão dos sentidos possíveis de um determinado texto a segunda consistiria na valoração de um dado fato de acordo com o resultado da interpretação. Posição nesse sentido é adotada, por exemplo, por Ricardo Lobo Torres, para quem “o fato concreto apenas é valorado de acordo com a lei, ou qualificado segundo as categorias estabelecidas pela norma ou, como prefere Reale, é objeto de uma ‘qualificação normativa’. Se a aplicação do direito reveste sempre a forma de silogismo, subsume-se o fato em uma das interpretações possíveis da norma. Entre a interpretação da norma e a qualificação do fato há, por conseguinte, uma relação de subsunção, que não é meramente lógico-formal, mas também valorativa, o que às vezes, como anota Perelman, permite que o juiz abuse da qualificação para modificar a interpretação”27. Vale a pena destacar a lição, neste mesmo sentido, manifestada por Isabel de Magalhães Collaço, para quem “ao estudar a problemática da interpretação de determinadas categorias de conceitos técnico-jurídicos, não se há de esquecer, por certo, que a interpretação de dado conceito, em si mesma, se não confunde com aquela operação que se traduz em subsumir nesse conceito um certo substrato concreto – ou seja, com a qualificação de algo à luz desse conceito”28. 26 DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Elisão e Evasão Fiscal. 2 ed. São Paulo: José Bushatsky, 1977. p. 124-125. 27 TORRES, Ricardo Lobo, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, 2006, p. 309-310. 28 COLLAÇO, Isabel de Magalhães. Da Qualificação em Direito Internacional Privado. Lisboa: [s.n.], 1964. p. 142-143.

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Em outro trabalho, apresentamos crítica à separação rígida entre interpretação do texto normativo e qualificação dos fatos a partir da primeira, destacando que há uma necessária circularidade entre o fato e o texto, uma implicação mútua que não pode ser desconsiderada29. De toda forma, o conceito de qualificação é útil à classificação que ora nos propomos. Ou seja, é possível identificar que certas doutrinas são consideradas formalistas em razão de pretenderem qualificar os fatos sobre os quais incidirão as regras tributárias exclusivamente à luz de suas formas de direito privado. Embora por vezes se confunda este tipo de formalismo tributário com os outros antes analisados, vale a pena observar que não há uma correlação necessária entre os mesmos. Um autor pode defender a abertura conceitual, o pluralismo metodológico para fins hermenêuticos, a inter-relação sistêmica entre o sistema tributário e outros sistemas não jurídicos e, ainda assim, ser um formalista da perspectiva da qualificação factual.

4. Formalismo e opção por princípios constitucionais Outra forma de formalismo que se apresenta no Direito Tributário pátrio parte da preferência por princípios constitucionais relacionados à segurança jurídica, em contraposição a princípios de justiça. Linha teórica nesse sentido encontramos em Humberto Ávila. O professor gaúcho parte do reconhecimento de que “a nossa Constituição não tem apenas os princípios da legalidade, da segurança jurídica, do Estado de Direito, retroatividade, anterioridade, que são princípios relacionados à segurança jurídica, princípios que eu qualificaria de princípios formais. A nossa Constituição também tem princípios que poderíamos chamar de princípios materiais, relacionados à solidariedade, à função social da propriedade, à dignidade humana - e por aí afora”30. Diante de princípios que podem orientar resultados contraditórios, Humberto Ávila sustenta que para chegarmos à coerência sistemática da Constituição “temos que investigar qual é a aglutinação maior da nossa Constituição”31 29 ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 175-178. 30 ÁVILA, Humberto. Planejamento Tributário. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 98, 2007, p. 80-81. 31 ÁVILA, Humberto, Planejamento Tributário, 2007, p. 81.

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e, na visão do citado autor, a Constituição Federal dá maior relevância aos princípios formais. Em suas palavras, “há uma preferência axiológica da nossa Constituição pelo controle de poder”32. Dessa forma, uma teoria poderia ser chamada formalista por se basear em uma análise do Sistema Tributário conforme descrito na Constituição Federal como primordialmente formal, como sendo principalmente um conjunto de limitações ao exercício do poder de tributar.

5. Formalismo como uma certa leitura dos princípios tributários No item anterior vimos que uma vertente do formalismo tributário parte de uma leitura da Constituição Federal que leva à conclusão de que a própria Lei Maior teria feito uma opção por princípios formais. Agora, parece-nos haver outra forma de formalismo que se materializa em uma determinada leitura de tais princípios formais. O melhor exemplo é o caso do princípio da legalidade. Uma teoria formalista vai interpretar o princípio da legalidade, juntamente com o princípio da tipicidade, como um instrumento exclusivo de contenção do poder, relacionando-se, por exemplo, com a noção antes mencionada de clareza conceitual. Encontramos argumentação nesse sentido em Hugo de Brito Machado, para quem: “O princípio da legalidade pode ser entendido em dois sentidos, a saber: a) o de que o tributo deve ser cobrado mediante o consentimento daqueles que o pagam, e b) o de que o tributo deve ser cobrado segundo normas objetivamente postas, de sorte a garantir plena segurança nas relações entre o Fisco e os contribuintes.”33

Portanto, além de uma orientação no sentido de que princípios formais têm um maior peso constitucional do que outros princípios “materiais”, para

32 ÁVILA, Humberto, Planejamento Tributário, 2007, p. 81. 33 MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. 5 Ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 21.

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usar a nomenclatura utilizada por Humberto Ávila34, também é possível identificar uma visão do formalismo que propõe uma certa leitura de tais princípios.

6. Conclusão A motivação para a elaboração deste breve texto veio de uma conversa mantida com um professor durante o 17º Simpósio de Grandes Questões Atuais do Direito Tributário da Dialética. Na oportunidade ele questionava porquê alguns autores o classificavam como formalista. Este texto certamente é apenas a primeira incursão sobre o tema, de modo que, aqui, não me propus a analisar detidamente a doutrina dos autores chamados formalistas para verificar se efetivamente podem ser chamados assim e, em caso positivo, em que sentido suas doutrinas podem ser chamadas formalistas. Considerando a ressalva acima, podemos concluir este texto afirmando que o formalismo jurídico-tributário não é uma categoria unívoca. Pelo contrário, como vimos há várias teorias formalistas no Direito em geral e no Direito Tributário em particular, de modo que devemos ter cuidado ao ingressar em generalizações neste campo. Ao afirmar que um determinado autor é formalista é importante esclarecer a razão de tal classificação, para que o leitor possa verificar se tal afirmação é ou não procedente. Por outro lado, deve-se ter redobrado cuidado ao fazer avaliações valorativas sobre teorias formalistas, umas vez que, se nem todo formalismo é bom, certamente nem todo formalismo é ruim.

34 ÁVILA, Humberto, Planejamento Tributário, 2007, p. 81.

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Evolução Histórica da Teoria Hermenêutica: Do Formalismo do Século XVIII ao Pós-Positivismo (2007) O propósito deste estudo é a apresentação de considerações acerca de aspectos relevantes das principais escolas hermenêuticas que se sucederam ao longo dos dois últimos séculos, com vistas a formar uma compreensão de como se apresenta a questão da interpretação jurídica hodiernamente.

1. O formalismo jurídico na Alemanha, na Inglaterra e na França 1.1. A jurisprudência dos conceitos e o formalismo jurídico alemão do Século XIX 1.1.1. A escola histórica do direito O formalismo jurídico na Alemanha e a reação ao direito natural forjaram-se ao longo do século XIX, em princípio com o desenvolvimento da escola histórica do direito e posteriormente com o surgimento da jurisprudência dos conceitos. O historicismo, que teve início com Gustav Hugo (1764 - 1844) e encontrou seu mais célebre expoente na figura de Friedrich Karl von Savigny (1779 - 1861), legou à jurisprudência dos conceitos a ideia de sistema, extremamente relevante para o seu desenvolvimento.35 Ademais, a escola histórica colocava-se em ponto de colisão com as ideias jus naturalistas, na medida em que, como destaca Norberto Bobbio, “ao direito natural a escola histórica contrapõe o di-

35 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3.ed. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 19; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 31.

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reito consuetudinário, considerado como a forma genuína do direito, enquanto expressão imediata da realidade histórico social e do Volksgeist”.36 Todavia, o historicismo rejeitava a possibilidade de que as leis pudessem ser criadas ex nihilo pelo legislador, sendo estas, na verdade, um fenômeno histórico.37 Tal característica encontra-se relacionada com a própria fragmentação que a Alemanha ostentou até a segunda metade do Século XIX. Não havendo ainda um Estado alemão não havia a crença na prevalência de um direito posto.38 Nesse contexto se encaixa a separação feita por Savigny entre as regras de direito e os institutos jurídicos, a qual de certa forma aproxima seu historicismo da jurisprudência dos conceitos, na medida em que se sustenta que os institutos jurídicos, forjados pelo espírito do povo,39 é que devem servir de baliza para a compreensão das regras de direito, de forma que “o legislador cria a regra isolada a partir da ideia que ele formou do instituto jurídico como um todo”.40 36 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Tradução Márcio Pugliesi; Edson Bini; Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. p. 53. Ver, ainda: RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Tradução L. Cabral de Moncada. Coimbra: Arménio Amado, 1997. p. 64 e 65; KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Tradução Luis Villar Borda. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1999. p. 70; ADEODATO, João Maurício. Positividade e Conceito de Direito. In: Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 20 e 21; ROBLES, Gregorio. Introducción a la teoría del derecho. 6. ed. Barcelona: Debate, 2003. p. 137; COELHO, L. Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 233-234.

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É evidente que esses traços de aproximação não significam que o historicismo se confunda com a jurisprudência dos conceitos. De fato, considerando a gênese consuetudinária dos institutos jurídicos de Savigny, jamais se poderia ver os mesmos como conceitos. Como bem ponderam Jean-Cassien Biller e Aglaé Maryioli, “o enfoque histórico redundou em um trabalho de genealogia de conceitos que não é mais histórica, é lógica”.41 Outro importante legado de Savigny foi sua teoria da interpretação. Com efeito, destacava o mestre alemão a indispensabilidade da interpretação como forma de interação entre o intérprete e o texto, ressaltando que a interpretação “é indispensável para toda aplicação da lei à vida real”, de forma que esta “não está restrita, como creem alguns, ao caso acidental de obscuridade da lei”.42 Para Savigny, a interpretação seria “a reconstrução do pensamento contido na lei”, podendo a mesma ser decomposta em partes constitutivas, as quais correspondem aos seus quatro elementos (note-se que Savigny fala em elementos e não em métodos): gramatical, lógico, histórico e sistemático.43 Esses seriam os elementos constitutivos de todo e qualquer processo interpretativo, não se podendo escolher um deles em detrimento dos demais, sendo o exame de todos os elementos indispensável para a interpretação da lei.44 Diante do exposto, é possível afirmar que a escola histórica do direito legou à jurisprudência dos conceitos alguns dos fundamentos sobre os quais esta

37 Cf. ATIENZA, Manuel. El Sentido del Derecho. 2. ed. Barcelona: Ariel, 2003. p. 232; FERAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 76. 38 Cf. HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio. Mem Martins: Europa-America, 2003. p. 270. 39 Cf. SAVIGNY, Friedrich Karl von. Sistema del Derecho Romano Actual. 2. ed. Tradução Jacinto Mesía; Manuel Poley. Madrid: Editorial de Góngora, [s/d]. t. I. p. 66 e 67. Conforme destaca Giorgio del Vecchio, “a ‘consciência histórica do povo’ é um conceito característico da escola histórica do Direito, que o derivou do historicismo filosófico de Schelling e Hegel, tanto que pode ser considerado como uma particular aplicação das doutrinas desses filósofos no campo do Direito. Segundo a escola histórica, todo povo tem um espírito, uma alma própria, que se reflete em uma numerosa série de manifestações: Moral, Direito, Arte, Linguagem, os quais são todos produtores espontâneos e imediatos do espírito popular (Volksgeist)” (DEL VECCHIO, Giorgio. Filosofia del Derecho. 9. ed. Barcelona: Bosch, 1997. p. 120 e 121). Ver também: RECASENS SICHES, Luis. Tratado General de Filosofía del Derecho. 14. ed. México: Editorial Porrúa, 1999. p. 441; OLIVEIRA ASCENÇÃO, José de. Introdução à Ciência do Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 163. 40 Cf. COING, Helmut. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 315. Nas palavras de Savigny: “A solução de um caso prático não é possível senão referindo-o a uma regra geral, que domine os casos particulares. Esta regra se chama direito, ou direito geral, ou às vezes também direito em sentido objetivo. Se manifesta sobretudo na lei, isto é, na regra promulgada pela autoridade suprema de um Estado.

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Se a decisão de um caso particular é de natureza restrita e subordinada; se encontra sua raiz viva e sua força de convicção na apreciação da relação de direito, a regra jurídica e a lei, que é sua expressão, têm por base as instituições cuja natureza orgânica se mostra no conjunto mesmo de suas partes constitutivas e em seus desenvolvimentos sucessivos. Assim, pois, quando não se quer limitar-se às manifestações exteriores, mas sim penetrar a essência das coisas, reconhece-se que cada elemento da relação de direito refere-se a uma instituição que o domina e lhe serve de tipo, da mesma forma que cada decisão está dominada por uma regra e este segundo encadeamento, ligando-se ao primeiro, encontra ali a realidade e a vida” (SAVIGNY, Friedrich Karl von, Sistema del Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 81).

41 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005. p. 191. 42 SAVIGNY, Friedrich Karl von, Sistema del Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 184. 43 SAVIGNY, Friedrich Karl von, Sistema del Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 187. 44 SAVIGNY, Friedrich Karl von, Sistema del Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 189.

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se desenvolveu: seu caráter positivo,45 sua sistematicidade46 e a própria busca de justificação do mais específico no mais geral.47

1.2. A jurisprudência dos conceitos Diante do exposto, tem-se que a jurisprudência dos conceitos partiu de alguns alicerces lançados pela escola história, os quais foram trabalhados por Friedrich Puchta (1798-1846), discípulo de Savigny, para o desenvolvimento de sua genealogia dos conceitos.48 Os principais expoentes da jurisprudência dos conceitos foram o supracitado Friedrich Puchta e Rudolf von Ihering (1818-1892), embora este último tenha posteriormente tornado-se um de seus maiores opositores.49 A jurisprudência dos conceitos reflete uma teoria jurídica lógico-racionalista, na medida em que atribui aos conceitos jurídicos a possibilidade de enclausurar o direito, sendo desnecessária qualquer valoração para a compreensão das regras jurídicas, mas sim a sua recondução a conceitos superiores.50 45 Cf. ALCHOURRÓN, Carlos E. Introducción a la Metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2002. p. 90. 46 Cf. HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 274; ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da Norma Tributária. São Paulo: MP Editora, 2006. p. 47. 47 Mencionando a relação entre a escola histórica e a jurisprudência dos conceitos, ver: DEL VECCHIO, Giorgio, Filosofia del Derecho, 1997, p. 121; LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 19; ATIENZA, Manuel, El Sentido del Derecho, 2003, p. 233; FERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna. La Hermenéutica Jurídica de Hans-Georg Gadamer. Valladolid: Secretariado de Publicaciones, 1992. p. 20. 48 Cf. FERAZ JR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2001, p. 77; LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 23; HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 274. 49 Sobre a teoria conceitualista de Ihering, ver: HART, H. L. A. Jhering’s Heaven of Concepts. In: Essays in Jurisprudence and Philosophy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 265-277. 50 Nas palavras de Arthur Kaufmann, “traço característico da jurisprudência dos conceitos, que não tem de estar, forçosamente, dependente do positivismo, é a dedução de princípios jurídicos a partir de meros conceitos; por exemplo, do conceito de ‘pessoa jurídica’ retira-se a consequência de que a pessoa jurídica, enquanto ‘pessoa’, é suscetível de ser ofendida e de ser incriminada. Os conceitos servem de fonte de conhecimento. É nesse ontologismo, de acordo com o qual a existência procede da essência, que repousa a famosa demonstração ontológica de Deus: do conceito do ‘ser mais perfeito’ resultaria necessariamente a sua existência (caso contrário ele não seria perfeito)” (KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: KAUFMANN, Arthur; ACEDER, W. (Ufrgs.). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Tradução Marcos Keel. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 168).

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Tem-se aqui o cerne da genealogia dos conceitos de Puchta, explicitada por Karl Larenz nos seguintes termos: A ideia de Puchta é a seguinte: cada conceito superior autoriza certas afirmações (por ex., o conceito de direito subjetivo é de que se trata de ‘um poder sobre um objeto’); por conseguinte, se um conceito inferior se subsumir ao superior, valerão para ele ‘forçosamente’ todas as afirmações que se fizerem sobre o conceito superior (para o crédito, como espécie de direito subjetivo, significa isto, por ex., que ele é ‘um poder sobre um objeto que esteja sujeito à vontade do credor e que se poderá então vislumbrar, ou na pessoa do devedor, ou no comportamento devido por este último’). A ‘genealogia dos conceitos’ ensina, portanto, que o conceito supremo, de que se deduzem todos os outros, codetermina os restantes através do seu conteúdo. Porém, de onde precede o conteúdo desse conceito supremo? Um conteúdo terá ele que possuir, se é que dele se podem extrair determinados enunciados, e esse conteúdo não deve proceder dos conceitos dele inferidos, sob pena de ser tudo isto um círculo vicioso. Segundo Puchta, este conteúdo procede da filosofia do Direito: assim, consegue um ponto de partida seguro com que construir dedutivamente todo o sistema e inferir novas proposições jurídicas.51

Partindo-se dessas ideias, é possível compreender a jurisprudência dos conceitos como uma doutrina formalista, segundo a qual a atividade de interpretação/aplicação do direito dar-se-ia de forma lógico-dedutiva, mediante a subsunção de conceitos inferiores a conceitos superiores.52 A genealogia dos conceitos implica um sistema jurídico organizado de forma piramidal, de forma que os conceitos inferiores se legitimam na medida em que podem ser reconduzidos subsuntivamente a conceitos superiores, até se chegar ao conceito supremo que, segundo Puchta, procederia da filosofia.53 Assim, percebe-se que a validade dos conceitos inferiores é definida em termos puramente lógicos, sem qualquer implicação axiológica. Conforme salienta Helmut

51 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 25. 52 Ver: HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 283; ANDRADE, José Maria Arruda de, Interpretação da Norma Tributária, 2006, p. 48. 53 Cf. LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 25.

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Coing, “com isto, tanto o trabalho da ciência como o do juiz, torna-se uma atividade puramente lógica: os interesses e valores em jogo não mais aparecem”.54 Na lição de Oliveira Ascenção, decorrência da forma de pensar conceitualista é a ideia de completude do sistema jurídico, de modo que “por processos lógicos, o jurista extrairia do sistema sempre a regra adequada para regular uma situação. Pode aparentemente essa regra faltar e existir uma lacuna; mas no fundo toda a regra estará ao menos implícita no sistema”.55 Aspecto interessante do formalismo alemão do Século XIX é que o mesmo desenvolveu-se antes que a Alemanha tivesse concretizado sua codificação, o que somente viria a acontecer com a edição do Código Civil Alemão que entrou em vigor no ano de 1900. Como se sabe, o próprio Savigny era um opositor da ideia da codificação na Alemanha, o que deu azo à célebre contenda com Anton Justus Friedrich Thibaut (1772-1840), defensor do esforço codificante.56 Tal fato já denuncia um traço diferencial entre a jurisprudência dos conceitos alemã e a escola da exegese francesa, a ser examinada a seguir. Embora tratem-se de duas escolas formalistas, o formalismo alemão forjou-se com base na consciência histórica e na lógica conceitual, enquanto o formalismo exegé-

54 COING, Helmut, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 318. Para Arthur Kaufmann, “o método da jurisprudência dos conceitos serviu aos seus representantes para provar que a lei seria fecunda por si mesma, sem recurso às situações da vida” (KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 168). 55 OLIVEIRA ASCENÇÃO, José de, Introdução à Ciência do Direito, 2005, p. 458. Também nesse sentido: HECK, Philipp. El Problema de la Creación del Derecho. Tradução Manuel Entenza. Granada: Comares, 1999. p. 35; FERAZ JR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2001, p. 79. Os principais traços da jurisprudência dos conceitos encontram-se bem sintetizados nas seguintes palavras de Maria Margarida Lacombe Camargo: “A atividade científica consistia em estabelecer conceitos bem definidos, que pudessem garantir segurança às relações jurídicas, uma vez diminuída a ambiguidade e a vaguedade dos termos legais. E foi por meio da elaboração de conceitos gerais, posicionados na parte superior da figura de uma pirâmide, capazes de conter e dar origem a outros conceitos de menor alcance numa união total, perfeita e acabada, que o direito alcançou seu maior grau de abstração e autonomia como campo de conhecimento. Esse alto grau de racionalidade deu origem ao ‘dogma da subsunção’ que irá se impor no século seguinte. O direito era tido como fruto de um desdobramento lógico-dedutivo entre premissas capazes de gerar por si sós uma conclusão que servisse de juízo concreto para cada decisão. [...]” (CAMARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 87). 56 Sobre o movimento pela codificação de Thibaut e sua contenda com Savigny, ver: BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 53-62.

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tico francês tinha como ponto de partida um monumento jurídico-positivo: o Código Civil Napoleônico de 1804.

1.3. A escola da exegese e o formalismo jurídico francês do Século XIX A escola da exegese francesa desenvolveu-se no século XIX principalmente a partir da edição do Código Civil Francês de 1804, o Código de Napoleão, tendo entre seus expoentes Jean Ch. F. Demolombe, Troplong, Alexandre Duranton, Proudhon, Charles Aubry, Frédéric Charles Rau e Pothier, entre outros juristas franceses.57 Como visto, ao contrário da jurisprudência dos conceitos, o exegetismo francês representou um formalismo legalista, na medida em que, tendo por base a magnífica obra legislativa que foi o Código de Napoleão, pensavam os juristas franceses da época ser possível encontrar, no texto da lei, respostas para todas as controvérsias surgidas no âmbito do convívio social.58 Com isso, relegou-se ao intérprete/aplicador do direito uma tarefa meramente mecânica de aplicação das normas codificadas,59 as quais sequer deve57 Nas palavras de Maria Helena Diniz, “a escola da exegese reuniu a quase-totalidade dos juristas franceses [...] durante a época da codificação do direito civil francês e o tempo que se sucedeu à promulgação do célebre Código de Napoleão” (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 47). 58 Segundo Maria Margarida Lacombe Camargo, “havia uma pretensão de se encontrar na lei a resposta para todos os conflitos. De fato, em um momento de pouca complexidade social e progresso em lenta evolução, o código napoleônico conseguiu manter-se praticamente inalterado até o final do século, e com ele as propostas da escola da exegese” (CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 87). António Manuel Hespanha destaca que diante dos códigos napoleônicos “não podiam valer quaisquer outras fontes de direito. Não o direito doutrinal, racional, suprapositivo, porque ele tinha sido incorporado nos códigos, pelo menos na medida em que isso tinha sido aceite pela vontade popular. Não o direito tradicional, porque a Revolução tinha cortado com o passado e instituído uma ordem política e jurídica nova. Não o direito jurisprudencial, porque aos juízes não competia o poder de estabelecer o direito (poder legislativo), mas apenas o de o aplicar (poder judicial). A lei – nomeadamente, esta lei compendiada e sistematizada em códigos – adquiria, assim, o monopólio da manifestação do direito. A isto se chamou legalismo ou positivismo legal (Gesetzpositivismus)” (HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 268-269). Ver, ainda: SALDANHA, Nelson. Da Teologia à Metodologia: Secularização e crise do pensamento jurídico. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 77; RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. México: Porrua, 1963. t. I. p. 31. 59 Cf. AFTALIÓN, Enrique R.; OLANO, Fernando García; VILANOVA, José. Introducción al Derecho. 7. ed. Buenos Aires: La Ley, [196-]. p. 804; COELHO, L. Fernando, Lógica Jurídica e Interpretação das Leis, 1981, p. 226.

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riam ser objeto de interpretação. Conforme destaca García Máynez, “a interpretação é, pois, partindo desse ponto de vista, esclarecimento dos textos, não interpretação do direito. Ignoro o direito civil – exclamava Bugnet – ‘só conheço o Código de Napoleão’”.60 Esse aspecto foi ressaltado por François Gény, crítico da escola exegética. Segundo o jurista francês, principalmente por obra dos estudiosos que se desenvolveram após a vigência do Código houve uma importante mudança no papel assumido pelo intérprete. Em suas palavras:61 Daí a regra insculpida no artigo 4º do Código, segundo a qual os juízes não poderiam deixar de julgar um caso particular ao argumento de que a lei seria obscura ou omissa, chegando-se, portanto, ao dogma da completude do ordenamento jurídico, o qual deve conter respostas para todas as perguntas.62 Norberto Bobbio, partindo das lições de Bonnecase, sintetizou as principais características da escola da exegese nos seguintes termos: (a) inversão das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo, reconhecendo-se a existência de princípios pré-positivos, mas sustentando-se que os mesmos são irrelevantes para o jurista enquanto não positivados; (b) defesa de uma concepção estatal do direito, de modo que somente seriam jurídicas as regras postas pela organização do Estado; (c) defesa de uma teoria subjetivista da interpretação, no 60 GARCÍA MÁYNEZ, Eduardo. Introducción al Estudio del Derecho. 53. ed. México: Editorial Porrúa, 2002. p. 334. Nas palavras de Luiz Alberto Warat, “a concepção que orienta o método exegético, tanto como a que inspira o método gramatical, se baseia na ideia de que as leis conformam um universo significativo autosuficiente, do qual se pode inferir por atos de derivação racional as soluções para todo o tipo de conflito jurídico. Fundamentalmente supõe a figura de um juiz neutro, mecânico, não criativo. É uma crença mítica, plasmada em uma expressão retórica reiterativa, que ficou sempre no plano conceitual” (WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. v. I. p. 69-70). Ver, também: BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2001. p. 325. 61 GÉNY, François. Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo. 2. ed. Madrid: Editorial Reus, 1925. p. 23. Nesse sentido, ver também: BONNECASE, Julien. Science du Droit et Romantisme. Paris: Librarie du Recueil Sirey, 1928. p. 9-13. 62 Como observa Chaïm Perelman, “o artigo 4 do Código de Napoleão, ao proclamar que o juiz não pode recusar-se a julgar sob pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, obriga-o a tratar o sistema de direito como completo, sem lacunas, como coerente, sem antinomias e como claro, sem ambiguidades que deem azo a interpretações diversas. Somente diante de um sistema assim é que o papel do juiz seria conforme à missão que lhe cabe, a de determinar os fatos do processo e daí extrair as consequências jurídicas que se impõem, sem colaborar ele próprio na elaboração da lei. Foi nesta perspectiva que os juristas da escola da exegese se empenharam em seu trabalho, procurando limitar o papel do juiz ao estabelecimento dos fatos e à sua subsunção sob os termos da lei” (PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Tradução Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 34-35).

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sentido de que se deveria buscar a revelação da vontade do legislador contida no texto legal; (d) apego à literalidade do texto legal; e (e) apego ao princípio da autoridade, com o que se atribuía relevância não só ao texto do código, mas também às lições de seus primeiros comentadores.63

1.4. A escola analítica e o formalismo jurídico inglês do Século XIX Paralelamente à escola da exegese francesa, desenvolveu-se teoria jurídica semelhante na Inglaterra do Século XIX, a qual ficou conhecida como escola analítica e teve em John Austin (1790-1859) seu principal expoente.64 Todavia, embora Austin seja a principal figura da escola analítica, não é possível examinar o formalismo inglês desse período sem mencionar a pessoa de Jeremy Bentham (1748-1832), cujas ideias influenciaram o pensamento do primeiro. Em primeiro lugar, Jeremy Bentham era um crítico da common law e um entusiasta da codificação e da legislação. Sobre esse ponto, é arguta a seguinte passagem de Norberto Bobbio, ao comparar as visões alemã, francesa e inglesa sobre a codificação do direito: Observamos o curioso destino da ideia da codificação: dela não houve vigência na Alemanha (no período histórico por nós examinado), porque os homens cultos que a ela eram contrários (principalmente Savigny, que podemos chamar de teórico da anticodificação) conseguiram fazer prevalecer seu ponto de vista; na França houve codificação sem ter havido uma teoria da codificação (os juristas da Revolução propuseram de fato a codificação sem, entretanto, teorizá-la; e Montesquieu, o maior filósofo do direito do iluminismo francês, não pode, com certeza, ser considerado um teórico da codificação); na Inglaterra, pelo contrário, onde já no século XVII existiu o maior teórico da onipotência do legislador (Thomas Hobbes), não houve a codificação, mas foi elaborada a mais ampla teoria da codificação, a de Jeremy Bentham, chamado exatamente de o “Newton da legislação”.65

63 BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 84-89. 64 Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 417-418. 65 BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 91.

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Ademais, além de defensor da legislação, Jeremy Bentham, com seu princípio da utilidade, impunha sobre o direito e demais relações sociais uma relatividade moral que o opunha ao jusnaturalismo. Tal princípio da utilidade parte da ideia de que a humanidade é guiada por duas grandes forças: sofrimento e prazer, de forma que os indivíduos agiriam sempre em busca de evitar o sofrimento e maximizar o prazer.66 Embora Bentham fosse um entusiasta da legislação, vê-se que seu utilitarismo não era comparável às posições formalistas da jurisprudência dos conceitos e da escola da exegese. Tanto que Bobbio chega a afirmar que, em parte, as ideias de Bentham se aproximam da jurisprudência dos interesses,67 a ser estudada mais adiante. O ideário de Jeremy Bentham influenciou o desenvolvimento da escola analítica que teve em John Austin seu maior expoente.68 Traço importante dessa escola é a separação do direito positivo das demais ordens normativas, como a moral. Conforme Angel Latorre, “Austin considera, em primeiro lugar, que se deve distinguir o direito positivo de outros tipos de normas, como os usos sociais ou outros preceitos independentes daquele, que se considera o único verdadeiro direito”.69 Trazendo à colação as palavras do próprio Austin: Leis propriamente ditas, ou propriamente assim denominadas, são comandos; leis que não são comandos são leis impróprias ou impropriamente assim denominadas. Leis propriamente ditas juntamente com as leis impróprias, podem ser dividas nas quatro espécies a seguir: 1. Leis divinas ou leis de Deus: ou seja, leis estabelecidas por Deus para as suas criaturas humanas.

66 Em suas palavras: “A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois mestres soberanos, sofrimento e prazer. Cabe a eles determinar o que devemos fazer. De um lado, os standards de certo e errado e de outro, a cadeia de causas e efeitos, estão presos ao seu trono. Sofrimento e prazer nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que falamos, em tudo o que pensamos: todo esforço que podemos fazer para afastar nossa sujeição servirá apenas para confirmá-la. Em palavras um homem pode pretender abjurar seu império, mas em realidade ele permanecerá sujeito a eles todo o tempo. O princípio da utilidade reconhece tal sujeição e assume-a como sendo o fundamento de um sistema cujo objeto é erguer a fábrica da felicidade pelas mãos da razão e da lei” (BENTHAM, Jeremy. The Principles of Morals and Legislation. New York: Prometheus Books, [s/d]. p. 1 e 2).

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2. Leis positivas: ou seja, leis que são simplesmente e estritamente assim denominadas e que compõem a matéria apropriada da teoria jurídica geral e particular. 3. Moral positiva, regras de moralidade positiva ou regras morais positivas. 4. Leis em sentido metafórico ou figurativo.70

Tal finalidade é verificada no próprio título de seu trabalho principal, The Province of Jurisprudence Determined, que pode ser traduzido como A Determinação do Campo do Direito. Segundo Austin, seu objetivo era “distinguir o direito positivo (o verdadeiro tema do direito) dos objetos ora enumerados, objetos com os quais aquele está ligado apenas por semelhança ou analogia”.71 Deixando de lado as leis divinas, para Austin apenas os comandos compunham o direito positivo, devendo-se entender por comando uma ordem cujo descumprimento é seguido de uma consequência (sanção) negativa para o inadimplente.72 Assim, as regras morais quedam-se fora do campo do jurídico, compondo o que Austin denomina moralidade positiva. São chamadas morais para que sejam distinguidas das normas jurídicas e são denominadas positivas, para que não sejam confundidas com as leis divinas.73

2. Movimentos de contestação ao formalismo 2.1. François Gény e a livre investigação científica Ainda no curso do Século XIX as escolas formalistas francesa e alemã foram objeto de crítica. Na França, a Escola da Exegese foi alvo de contestação por François Gény (1861-1959) e sua doutrina da livre pesquisa do direito. Na Alemanha, surgiram a jurisprudência dos interesses, cujo expoente maior foi Philipp Heck, e o movimento do direito livre, expressão aparecida em uma conferência de Eugen Ehrlich em 1903.74 70 AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. New York: Prometheus Books, [s/d]. p. 1. 71 AUSTIN, John, The Province of Jurisprudence Determined, [s/d], p. 2.

67 BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 98.

72 AUSTIN, John, The Province of Jurisprudence Determined, [s/d], p. 13.

68 Cf. ATIENZA, Manuel, El Sentido del Derecho, 2003, p. 234.

73 AUSTIN, John, The Province of Jurisprudence Determined, [s/d], p. 12

69 LATORRE, Angel. Introdução ao Direito. Tradução Manuel de Alarcão. Coimbra: Almedina, 2002. p. 157.

74 Cf. LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 78.

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Ao examinar a livre investigação científica, Vicente Ráo manifesta-se no sentido de que esta “encontra sua melhor e mais exata qualificação dentro da teoria das lacunas do direito, pois sua finalidade consiste em suprir, mediante livre apuração de novas regras, as omissões, os vazios, que por outro modo se não possam preencher, das normas jurídicas existentes”.75 De fato, parece que o alvo principal da crítica de Gény era a ideia de esgotamento do direito na legislação,76 tão ao gosto dos juristas franceses do Século XIX, à qual se ligava também uma crítica à teoria hermenêutica que considerava que a interpretação/aplicação do direito se resumia à subsunção de um fato a uma lei preexistente.77 Essa crítica fica clara na lição de Gény: As fontes formais do direito privado positivo, das quais procurei, no capítulo precedente, precisar o justo alcance e determinar o uso legítimo, dotam seguramente, no limite permitido em sua esfera de ação, da mais segura direção ao intérprete. Mas não pode ocultar-nos que, por penetrante e sutil que possa ser a interpretação dessas manifestações positivas do Direito, não se pode desconhecer sua natureza, e seria exceder seu próprio poder pretender que somente ela satisfizesse todas as aspirações da vida jurídica. Sobretudo – para não falar aqui mais do que da perfeita e mais fecunda, atualmente, das fontes mencionadas, a lei escrita – é claro que examinando-a tal como devemos fazê-lo, como um ato da inteligência e da vontade humana necessariamente limitada em seus propósitos, restrita também em seu alcance efetivo, pode-se assegurar que, por maior que seja a profundidade a que se chegue e por mais engenho que se ponha em solicitar a fórmula, não se poderá deduzir a

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plena totalidade das soluções que reclamam imperiosamente a infinita complexidade das relações sociais.78

O papel da livre investigação científica seria exatamente oferecer ao intérprete/aplicador do direito instrumental para superar as limitações imanentes ao direito positivo.79 Segundo Maria Margarida Lacombe Camargo “de acordo com Gény, uma vez não obtida a resposta para o problema no sistema, o aplicador da lei poderia, por meio da atividade científica, encontrar a solução jurídica fora do âmbito restrito da lei positiva”. Todavia, conforme adverte François Gény, a ideia de superação da vinculação absoluta entre o juiz e o direito positivo, não significa o império do subjetivismo judicante, com a prevalência do entendimento pessoal do magistrado. É seguindo essa linha de raciocínio que afirma que poder o trabalho do juiz ser qualificado como “livre investigação científica; investigação livre, tendo em vista que se encontra subtraída à ação própria de uma autoridade positiva; investigação científica, ao próprio tempo, porque não pode encontrar bases sólidas além dos elementos objetivos que somente a ciência pode revelar”.80 Assim, segundo Gény as fontes do direito dividem-se em quatro categorias distintas, enunciadas por Jean-Cassien Billier e Agalaé Maryioli: “dados reais que constituem as realidades sociais, econômicas, físicas e também morais, sobre as quais se inscrevem as regras jurídicas; os dados históricos que constituem a tradição, a história institucional e tudo o que se liga à história particular de um país; os dados racionais que constituem tudo o que se refere à ‘natureza das coisas ou do homem’, a sua essência, apresentando as características da necessidade, da imutabilidade e da universalidade, em suma, que constituem ‘o irredutível do direito natural’; os dados ideais que correspondem às aspirações mais profundas do homem”.81

75 RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 514. 76 Nas palavras de Maria Helena Diniz, “[...] diz François Gény, a experiência demonstra que a lei escrita é incapaz de solucionar todos os problemas suscitados pelas relações sociais e até mesmo os casos que caem sob sua égide, isto porque a sua solução não depende somente da letra da lei mas também de ponderação dos fatos sociais concretos, por ser necessário investigar as realidades sociais concretas, para que a aplicação da leis produza os resultados perseguidos pelo legislador” (DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 57). 77 Cf. BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 270 e 271; CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 71; RECASÉNS SICHES, Luis, Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX, 1963, p. 27.

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78 GÉNY, François, Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo, 1925, p. 520. 79 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 71. 80 GÉNY, François, Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo, 1925, p. 524. 81 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 272.

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2.2. A segunda fase do pensamento de Rudolf von Ihering Na Alemanha, a crítica ao formalismo da jurisprudência dos conceitos ganhou força na pena de Rudolf von Ihering que, como visto, inicialmente fora um de seus principais arautos. Ihering pode ser considerado o precursor das concepções sociológicas do direito82 e da chamada jurisprudência dos interesses,83 na medida em que sustenta que “o direito é referido a um fim social, do qual recebe o seu conteúdo”.84 A teoria de Ihering encontra-se claramente exposta em sua obra O Fim no Direito, sendo que logo no capítulo primeiro do aludido trabalho ele assevera que: Um ato de vontade sem causa final é um impossível tão absoluto como o movimento de uma pedra sem causa eficiente. Tal é a lei da causalidade: psicológica no primeiro caso, puramente mecânica no segundo. Para abreviar, chamarei desde logo a primeira lei de finalidade, para indicar assim, por seu mesmo nome, que a causa final é a única razão psicológica da vontade. Enquanto à lei de causalidade mecânica, o termo lei de causalidade bastará para designá-la daqui adiante. Esta lei, neste último sentido, pode explicar-se assim: nenhum acontecimento se produz no mundo físico sem um acontecimento anterior no qual encontra aquele sua causa. É a expressão habitual: não há efeito sem causa. A lei de finalidade diz: não há ação sem causa.85

Nesse contexto, o direito já não se pode separar dos fins sociais que se buscam alcançar, com o que não se pode enclausurar o jurídico nos conceitos aplicados de forma lógico-subsuntiva. Com Larenz podemos afirmar que para Ihering, o direito é “a norma coercitiva do Estado posta a serviço de um fim social”.86

82 Cf. LATORRE, Angel, Introdução ao Direito, 2002, p. 185. 83 Cf. BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 277. 84 KAUFMANN, Arthur, A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 172. 85 IHERING, Rudolf von. El Fin en el Derecho. Tradução Leonardo Rodriguez. Panplona: Analecta Editorial, 2005. p. 8 86 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 61.

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Veja-se que Ihering não contesta a natureza do direito como um conjunto de normas alicerçadas no poder coativo do Estado, pelo contrário, resume o direito ao exercício da coação para a proteção dos fins sociais.87 Nesse cenário, o próprio Ihering questiona: “Qual é, pois, o fim do direito?” Ao que responde: “Vimos que o fim dos atos do ser animado reside na realização de suas condições de existência. Partindo dessa definição, podemos dizer que o direito representa a forma de garantia das condições da vida da sociedade, assegurada pelo poder coativo do Estado”.88 Como bem percebido por Recaséns Siches, “segundo Ihering, o Direito não é a coisa mais alta que há no mundo, não é um fim em si mesmo. É somente um meio a serviço do fim. Este fim consiste na existência em sociedade”.89

2.3. A jurisprudência dos interesses Conforme referido pode-se considerar Rudolf von Ihering o precursor da jurisprudência dos interesses, todavia, o maior expoente dessa linha de pensamento foi Philipp Heck (1858-1943). Heck era crítico da jurisprudência dos conceitos, a qual ele acusava de haver limitado o papel do juiz a uma “pura atividade gnosiológica”, de modo que “a tarefa do juiz teria que se limitar a subsumir o caso ao conceito jurídico, negando-se-lhe toda atividade criadora do direito”.90 Parte Philipp Heck do entendimento de que a lei criada pelo legislador não consegue englobar toda realidade social, de modo que caberia ao juiz, a partir de pontos de vistas teleológicos, criar a norma aplicável ao caso con-

87 Em textual: “Depois de muitas voltas chegamos ao final à forma superior de emprego da força para os fins humanos, a organização social da coação; em uma palavra: o Estado. Poderíamos facilitar a tarefa apoderando-nos imediatamente da ideia de a coação social realizada pelo Estado. Mas necessitávamos demonstrar que o direito não pode realizar sua missão enquanto não repouse sobre o Estado. Unicamente no Estado encontra o direito a condição de sua existência: a supremacia sobre a força. Somente no interior do Estado alcança o direito este fim. No exterior, no conflito entre os Estados, a força ante o mesmo se levanta como inimiga tão poderosa como antes de sua aparição histórica nas relações de indivíduo a indivíduo. Nesta região a questão do direito se converte de fato em uma questão de superioridade de forças” (IHERING, Rudolf von, El Fin en el Derecho, 2005, p. 194 e 195). 88 IHERING, Rudolf von, El Fin en el Derecho, 2005, p. 274. 89 RECASÉNS SICHES, Luis, Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX, 1963, p. 271. 90 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 21.

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creto.91 Conforme suas palavras, “o pensamento legislativo é necessariamente insuficiente, especialmente quando se trata da nova codificação de um grande âmbito de relações. Também a lei bem elaborada apresenta lacunas e contradições que exigem uma atividade complementadora”.92 Seguindo essa linha de entendimentos, a interpretação jurídica deveria transcender o direito positivo, sendo integrada pela noção de interesse, corporificando a denominada jurisprudência dos interesses. Para Heck, “a característica peculiar dessa tendência consiste em que ela utiliza como conceitos metódicos auxiliares o conceito de interesse e a série de noções que estão com conexão com ele: estimação de interesses, situação de interesses, conteúdo de interesses, etc. Utilizam-se estes conceitos na análise dos problemas normativos, e na estruturação da reflexão desses conceitos auxiliares é ademais imprescindível para uma mais profunda penetração”.93 É assim que para Heck “toda decisão deve ser interpretada como uma delimitação de interesses contrapostos e como uma estimação desses interesses, conseguida mediante juízos e ideias de valor”.94 Verifica-se, portanto, que com a jurisprudência dos interesses critica-se de modo implacável a ideia de que o direito limita-se à legislação positivada e sua aplicação silogística aos casos concretos, inserindo no processo hermenêutico a consideração teleológica dos interesses em jogo.95 Daí a ponderação de Larenz no sentido de que: [...] Ao exortar o juiz a aplicar os juízos de valor contidos na lei com vista ao caso judicando, a jurisprudência dos interesses – embora não quebrasse verdadeiramente os limites do positivismo – teve uma atuação libertadora e fecunda sobre uma geração de juristas educada num pensamento forma91 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 52. 92 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 52. 93 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 61.

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lista e no estrito positivismo legalista. E isto na medida tanto maior quanto aconselhou idêntico processo para o preenchimento das lacunas das leis, abrindo desta sorte ao juiz a possibilidade de desenvolver o direito não apenas na fidelidade à lei, mas de harmonia com as exigências da vida. [...].96

Vê-se, portanto, que a jurisprudência dos interesses representa uma importante modificação na consideração do papel do intérprete, o qual passa a ter nos interesses outros horizontes além da letra do texto legal.

2.4. O Movimento para o Direito Livre A expressão movimento para o direito livre foi cunhada por Eugen Ehrlich (18671922), embora para Larenz essa linha teórica tenha em Oskar Büllow seu precursor.97 Assim como os demais movimentos de crítica ao formalismo, o movimento para o direito livre volta-se contra a aplicação silogistico-mecânica do direito. Ainda segundo Larenz, “contra uma aplicação puramente esquemática do preceito da lei à situação da vida, acentua Ehrlich a importância de uma ‘livre investigação do Direito’. Com o que não procura uma jurisprudência segundo a apreciação discricionária do juiz chamado a dar a decisão, mas uma jurisprudência que arranque a tradição jurídica e aspire ao ‘Direito justo’, no sentido de Stammler”.98 Assim como na livre investigação científica de Gény, o movimento para o direito livre buscava solucionar o problema das lacunas jurídicas. Todavia, havia uma importante distinção entre o que seria uma lacuna para as duas escolas. Com efeito, para os juristas do movimento para o direito livre haveria uma lacuna não só nos casos em que determinada situação fática houvesse se quedado fora do regramento legislativo, estando-se igualmente diante de uma lacuna nas situações em que a lei não dispusesse claramente qual seria a solução apropriada a um dado caso.99 Nesses casos, caberia ao julgador buscar, fora do direito positivo, a solução do caso concreto.

94 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 65. 95 Cf. LATORRE, Angel, Introdução ao Direito, 2002, p. 187; KAUFMANN, Arthur, A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 173; CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 97; BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 279; COING, Helmut, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 333; AFTALIÓN, Enrique R.; OLANO, Fernando García; VILANOVA, José, Introducción al Derecho, [196-], p. 814; RECASÉNS SICHES, Luis, Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX, 1963, p. 275.

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96 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 69. 97 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 78. 98 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 79. 99 Seguindo o magistério de Arthur Kaufmann: “Direito Livre quer dizer, no fundo: livre da lei. É certo que os representantes desse movimento sempre se opuseram à ‘fábula-contra-legen’, à acusação de que eles queriam permitir ao juiz ignorar a lei (vigente) e até decidir contra ela. De fato, os juristas do direito livre

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3. O realismo jurídico, americano e escandinavo O realismo jurídico surge nos Estados Unidos e em países escandinavos, tratando-se de uma corrente jurídica sociológica que se difere tanto do formalismo jurídico como das correntes jus naturalistas e axiológicas. O realismo jurídico norte-americano tem em Oliver W. Holmes (18411935), Roscoe Pound (1870-1964), Benjamin Cardozo (1870-1938), Karl Llewellyn (1893-1962), Felix Cohen (1907-1953) e Jerome Frank (1889-1957) alguns de seus principais expoentes. Já os principais defensores do realismo jurídico escandinavo são Axel Hägerström (1868-1939), Vilhelm Lundstedt (1882-1955), Karl Olivecrona (18971980) e Alf Ross (1899-1979), este último certamente o jurista realista cujas ideias foram mais difundidas no Brasil, principalmente em razão da tradução para o vernáculo de sua obra Direito e Justiça. Assim como o positivismo jurídico, carece o realismo de uma uniformidade, de modo que é possível falar em várias correntes realistas. De toda forma, parece haver uma unidade na ideia de se buscar o direito não nas normas positivas, mas sim nas decisões das cortes, razão pela qual o realismo confere grande relevância à compreensão dos mecanismos que levam os tribunais a proferirem suas decisões.100 O realismo, portanto, não deixa de ser positivista, na medida em que pretende um conhecimento científico e não axiológico do direito.101 Todavia, instaura uma espécie de positivismo sociológico que o afasta das correntes formalistas legalistas como a escola da exegese, a jurisprudência dos conceitos e, posteriormente, a teoria pura do direito kelseniana.

nunca ensinaram tal coisa. Eles apenas queriam indicar qual o procedimento a adotar o juiz, quando a lei apresentasse lacunas. Contudo, e é este o busílis da questão, segundo a concepção da doutrina no direito livre, a lei não tem lacunas apenas quando não contenha, de todo em todo, uma regulamentação aplicável ao caso, mas já aí onde não resolve o caso de forma expressa e inequívoca (hard case no sentido de H.L.A. Hart). E naturalmente que isto é o que acontece quase sempre, pelos menos em todos os casos discutíveis” (KAUFMANN, Arthur, A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 175). Nesse mesmo sentido: HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 289; KLUG, Ulrich. Lógica Jurídica. Tradução J. C. Gardella. Bogotá: Themis, 2004. p. 11-12. 100 Nesse sentido, ver: GREEN, Michael Steven. Legal Realism as Theory of Law. William and Mary Law Review, Williamsburg, n. 46, abr. 2005, p. 1919-1920. 101 Cf. LEITER, Brian R. American Legal Realism. In: The Blackwell Guide to Philosophy of Law and Legal Theory. Oxford: Blackwell, 2003. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=339562. Acesso em 21 de fevereiro de 2006.

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O realismo americano tinha grande foco na indeterminação legal,102 a qual levaria a uma possibilidade de que decisões diversas se fundamentassem em um mesmo diploma normativo. Assim, segundo os realistas as decisões seriam influenciadas mais pelos fatos envolvidos na contenda do que propriamente nas leis evocadas pelas partes.103 Analisando-se o realismo escandinavo a partir das ideias de Alf Ross, percebe-se uma forte crítica ao jus naturalismo e a qualquer ideia metafísica de direito,104 o que fica evidente na comparação que o jurista dinamarquês faz entre as regras jurídicas e as regras do jogo de xadrez: Com base no que foi dito, formulo a seguinte hipótese: o conceito “direito vigente” (de Illinois, da Califórnia, da common law) pode ser em princípio explicado e definido da mesma maneira que o conceito “norma vigente de xadrez” (para dois jogadores quaisquer). Quer dizer, “direito vigente” significa o conjunto abstrato de ideias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do direito em ação, o que por sua vez significa que essas normas são efetivamente acatadas e que o são porque são experimentadas e sentidas como socialmente obrigatórias. [...] Vista sob essa luz, nossa conclusão preliminar, estou confiante, não será classificada de lugar comum. Essa análise de um modelo simples é deliberadamente direcionada no sentido de suscitar dúvidas no que tange à necessidade de explicações metafísicas com respeito ao conceito do direito. A quem ocorreria buscar a validade das normas de xadrez numa validade a priori, numa ideia pura do xadrez concedida ao ser humano por Deus ou deduzida da razão humana eterna? Tal pensamento é ridículo porque não tomamos o xadrez tão a sério como o direito, e assim é 102 Ver: LATORRE, Angel, Introdução ao Direito, 2002, p. 193. 103 Cf. LEITER, Brian R, American Legal Realism. In: The Blackwell Guide to Philosophy of Law and Legal Theory. Oxford: Blackwell, 2003. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=339562. Acesso em 21 de fevereiro de 2006; BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 254-256. 104 Nas palavras de Maria Helena Diniz, “o realismo jurídico abrange correntes teóricas que se afastam de qualquer investigação jusfilosófica de ordem metafísica ou ideológica, negando todo fundamento absoluto à ideia do direito, considerando tão somente a realidade jurídica, isto é, o direito efetivamente existente ou os fatos sociais e históricos que lhe deram origem. O realismo jurídico busca a realidade efetiva sobre a qual se apoia e dimana o direito, não a realidade sonhada ou ideal. Para os realistas, o direito real e efetivo é aquele que o tribunal declara ao tratar do caso concreto” (DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 68).

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porque há emoções mais fortes vinculadas aos conceitos jurídicos. Mas isto não constitui razão para crer que a análise lógica deva adotar uma postura fundamentalmente diferente em um e outro caso.105

Partindo dessa completa separação entre direito e moral e do abandono da ideia de que existe uma noção metafísica de Direito, Ross defende que qualquer ordem jurídica coativa pode ser denominada direito, inclusive o ordenamento jurídico do nacional socialismo. Assim, a classificação de um conjunto de regras como direito nada teria a ver com a concordância ou discordância com as suas prescrições.106 Todavia, para Alf Ross não se encontra o direito no texto das leis, mas nas decisões das cortes. Daí porque defende ele que “o fator decisivo que determina que a proibição é direito vigente é tão somente o fato de ser efetivamente aplicada pelos tribunais nos casos em que transgressões à lei são descobertas e julgadas. Não faz diferença se as pessoas acatam a proibição ou com frequência a ignoram. Esta indiferença se traduz no aparente paradoxo segundo o qual quanto mais é uma regra acatada na vida jurídica extrajudicial, mais difícil é verificar se essa regra detém vigência, já que os tribunais têm uma oportunidade muito menor de manifestar sua reação”.107

105 ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2000. p. 41 e 42. 106 ROSS, Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 55 e 56. Em outra obra, afirma Ross: “De acordo com a visão corrente, o objeto da ciência jurídica é o chamado direito positivo, a lei em vigor. O que isso quer dizer? Como uma explicação preliminar talvez se possa dizer que por isso se queira significar um sistema de leis gerais, determinadas por algumas características externas relacionadas à sua gênese, as quais constituem as leis de uma certa comunidade, conforme são aplicadas ou deveriam ser aplicadas pelas cortes de um país. Que a lei seja chamada ‘positiva’ ou ‘em vigor’ significa em primeiro lugar que essa lei é historicamente estabelecida e passou a existir como um fato que prevalece e que, independentemente da justiça das regras de acordo com normas ideais,válidas por si mesmas, devem ser aceitas. Entendida desse modo, a positividade da lei significa o mesmo que seu caráter de determinação autoritária. Sua validade não decorre de princípios racionais, mas de autoridade historicamente conferida. Em segundo lugar isso significa que o ordenamento não é apenas um sistema de leis válidas, mas leis que realmente, em conjunto, são observadas. Compreendida dessa forma a positividade da lei significa o mesmo que sua efetividade. Em ambos os casos encontra-se expresso que a lei é um fato, o qual encontra-se sujeito a um exame empírico e não racional” (ROSS, Alf. Towards a Realistic Jurisprudence. Tradução Annie I. Fausboll. [s/l]: Scientia Verlad Aalen, 1989. p. 19). Para um comentário abalisado da comparação feita por Ross entre as normas jurídicas e as regras do jogo de xadrez, ver: HART, H. L. A. Scandinavian Realism. In: Essays in Jurisprudence and Philosophy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 164-165). 107 ROSS, Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 59.

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Da mesma forma que seus colegas norte-americanos, Alf Ross sustenta a indeterminação normativa, a qual, em sua percepção, teria como consequência a impossibilidade de se extrair qualquer resultado correto ao cabo do processo hermenêutico.108 Assim, a interpretação seria menos um método para compreensão dos textos legais e mais um instrumento para análise da produção da decisão de um tribunal. Nas palavras de Alf Ross, “temos que analisar, portanto, a prática dos tribunais e nos empenharmos em descobrir os princípios ou regras que realmente os norteiam no trânsito da regra geral à decisão particular. Denomina-se essa atividade método jurídico, ou, no caso da aplicação do direito formulado (direito legislado em lato sentido), interpretação”.109

4. O retorno do formalismo no século XX 4.1. O positivismo jurídico de Hans Kelsen Como vimos anteriormente, durante o século XIX e início do século XX desenvolveram-se diversos movimentos jurídicos que buscavam a superação das escolas formalistas, buscando-se integrar ao direito dados factuais ocorridos no meio social. Foi exatamente contra essa “contaminação” do jurídico por outras ciências como a sociologia, a política e a psicologia que se insurgiu o jusfilósofo austríaco Hans Kelsen (1881-1973). É impossível resumir em poucos parágrafos uma obra que, como apontado por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, entre traduções e reimpressões alcança mais de 620 títulos e cujos textos elaborados sobre a mesma supera o número 1.200.110 Dessa forma, trataremos brevemente aqui apenas de dois aspectos da teoria pura do direito: a relação entre direito e moral e a questão da interpretação jurídica. Logo na introdução de sua teoria pura do direito Kelsen deixa claro seu propósito de estabelecer uma teoria baseada nas normas jurídicas, excluindo tudo que

108 ROSS, Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 167. 109 ROSS, Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 136. 110 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Por que ler Kelsen, hoje. In: COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. XIII.

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em seu sentir lhes fosse alheio, elevando a ciência jurídica a um patamar científico nunca dantes alcançado.111 Vejam-se os primeiros parágrafos da referida obra: A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já lhe não importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito. Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.112

Diferentemente do que muitas vezes se afirma na doutrina, a teoria pura do direito não nega a grande importância da ética, da moral e da justiça para o direito, mas sim a inexistência de uma moral113 ou de uma justiça114 absolutas, que devam ser acolhidas pelas normas jurídicas. Separa-se, aqui, o campo da ciência jurídica, preocupada com as normas positivadas, e da filosofia jurídica, voltada para análise dos fins que deveriam ser perseguidos pelo ordenamento e das normas em vigor como aptas para realizá-los.115 111 Assim leciona Karl Larenz, para quem “foi Hans Kelsen quem, com admirável energia e improbo rigor de pensamento, se desempenhou de semelhante missão. A sua ‘teoria pura do Direito’ constitui a mais grandiosa tentativa de fundamentação da ciência do Direito como ciência – mantendo-se embora sob o império do conceito positivista desta última e sofrendo das respectivas limitações – que o nosso século veio até hoje a conhecer” (LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 92). 112 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução João Baptista Machado. Coimbra: Armenio Amado, 1984. p. 17. 113 Cf. KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 100-102. 114 Cf. KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 65. 115 António Manuel Hespanha ressaltou os méritos da teoria pura do direito, ao afirmar que: “A teoria pura do direito teve a virtude de, num período de intenso debate político-ideológico (os anos ’30 a ’50 do século XX), ter sublinhado a autonomia do saber jurídico e a sua relativa indisponibilidade em relação aos

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Seguindo essa linha de raciocínio, a teoria da interpretação jurídica apresentada por Kelsen mostra-se igualmente avalorativa. Parte Kelsen de sua estrutura piramidal do ordenamento jurídico para definir a interpretação como “uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior”.116 Assim, o legislador deve interpretar a Constituição para poder elaborar as leis infraconstitucionais, da mesma forma que o juiz e o administrador devem interpretar as normas do ordenamento jurídico para emitirem suas sentenças e atos administrativos, no contínuo movimento de positivação/concretização das normas jurídicas em atos de aplicação. Nesse contexto, separa Kelsen a interpretação realizada por um órgão de aplicação do direito (ou seja, a interpretação apta à criação de uma norma individual e concreta) e a interpretação realizada por quem não é aplicador da regra interpretada (por exemplo, interpretação realizada pelas pessoas de direito privado que devem observar o direito e aquela oferecida pela ciência jurídica). Aspecto importantíssimo da teoria da interpretação kelseniana é a indeterminação dos textos normativos da qual decorre a ideia de que estas são molduras, dentro das quais podem ser identificadas mais de uma norma jurídica. Em suas palavras: Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo



projetos de poder. Nesta medida, culminou as preocupações da pandectística em estabelecer que nem tudo quanto é querido pelo poder, útil ao povo ou a uma classe, ou funcional em relação a um objetivo social, é automaticamente aceite como justo (i.e., conforme ao direito). A juridicidade parece decorrer de valores internos ao discurso do direito, valores que a vontade política ou a utilidade social não podem substituir. Neste sentido, embora se possa acusar a teoria pura do direito de aceitar como direito tudo o que provém da vontade do Estado, o certo é que o seu sentido mais profundo é o de constituir um manifesto contra os totalitarismos políticos do seu tempo, que, num sentido ou noutro, procuravam funcionalizar o direito em relação às conveniências do poder, legitimando-o a partir de considerações políticas, como o domínio de classe (estalinismo) ou as necessidades vitais de uma raça (nacional-socialismo). Há que pense que este manifesto é ainda útil contra outro tipo de funcionalizações do direito, nomeadamente, a tendência para justificar como justas as medidas – formal ou informalmente corretas – de um poder legitimado pelo voto, ou as medidas dirigidas à consecução de finalidades de desenvolvimento social ou econômico” (HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 310).

116 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 463.

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a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do Tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.117

Ao afirmar que o texto legal é apenas uma moldura dentro da qual se encontram diversas normas jurídicas passíveis de serem criadas pelo aplicador do direito, Kelsen rejeita a possibilidade de que se desenvolva qualquer método jurídico capaz de definir qual seria a norma jurídica correta extraível do texto.118 Seguindo essa linha de raciocínio, sustenta Hans Kelsen que a escolha de uma entre as diversas normas jurídicas contidas na moldura do texto legal sequer seria uma atividade jurídica, mas sim uma atividade de política do direito.119 Portanto, não sendo a eleição de uma entre as normas constantes no texto legal uma atividade jurídica, pode a mesma muito bem ser guiada por critérios metajurídicos, como a moral e a justiça. Em assim sendo, jamais seria possível determinar se a norma eleita seria efetivamente a “correta”, já que pautada tal escolha por elementos estranhos ao direito. Como aduz Kelsen, “do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobe a sua validade e verificabilidade. Deste ponto de vista, todas as determinações desta espécie apenas podem ser caracterizadas negativamente: são determinações que não resultam do próprio Direito positivo”.120

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4.2. O positivismo jurídico de Herbert L. A. Hart O jusfilósofo inglês Herbert L. A. Hart (1907–1992) foi o outro grande nome do positivismo jurídico no século XX. Assim como Kelsen, Hart reconhece a indeterminação dos textos legais, desenvolvendo a teoria da textura aberta da linguagem. Segundo o professor inglês, “qualquer instrumento, precedente ou legislação, seja escolhido para a comunicação de padrões de comportamento, estes, a despeito do quão bem funcionem em um grande número de casos ordinários, em algum ponto em que sua aplicação esteja em questão, irão provar-se indeterminados; eles terão o que foi denominada uma textura aberta. Até aqui nós apresentamos tal fato, no caso da legislação, como uma característica geral da linguagem humana; incerteza nos limites é o preço a ser pago pelo uso de termos gerais classificatórios em qualquer forma de comunicação relativa a temas factuais”.121 Partindo da textura aberta das normas jurídicas, critica Hart o formalismo conceitualista, que pretendia enclausurar a realidade em conceitos.122 A indeterminação legal confere às cortes e autoridades encarregadas de aplicar a norma jurídica uma certa margem para “ponderar, diante das circunstâncias, entre interesses conflitantes que podem variar em peso de caso para caso”.123 Dessa forma, a textura aberta das normas jurídicas deixa ao juiz um poder criativo, a ser exercido mediante interpretação/aplicação de precedentes ou estatutos aos casos concretos. De outro lado, cabem à cortes dar a última palavra sobre o que é o direito,124 no exercício de sua discricionariedade.125 A textura aberta das normas de Hart difere, porém, da ideia do texto legal como moldura trazida por Kelsen. De fato, para Hart a abertura das normas pode levar a uma situação de ausência de qualquer norma jurídica, verdadeira lacuna a ser superada pela discricionariedade do juiz.126 Já o texto-moldura de

117 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 467. 118 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 468. 119 Em suas palavras: “A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a ‘correta’, não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tão-pouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas” (KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 469). 120 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 470.

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121 HART, H. L. A. The Concept of Law. 2nd. ed. New York: Oxford University Press, 1997. p. 128. Sobre a textura aberta da linguagem, ver: STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem: Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 122 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 129. 123 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 135. 124 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 145. 125 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 252. 126 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 272.

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Kelsen significaria a existência de várias normas que poderiam ser potencialmente extraídas de um dado texto legal e não a existência de uma lacuna. Para Hart, tal competência discricionária atribuída ao juiz não é ilimitada, não sendo equivalente à competência atribuída aos órgãos legislativos. Com efeito, Hart sustenta que o exercício desta competência discricionária se dá dentro dos limites do próprio ordenamento jurídico, de onde o julgador extrairá os parâmetros para sua decisão. Exatamente por tal motivo, pelo fato de que o próprio ordenamento orienta o juiz na apreciação dos casos concretos é que para Hart uma decisão jurídica racional não depende de apelação para critérios morais de como a lei deveria ser.127

5. A hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002), mesmo não sendo filósofo do direito e, portanto, não tendo posto a hermenêutica jurídica entre suas principais preocupações, desenvolveu, a partir da virada ontológica conduzida por seu mestre Martin Heidegger, uma hermenêutica filosófica cujos fundamentos acabam por impor uma modificação no pensar a hermenêutica jurídica. Entre as modificações trazidas pela hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, destacamos três em especial: (a) a crítica quanto à crença na possibilidade de se alcançar a verdade nas ciências do espírito através da utilização de um método; (b) a revisão da ideia do distanciamento do intérprete em relação ao objeto interpretado, com o reconhecimento de que é no intérprete, com sua tradição e pré-conceitos, que se realiza o processo interpretativo; e (c) a inclusão da aplicação no âmbito do processo hermenêutico, a qual abala os alicerces do entendimento, difundido na seara jurídica, de que a aplicação seria um momento pós-interpretativo, em que o intérprete, estranho ao texto legal e aos fatos sob exame, aplica a estes o resultado da interpretação do texto, resolvendo uma controvérsia jurídica. Uma breve reflexão acerca desses três pontos revela que os mesmos estão intimamente conectados. Com efeito, a partir do momento que intérprete e objeto implicam-se mutuamente, perde força a ideia de que intérprete e objeto

127 HART, H. L. A. Positivism and the Separation of Law and Morals. In: Essays in Jurisprudence and Philosophy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 68-69.

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relacionam-se por intermédio de um método que permite que aquele conheça e interprete este, aplicando-o a outro objeto externo, ao final.

5.1. Uma crítica ao método A obra principal de Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, editada pela primeira vez no ano de 1960, tem como um de seus principais propósitos apresentar crítica à ideia de que se pode alcançar a verdade, no campo das ciências do espírito, mediante a mera aplicação de um método objetivo, nos moldes das ciências naturais. Conforme afirma Gadamer logo na introdução de seu pensamento, “na origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um problema de método”.128 A crítica ao pensamento metodológico é tão presente em sua obra que alguns de seus críticos e revisores apontam que seu trabalho devia ser intitulado Verdade ou Método,129 ou ainda Verdade versus Método.130 A crítica de Gadamer, que pode certamente ser trazida para o campo da hermenêutica jurídica, deve, todavia, ser bem apreendida, de modo a se evitar uma má-compreensão de suas ideias. De fato, os aportes gadamerianos não são contra a existência dos métodos. Como o próprio Gadamer afirma em entrevista concedida a Carsten Dutt, “é claro que há métodos, e certamente deve-se aprendê-los e aplicá-los”.131 O foco da crítica do professor de Heidelberg, portanto, não é a existência de métodos, mas sim a crença na objetivação da verdade por intermédio de seu uso, assim como a exterioridade metodológica do intérprete em relação ao objeto interpretado. Nas autorizadas palavras de Richard Palmer: Assim como Heidegger, Gadamer é um crítico da moderna submissão ao pensamento tecnológico, o qual se encontra enraizado no subjetivismo (Subjektität) – ou seja, em tomar a consciência subjetiva do homem, e as certezas da razão na mesma baseadas, como o ponto máximo de referência 128 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 29. 129 Cf. RICOEUR, Paul. Hermeneutics & the Human Sciencies. Tradução de John B. Thompson. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 60. 130 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Gadamer in Conversation. Tradução de Richard Palmer. New Haven/ London: Yale University Press, 2001. p. 41. 131 Gadamer in Conversation, 2001, p. 41.

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para o conhecimento humano. Os filósofos pré-cartesianos, por exemplo, os gregos antigos, encaravam seu pensamento como uma parte do próprio ser; eles não tomavam a subjetividade como seu ponto de partida e então fundamentavam a objetividade de seu conhecimento sobre a mesma. Sua abordagem era mais dialética e tentava permitir-se ser guiada pela natureza do que estava sendo compreendido. Conhecimento não era algo que eles adquiriam como uma possessão, mas algo no qual eles participavam, permitindo que os mesmos fossem dirigidos e até mesmo possuídos por seu conhecimento. Nesse sentido os Gregos alcançaram uma abordagem da verdade que foi além das limitações do pensamento sujeito-objeto moderno, enraizado em um conhecimento subjetivamente correto. Dessa forma, a abordagem de Gadamer é mais próxima à dialética de Sócrates do que ao pensamento manipulativo e tecnológico moderno. A verdade não é alcançada metodicamente, mas dialeticamente; a abordagem dialética da verdade é vista como a antítese do método, como um meio de superar a tendência do método de pré-estruturar o modo de ver dos indivíduos. Falando mais exatamente, o método é incapaz de revelar novas verdades; ele apenas explicita o tipo de verdade que já se encontra explícita no próprio método. [...].132

Richard Palmer explicita na passagem acima o foco central a crítica de Gadamer, a qual tem por fim uma mudança da função do método nas ciências humanas. Tal foco consiste na ideia de que a legitimação nas ciências do espírito se dá por intermédio da participação dialética do sujeito no processo hermenêutico, e não pela aplicação de qualquer método. Ao responder questão acerca da crítica metodológica contida em sua obra, o próprio Gadamer responde que o que buscou “demonstrar é que o conceito de método não era caminho apropriado para se atingir legitimidade no campo das ciências humanas e sociais”.133 Conforme conclui “essa é a razão pela qual sugeri que o ideal de conhecimento objetivo, que domina nossos conceitos de conhecimento, ciência e verdade, precisa ser superado pelo ideal de compartilhar algo, de participação”.134 A hermenêutica filosófica gadameriana é mesmo incompatível com a ideia de que se pode ter acesso à verdade através de um método aplicável pelo intérprete. 132 PALMER, Richard. Hermeneutics. Evanston: Northwestern University Press, 1969. p. 164 e 165. 133 Gadamer in Conversation, 2001, p. 40. 134 Gadamer in Conversation, 2001, p. 40.

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Com efeito, a teoria de Gadamer funda-se na concepção de que o homem tem acesso ao mundo pela linguagem, a qual deve ser interpretada (compreendida) pelo ser-aí (Dasein135), sendo assim pautada por sua tradição e suas pré-compreensões. Ora, se a interpretação se desenvolve no âmbito do horizonte do intérprete, não se pode conceber que esta corresponda à aplicação de um método exterior ao mesmo. Como destaca Maria Margarida Lacombe Camargo, “Gadamer defende a ideia de que não é tarefa da hermenêutica descobrir métodos para uma correta interpretação, mas refletir sobre o acontecer da própria interpretação, que no âmbito das ciências do espírito corresponde mais especificamente à compreensão”.136 Parece-nos evidente, à primeira vista, que os aportes teóricos de Hans-Georg Gadamer abalam a noção tradicional de método jurídico, ordinariamente entendido como instrumento à disposição do intérprete para se alcançar a verdade contida no texto legal. Castanheira Neves dá-nos clara visão acerca do formalismo metodológico que por longo período dominou o cenário jurídico, o qual partia de uma deificação do ato legislativo que somente poderia ser alcançada mediante a neutralização do intérprete pela supervalorização do método jurídico.137 Esse pensamento metodológico formalista, nas palavras de François Gény, busca “dar alcance ao pensamento do legislador contido nos textos. Sempre que se compreenda e interprete bem a lei, subsumirá quantas soluções jurídicas sejam necessárias”.138 Todavia, tendo por base as inflexões de Gadamer, tem-se que a relação sujeito-objeto não se dá por intermédio do método, mas sim dentro do próprio ser-aí, de modo que o objeto não é revelado pelo método, mas compreendido pelo ser. 135 “Dasein: (al.: existência, ser-aí) Termo heideggeriano que significa realidade humana, ente humano, a quem somente o ser pode abrir-se. Mas como é ambíguo, correndo o risco de abrir uma brecha para o humanismo, Heidegger prefere utilizar a expressão ser-aí. Na linguagem corrente, Dasein quer dizer * existência humana. Enquanto os * entes são fechados em seu universo circundante, o homem é graças à linguagem, aí onde vem o ser. Assim, o Dasein é o ser do existente humano enquanto existência singular e concreta: ‘A essência do ser-aí (Dasein) reside em sua existência (Existenz), isto é, no fato de ultrapassar, de transcender, de ser originariamente ser-no-mundo” (JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 63). Sobre o Dasein ver também: VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Barcelona: Gedisa, 2002. p. 32-35. 136 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 32. 137 Cf. NEVES, A. Castanheira. Metodologia Jurídica: Problemas Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. p. 28. 138 GÉNY, François. Método de Interpretación y Fuentes em Derecho Privado Positivo. Madrid: Editorial Réus, 1925. p. 26.

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Resta perguntar, então, qual o papel dos chamados métodos de interpretação jurídica? Os ditos métodos jurídicos (elementos ou critérios de interpretação) nada mais são do que uma referência aos diversos aspectos envolvidos na compreensão dos textos legislativos e dos fatos jurídicos.139 Com efeito, tais métodos (gramatical, sistemático, teleológico, histórico, axiológico, etc.) lembram apenas os diversos aspectos envolvidos no fenômeno jurídico, não garantindo qualquer certeza ou correção ao resultado da interpretação em um caso particular.140 Seguindo as observações acima e tendo por fundamento as críticas de Gadamer à objetivação metodológica como instrumento à descoberta da verdade no âmbito das ciências humanas, é de se concluir que a crença nos métodos jurídicos como meios para o alcance da correção no campo da hermenêutica jurídica oferece algo que não pode alcançar. Com efeito, é de se concordar com Eros Grau quando afirma que “a reflexão hermenêutica repudia a metodologia tradicional da interpretação e coloca sob acesas críticas a sistemática escolástica dos métodos, incapaz de responder à questão de se saber por que um determinado método deve ser, em determinado caso, escolhido”.141 Pode-se concluir, portanto, que a correção das ciências humanas não pode ser objetivamente alcançada pela aplicação de métodos, o que implica em uma revisão da própria noção de hermenêutica jurídica, como passamos a examinar.

139 Cf. MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 27-30. 140 Sobre o tema, ver: STRECK, Lenio Luiz. O Efeito Vinculante das Súmulas e o Mito da Efetividade: Uma Crítica Hermenêutica. In: Crítica à Dogmática: Dos Bancos Acadêmicos à Prática dos Tribunais. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005. p. 92; STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 167. 141 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 90 e 91.

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5.2. A hermenêutica gadameriana e a hermenêutica jurídica É vetusto o entendimento de que a interpretação jurídica seria um método para a descoberta da norma contida no texto ou, melhor dizendo, para a descoberta do verdadeiro sentido do texto legal. Não se reconhecia qualquer caráter criativo a tal atividade, pressupondo que, por via da interpretação, seria possível a descoberta do único sentido já contido no texto legal. Exposição nessa linha encontra-se, por exemplo, em Carlos Maximiliano, para quem “interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém”.142 Embora tal concepção acerca da interpretação tenha sido abandonada há muito, até mesmo por autores positivistas como Kelsen e Hart, a mesma ainda é sustentada aqui e alhures. Tal doutrina encontra-se, portanto, em cheque, podendo tal fato ser explicado a partir da hermenêutica filosófica gadameriana. Com efeito, um primeiro fundamento para a crise do conceito tradicional de interpretação jurídica o temos nas próprias críticas formuladas à objetividade metodológica nas ciências humanas. Partindo-se da premissa de que não há um método que possa ser aplicado pelo sujeito a um objeto com vistas a se alcançar a verdade nas ciências hu-

142 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 9. A ideia de que a interpretação consiste em uma atividade voltada para a descoberta do “verdadeiro” sentido de um texto legal encontra-se presente nos trabalhos de estudiosos da teoria geral do direito e nos compêndios gerais dos diversos “ramos” jurídicos, como em: MÁYNEZ, Eduardo García, Introducción al Estudio del Derecho, 2002, p. 327; COING, Helmut, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 326; GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 219; DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 381; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. v. I. p. 114; RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. v. I. p. 24; ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. p. 157; BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 45; JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. I. p. 27; MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 1998. v. I. p. 51; DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1995. p. 83.

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manas, a ideias de que a interpretação de um texto presta-se ao alcance de tal verdade mostra-se inviável. Além da crítica à objetividade metodológica, também o reconhecimento de que toda tarefa hermenêutica encontra-se influenciada pela pré-compreensão do intérprete também abala os alicerces de uma concepção estéril da interpretação jurídica. A questão dos pré-conceitos e de sua influência no processo hermenêutico encontra-se vinculada à ideia de tradição ou, em outras palavras, à inserção do sujeito em uma determinada tradição, a qual pauta e condiciona sua forma de compreender o mundo.143 Como destaca Gadamer: [...] encontramo-nos sempre inseridos na tradição, e essa não é uma inserção objetiva, como se o que a tradição nos diz pudesse ser pensado como estranho ou alheio; trata-se sempre de algo próprio, modelo e intimidação, um reconhecer a si mesmos no qual nosso juízo histórico posterior não verá tanto um conhecimento, mas uma transformação espontânea e imperceptível da tradição.144

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Segundo Gadamer, pré-conceito “quer dizer um juízo que se forma antes do exame definitivo de todos os momentos segundo a coisa em questão”.145 Ora, o experimentar o mundo dos seres humanos lhes proporciona um conjunto de juízos prévios que condicionam o seu agir hermenêutico em relação a tudo quanto os cerca, de modo que nenhuma experiência sua será plenamente objetiva.146 Nessa linha de entendimento, na medida em que o ser-no-mundo não consegue interagir com a realidade ignorando seus pré-conceitos, dados pela tradição, caem por terra os ideais de objetivismo e neutralidade do intérprete, apregoados pelo formalismo jurídico. É de se salientar, contudo, que a crítica ao objetivismo e o reconhecimento inevitável dos pré-conceitos no processo hermenêutico não transformam a interpretação em um fenômeno subjetivo. Nas palavras de Gadamer, “a compreensão deve ser pensada menos como uma ação da subjetividade e mais como um retroceder que penetra num acontecimento da tradição”.147 De fato, em primeiro lugar deve-se ter em conta que os valores trazidos pela tradição não são experenciados com exclusividade pelo sujeito-intérprete, mas por toda a coletividade, a qual compartilha determinada tradição. 145 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 360.

143 Para Maria Margarida Lacombe Camargo, “Gadamer legitima a pré-compreensão na tradição como processo histórico que o intérprete experimenta. A autoridade da tradição, no entanto, não tira a liberdade do intérprete, uma vez que passe a ser racionalmente conhecida, pois, a partir do momento que formamos uma consciência metódica da compreensão, somos capazes de controlá-la. Mas a compreensão não consiste em uma busca do passado feita por uma razão independente, como procedia o romantismo histórico, considera Gadamer. Consiste, outrossim, na determinação universal do estar aí, isto é, na futuridade do estar aí, feita por uma razão comprometida historicamente. O estar aí faz parte de um processo histórico enquanto experiência humana da qual participamos” (Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 57 e 58). 144 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 374. Vale a pena mencionar aqui as palavras de David E. Linge sobre a importância da pré-compreensão na hermenêutica jurídica gadameriana: “Não é de surpreender que a noção de pré-conceitos de Gadamer seja um dos aspectos mais controvertidos de sua filosofia. Mais do que qualquer outro elemento de seu pensamento, ela indica sua determinação em reconhecer as insuperáveis finitude e historicidade do compreender, assim como em exibir o papel positivo que os mesmos têm em cada transmissão humana de significado. Para Gadamer, o passado tem um poder pervasivo sobre o fenômeno da compreensão, e tal poder foi completamente ignorado pelos filósofos que dominaram a cena antes de Heidegger. O papel do passado não pode ser restringido meramente ao fornecimento de textos e eventos para a composição de ‘objetos’ da interpretação. Como os pré-conceitos e a tradição, o passado também define o ponto que o próprio intérprete ocupa quando compreende” (LINGE, David E. [Introduction to Gadamer’s Philosofical Hermeneutics]. In: GADAMER, Hans-Georg. Philosofical Hermeneutics. Tradução David E. Linge. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1997. p. xv).

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146 Essa questão foi muito bem analisada e exposta por Eduardo C. B. Bittar, na passagem a seguir transcrita: “O ser-no-mundo carrega esta experiência de estar-aí (Dasein) da qual não pode se desvincular; não posso modificar minha compreensão-de-mundo, pois ela é já determinada pela minha história-de-mundo, da qual não posso me alhear. As condições existenciais (ek-sistere), estar-aí) em que sou posto determinam também as condições com as quais interpreto e com-vivo com o mundo. A existência ou não dos “pré-conceitos” na determinação de todo sentido apreendido do mundo não depende da vontade humana. Os “pré-conceitos” existem, no sentido deste estar-aí contra o qual não se pode lutar, e estão presentes na avaliação de cada peça de nossa interação com o mundo. A vontade pode dizer não e renunciar aos “pré-conceitos”, mas esta é já uma postura claramente carregada de “pré-conceitos” e de tomadas de posição próprias de um sujeito histórico e gravado por uma experiência particular” (BITTAR, Eduardo C. B. Hans-Georg Gadamer: a experiência hermenêutica e a experiência jurídica. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 184 e 185). Segundo Konrad Hesse, “o intérprete não pode compreender o conteúdo da norma de um ponto situado fora da existência histórica, por se assim dizer, arquimédico, senão somente na situação histórica concreta, na qual ele se encontra, cuja maturidade informou seus conteúdos de pensamento e determina seu saber e seu (pré)-juízo. Ele entende o conteúdo da norma de uma (pré)-compreensão, que primeiramente lhe torna possível olhar a norma com certas esperanças, projetar-se um sentido do todo e chegar a um anteprojeto que, então, em penetração mais profunda, carece de confirmação, correção e revisão até que, como resultado de aproximação permanente dos projetos revisados, cada vez, ao “objeto”, determine-se univocamente a unicidade do sentido” (HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 61 e 62). 147 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 385.

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Por outro lado, o fato de que somos guiados por pré-conceitos, dados pela tradição, não significa que nunca tenhamos qualquer controle sobre os mesmos ou, melhor dizendo, que não devamos questioná-los. Assim, como observa Gadamer: [...] Aquele que quer compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais obstinada e consequente possível – até que este acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermenêuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem uma “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco um anulamento de si mesma; implica antes uma destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais. O que importa é dar-se conta dos próprios pressupostos, a fim de que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as opiniões prévias pessoais.148

Ponto dos mais importantes presentes na passagem acima consiste, portanto, na necessidade de o intérprete não se fechar em suas opiniões prévias, abrindo-se para a alteridade do texto.149 148 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 358. 149 Nas palavras de Lenio Streck: “Quando se ouve a alguém ou quando se empreende uma leitura, não é que tenhamos que esquecer todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo, ou todas as opiniões próprias, diz o mestre. O que se exige é que simplesmente temos que estar abertos à opinião do outro ou do texto. Entretanto, essa abertura implica sempre que se coloque a opinião do outro em alguma classe de relação com o conjunto de opiniões próprias ou que um se coloque em certa relação com as do outro. Para Gadamer, aquele que pretende compreender não pode entregar-se desde o princípio à sorte de suas próprias opiniões prévias e ignorar a mais obstinada e consequentemente possível opinião do texto. Aquele que pretende compreender um texto tem que estar em princípio disposto a que o texto lhe diga algo” (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (em) Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 201). A questão foi bem colocada por Kelly Susane Alflen da Silva, para quem “aquele que tem uma consciência formada hermenêuticamente tem que estar disposto a deixar que o texto lhe diga algo, a acolher a outreidade do texto. Acolher o dito pelo texto sem reparo dos prejuízos significa a perda do sentido da verdade e da verdade em geral, o que H.G. Gadamer chama de mendacidade. Na esfera hermenêutica, isso quer dizer a exclusão do outro da comunicação por causa da inconsequência consigo mesmo e, dessa forma, a ação hermenêutica se torna baldia por falta de entendimento. Precisamente, por isso, o intérprete deve se livrar dos próprios prejuízos negativos, a fim de que o texto surja em sua outreidade. O contrário, o reforço dos prejuízos pela repetição obstinada, com excelência diz H.G. Gadamer, é próprio do dogmatismo, que é conhecido sob o pretexto de conhecimento sem pressupostos e de objetividade da ciência (jurídica), pela mera transferência do método de outras ciências como, por exemplo, a física,

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Nesse ponto, parte Gadamer da dialética platônica para sustentar a primazia hermenêutica da pergunta. Citando uma vez mais suas lições: Nós perguntamos pela estrutura lógica da abertura que caracteriza a consciência hermenêutica, e é bom que não esqueçamos a importância do conceito de pergunta na análise da situação hermenêutica. É claro que toda experiência pressupõe a estrutura da pergunta. Não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que algo é assim, e não como acreditávamos inicialmente, pressupõe evidentemente a passagem pela pergunta para saber se a coisa é assim ou assado. Do ponto de vista lógico, a abertura que está na essência da experiência é essa abertura do “assim ou assado”. Ela tem a estrutura da pergunta. E assim como a negatividade dialética da experiência consumada, onde temos plena consciência de nossa finitude e limitação, também a forma lógica da pergunta e a negatividade que lhe é inerente encontram sua consumação numa negatividade radical: no saber que não sabe. É a famosa docta ignorantia socrática que abre a verdadeira superioridade da pergunta na negatividade extrema da aporia. É preciso então que nos aprofundemos na essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência hermenêutica.150

Dessa forma, o intérprete deve ter consciência de seus pré-conceitos (o que nem sempre é possível) para então iniciar uma relação dialética com o texto, abrindo-se para o mesmo mediante o procedimento de perguntas e respostas.151 Forma-se então o círculo da compreensão.

principalmente, quando a ciência é invocada como instância suprema de processos de decisão social. Nisso se encontra a tensão entre o objetivismo ingênuo e o desconhecimento da verdade, i.e., dos interesses agregados ao conhecimento. Particularmente, por isso, considera-se a tarefa hermenêutica suprema; por seu intermédio é possível compreender, explicar e, por conseguinte, dissolver hábitos e prejuízos sociais arraigados imperantes, sobretudo a influência desses na atuação dos profissionais da área jurídica, embora seja uma tarefa difícil, porque colocar em dúvida o que é dogma provoca sempre a resistência de todas as evidências práticas” (SILVA, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica Jurídica e Concretização Judicial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. p. 269). Ver, também: CUNHA, José Ricardo. Fundamentos Axiológicos da Hermenêutica Jurídica. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 321. 150 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 473. 151 Cf. GADAMER, Hans-Georg. La hermenêutica y la escuela de Dilthey. In: El Giro Hermenéutico. Tradução Arturo Parada. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995. p. 146.

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Com efeito, as opiniões prévias do intérprete permitem que ele interpele o texto, abrindo-se para o mesmo. Com a compreensão as opiniões prévias são substituídas por novas opiniões e assim por diante, em um constante “projetar de novo”.152 Essa questão foi bem posta por Josef Bleicher, que ao analisar a hermenêutica filosófica gadameriana assim se manifesta: A principal tarefa do intérprete é descobrir a pergunta a que o texto vem dar resposta; compreender um texto é compreender a pergunta. Simultaneamente, um texto só se torna um objeto da interpretação se confrontar o intérprete com uma pergunta. Nesta lógica de pergunta e resposta, um texto acaba por ser um acontecimento ao ser atualizado na compreensão, que representa uma possibilidade histórica. Consequentemente, o horizonte do sentido é limitado e a abertura, tanto do texto como do intérprete, constitui um elemento estrutural da fusão dos horizontes. Nesta concepção dialógica, os conceitos usados pelo Outro, seja um texto, seja um tu, ganham nova força, por se inserirem na compreensão do intérprete. Ao entendermos a pergunta colocada pelo texto, fizemos já perguntas a nós próprios e, por conseguinte, abrimo-nos a novas possibilidades de sentido.153

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linguagem.154 Em suas palavras, a linguagem é “o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos”.155 Ora, se experimentamos o mundo por intermédio da linguagem, deve-se concluir que o homem é um ser hermenêutico, ou seja, um ser que tem acesso ao mundo através da interpretação, de forma que é possível afirmar que estamos a todo tempo interpretando.156 É assim que, nas palavras de Gadamer, “todo compreender é interpretar e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete”.157 O reconhecimento de que recebemos o mundo pela linguagem e que o tomamos por meio da interpretação torna inviável a ideia de uniformidade interpretativa, já que cada intérprete participa do processo hermenêutico munido de seus pré-conceitos, de modo que sua abertura ao texto se fará a partir de um determinado referencial de razões prévias, as quais pautarão às perguntas apresentadas e a formação do círculo da compreensão. Torna-se inevitável, então, reconhecer o caráter criativo do fenômeno hermenêutico.158

Ponto importante da hermenêutica filosófica de Gadamer reside no reconhecimento de que o homem somente recebe o mundo por intermédio da 154 Cf. PALMER, Richard, Hermeneutics, 1969, p. 205. 152 Segundo Gadamer: “[...] o processo descrito por Heidegger de que cada revisão do projeto prévio pode lançar um outro projeto de sentido; que projetos conflitantes podem posicionar-se lado a lado na elaboração, até que se confirme de modo mais unívoco a unicidade de sentido; que a interpretação começa com conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados. Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar. Quem procura compreender está sujeito a errar por causa das opiniões prévias, que não se confirmam nas coisas elas mesmas. Dessa forma, a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, isto é, ousar hipóteses que só devem ser confirmadas ‘nas coisas elas mesmas’. Aqui não há outra ‘objetividade’ além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido afirmar que o intérprete não vai diretamente ao ‘texto’, a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, põe à prova, de maneira expressa, a opinião prévia instalada nele a fim de comprovar sua legitimidade, o que significa, sua origem e sua validade” (GADAMER, Hans-Georg. Sobre o Círculo da Compreensão. In: Verdade e Método II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 75). Esse aspecto circular da compreensão é ressaltado por Gregorio Robles: “[...] a interpretação ‘projeta’, já que em todo momento começa com um ‘projeto de compreensão’ (précompreensão) que irá verificar-se e contrastar-se com a experiência. Este contraste mostrará a insuficiência do projeto emitido e a necessidade de substituí-lo por outro. Neste ir e vir da compreensão, para utilizar a expressão de Engisch, radica o chamado círculo hermenêutico” (ROBLES, Gregorio. Introducción a la Teoria del Derecho. 9. ed. Barcelona: Debate, 2003. p. 192). 153 BLEICHER, Josef. Hermenêutica Contemporânea. Tradução Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edições 70, [s/d]. p. 161.

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155 GADAMER, Hans-Georg. Homem e Linguagem. In: Verdade e Método II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 182. Ver, também: GADAMER, Hans-Georg. La Diversidade de las Lenguas y la Comprensión del Mundo. In: Arte y Verdad de la Palabra. Tradução José Francisco Zuñiga García. Barcelona: Paidós, 1998. p. 119. Sobre essa questão, nos diz Luiz Rohden que “com e pela linguagem, marca da finitude humana, a realidade constitui-se mediada linguisticamente, e desse modo também a ‘força de nossa reflexão é sempre uma força limitada pelo acontecer da linguisticidade’ que se compreende como ‘condição e possibilidade de toda compreensão, a condição de possibilidade de que todo horizonte de sentido seja determinado por sua vinculação ao acontecer da experiência humana finita’. Do ponto de vista da hermenêutica filosófica, a linguagem não é apenas condição de possibilidade, mas ela mesma é constituinte e constituidora do filosofar” (ROHDEN, Luiz. Hermenêutica Filosófica. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002. p. 227). 156 Como leciona Lenio Streck: “Dizendo de outro modo: estamos mergulhados em um mundo que somente aparece (como mundo) na e pela linguagem. Algo só é algo se podemos dizer que é algo. Esse poder-dizer é linguisticamente mediato, porque nossa capacidade de agir e de dizer-o-mundo é limitado e capitaneado pela linguagem. Como diz Heidegger, todo o processo de compreensão do ser é limitado por uma história do ser que limita a compreensão. Gadamer, assim, eleva a linguagem ao mais alto patamar, em uma ontologia hermenêutica, entendendo, a partir disto, que é a linguagem que determina a compreensão e o próprio objeto hermenêutico. O existir já é um ato de compreender e um interpretar” (Hermenêutica Jurídica (em) Crise, 2003, p. 200). 157 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 503. 158 Ver: STRECK, Lenio Luiz, Hermenêutica Jurídica (em) Crise, 2003, p. 203.

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Em resumo, pode-se afirmar que a hermenêutica é o próprio modo de o homem se relacionar com o mundo, de se apropriar do mundo, e não um instrumento de que se pode valer para interpretar certos textos ou fatos, mediante a aplicação de um método. Nas palavras de Richard Palmer, na conclusão de sua análise sobre a teoria de Gadamer, “as chaves para compreensão não são manipulação e controle, mas participação e abertura, não é conhecimento, mas experiência, não é metodologia, mas dialética. Para ele [Gadamer], o propósito da hermenêutica não é estabelecer regras para uma compreensão objetivamente válida, mas conceber compreensão em si tão abrangente quanto possível”.159

5.3. Interpretação e aplicação Uma das consequências do objetivismo metodológico antes descrito é a separação dos momentos de interpretação e aplicação das normas jurídicas. Com efeito, sob os influxos dessa linha de pensamento tem-se uma separação bem definida entre o intérprete, o objeto da interpretação e a questão que se pretende solucionar. Nesse cenário, o processo hermenêutico se daria em duas etapas distintas: em primeiro lugar, o intérprete desvelaria o sentido do texto legal para, então, aplicar a norma jurídica descoberta a uma determinada situação fática. É nesse sentido que se distinguem os momentos de interpretação e aplicação das normas jurídicas.160 Gadamer irá alocar todos os “momentos” da relação intérprete-objeto no âmbito da hermenêutica. Assim, a subtilitas intelligendi (o poder de compreen-

159 PALMER, Richard, Hermeneutics, 1969, p. 215. 160 Essa distinção entre interpretação e aplicação ainda encontra-se presente na doutrina. Nesse sentido, ver: MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1999, p. 6-8; FRANÇA, Limongi. Hermenêutica Jurídica. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 35 e 36; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. v. I. p. 134; FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1987. p. 185; ASCENSÃO, José de Oliveira, Introdução à Ciência do Direito, 2005, p. 591; MÁYNEZ, Eduardo García. Introducción al Estudio del Derecho, 2002, p. 319; COING, Helmut, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 340 e 341; DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 374; LOPES, Miguel Maria de Serpa, 1989, p. 111; RODRIGUES, Silvio, Direito Civil, 1989, p. 24; PECES-BARBA, Gregório; FERNÁNDEZ, Eusébio; ASÍS, Rafael. Curso de Teoría del Derecho. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 232; AMATUCCI, Andrea. La Interpretación de la Ley Tributaria. In: AMATUCCI, Andrea (Org.). Tratado de Derecho Tributario. Bogotá: Themis, 2001. p. 579-580; CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 88-90.

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der), a subtilitas explicandi (o poder de interpretar) e a subtilitas applicandi (o poder de aplicar) estão todas contidas no fenômeno hermenêutico.161 Nas palavras do mestre alemão, “‘aplicar’ não é ajustar uma generalidade já dada antecipadamente para desembaraçar em seguida os fios de uma situação particular. Diante de um texto, por exemplo, o intérprete não procura aplicar um critério geral a um caso particular: ele se interessa, ao contrário, pelo significado fundamentalmente original do escrito de que se ocupa”.162 A inclusão da aplicação no processo hermenêutico é uma consequência lógica do abandono do objetivismo metodológico, já que a situação de fato que se põe ao intérprete será interpretada juntamente com o texto objeto da interpretação, implicando-se mutuamente e inserindo-se no âmbito da tradição (pré-compreensão) do intérprete. Como salienta Josef Bleicher, “a ‘aplicação’, como articulação entre o passado e o presente, surge como terceiro momento da unidade da compreensão, da interpretação e da aplicação, que constituem o esforço hermenêutico: a compreensão adequada de um texto, que corresponde às suas necessidades e mensagem, muda com a situação concreta a partir da qual tem lugar; é já sempre uma aplicação”.163 Esse aspecto da teoria de Hans-Georg Gadamer tem particular importância no âmbito jurídico, na medida em que se reconhecem as implicações entre norma e fato, não havendo que se falar em uma interpretação isolada dos textos normativos, desconsiderando-se os fatos envolvidos em dado caso concreto.164 Como fala-nos Lenio Streck, aprendemos com Gadamer “que hermenêutica não é método, é filosofia”. E prossegue: “Ora, se interpretar é aplicar, não há um

161 Cf. GADAMER, Hans-Georg, Gadamer in Conversation, 2001, p. 37; GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 407. 162 GADAMER, Hans-Georg, O problema da consciência histórica, 1998, p. 57. Ver também: GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica. In: Verdade e Método II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 131. 163 BLEICHER, Josef, Hermenêutica Contemporânea, [s/d], p. 170. 164 Nas palavras de Eros Grau: “Interpretação e aplicação não se realizam autonomamente. O intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso dado; a interpretação do direito consiste em concretar a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação. Assim, existe uma equação entre interpretação e aplicação: não estamos aqui diante de dois momentos distintos, porém frente a uma só operação. Interpretação e aplicação consubstanciam um processo unitário, se superpõem” (Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 76). Ver também: STRECK, Lenio Luiz, O Efeito Vinculante das Súmulas e o Mito da Efetividade: Uma Crítica Hermenêutica, 2005, p. 162; TORRES, Ricardo Lobo, Normas de Interpretação e Integração do Direito, 2006, p. 61.

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pensamento teórico que ‘flutua’ sobre os objetos do mundo, apto a dar sentido ao ‘mundo sensível’. O sentido é algo que se dá; ele acontece”.165

6. A jurisprudência dos valores Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o assombro quanto à impotência do direito para evitar a solução final posta em curso pelo nacional-socialismo alemão, voltaram-se os teóricos jurídicos para o desenvolvimento de uma teoria que superasse o positivismo jurídico avalorativo, exatamente mediante a busca de justificação da validade das normas em valores superiores ao direito positivo. Nas palavras de Karl Larenz “o Direito é uma parte da cultura; a cultura é uma realidade referida a valores; o Direito é, portanto, uma realidade determinada, em sua peculiaridade, pela referência ao valor especificamente jurídico, a justiça”.166 Representante dessa linha de pensamento foi o jusfilósofo alemão Gustav Radbruch (1878-1949), para quem “o direito só pode ser compreendido dentro da atitude que refere as realidades aos valores (wertbeziehend). O direito é um fato ou fenômeno cultural, isto é, um fato referido a valores”.167 Em seus “Cinco Minutos de Filosofia”, Radbruch sustenta que a validade do direito positivo não pode ser aferida tendo em vista apenas parâmetros formais. Com efeito, para o jurista alemão “há também princípios fundamentais de direito

165 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 32. 166 LARENZ, Karl. La Filosofía Contemporánea del Derecho y del Estado. Tradução E. Galán Gutiérrez; A. Truyol Serra. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1942. p. 98. A jurisprudência valorativa de Larenz se reflete em sua definição de princípios jurídicos, constante na passagem a seguir: “Os princípios jurídicos são os pensamentos diretores de uma regulação jurídica existente ou possível. Em si mesmos, não são, todavia, regras suscetíveis de aplicação, mas podem transformar-se em regras. Quando remetem a um conteúdo intelectivo que conduz a uma regulação, são princípios ‘materiais’, ainda que lhes falte, todavia, o caráter formal de proposições jurídicas, representando a conexão entre um ‘pressuposto de fato’ e uma ‘consequência jurídica’. Os princípios indicam apenas a direção na qual está situada a regra que deve ser encontrada. Podemos dizer que são um primeiro passo para a obtenção da regra, que determina os passos posteriores. Como ao estabelecer as regras de comportamento humano se escolhe entre diferentes possibilidades e, para tanto, realiza-se uma valoração – este se estima mais do que outro -, os princípios contém pré-decisões sobre os valores posteriores que se tem que encontrar e que se têm que manter dentro do marco assinalado pela pré-decisão, que deve dar satisfação ao princípio” (LARENZ, Karl. El Derecho Justo. Tradução Luis Díes-Picazo. Madrid: Civitas, 2001. p. 32-33). 167 RADBRUCH, Gustav, Filosofia do Direito, 1997, p. 45.

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que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda a lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade”.168 Uma teoria jurídica voltada à realização de valores implica uma reforma na própria forma de legislar, uma vez que se faz necessária uma maior abertura dos textos legais com a delegação de maior atribuição ao julgador para ponderar os valores em jogo em cada caso concreto. Torna-se então cada vez mais comum a utilização nos textos legais de conceitos indeterminados e tipos, os quais impõem uma mudança na própria forma mediante a qual os operadores jurídicos devem examinar o fenômeno hermenêutico. A jurisprudência dos valores, na medida em que impõe uma interpretação jurídica que não se limita ao direito positivo, impõe a ponderação de valores extrajurídicos. Como destaca Karl Larenz, “a passagem a uma ‘jurisprudência de valoração’ só cobra, porém, o seu pleno sentido quando conexionada na maior parte dos autores com o reconhecimento de valores ou critérios de valoração ‘supralegais’ ou ‘pré-positivos’ que subjazem às normas legais e para cuja interpretação e complementação é legítimo lançar mão, pelo menos sob determinadas condições”.169 O sistema jurídico seria então, segundo Canaris, uma ordenação axiológica.170 Questão relevante no campo da jurisprudência dos valores consiste na fundamentação da decisão judicial. De fato, considerando que, como dito, as valorações partem de aspectos não auferíveis pela lógica subsuntiva, impõe-se então o desenvolvimento de novas fórmulas de justificação das decisões judiciais, como a tópica e a teoria da argumentação.

7. O pós-positivismo O termo pós-positivismo não designa uma corrente uniforme de pensamento, referindo-se às correntes jurídicas contemporâneas decorrentes dessa reaproximação entre direito e valores.171 168 RADBRUCH, Gustav, Filosofia do Direito, 1997, p. 45. 169 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 167. 170 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 2.ed. Tradução A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 66-67. 171 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 57; CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 21, 1998, p. 209,

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Um dos marcos desse pensamento voltado a valores é a teoria da justiça de John Rawls (1921–2002). A teoria da justiça de John Rawls, cujo refinamento teórico impõe redobrada cautela ao se expor seus fundamentos de forma concisa é, em linhas gerais, uma tentativa de se estabelecer critérios para uma justiça pública, relativos à estrutura básica da sociedade,172 a qual somente pode ser aplicável a uma sociedade bem ordenada173 (com regras institucionalizadas democraticamente). Caracteriza-se por ser uma teoria contratualista, determinando que os princípios fundamentais de justiça devem ser pactuados, em uma posição original de igualdade, por pessoas racionais e razoáveis, as quais, protegidas por um véu de ignorância, estariam aptas a estabelecer tais princípios de forma equitativa.174 Por seu turno, tais pessoas tenderiam a estabelecer, na posição original, dois princípios distintos: um que garantisse as liberdades fundamentais a todos e outro que previsse que as desigualdades entre os homens somente seriam justas na medida em que beneficiassem os menos favorecidos, e que as oportunidades sociais e econômicas deveriam ser isonomicamente acessíveis.175 A teoria de Rawls é basicamente uma teoria de justiça distributiva, a partir da qual se busca estabelecer mecanismos para distribuir os bens coletivos de forma isonômica entre todos, de forma que todos devem ter iguais oportunidades para atingir as posições socialmente vantajosas, redistribuindo-se pela coletividade as vantagens gozadas arbitrariamente por determinados sujeitos (dons naturais e posições originárias de vantagem). O ressurgimento das relações direito-moral-justiça, impulsionam, portanto, a teoria jurídica do pós-positivismo, como apontam Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos.176 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe. Eficácia Constitucional: Uma Questão Hermenêutica. In: BOUCALT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ , José Rodrigo (Coords.). Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 377. 172 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 2001. p. 6 e 7. 173 RAWLS, John, A Theory of Justice, 2001, p. 397 - 405. 174 RAWLS, John, A Theory of Justice, 2001, p. 102-160. 175 RAWLS, John, A Theory of Justice, 2001, p. 53. 176 Em textual: “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada

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Nessa mesma linha de ideias, ressalta Maria Margarida Lacombe Camargo que “o pós-positivismo, como movimento de reação ao modelo Kelseniano de negação dos valores, abre-se a duas vertentes. Uma delas, que segue a linha de Dworkin e Alexy, busca recuperar a força normativa dos princípios de direito, com todo seu potencial valorativo. A outra procura, nos fundamentos que sustentam as decisões judiciais, sua força lógico-legitimante, como faz Chaïm Perelman, por exemplo”.177 Característica, portanto, do pós-positivismo é a valorização dos princípios jurídicos, principalmente a partir dos aportes de Ronald Dworkin178 (1931- ) e Robert Alexy (1945- ) e suas teorias para a distinção entre princípios e normas. Para Ronald Dworkin, princípio é “um padrão que deve ser observado, não porque irá alcançar ou assegurar uma situação econômica, política, ou social supostamente desejada, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade, ou alguma outra dimensão de moralidade”.179 Já segundo Robert Alexy, “o ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumpri-

nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética” (BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 336). Nas palavras de Marcus Abraham: “O pós-positivismo reintroduz no ordenamento jurídico positivo as ideias de justiça e legitimidade, através do constitucionalismo moderno, com o retorno aos valores e com a reaproximação entre moral, ética e o direito, materializados em princípios jurídicos abrigados na Constituição, que passam a ter maior efetividade normativa, influenciando sobremaneira a teoria da interpretação do direito e, inclusive, do direito tributário” (ABRAHAM, Marcus. O Planejamento Tributário e o Direito Privado. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 96). 177 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 141. 178 Interessante a observação de Albert Calsamiglia, quando aponta que a obra de Ronald Dworkin seria o primeiro grande ataque à Escola Analítica de Austin, depurada no positivismo light de Herbert Hart (CALSAMIGLIA, Albert. ¿Por que es Importante Dworkin? Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 2, 1985, p. 159-161. 179 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1999. p. 22.

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mento não só depende das possibilidades reais mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostas”.180 Partindo dessas e outras ideias, Humberto Ávila forjou sua definição de princípios jurídicos, os quais seriam “normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”.181 Tendo os princípios jurídicos, positivados ou não, como diretrizes a serem alcançadas pelo direito, busca-se superar as limitações do positivismo jurídico, tão criticado por Dworkin.182 É pertinente aqui o comentário de Albert Calsamiglia, para quem o “pós-positivismo põe atenção sobre a pergunta que se deve fazer ante a um caso difícil. A resposta do positivismo era acudir ao legislador intersticial. Mas quando o raciocínio judicial se efetua fora do domínio do direito encontramo-nos em terra incógnita. Não deixa de ser curioso que quando mais necessitamos orientação, a teoria positivista emudece”.183 Nada obstante, não se pode ter a falsa ideia de que o próprio positivismo jurídico não pode lidar com a revolução principiológica. Nesse sentido é a lição de Neil MacCormick, que vem trabalhando com os princípios jurídicos dentro de uma perspectiva positivista. Para MacCormick, “os princípios de um sistema jurídico são as normas gerais conceitualizadas por meio das quais funcionários racionalizam as normas que pertencem ao sistema em virtude de critérios observados internamente”.184 Segundo o professor catedrático da Universidade de Edimburgo, “o princípio estabelece o limite dentro do qual são legítimas decisões judiciais plenamente

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justificadas por argumentos consequencialistas. Sua existência torna possível que um juiz chegue a uma decisão que, de outro modo, deveria caber à legislatura”.185 Todavia, conforme mencionado anteriormente, a reaproximação entre direito e os valores, com a superação da lógica subsuntiva, traz problemas de justificação e legitimação da interpretação/aplicação do direito pelos tribunais, que necessitam demonstrar as razões e motivos de suas valorações. Sobre a questão podemos destacar como contribuições importantes para a nova forma de compreensão do direito tanto a tópica, de Theodor Viehweg,186 quando a teoria da argumentação jurídica, as quais serão examinadas a seguir.

7.1. O pensamento por problemas: A tópica de Theodor Viehweg O pensamento tópico, que remonta a Cícero e Aristóteles, ressurgiu da década de 50 como uma alternativa ao formalismo jurídico e o raciocínio lógico-dedutivo, encontrando seu maior expoente na figura de Theodor Viehweg (1907-1988).187 Posta por terra a crença na possibilidade de se extrair comandos normativos verdadeiros e desvinculados dos fatos em causa por intermédio da lógica dedutiva, com o ressurgimento dos valores e dos princípios jurídicos, torna-se necessária a discussão de uma forma de pensar o direito que dê conta não apenas do texto normativo, mas de todos os elementos que influenciam a decisão do órgão de aplicação do direito. Esse é, exatamente, o papel da tópica jurídica, a qual é muito bem descrita por Antonio Manuel Hespanha: A tópica é, como já se disse, o nome dado pela antiga teoria do discurso à técnica de encontrar soluções no domínio dos saberes problemáticos, ou seja, dos saberes em que não existem certezas evidentes, como o direito, a moral, etc. Nestes casos, a legitimação da solução encontrada não decorre 185 MacCORMICK, Neil, Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 209.

180 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 86.

183 CALSAMIGLIA, Albert, Postpositivismo, 1998, p. 212.

186 Conforme salienta Paulo Bonavides, “a tópica tem que ser compreendida portanto no quadro das consequências advindas da reação ao positivismo jurídico clássico e no clima de inteira descrença quanto a uma reestruturação jusnaturalista, como a que se intentou na Alemanha no fim da década de 40, após as feridas abertas na consciência do Ocidente pela tragédia da Segunda Grande Guerra Mundial” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 497). No mesmo sentido: BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Tópica e argumentação jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 163, jul.-set. 2004, p. 154-155.

184 MacCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. Tradução Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 201.

187 Ver: VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução Tercio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.

181 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 70. 182 DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1999.

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tanto da validade das premissas em que esta se baseia como no consenso que suscitou no auditório. Aplicada ao direito, esta ideia vem a colocar o juiz (ou o jurista) na primeira linha da atividade de achamento ou de declaração do direito, o qual, para decidir um caso concreto, lança mão de argumentos (tópicos) disponíveis (princípios doutrinais, precedentes, disposições legislativas), no sentido de ganhar o assentimento (das partes, mas também do público em geral) para a solução. Neste contexto, a lei é apenas um dos argumentos, cuja eficácia argumentativa dependerá tanto da sua consonância com o sentido concreto de justiça vigente no auditório como do prestígio de que a forma “lei” (e, em geral, a entidade “Estado”) aí goze. Para além de constituir uma crítica ao legalismo, a tópica constitui também uma crítica ao normativismo, ou seja, à ideia de que a norma geral e abstrata está no princípio de um processo de subsunção que conduziria ao achamento do direito. Pelo contrário, a tópica defende que é o caso, com o seu caráter concreto e situado, que sugere os argumentos ou pontos de vista relevantes, bem como que os permite hierarquizar.188

Como pontua José de Oliveira Ascenção a tópica procura chegar a “um repertório de pontos de vista que darão a solução de casos concretos”.189 Para Chaïm Perelman “a importância dos lugares específicos do direito, isto é, dos tópicos jurídicos, consiste em fornecer razões que permitem afastar soluções não equitativas ou desarrazoadas, na medida em que estas negligenciam as considerações que os lugares permitem sintetizar e integrar em uma visão global do direito como ars aequi et boni”.190 Segundo Viehweg:

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A função dos topoi, tanto gerais como especiais, consiste em servir a uma discussão de problemas. Segue-se daí que sua importância tem que ser muito especial naqueles círculos de problema em cuja natureza está não perder nunca o seu caráter problemático. Quando se produzem mudanças de situações e em casos particulares, é preciso encontrar novos dados para tentar resolver os problemas. Os topoi, que intervêm com caráter auxiliar, recebem por sua vez sentido a partir do problema. A ordenação com respeito ao problema é sempre essencial para eles. À vista de cada problema aparecem como adequados ou inadequados, conforme um entendimento que nunca é absolutamente imutável. Devem ser entendidos de um modo funcional, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento.191

Tal repertório de pontos de vista, de topoi, é sempre provisório e cambiante em função do problema. Como destaca Viehweg, “a tópica não pode ser entendida se não se admite a sugerida inclusão em uma ordem que está sempre por ser determinada”.192 Portanto, pode-se caracterizar a tópica como uma forma de pensar em função do problema.193 Nas palavras de Viehweg, “o sistema tópico está em permanente movimento. Suas formulações respectivas indicam meramente os estágios progressivos da argumentação ao tratar de problemas particulares. O sistema pode razoavelmente ser chamado um sistema aberto, já que sua discussão, quer dizer, seu enfoque de um problema particular, está aberta a novos pontos de vista”.194 191 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 38. 192 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 35. Sobre a necessidade de abertura e flexibilidade dos topoi, vale a pena destacar outra passagem de Viehweg, onde afirma que “os topoi e os catálogos de topoi oferecem um auxílio muito apreciável. Porém, o domínio do problema exige flexibilidade e capacidade de alargamento” (VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 41).

188 HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 338-339. Leciona Tercio Sampaio Ferraz Jr. que “quando se fala, hoje, em tópica pensa-se, como já dissemos, numa técnica de pensamento que se orienta para problemas. Trata-se de um estilo de pensar e não, propriamente, de um método. Ou seja, não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência nem de cânones para julgar a adequação de explicações propostas, nem ainda critério para selecionar hipóteses. Em suma, não se trata de um procedimento verificável rigorosamente. Ao contrário, é um modo de pensar, problemático, que nos permite abordar problemas, deles partir e neles culminar. Assim, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados com caráter problemático visto que jamais perdem sua qualidade tentativa. Veja, por analogia, o que acontece com a elaboração de um dicionário, em que muitos verbetes, pela diversidade de acepções, exigem abordagens, que, partindo de distintos pontos de vista, não fecham nem concluem, embora deem a possibilidade de compreender a palavra em sua amplitude (problemática)” (FERAZ JR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2001, p. 323-324). 189 OLIVEIRA ASCENÇÃO, José de, Introdução à Ciência do Direito, 2005, p. 464. 190 PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica, 2000, p. 120.

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193 Nas palavras de Manuel Atienza, “a tópica é (de acordo com a distinção de Cícero aludida anteriormente) uma ars inveniende, um procedimento de busca de premissas (de tópicos) que, na realidade, não termina nunca: o repertório de tópicos sempre é necessariamente provisório, elástico. Os tópicos devem ser entendidos de um modo funcional, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento que só permitem alcançar conclusões curtas. A isso se contrapõe a ars iudicandi, a lógica demonstrativa que recebe premissas e trabalha com elas, o que permite a elaboração de longas cadeias dedutivas” (ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica. Tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2002. p. 66). Ver também: MAIA, Antônio Cavalcanti. A importância da dimensão argumentativa à compreensão da práxis contemporânea. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 8, out.-dez. 2000, p. 271-272; GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Tópica, Derecho y Método Jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 4, 1987, p. 162; BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional, 2003, p. 490-491. 194 VIEHWEG, Theodor. Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Jurídico. In: Tópica y Filosofia del Derecho. Tradução Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa, 1997. p. 127.

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Para um melhor entendimento da tópica é importante a caracterização do problema. Segundo Viehweg: Para nosso fim, pode chamar-se problema – esta definição basta – toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução. [...].195

Como bem notado por Paulo Roberto Soares de Mendonça, as soluções dadas aos problemas podem ser agrupadas em catálogos de soluções, compondo assim um sistema a partir do qual venham a ser solucionados os problemas no futuro. O pensamento tópico funciona de forma inversa, questionando sempre as premissas e extraindo novos pontos de vista a partir dos problemas.196 Nota-se, portanto, que, como salienta Thomas da Rosa de Bustamante, “o papel central da tópica é encontrar as premissas que serão utilizadas no raciocínio”.197 A tópica abre o pensamento jurídico para além do texto normativo, o qual figura como mais um tópico a ser levando em consideração, o tópico de partida, mas, como adverte Juan Antonio García Amado, “por sua generalidade, a rigidez de sua forma e sua textura aberta, precisa ser concretizado mediante outros tópicos que determinem seus sentidos possíveis e façam viável a discussão tendente a obter o significado que melhor se adeque à realidade de cada caso a resolver”.198 É de se assinalar, com Luiz Alberto Warat, que “a tópica não assegura decisões certas e incontrovertíveis, mas dá soluções aceitáveis dentro do marco da ideologia que adota. Admite a alterabilidade significativa da lei, que origina a problemática interpretativa e decisória”.199 195 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 34. 196 MENDONÇA. Paulo Roberto Soares de. A Tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 100.

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O próprio Viehweg alertava para o fato de que a tópica “não é um método, mas sim um estilo. Ela tem, como qualquer outro estilo, muito de arbítrio amorfo e muito pouco de demonstração”.200

7.2. A teoria da argumentação As teorias de argumentação encontram-se inseridas nesse contexto de questionamento da lógica formal como forma de realização concreta do direito, aproveitando da tópica a inserção dos fatos (do problema) no processo de criação jurídica. Conforme salienta Maria Margarida Lacombe Camargo: Procuramos também destacar a dimensão concreta própria do pensar jurídico, orientado que é para o problema que se pretende resolver. Coube a Chaïm Perelman realizar a grande guinada na área da metodologia jurídica, quando apontou para as dimensões retórica e argumentativa que, na realidade, fazem o direito. O direito origina-se da prática; não se limita ao conteúdo do texto da lei: surge e é orientado pelas teses construídas sob os parâmetros do fato e da lei, num confronto de ideias que vêm legitimar cada decisão tomada de per si. Ressaltamos, assim, algumas das contribuições mais significativas para a reflexão jurídica contemporânea, avessa à adoção do raciocínio lógico-linear para, em lugar desta, uma proposta mais voltada para a intersubjetividade e para o desafio constante de lidar com situações que requerem respostas convincentes e criativas.201

Uma das críticas voltadas contra a tópica jurídica consiste em não fornecer a mesma um método para a utilização dos diversos tópicos jurídicos, sendo mais uma forma de pensar do que uma metodologia que possa substituir a lógica formal. Como vimos, o próprio Viehweg negava à tópica o caráter de método jurídico.202 As teorias de argumentação diferem da tópica por terem por fim a apresentação de uma nova metodologia jurídica.

197 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de, Tópica e argumentação jurídica, 2004, p. 159. 198 GARCÍA AMADO, Juan Antonio, Tópica, Derecho y Método Jurídico, 1987, p. 174. Ver, ainda: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre Princípios Constitucionais. Curitiba: Juruá: 2006. p. 129. 199 WARAT, Luiz Alberto, Introdução Geral ao Direito, 1994, p. 88. Há que se concordar com as ponderações de Antonio Nedel, quando afirma que o que “parece mais importante ressaltar no que concerne à tópica jurídica não são os topoi e o fundamento metafísico que eles suscitam, mas, sim, o caráter dialético e as possibilidades crítico-criativas que a sua índole retórico argumentativa propicia, enquanto método de resolução dos concretos problemas jurídicos, elevando, como o valor mais relevante do direito, a prospecção dialógica que

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pode conduzir, no âmbito das controvérsias, sua elucidação racional-consensual” (NEDEL, Antônio. Uma Tópica Jurídica: clareira para a emergência do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 222). 200 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 71. 201 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 262. 202 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 71.

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Essa é a posição de Manuel Atienza, que ao analisar a função prática da argumentação jurídica afirma: Por função prática ou técnica da argumentação jurídica, entendo basicamente que esta deve ser capaz de oferecer uma orientação útil nas tarefas de produzir, interpretar e aplicar o Direito. Para que uma teoria da argumentação jurídica possa cumprir essa função de caráter instrumental (dirigida tanto aos práticos do Direito como aos cultivadores da dogmática jurídica) ela terá de poder oferecer um método que permita reconstruir o processo real da argumentação, além de uma série de critérios para fazer um julgamento sobre a sua correção; como se acaba de indicar, essa é uma tarefa que, em considerável medida, ainda está para ser cumprida.203

Entendo que a argumentação não pode ser vista como um método jurídico a partir do qual seja possível atestar a correção das decisões jurídicas, sendo, isso sim, uma forma de pensar o direito que leva à tomada de decisões justificáveis, a qual é especialmente necessária nas situações em que o texto, por si só, é vago e ambíguo.204 Nessa linha, Neil MacCormick sustenta que o dever judicial de fazer justiça é o dever de proferir decisões que sejam fundamentadas em argumentos satisfatórios.205 O arbítrio judicial seria, portanto, “um arbítrio de proferir a decisão que seja mais bem justificada”.206 Segundo Chaïm Perelman, “motivar uma sentença é justificá-la, não é fundamentá-la de um modo impessoal e, por assim dizer, demonstrativo. É persuadir um auditório, que se deve conhecer, de que a decisão é conforme às suas exigências”.207 Já que busca a adesão dos destinatários da decisão à mesma, a argumentação jurídica deve se dar no âmbito do diálogo, permitindo a participação daqueles na formação desta. Sobre a adesão dos destinatários ao resultado da 203 ATIENZA, Manuel, As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica, 2002, p. 333. 204 Conforme destaca Humberto Ávila, “[...] Uma teoria jurídica da argumentação não se confunde com uma teoria racional da argumentação, que opta, entre os argumentos que podem ser utilizados, pelo mais racional, plausível ou sustentável. Uma teoria jurídica da argumentação procura fundamentar no próprio ordenamento jurídico a escolha entre os argumentos” (ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 203). 205 MacCORMICK, Neil, Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 326. 206 MacCORMICK, Neil, Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 327. 207 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução Maria Emantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 569-570.

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interpretação salienta Perelman que “a interpretação da lei, para ser aplicada a um caso específico, deve ser considerada uma hipótese, que só será adotada definitivamente se a solução concreta em que redunda afigurar-se aceitável”.208 É no âmbito da argumentação que serão ponderados os bens, interesses e valores em jogo, de modo que somente em cada caso é que o texto normativo concretizar-se-á em norma jurídica individual e concreta.209 Na medida em que a teoria do pós-positivismo tem trabalhado com a teoria da argumentação e a justificação das decisões pelo juiz, verifica-se, como ressalta Calsamiglia, a mudança do centro das atenções do Legislativo para o Judiciário.210

208 PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica, 2000, p. 115. Em outra passagem, afirma Perelman que “em nítida oposição aos métodos da lógica formal, vimos que toda argumentação deve partir de teses que têm a adesão daqueles a que se quer persuadir ou convencer. Negligenciando esta condição, o orador, aquele que apresenta uma argumentação, arrisca-se a cometer uma petição de princípio” (PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica, 2000, p. 158). Ver: GARCÍA AMADO, Juan Antonio, Tópica, Derecho y Método Jurídico, 1987, p. 174; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva, Colisões entre Princípios Constitucionais, 2006, p. 129; CRETTON, Ricardo Aziz. Os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade e sua Aplicação no Direito Tributário. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. p. 38. 209 O debate quanto à ponderação foi introduzido no cenário jurídico nacional no âmbito da discussão quanto à solução da colisão entre princípios, notadamente quando o intérprete está diante dos chamados casos difíceis (Cf. SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 99). Como salienta Ana Paula de Barcellos, “de forma muito geral, a ponderação pode ser descrita como uma técnica de decisão própria para casos difíceis (do inglês hard cases), em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado” (BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003. p. 55).Todavia, como destaca a própria Ana Paula, “já é possível identificá-la [a ponderação] como uma técnica de decisão jurídica autônoma que, aliás, vem sendo aplicada em diversos outros ambientes que não o do conflito entre princípios” (BARCELLOS, Ana Paula de, Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional, 2003, p. 56). Nas palavras de Humberto Ávila, “a ponderação não é método privativo de aplicação dos princípios. A ponderação ou balanceamento (weighing and balancing Abwägung), enquanto sopesamento de razões e contra-razões que culmina com a decisão de interpretação, também pode estar presente no caso de dispositivos hipoteticamente formulados, cuja aplicação é preliminarmente havida como automática (no caso de regras, consoante o critério aqui investigado), como se comprova mediante a análise de alguns exemplos” (ÁVILA, Humberto, Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003, p. 44). Sobre a ponderação como postulado hermenêutico, ver: BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História. Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003. p. 344-350; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, [s/d]. p. 1161-1165; BARCELOS, Ana Paula. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 210 Cf. CALSAMIGLIA, Albert, Postpositivismo, 1998, p. 215.

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Como mencionado, não há uma teoria da argumentação, mas teorias de argumentação, podendo-se destacar, entre os autores que trabalham com a argumentação jurídica, Robert Alexy,211 Klaus Günther,212 Chaïm Perelman213 e Stephen Toulmin.214

8. Síntese conclusiva Ao fim dessa análise da evolução histórica do pensamento jurídico a partir dos formalismos do século XVIII, chega-se à conclusão de que a hermenêutica contemporânea se desprendeu das balizas impostas pela jurisprudência conceitual e as escolas analítica e exegética. Hodiernamente mesmo positivistas como Herbert Hart acolhem a influência dos valores sobre o direito, reconhecendo-se, portanto, o caráter axiológico do processo hermenêutico. Foi superado também o objetivismo metodológico de algumas correntes formalistas, que pretendiam que o intérprete encontrasse no texto legal uma única norma verdadeira que seria alcançada pela aplicação dos métodos interpretativos, normalmente derivações dos elementos da interpretação apresentados por Savigny. Com efeito, a partir dos aportes de Hans-Georg Gadamer tornou-se evidente que o processo hermenêutico se dá no intérprete, de forma que não se pode segregar este do texto interpretado e do objeto sobre o qual se “aplicaria” o direito, como se as normas fossem uma massa de concreto trabalhada pelo intérprete e aplicada sobre os tijolos na construção de uma decisão. Essa nova colocação da questão tornou relevante a situação do intérprete, passando a ter destaque o exame da sua pré-compreensão, a partir de sua inserção em uma cultura que afeta sua vida hermenêutica.215 211 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. 212 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. Traducão Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004. 213 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000; . 214 TOULMIN, Stephen. Os Usos do Argumento. Tradução Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 215 Segundo Wilson Engelmann: “A pré-compreensão é a responsável pela antecipação do sentido das coisas que nos circundam no mundo. Entre a compreensão, como parte integrante do processo de interpretação, e a pré-compreensão estabelece-se a configuração de um círculo. Dito de outro modo, sempre existe um

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Por outro lado, a inevitável abertura da linguagem,216 que torna letra morta o objetivismo metodológico antes pretendido, aliado à transferência do problema hermenêutico para o intérprete, o qual se encontra inserido numa determinada cultura,217 que afeta a sua pré-compreensão, e à prevalência dos valores, torna certamente possível que de um mesmo texto legal sejam extraídas normas jurídicas igualmente válidas, mas de distinto conteúdo.218 Conforme salienta Ricardo Guastini, “muitas disposições – talvez todas as disposições – têm um conteúdo de significado complexo: exprimem não apenas uma única norma, mas sim uma multiplicidade de normas associadas”.219

procedimento prévio já conhecido que se projeta sobre a compreensão e vice-versa. [...]” (ENGELMANN, Wilson. Direito Natural, Ética e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 221. 216 Ver: CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguage. 4. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994. p. 31; ALCHOURRÓN, Carlos R.; BULYGIN, Eugenio. Introducción a la Metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2002. p. 62-65; HART, H. L. A.,The Concept of Law, 1997, p. 129; STRUCHINER, Noel, Direito e Linguagem: Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito, 2002, p. 68; ROSS, Alf, Direito e Justiça, 2000, p. 167 ANDRADE, José Maria Arruda de, Interpretação da Norma Tributária, 2006, p. 81-90; BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 28-29; GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária. São Paulo: Dialética, 1998. p. 159. 217 Nas palavras de Rogério Gesta Leal, há que se ter em conta que “quem dá efetividade à interpretação é um ser racional e também histórico, que fala, se comunica dentro da história e de uma história determinada, de uma cultura determinada, de um contexto determinado. Desta forma, o processo de constituição do significado do texto está profundamente marcado pelos elementos discursivos e categoriais erigidos pelo tempo daquela história” (LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 133). 218 É pertinente aqui a seguinte passagem de Joseph Raz: “A saída para esse impasse, a forma de reconciliar a existência de uma multiplicidade de interpretações que competem entre si com a objetividade, dirige-se à ideia que frequentemente é posta metaforicamente dizendo que ‘o significado do objeto não está no objeto’. A útil sugestão da metáfora é esta: se a interpretação depende de algo fora de seu objeto, então, possivelmente, há uma pluralidade de tais objetos adicionais, os quais dão conta da pluralidade de boas interpretações. O subjetivismo com sua pretensão de que qualquer interpretação se sustenta é, sem embargo, uma forma extremada de se entender a metáfora. De acordo com ela, a maneira que qualquer intérprete mira o objeto de interpretação, em qualquer tempo, como se expressa na interpretação, determina seu significado. Este é o porque todas as interpretações são igualmente boas quando são boas. Mas a metáfora mesma permite explicações mais sensatas que identificam outros fatores como os que determinam, em parte, os significados dos objetos, desta maneira determinam suas interpretações apropriadas” (RAZ, Joseph. ¿Por Qué Interpretar? Isonomía, México, n. 5, Out.-1996, p. 29-30). 219 GUASTINI, Ricardo. Das Fontes às Normas. Tradução Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 35. Ver, também: GUASTINI, Ricardo. Teoria e Dogmatica delle Fonti. Milano: Giuffrè, 1998. p. 17; GRAU, Eros Roberto, Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 30; GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 153.

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Trata-se aqui da discussão quanto à possibilidade de uma única resposta correta como resultado do processo de interpretação. Embora importantes vozes, como a de Ronald Dworkin e,220 no Brasil, Lenio Streck,221 sustentem a possibilidade de se ter uma única resposta correta como resultado do processo hermenêutico, tal não parece refletir a natureza das normas jurídicas.222 De fato, como destaca Neil MacCormick, mesmo que haja uma só resposta correta na interpretação das normas, o problema é que não há como identificar se a decisão alcançada em um determinado caso reflete esta única resposta.223 220 DWORKIN, Ronald, Taking Rights Seriously, 1999, p. 279-290. Comentando a teoria de Dworkin, diz Wayne Morrison: “Talvez a mais controvertida das ideias associadas à obra inicial de Dworkin esteja em sua afirmação de que a prática jurídica envolve, necessariamente, a aceitação da ideia de haver sempre uma resposta certa aos dilemas jurídicos e morais. Dworkin apresenta duas maneiras de se chegar a essa conclusão: (i) uma envolve a afirmação relativamente fraca de que, como a natureza do direito implica o envolvimento em litígios e sua solução, faz parte do raciocínio prático do direito o fato de que a resposta a um litígio deve ser clara – se disséssemos o tempo todo ‘está empatado’, a natureza prática das soluções jurídicas não teria sentido algum.; (ii) a outra consiste em procurar os pressupostos racionais envolvidos no próprio processo e nas próprias práticas de argumentação jurídica e política. Dworkin quer que consideremos em profundidade o que os advogados estão realmente fazendo em termos de prática nos casos difíceis, e nos pede para usar seu próprio discurso como ponto de partida. O direito parece incerto; não parece haver nenhuma resposta jurídica óbvia. Qual é, porém, a racionalidade dos diferentes aspectos das práticas sociais em questão? Vejamos um caso comum. As partes instruíram os advogados e talvez, depois de várias trocas de cartas, alegações e alegações em contrário, os dois lados decidem resolver a questão em juízo. Se os dois conjuntos de advogados estiverem agindo como agentes jurídicos sérios (isto é, se não estiverem às voltas com atos desnecessários), ambas as partes acreditam que estão certas em sua interpretação e sua crença de que o direito está do seu lado. Na verdade, ambas acreditam que há uma resposta a ser encontrada, e que se trata de uma resposta jurídica. Por que ir ao tribunal se você não acredita que seu lado é o certo? Isto é, que seus argumentos podem convencer o juiz a decidir que o direito é aquilo que você reivindica?” (MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: Dos Gregos ao Pós-modernismo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 505-506). 221 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 183-195. 222 Nesse mesmo sentido, negando a possibilidade de se alcançar uma única resposta correta ao cabo da interpretação jurídica, ver: AARNIO, Aulis. Sobre la Ambigüedad Semántica en la Interpretación Jurídica. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 4, 1987, p. 109-117; AARNIO, Aulis. La Tesis de la Única Respuesta Correcta y el Principio Regulativo del Razonamiento Jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 8, 1990, p. 23-38; BARRAGÁN, Julia. La Respuesta Correcta Única y la Justificación de la Decisión Jurídica. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 8, 1990, p. 6474; FARALLI, Carla. A Filosofia Contemporânea do Direito: Temas e Desafios. Tradução Candice Premaor Gullo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 46-47; KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 100-102; FREITAS, Juarez. A Melhor Interpretação Constitucional versus a Única Resposta Correta. Revista LatinoAmericana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 2, jul.-dez. 2003, p. 313. 223 MacCORMICK, Neil, Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 321. Ver também: GRAU, Eros Roberto, Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 100-102.

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Cabe inteira razão a Marco Aurélio Greco quando este afirma que “o intérprete tem um dever de fidelidade ao texto, mas isto não significa que o resultado da interpretação seja algo meramente matemático ou lógico dedutivo”.224 Não há se negar, portanto, que dentro dos lindes linguísticos do texto normativo exerce o intérprete uma função criativa, consistente em determinar qual dos sentidos possíveis do texto comporá a norma individual e concreta.225 O reconhecimento de que a interpretação compreende uma função criati226 va não significa que o intérprete crie a norma do nada, ex nihilo. Como afirma 224 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal. São Paulo: Dialética, 2004. p. 377. 225 Leciona Paulo de Barros Carvalho: “A missão do exegeta dos textos jurídico-positivos, ainda que possa parecer facilitada pela eventual coincidência da mensagem prescritiva com a sequencia das fórmulas gráficas utilizadas pelo legislador (no direito escrito), oferece ingentes dificuldades, se a proposta for a de um exame mais sério e atilado. E, sendo o direito um objeto da cultura, invariavelmente penetrado por valores, teremos, de um lado, as estimativas, sempre cambiantes em função da ideologia de quem interpreta; de outro, os intrincados problemas que cercam a metalinguagem, também inçada de dúvidas sintáticas e de problemas de ordem semântica e pragmática. Tudo isso, porém, não nos impede de declarar que conhecer o direito é, em última análise, compreendê-lo, interpretá-lo, construindo o conteúdo, sentido e alcance da comunicação legislada. Tal empresa, que nada tem de singela, como vimos, requer o envolvimento do exegeta com as proporções inteiras do todo sistemático, incursionando pelos escalões mais altos e de lá regressando com os vetores axiológicos ditados por juízos que chamamos de princípios” (CARVALHO, Paulo de Barros. Proposta de Modelo Interpretativo para o Direito Tributário. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 70, 1995, p. 41-42). Para Eros Roberto Grau, “em síntese: a interpretação do direito tem caráter constitutivo – não, pois, meramente declaratório – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma de decisão. Interpretar/ aplicar é da concreção [=concretizar] ao direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [=do direito] no mundo do ser [=mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o particular” (GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 163). 226 É pertinente transcrever a lição de Luís Roberto Barroso que, embora voltada para a interpretação constitucional, a este campo não se restringe: “A moderna interpretação constitucional diferencia-se da tradicional em razão de alguns fatores: a norma, como relato puramente abstrato, já não desfruta de primazia; o problema, a questão tópica a ser resolvida passa a fornecer elementos para a sua solução; o papel do intérprete deixa de ser de pura aplicação da normas preexistente e passa a incluir uma parcela de criação do Direito do caso concreto. E, como técnica de raciocínio e de decisão, a ponderação passa a conviver com a subsunção. Para que se legitimem suas escolhas, o intérprete terá de servir-se dos elementos da teoria da argumentação, para convencer os destinatários do seu trabalho de que produziu a solução constitucionalmente adequada para a questão que lhe foi submetida. [...]” (BARROSO, Luís

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Eros Roberto Grau, “o produto da interpretação é a norma expressada como tal. Mas ela (a norma) parcialmente preexiste, potencialmente, no invólucro do texto, invólucro do enunciado”.227 Portanto, o intérprete cria, mas não cria do nada nem tampouco tal tarefa deixa de ser pautada por limites constantes no próprio texto interpretado, nos valores e interesses em jogo, os quais afastam qualquer decisionismo. A abertura da linguagem implica a necessidade de superação da lógica binária que tomou conta do processo de subsunção.228 Roberto. Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucional adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Orgs.). Os Princípios da Constituição de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 258-259). Sobre a função criativa da interpretação, ver: RECASÉNS SICHES, Luis. Nueva Filosofia de la Interpretacion del Derecho. México: Editorial Porrua, 1980. p. 211-213; COSSIO, Carlos. El Derecho em el Derecho Judicial. Las Lagunas del Derecho. La Valoración Judicial. Buenos Aires: Librería El Foro, 2002. p. 121-122; TORRES, Ricardo Lobo, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, 2006, p. 45; LATORRE, Angel, Introdução ao Direito, 2002, p. 109-111; GRAU, Eros Roberto, Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 73-75; STRECK, Lenio Luiz, Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da constituição do direito, 2003, p. 91-92; SCHROTH, Ulrich. Hermenêutica Filosófica e Jurídica. In: KAUFMANN, A.; HASSMER, N. (Orgs.). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 383-384; GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 432-433; LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 283-284; ROSS, Alf, Direito e Justiça, 2000, p. 139; RADBRUCH, Gustav, Filosofia do Direito, 1997, p. 230-231; TÔRRES, Heleno Taveira. Interpretação e Integração das Normas Tributárias – Reflexões e Críticas. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário: Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 112; CARDOZO, Benjamin N. The Nature of the Judicial Process. New Haven: Yale University Press, 1991. p. 112-115; ABRAHAM, Marcus, O Planejamento Tributário e o Direito Privado, 2007, 118-119. 227 GRAU, Eros Roberto, Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 72-73. 228 Marco Aurélio Greco destaca a dificuldade de interpretar o direito com base no instrumental da lógica binária, em longa passagem a seguir transcrita: “Esta dificuldade enfrentada pela doutrina tem sua origem na premissa de que seria possível reconduzir roda realidade sempre a duas categorias opostas e, por consequência, a interpretação deveria orientar-se no sentido de identificar a qual delas pertenceria o objeto. Esta ideia de interpretar a realidade, inclusive jurídica, a partir de categorias opostas (lícito/ilícito; direito interno/ internacional; vigência/não-vigência; tributo/não-tributo, etc.) retrata um modelo de compreensão do mundo apoiado numa lógica bivalente que, em última análise, encontra sua origem no princípio da não-contradição formulado por Aristóteles. Admitida a ideia de uma lógica bivalente é, então, possível criar uma tabela de verdade das afirmações feitas sobre a realidade. De fato, se algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo, determinada conduta, se for lícita, não será ao mesmo tempo ilícita, e assim por diante. Ocorre que esta visão bivalente está passando por uma profunda revisão. Todo modelo teórico de compreensão da realidade implica uma simplificação do objeto para fins de permitir seu exame, a partir de elementos que constituiriam seu núcleo essencial. Esta lógica bivalente (sim/não; certo/ errado; 0/1 etc.) está se demonstrando insuficiente ou inadequada para explicar a realidade por corresponder a uma simplificação exagerada de um mundo complexo (simplificação, portanto, irreal).

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Como salienta Marco Aurélio Greco, a lógica difusa (lógica fuzzy) seria a mais adequada para tratar com a indeterminação da linguagem, posição também defendida por Arthur Kaufmann.229 Ao descrever o funcionamento da lógica fuzzy, Susan Haack explica que o mesmo se dá aplicando-se variáveis fuzzy a conceitos não-fuzzy.230 Tomando por exemplo o significante verdade, partindo da lógica clássica bivalente trabalharíamos com as noções de verdadeiro/falso. Já a lógica fuzzy trabalha com as noções de muito falso, pouco falso, falso, pouco verdadeiro, muito verdadeiro, etc.231 Tal é exatamente a realidade da interpretação jurídica, onde, como destaca Arthur Kaufmann, “não há uma única solução correta, mas muitas soluções ‘corretas’, isto é, soluções ‘defensáveis’, plausíveis, suscetíveis de consenso”.232 Em um cenário como o descrito acima, temos que o relevante é a justificação, é que a decisão alcançada possa ser justificada de forma a ser aceita como a decisão do caso em disputa, sem que se afirme, com isso, que a decisão correta foi proferida. São interessantes aqui as colocações de Dworkin sobre a justificação, quando este afirma que a mesma tem duas dimensões: uma primeira, segundo a qual uma justificação deve ao menos de modo geral servir para suportar o que se pretende justificar. A título de exemplo, ensina Dworkin que atualmente uma justificação de caráter teológico não seria bastante para sustentar uma decisão. A segunda dimensão implica que a justificação deve se sustentar sobre algum valor suficientemente importante que a decisão venha proteger.233





Aliás, inúmeras são as dificuldades que uma lógica bivalente traz ao intérprete do ordenamento jurídico positivo (ou seu aplicador) que pretenda utilizá-la rigorosa e cegamente diante de uma situação concreta. Basta lembrar que, se a experiência jurídica se resumisse a uma lógica formal redutível a padrões absolutos de verdade, não existiria uma quantidade tão elevada de divergências e litígios. Atualmente, estão em andamento vários estudos teóricos que partem de uma lógica não-bivalente e que se reúnem no conjunto que se convencionou denominar de “lógicas deviantes” a que pertence o sistema de lógica fuzzy, particularmente adequado para explicar a experiência jurídica, pois ela parte da ideia da imprecisão da linguagem e de que – por isso – os conceitos sempre apresentam certa margem de vaguedade” (GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 374-375).

229 KAUFMANN, Arthur, Filosofía del Derecho, 1999, p. 82. 230 HAACK, Susan. Deviant Logic. Fuzzy Logic. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. p. 234. 231 Cf. HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. Tradução Cezar Augusto Mortari; Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 222-223. 232 KAUFMANN, Arthur, Filosofía del Derecho, 1999, p. 82. 233 DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: Harvard University Press, 2006. p. 15.

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Cresce, nessa assentada, a importância dos valores e dos princípios, os quais aparecem como instrumentos de justificação de decisões, até mesmo para que em um determinado caso concreto opte-se pela interpretação menos óbvia de acordo com a literalidade de um texto em detrimento da interpretação literal mais óbvia. A atividade hermenêutica, portanto, se desenvolve nos marcos do pluralismo metodológico,234 não havendo fórmulas que garantam a correção na interpretação de textos normativos.235 Nessa perspectiva, os elementos de interpretação devem ser vistos como pontos de partida, tópicos a serem utilizados no processo hermenêutico.236 Ora, vê-se portanto que o problema hermenêutico atual, como pontuado acima, é de argumentação, participação e justificação. Diante da pluralidade de decisões possíveis muitas vezes presentes, a legitimidade da norma individual e concreta criada diante de dado caso dependerá exatamente do seu processo de criação. Daí a grande relevância dos órgãos de aplicação do direito, responsáveis pela criação das normas individuais e concretas, principalmente, em um sistema de jurisdição una como o brasileiro,237 do Poder Judiciário, em cujo âmbito as atividades de argumentação, participação e justificação se realizam. Nesta assentada se reafirma a impossibilidade de separação dos momentos de interpretação e aplicação do direito. De fato, toda interpretação é já aplicação, já que realizada no intérprete tendo em vista o texto normativo e os fatos da questão sob apreço, o que ressalta a importância dos órgãos de aplicação no processo hermenêutico.238 234 Cf. TORRES, Ricardo Lobo, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, 2006, p. 153154; COELHO, L. Fernando, Lógica Jurídica e Interpretação das Leis, 1981, p. 203-204; ABRAHAM, Marcus, O Planejamento Tributário e o Direito Privado, 2007, 124-125. 235 Ver: AFTALIÓN, Enrique R.; OLANO, Fernando García; VILANOVA, José, Introducción al Derecho, [196-], p. 453. 236 Como destaca Recaséns Siches, “o verdadeiro núcleo da função judicial não se radica, nem remotamente, o silogismo que se possa formular, mas sim consiste na eleição de premissas, por parte do juiz. Uma vez eleitas as premissas, a mecânica silogística funcionará com toda facilidade” (RECASÉNS SICHES, Luis, Nueva Filosofia de la Interpretacion del Derecho, 1980, p. 237). 237 Sobre a jurisdição una pátria, ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 102-104. 238 Nas palavras de Castanheira Neves: “O centro metodologicamente referente está, pois, no juízo e não diretamente na norma – a norma será convocada, na sua normatividade, em função da problemática normativo-jurídica do juízo decisório, i. é, convocada pelas possibilidades que a sua normatividade ofereça como critério normativo-jurídico para uma normatividade fundada e problematicamente adequada – e assim com normativo-jurídica justeza – decisão judicativa. O pensamento jurídico de orientação tradicionalmente hermenêutica via o prius metodológico na norma, a determinar, por isso mesmo,

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A Hermenêutica Jurídica sob o Influxo da Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer (2005)

Introdução Um dos desafios mais difíceis enfrentados pelos operadores do direito é a superação de dogmas que há muito habitam seu ideário teórico. Essa é a razão pela qual, na maior parte das vezes, prefere-se o conforto do senso comum teórico estabelecido,239 do que o horror da indeterminação240 trazido pela mudança de paradigmas. Ao analisarmos a doutrina pátria sobre hermenêutica jurídica, percebe-se a presença da paralisia causada pela indeterminação, a qual faz com que muitos juristas permaneçam sustentando teorias há muito ultrapassadas, ignorando contribuições que põem em cheque toda uma maneira de pensar a experiência hermenêutica. Na busca pela segurança na lei, trata-se a interpretação dos textos normativos como um método para a descoberta da mensagem correta nos mesmos conti-

em termos hermenêuticamente autônomos: interpretada primeiro a norma na sua autonomia abstrata, antes e independentemente da sua referência à decisão do caso concreto, seria ela depois ‘aplicada’ ao caso com o sentido ou a significação daquele modo determinados, sem consideração das exigências justificativas emergentes do problema do caso decidendo. Eram assim a ‘interpretação’ e a ‘aplicação’ atos metodologicamente de todo diferentes e autônomos. Pelo contrário, deverá reconhecer-se que o juízo da realização concreta do direito, e pelas suas exigências normativo-decisórias, é que dá sentido, conexiona e assimila num processo intencional-metodologicamente unitário todos os elementos que nele concorrem – daí que a determinação do sentido normativo-jurídico da norma apenas se consuma no juízo e pelo juízo, só no juízo e pelo juízo a sua normatividade, sempre de uma aberta indeterminação em abstrato, se vai concretamente determinando. A ‘interpretação’ e a ‘aplicação’ não podem, pois, separar-se, antes se conjugam numa indissolúvel unidade – melhor, essa distinção deixa de ter sentido num processo que refere a norma, desde o princípio, em função do problema judicativo-decisório e realiza o juízo mediante as possibilidades de critério que para ele ofereça a normatividade da norma” (NEVES, A. Castanheira. O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica – I. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 344-345). 239 Sobre o senso comum teórico dos juristas ver: WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994. v. I. p. 22. 240 A expressão é de Zygmunt Bauman (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 9).

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da, em uma postura hermenêutica napoleônica, ignorando-se, entre outros, os aportes teóricos da obra do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer. Gadamer, mesmo não sendo filósofo do direito e, portanto, não tendo posto a hermenêutica jurídica entre suas principais preocupações, desenvolveu, a partir da virada ontológica conduzida por seu mestre Martin Heidegger, uma hermenêutica filosófica cujos fundamentos acabam por impor uma modificação no pensar a hermenêutica jurídica. Entre as modificações trazidas pela hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, três, em especial, serão examinadas neste estudo, por terem notável relação com a hermenêutica jurídica. Tais pontos são os seguintes: (a) a crítica quanto à crença na possibilidade de se alcançar a verdade nas ciências do espírito através da utilização de um método; (b) a revisão da ideia do distanciamento do intérprete em relação ao objeto interpretado, com o reconhecimento de que é no intérprete, com sua tradição e pré-conceitos, que se realiza o processo interpretativo; e (c) a inclusão da aplicação no âmbito do processo hermenêutico, a qual abala os alicerces do entendimento, difundido na seara jurídica, de que a aplicação seria um momento pós-interpretativo, em que o intérprete, estranho ao texto legal e aos fatos sob exame, aplica a estes o resultado da interpretação do texto, resolvendo uma controvérsia jurídica. Uma breve reflexão acerca desses três pontos revela que os mesmos estão intimamente conectados. Com efeito, a partir do momento que intérprete e objeto implicam-se mutuamente, perde força a ideia de que intérprete e objeto relacionam-se por intermédio de um método que permite que aquele conheça e interprete este, aplicando-o a outro objeto externo, ao final. O propósito deste estudo consiste na análise da importância da virada hermenêutica de Hans-Georg Gadamer para a hermenêutica jurídica, tendo como foco os três pontos mencionados acima, buscando-se, a partir das reflexões do filósofo alemão, criticar alguns dogmas já enraizados na doutrina jurídica, os quais vem sendo objeto de revisão, no Brasil, por juristas como Maria Margarida Lacombe Camargo, Lenio Streck, Eros Roberto Grau e Ricardo Lobo Torres, entre outros. Antes de iniciar a análise proposta, ressalto que todas as passagens de obras estrangeiras foram livremente vertidas para o português pelo autor.

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1. Uma crítica ao método A obra principal de Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, editada pela primeira vez no ano de 1960, tem como um de seus principais propósitos apresentar crítica à ideia de que se pode alcançar a verdade, no campo das ciências do espírito, mediante a mera aplicação de um método objetivo, nos moldes das ciências naturais. Conforme afirma Gadamer logo na introdução de seu pensamento, “na origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um problema de método”.241 A crítica ao pensamento metodológico é tão presente em sua obra que alguns de seus críticos e revisores apontam que seu trabalho devia ser intitulado Verdade ou Método,242 ou ainda Verdade versus Método.243 A crítica de Gadamer, que pode certamente ser trazida para o campo da hermenêutica jurídica, deve, todavia, ser bem apreendida, de modo a se evitar uma má-compreensão de suas ideias. De fato, os aportes gadamerianos não são contra a existência dos métodos. Como o próprio Gadamer afirma em entrevista concedida a Carsten Dutt, “é claro que há métodos, e certamente deve-se aprendê-los e aplicá-los”.244 O foco da crítica do professor de Heidelberg, portanto, não é a existência de métodos, mas sim a crença na objetivação da verdade por intermédio de seu uso, assim como a exterioridade metodológica do intérprete em relação ao objeto interpretado. Nas autorizadas palavras de Richard Palmer: Assim como Heidegger, Gadamer é um crítico da moderna submissão ao pensamento tecnológico, o qual se encontra enraizado no subjetivismo (Subjektität) – ou seja, em tomar a consciência subjetiva do homem, e as certezas da razão na mesma baseadas, como o ponto máximo de referência para o conhecimento humano. Os filósofos pré-cartesianos, por exemplo, os gregos antigos, encaravam seu pensamento como uma parte do próprio ser; eles não tomavam a subjetividade como seu ponto de partida e então

241 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 29. 242 Cf. RICOEUR, Paul. Hermeneutics & the Human Sciencies. Tradução de John B. Thompson. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 60. 243 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Gadamer in Conversation. Tradução de Richard Palmer. New Haven/ London: Yale University Press, 2001. p. 41. 244 Gadamer in Conversation, 2001, p. 41.

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fundamentavam a objetividade de seu conhecimento sobre a mesma. Sua abordagem era mais dialética e tentava permitir-se ser guiada pela natureza do que estava sendo compreendido. Conhecimento não era algo que eles adquiriam como uma possessão, mas algo no qual eles participavam, permitindo que os mesmos fossem dirigidos e até mesmo possuídos por seu conhecimento. Nesse sentido os Gregos alcançaram uma abordagem da verdade que foi além das limitações do pensamento sujeito-objeto moderno, enraizado em um conhecimento subjetivamente correto. Dessa forma, a abordagem de Gadamer é mais próxima à dialética de Sócrates do que ao pensamento manipulativo e tecnológico moderno. A verdade não é alcançada metodicamente, mas dialeticamente; a abordagem dialética da verdade é vista como a antítese do método, como um meio de superar a tendência do método de pré-estruturar o modo de ver dos indivíduos. Falando mais exatamente, o método é incapaz de revelar novas verdades; ele apenas explicita o tipo de verdade que já se encontra explícita no próprio método. [...].245

Richard Palmer explicita na passagem acima o foco central a crítica de Gadamer, a qual tem por fim uma mudança da função do método nas ciências humanas. Tal foco consiste na ideia de que a legitimação nas ciências do espírito se dá por intermédio da participação dialética do sujeito no processo hermenêutico, e não pela aplicação de qualquer método. Ao responder questão acerca da crítica metodológica contida em sua obra, o próprio Gadamer responde que o que buscou “demonstrar é que o conceito de método não era caminho apropriado para se atingir legitimidade no campo das ciências humanas e sociais”.246 Conforme conclui “essa é a razão pela qual sugeri que o ideal de conhecimento objetivo, que domina nossos conceitos de conhecimento, ciência e verdade, precisa ser superado pelo ideal de compartilhar algo, de participação”.247 A hermenêutica filosófica gadameriana é mesmo incompatível com a ideia de que se pode ter acesso à verdade através de um método aplicável pelo intérprete.

245 PALMER, Richard. Hermeneutics. Evanston: Northwestern University Press, 1969. p. 164 e 165. 246 Gadamer in Conversation, 2001, p. 40. 247 Gadamer in Conversation, 2001, p. 40.

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Com efeito, a teoria de Gadamer funda-se na concepção de que o homem tem acesso ao mundo pela linguagem, a qual deve ser interpretada (compreendida) pelo ser-aí (Dasein248), sendo assim pautada por sua tradição e suas pré-compreensões. Ora, se a interpretação se desenvolve no âmbito do horizonte do intérprete, não se pode conceber que esta corresponda à aplicação de um método exterior ao mesmo. Como destaca Maria Margarida Lacombe Camargo, “Gadamer defende a ideia de que não é tarefa da hermenêutica descobrir métodos para uma correta interpretação, mas refletir sobre o acontecer da própria interpretação, que no âmbito das ciências do espírito corresponde mais especificamente à compreensão”.249 Parece-nos evidente, à primeira vista, que os aportes teóricos de Hans-Georg Gadamer abalam a noção tradicional de método jurídico, ordinariamente entendido como instrumento à disposição do intérprete para se alcançar a verdade contida no texto legal. Castanheira Neves dá-nos clara visão acerca do formalismo metodológico que por longo período dominou o cenário jurídico, o qual partia de uma deificação do ato legislativo que somente poderia ser alcançada mediante a neutralização do intérprete pela supervalorização do método jurídico. Eis a lição do jusfilósofo português: Tudo o que, e em síntese, significava que o direito, se era entendido como criação autônoma do legislador político, segundo a sua teleologia político-social e variável em função das circunstâncias histórico-sociais condicionantes dessa mesma teleologia, uma vez todavia desse modo criado e posto passaria a ser objeto de um pensamento que se pretendia puramente jurídico e assumido assim pelo “jurista enquanto tal” (“jurist als solche”: Windscheid): o seu objetivo metodológico seria exclusivamente cognitivo (a analítica reprodução e conceitualização desse direito positivo, não de qualquer modo a reconstituição ou coprodução da sua normatividade) e a

248 “Dasein: (al.: existência, ser-aí) Termo heideggeriano que significa realidade humana, ente humano, a quem somente o ser pode abrir-se. Mas como é ambíguo, correndo o risco de abrir uma brecha para o humanismo, Heidegger prefere utilizar a expressão ser-aí. Na linguagem corrente, Dasein quer dizer * existência humana. Enquanto os * entes são fechados em seu universo circundante, o homem é graças à linguagem, aí onde vem o ser. Assim, o Dasein é o ser do existente humano enquanto existência singular e concreta: ‘A essência do ser-aí (Dasein) reside em sua existência (Existenz), isto é, no fato de ultrapassar, de transcender, de ser originariamente ser-no-mundo” (JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 63). Sobre o Dasein ver também: VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Barcelona: Gedisa, 2002. p. 32-35. 249 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001. p. 32.

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sua índole noética estritamente dogmática e formal – se o legislador cria o direito positivo, o jurista com o seu pensamento exclusivamente jurídico conhece-o na sua estrutura lógico-dogmática e aplica-o lógico-formalmente ou lógico-dedutivamente (“aplicar o direito significa: subsumir sob as normas da lei” – W. Ott, ob. cit., p. 45), constituindo nesses termos o que se virá a designar o estrito “método jurídico”.250

Esse pensamento metodológico formalista, nas palavras de François Gény, busca “dar alcance ao pensamento do legislador contido nos textos. Sempre que se compreenda e interprete bem a lei, subsumirá quantas soluções jurídicas sejam necessárias”.251 Há que se ressaltar, contudo, que por formalismo jurídico não se deve entender positivismo jurídico, expressão que engloba teorias jurídicas de diversos matizes. Prova dessa assertiva encontra-se no fato de Kelsen, um dos mais festejados positivistas e teóricos do direito, trazer clara crítica à possibilidade de se encontrar uma interpretação correta dos textos legais mediante a aplicação de métodos. Eis sua lição: Só que, de um ponto de vista orientado para o Direito positivo, não há qualquer critério com base no qual uma das possibilidades inscritas na moldura do Direito a aplicar, possa ser preferida a outra. Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de Direito positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como “correta” – desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica.252

A doutrina kelseniana encontra, portanto, eco nas críticas formuladas por Gadamer ao papel do método nas ciências humanas. Embora as críticas ao formalismo metodológico venham sendo formuladas de longa data, é de se reconhecer que ainda hoje a crença na possibilidade de se alcançar a correção mediante a aplicação de métodos marca presença na

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hermenêutica jurídica encontra-se presente, especialmente no Brasil, país em que a evolução das discussões hermenêuticas tem tardado a alcançar difusão. De outro lado, tem-se que mesmo teorias atuais como a teoria da argumentação, se encaradas como métodos para o alcance da correção hermenêutica incorrem no mesmo vício das doutrinas formalistas tradicionais. Essa crítica à teoria da argumentação foi salientada por Lenio Streck,253 que menciona posições como a adotada por Manuel Atienza para demonstrar as limitações da teoria da argumentação se entendida como uma forma de se alcançar correção no campo jurídico. Com efeito, a correção buscada por Atienza por intermédio da argumentação acaba por equiparar esta a um método tão objetivo quanto qualquer outro proposto pelo formalismo jurídico. Eis a lição do professor espanhol: Para ser considerada plenamente desenvolvida, uma teoria da argumentação jurídica tem de dispor – como acabei de dizer – de um método que permita representar adequadamente o processo real da argumentação – pelo menos a fundamentação de uma decisão, tal como aparece plasmada nas sentenças e em outros -, assim como de critérios, tão precisos quanto possível, para julgar a correção – ou a maior ou menor correção – dessas argumentações e de seus resultados, as decisões jurídicas.254

Percebe-se que a teoria da argumentação, conforme representada por Atienza, teria por fim a busca de critérios para justificar a correção das decisões jurídicas, prendendo-se, portanto, de alguma forma, à noção de método como “caminho ou percurso para atingir um objeto”.255 Todavia, tendo por base as inflexões de Gadamer, tem-se que a relação sujeito-objeto não se dá por intermédio do método, mas sim dentro do próprio ser-aí, de modo que o objeto não é revelado pelo método, mas compreendido pelo ser. Resta perguntar, então, qual o papel dos chamados métodos de interpretação jurídica?

250 NEVES, A. Castanheira. Metodologia Jurídica: Problemas Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. p. 28.

253 STRECK, Luiz Lenio. O Efeito Vinculante das Súmulas e o Mito da Efetividade: Uma Crítica Hermenêutica. In: Crítica à Dogmática: Dos Bancos Acadêmicos à Prática dos Tribunais. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005. p. 93.

251 GÉNY, François. Método de Interpretación y Fuentes em Derecho Privado Positivo. Madrid: Editorial Réus, 1925. p. 26.

254 ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 319 e 320.

252 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução João Baptista Machado. Coimbra: Arménio Amado, 1984. p. 468.

255 Cf. ASCENÇÃO, José de Oliveira. Introdução à Ciência do Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 457.

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Os ditos métodos jurídicos nada mais são do que uma referência aos diversos aspectos envolvidos na compreensão dos textos legislativos e dos fatos jurídicos.256 Com efeito, tais métodos (literal, sistemático, teleológico, histórico, axiológico, etc.) lembram apenas os diversos aspectos envolvidos no fenômeno jurídico, não garantindo qualquer certeza ou correção ao resultado da interpretação em um caso particular. Sobre essa questão, transcrevemos longa passagem de Lenio Streck, que com respaldo em Friedrich Müller, Konrad Hesse e Eros Grau leciona: Faço minhas, aqui, as bem fundadas críticas de Friedrich Müller às técnicas/regras/métodos de interpretação. Para ele, as regras tradicionais da interpretação não podem ser isoladas como “métodos” autônomos por si. Tais regras dirigem-se a toda e qualquer norma jurídica: porque cada norma jurídica tem o seu texto da norma – a consuetudinária, um texto mutante; a escrita, um texto autenticamente fixado – (interpretação gramatical); porque nenhuma norma do direito positivo representa a si mesma, mas ao menos se relaciona com todo o ordenamento (interpretação sistemática); porque finalmente, cada norma pode ser questionada com vistas ao seu “sentido” e “à sua” finalidade. Cf. MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 68-69. Na mesma linha, podem ser elencadas as críticas de Hesse, para quem tampouco os “distintos métodos” de interpretação, tomados um por um, oferecem orientação suficiente. É frequente que o texto não diga nada que seja inequívoco sobre o significado da palavra, com que se coloca o problema de como determinar esse significado: se com o uso da linguagem usual, ou a linguagem jurídica especializada, ou vem segundo a função que cada caso assuma o conceito. A “interpretação sistemática” é praticamente uma carta branca, pois com a regra de que há de se colocar o sentido de um preceito não se avança nada a respeito da pergunta fundamental, a de como descobrir dito sentido. Finalmente, tampouco é clara a relação dos distintos métodos entre si. Fica por decidir qual daqueles há de seguir em cada caso, ou qual dos mesmos deva se dar preferência, em particular quando conduzem a resultados diferentes (Konrad Hesse). Com propriedade, Eros Grau chama atenção para aquilo que ele denomina calcanhar de Aquiles da interpretação: “quando interpretamos, o fazemos sem que exista norma a respeito de como interpretar normas. Quer dizer, não 256 Cf. MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 27-30.

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existem aqueles que seriam meta-normas ou meta-regras. Temos inúmeros métodos a gosto de cada um. Interpretar gramaticalmente? Analiticamente? Finalisticamente? Isso quer dizer pouco, pois as regras metodológicas de interpretação só teriam real significação se efetivamente definissem em que situações o intérprete deve usar este ou aquele cânone hermenêutico, esse ou aquele outro método de interpretar. Mas acontece que essas normas nada dizem a respeito disso; não existem essas regras” (GRAU, Eros Roberto. A jurisprudência dos interesses e a interpretação do Direito. In: ADEODATO, João Maurício (Org.). Jhering e o Direito no Brasil. Recife: Universitária, 1996, p. 79). Em face disso, é possível afirmar que a inexistência de um método dos métodos ou um metacritério que estabeleça o “correto” uso da metodologia jurídica – tão bem criticada por Grau e Muller – faz com que essa procura resvale inexoravelmente para o terreno da objetivação metafísica. Em outras palavras, a busca de um metacritério (espécie de método dos métodos) é a busca de uma espécie de método fundante/fundamental (um Grundmethode?), que daria o necessário fundamento de validade a esse metamétodo ou metacritério, mesmo intento, aliás, que levou Kelsen a construir a noção de norma fundamental (Grundnorm) na Teoria Pura do Direito, entendida como norma pressuposta com nítida inspiração kantiana, e na Teoria Geral das Normas (obra póstuma) transmudada para ficção, inspiração buscada na filosofia do “como se” (als ob), de qualquer sorte, elaboradas e sofisticadas formas de objetivação positivista.257

Seguindo as observações acima e tendo por fundamento as críticas de Gadamer à objetivação metodológica como instrumento à descoberta da verdade no âmbito das ciências humanas, é de se concluir que a crença nos métodos jurídicos como meios para o alcance da correção no campo da hermenêutica jurídica oferece algo que não pode alcançar. Com efeito, é de se concordar com Eros Grau quando afirma que “a reflexão hermenêutica repudia a metodologia tradicional da interpretação e coloca sob acesas

257 O Efeito Vinculante das Súmulas e o Mito da Efetividade: Uma Crítica Hermenêutica, 2005, p. 92. Ver também: STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 167.

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críticas a sistemática escolástica dos métodos, incapaz de responder à questão de se saber por que um determinado método deve ser, em determinado caso, escolhido”.258 Pode-se concluir, portanto, que a correção das ciências humanas não pode ser objetivamente alcançada pela aplicação de métodos, o que implica em uma revisão da própria noção de hermenêutica jurídica, como passamos a examinar.

2. A hermenêutica gadameriana e a hermenêutica jurídica É vetusto o entendimento de que a interpretação jurídica seria um método para a descoberta da norma contida no texto ou, melhor dizendo, para a descoberta do verdadeiro sentido do texto legal. Não se reconhecia qualquer caráter criativo a tal atividade, pressupondo que, por via da interpretação, seria possível a descoberta do único sentido já contido no texto legal. Exposição nessa linha encontra-se, por exemplo, em Carlos Maximiliano, para quem “interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém”.259 Embora tal concepção acerca da interpretação tenha sido abandonada há muito, até mesmo por autores positivistas como Kelsen e Hart, a mesma ainda é sustentada aqui e alhures. 258 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 90 e 91. 259 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 9. A ideia de que a interpretação consiste em uma atividade voltada para a descoberta do “verdadeiro” sentido de um texto legal encontra-se presente nos trabalhos de estudiosos da teoria geral do direito e nos compêndios gerais dos diversos “ramos” jurídicos, como em: MÁYNEZ, Eduardo García. Introducción al Estudio del Derecho. 53. ed. México: Porrúa, 2002. p. 327; COING, Helmut. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 326; GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 219; DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 381; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. v. I. p. 114; RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. v. I. p. 24; ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. p. 157; BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 45; JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. I. p. 27; MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 1998. v. I. p. 51.

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Tal doutrina encontra-se, portanto, em cheque, podendo tal fato ser explicado a partir da hermenêutica filosófica gadameriana. Com efeito, um primeiro fundamento para a crise do conceito tradicional de interpretação jurídica o temos nas próprias críticas formuladas à objetividade metodológica nas ciências humanas. Partindo-se da premissa de que não há um método que possa ser aplicado pelo sujeito a um objeto com vistas a se alcançar a verdade nas ciências humanas, a ideias de que a interpretação de um texto presta-se ao alcance de tal verdade mostra-se inviável. Além da crítica à objetividade metodológica, também o reconhecimento de que toda tarefa hermenêutica encontra-se influenciada pela pré-compreensão do intérprete também abala os alicerces de uma concepção estéril da interpretação jurídica. A questão dos pré-conceitos e de sua influência no processo hermenêutico encontra-se vinculada à ideia de tradição ou, em outras palavras, à inserção do sujeito em uma determinada tradição, a qual pauta e condiciona sua forma de compreender o mundo.260 Como destaca Gadamer: [...] encontramo-nos sempre inseridos na tradição, e essa não é uma inserção objetiva, como se o que a tradição nos diz pudesse ser pensado como estranho ou alheio; trata-se sempre de algo próprio, modelo e intimidação, um reconhecer a si mesmos no qual nosso juízo histórico posterior não verá tanto um conhecimento, mas uma transformação espontânea e imperceptível da tradição.261

260 Para Maria Margarida Lacombe Camargo, “Gadamer legitima a pré-compreensão na tradição como processo histórico que o intérprete experimenta. A autoridade da tradição, no entanto, não tira a liberdade do intérprete, uma vez que passe a ser racionalmente conhecida, pois, a partir do momento que formamos uma consciência metódica da compreensão, somos capazes de controlá-la. Mas a compreensão não consiste em uma busca do passado feita por uma razão independente, como procedia o romantismo histórico, considera Gadamer. Consiste, outrossim, na determinação universal do estar aí, isto é, na futuridade do estar aí, feita por uma razão comprometida historicamente. O estar aí faz parte de um processo histórico enquanto experiência humana da qual participamos” (Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 57 e 58). 261 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 374. Vale a pena mencionar aqui as palavras de David E. Linge sobre a importância da pré-compreensão na hermenêutica jurídica gadameriana: “Não é de surpreender que a noção de pré-conceitos de Gadamer seja um dos aspectos mais controvertidos de sua filosofia. Mais do que qualquer outro elemento de seu pensamento, ela indica sua determinação em reconhecer as insuperáveis finitude e historicidade do compreender, assim como em exibir o papel positivo que os mesmos têm em cada transmissão humana de significado. Para Gadamer, o passado tem um poder pervasivo sobre o fenômeno da compreensão, e tal poder

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Segundo Gadamer, pré-conceito “quer dizer um juízo que se forma antes do exame definitivo de todos os momentos segundo a coisa em questão”.262 Ora, o experimentar o mundo dos seres humanos lhes proporciona um conjunto de juízos prévios que condicionam o seu agir hermenêutico em relação a tudo quanto os cerca, de modo que nenhuma experiência sua será plenamente objetiva. Essa questão foi muito bem analisada e exposta por Eduardo C. B. Bittar, na passagem abaixo transcrita: O ser-no-mundo carrega esta experiência de estar-aí (Dasein) da qual não pode se desvincular; não posso modificar minha compreensão-de-mundo, pois ela é já determinada pela minha história-de-mundo, da qual não posso me alhear. As condições existenciais (ek-sistere), estar-aí) em que sou posto determinam também as condições com as quais interpreto e com-vivo com o mundo. A existência ou não dos “pré-conceitos” na determinação de todo sentido apreendido do mundo não depende da vontade humana. Os “pré-conceitos” existem, no sentido deste estar-aí contra o qual não se pode lutar, e estão presentes na avaliação de cada peça de nossa interação com o mundo. A vontade pode dizer não e renunciar aos “pré-conceitos”, mas esta é já uma postura claramente carregada de “pré-conceitos” e de tomadas de posição próprias de um sujeito histórico e gravado por uma experiência particular.263

Nessa linha de entendimento, na medida em que o ser-no-mundo não consegue interagir com a realidade ignorando seus pré-conceitos, dados pela tradição, caem por terra os ideais de objetivismo e neutralidade do intérprete, apregoados pelo formalismo jurídico. É de se salientar, contudo, que a crítica ao objetivismo e o reconhecimento inevitável dos pré-conceitos no processo hermenêutico não transformam a inter-

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pretação em um fenômeno subjetivo. Nas palavras de Gadamer, “a compreensão deve ser pensada menos como uma ação da subjetividade e mais como um retroceder que penetra num acontecimento da tradição”.264 De fato, em primeiro lugar deve-se ter em conta que os valores trazidos pela tradição não são experenciados com exclusividade pelo sujeito-intérprete, mas por toda a coletividade, a qual compartilha determinada tradição. Por outro lado, o fato de que somos guiados por pré-conceitos, dados pela tradição, não significa que nunca tenhamos qualquer controle sobre os mesmos ou, melhor dizendo, que não devamos questioná-los. Assim, como observa Gadamer: [...] Aquele que quer compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais obstinada e conseqüente possível – até que este acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermenêuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem uma “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco um anulamento de si mesma; implica antes uma destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais. O que importa é dar-se conta dos próprios pressupostos, a fim de que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as opiniões prévias pessoais.265

Ponto dos mais importantes presentes na passagem acima consiste, portanto, na necessidade de o intérprete não se fechar em suas opiniões prévias, abrindo-se para a alteridade do texto.266

264 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 385. foi completamente ignorado pelos filósofos que dominaram a cena antes de Heidegger. O papel do passado não pode ser restringido meramente ao fornecimento de textos e eventos para a composição de ‘objetos’ da interpretação. Como os pré-conceitos e a tradição, o passado também define o ponto que o próprio intérprete ocupa quando compreende” (LINGE, David E. [Introduction to Gadamer’s Philosofical Hermeneutics]. In: GADAMER, Hans-Georg. Philosofical Hermeneutics. Tradução David E. Linge. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1997. p. xv). 262 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 360. 263 BITTAR, Eduardo C. B. Hans-Georg Gadamer: a experiência hermenêutica e a experiência jurídica. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 184 e 185.

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265 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 358. 266 Nas palavras de Lenio Streck: “Quando se ouve a alguém ou quando se empreende uma leitura, não é que tenhamos que esquecer todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo, ou todas as opiniões próprias, diz o mestre. O que se exige é que simplesmente temos que estar abertos à opinião do outro ou do texto. Entretanto, essa abertura implica sempre que se coloque a opinião do outro em alguma classe de relação com o conjunto de opiniões próprias ou que um se coloque em certa relação com as do outro. Para Gadamer, aquele que pretende compreender não pode entregar-se desde o princípio à sorte de suas próprias opiniões prévias e ignorar a mais obstinada e consequentemente possível opinião do texto. Aquele que pretende compreender um texto tem que estar em princípio disposto a que o texto lhe diga algo” (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (em) Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 201).

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Nesse ponto, parte Gadamer da dialética platônica para sustentar a primazia hermenêutica da pergunta. Citando uma vez mais suas lições: Nós perguntamos pela estrutura lógica da abertura que caracteriza a consciência hermenêutica, e é bom que não esqueçamos a importância do conceito de pergunta na análise da situação hermenêutica. É claro que toda experiência pressupõe a estrutura da pergunta. Não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que algo é assim, e não como acreditávamos inicialmente, pressupõe evidentemente a passagem pela pergunta para saber se a coisa é assim ou assado. Do ponto de vista lógico, a abertura que está na essência da experiência é essa abertura do “assim ou assado”. Ela tem a estrutura da pergunta. E assim como a negatividade dialética da experiência consumada, onde temos plena consciência de nossa finitude e limitação, também a forma lógica da pergunta e a negatividade que lhe é inerente encontram sua consumação numa negatividade radical: no saber que não sabe. É a famosa docta ignorantia socrática que abre a verdadeira superioridade da pergunta na negatividade extrema da aporia. É preciso então que nos aprofundemos na essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência hermenêutica.267

Dessa forma, o intérprete deve ter consciência de seus pré-conceitos (o que nem sempre é possível) para então iniciar uma relação dialética com o texto, abrindo-se para o mesmo mediante o procedimento de perguntas e respostas.268 Forma-se então o círculo da compreensão. Com efeito, as opiniões prévias do intérprete permitem que ele interpele o texto, abrindo-se para o mesmo. Com a compreensão as opiniões prévias são substituídas por novas opiniões e assim por diante, em um constante “projetar de novo”.269 Essa questão foi bem posta por Josef Bleicher, que ao analisar a hermenêutica filosófica gadameriana assim se manifesta: 267 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 473. 268 Cf. GADAMER, Hans-Georg. La hermenêutica y la escuela de Dilthey. In: El Giro Hermenéutico. Tradução Arturo Parada. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995. p. 146. 269 Segundo Gadamer: “[...] o processo descrito por Heidegger de que cada revisão do projeto prévio pode lançar um outro projeto de sentido; que projetos conflitantes podem posicionar-se lado a lado na elaboração, até que se confirme de modo mais unívoco a unicidade de sentido; que a interpretação começa com conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados. Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar. Quem procura compreender está

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A principal tarefa do intérprete é descobrir a pergunta a que o texto vem dar resposta; compreender um texto é compreender a pergunta. Simultaneamente, um texto só se torna um objeto da interpretação se confrontar o intérprete com uma pergunta. Nesta lógica de pergunta e resposta, um texto acaba por ser um acontecimento ao ser atualizado na compreensão, que representa uma possibilidade histórica. Consequentemente, o horizonte do sentido é limitado e a abertura, tanto do texto como do intérprete, constitui um elemento estrutural da fusão dos horizontes. Nesta concepção dialógica, os conceitos usados pelo Outro, seja um texto, seja um tu, ganham nova força, por se inserirem na compreensão do intérprete. Ao entendermos a pergunta colocada pelo texto, fizemos já perguntas a nós próprios e, por conseguinte, abrimo-nos a novas possibilidades de sentido.270

Ponto importante da hermenêutica filosófica de Gadamer reside no reconhecimento de que o homem somente recebe o mundo por intermédio da linguagem.271 Em suas palavras, a linguagem é “o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos”.272

sujeito a errar por causa das opiniões prévias, que não se confirmam nas coisas elas mesmas. Dessa forma, a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, isto é, ousar hipóteses que só devem ser confirmadas ‘nas coisas elas mesmas’. Aqui não há outra ‘objetividade’ além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido afirmar que o intérprete não vai diretamente ao ‘texto’, a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, põe à prova, de maneira expressa, a opinião prévia instalada nele afim de comprovar sua legitimidade, o que significa, sua origem e sua validade” (GADAMER, Hans-Georg. Sobre o Círculo da Compreensão. In: Verdade e Método II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 75). Esse aspecto circular da compreensão é ressaltado por Gregorio Robles: “[...] a interpretação ‘projeta’, já que em todo momento começa com um ‘projeto de compreensão’ (précompreensão) que irá verificar-se e contrastar-se com a experiência. Este contraste mostrará a insuficiência do projeto emitido e a necessidade de substituí-lo por outro. Neste ir e vir da compreensão, para utilizar a expressão de Engisch, radica o chamado círculo hermenêutico” (ROBLES, Gregorio. Introdución a la Teoria del Derecho. 9. ed. Barcelona: Debate, 2003. p. 192). 270 BLEICHER, Josef. Hermenêutica Contemporânea. Tradução Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edições 70, [s/d]. p. 161. 271 Cf. PALMER, Richard, Hermeneutics, 1969, p. 205. 272 GADAMER, Hans-Georg. Homem e Linguagem. In: Verdade e Método II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 182. Ver, também: GADAMER, Hans-Georg. La Diversidade de lãs Lenguas y la Comprensión del Mundo. In: Arte y Verdad de la Palabra. Tradução José Francisco Zuñiga García. Barcelona: Paidós, 1998. p. 119.

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Ora, se experimentamos o mundo por intermédio da linguagem, deve-se concluir que o homem é um ser hermenêutico, ou seja, um ser que tem acesso ao mundo através da interpretação, de forma que é possível afirmar que estamos a todo tempo interpretando.273 É assim que, nas palavras de Gadamer, “todo compreender é interpretar e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete”.274 O reconhecimento de que recebemos o mundo pela linguagem e que o tomamos por meio da interpretação torna inviável a ideia de uniformidade interpretativa, já que cada intérprete participa do processo hermenêutico munido de seus pré-conceitos, de modo que sua abertura ao texto se fará a partir de um determinado referencial de razões prévias, as quais pautarão às perguntas apresentadas e a formação do círculo da compreensão. Torna-se inevitável, então, reconhecer o caráter criativo do fenômeno hermenêutico.275 Em resumo, pode-se afirmar que a hermenêutica é o próprio modo de o homem se relacionar com o mundo, de se apropriar do mundo, e não um instrumento de que se pode valer para interpretar certos textos ou fatos, mediante a aplicação de um método. Nas palavras de Richard Palmer, na conclusão de sua análise sobre a teoria de Gadamer, “as chaves para compreensão não são manipulação e controle, mas participação e abertura, não é conhecimento, mas experiência, não é metodologia, mas dialética. Para ele [Gadamer], o propósito da hermenêutica não é estabelecer regras para uma compreensão objetivamente válida, mas conceber compreensão em si tão abrangente quanto possível”.276 Percebe-se, portanto, o grande impacto da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer sobre a hermenêutica jurídica. Questão interessante de ser analisada, a partir da teoria gadameriana, é a procedência do brocado in claris cessat interpretatio, o que se passa a fazer no seguinte item. 273 Como leciona Lenio Streck: “Dizendo de outro modo: estamos mergulhados em um mundo que somente aparece (como mundo) na e pela linguagem. Algo só é algo se podemos dizer que é algo. Esse poder-dizer é linguisticamente mediato, porque nossa capacidade de agir e de dizer-o-mundo é limitado e capitaneado pela linguagem. Como diz Heidegger, todo o processo de compreensão do ser é limitado por uma história do ser que limita a compreensão. Gadamer, assim, eleva a linguagem ao mais alto patamar, em uma ontologia hermenêutica, entendendo, a partir disto, que é a linguagem que determina a compreensão e o próprio objeto hermenêutico. O existir já é um ato de compreender e um interpretar” (Hermenêutica Jurídica (em) Crise, 2003, p. 200).

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3. In claris cessat interpretatio Durante muito tempo, a máxima in claris cessat interpretatio povoou os manuais jurídicos e livros de introdução à ciência do direito e de teoria geral. Com a mesma pretendia-se significar que regras claras dispensam interpretação. O reconhecimento de que o homem é um ser hermenêutico, que ganha o mundo por intermédio da interpretação torna o referido brocado, se interpretado de forma literal, completamente descabido, na medida em que, em sentido amplo, toda e qualquer norma será objeto de interpretação, como forma de apreensão pelo intérprete. Todavia, parece-nos que o in claris cessat interpretatio não deve ser interpretado de forma tão ampla, mas sim em sentido mais estrito, no sentido de que regras claras dispensam um esforço interpretativo. Com efeito, é induvidoso que, embora todo e qualquer texto deva ser interpretado de forma a ser apropriado pelo intérprete, nem todo texto apresenta ao intérprete dificuldade hermenêutica, compreendida aqui como uma dificuldade na apreensão do objeto interpretado. É assim que, até de forma intuitiva, muitas vezes referimo-nos à interpretação como meio de nos apropriarmos daquilo que não conseguimos apreender automaticamente, ou seja, acabamos falando de interpretação somente quando estamos diante de uma situação que demanda um esforço hermenêutico. O próprio Gadamer é traído por essa perspectiva do fenômeno hermenêutico na passagem transcrita abaixo: Falamos de interpretação quando o significado de um texto não é compreendido de imediato. Uma interpretação torna-se então necessária. Em outras palavras torna-se necessária uma reflexão explícita sobre as condições que levam o texto a ter esse ou aquele significado. A primeira pressuposição do conceito de interpretação é o caráter “estranho” daquilo a ser compreendido. Com efeito, o que é imediatamente evidente, o que nos convence com a sua simples presença, não requer nenhuma interpretação.277

Parece-nos que essa perspectiva é a que realmente interessa quando se fala de interpretação.

274 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 503. 275 Ver: STRECK, Lenio Luiz, Hermenêutica Jurídica (em) Crise, 2003, p. 203. 276 PALMER, Richard, Hermeneutics, 1969, p. 215.

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277 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Tradução Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998. p. 19.

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De fato, embora se reconheça a universalidade do fenômeno hermenêutico, há que se reconhecer, igualmente, que todo o estudo acerca da interpretação se dá com vistas à superação da estranheza e da má-compreensão. Não é por outra razão que a teoria hermenêutica sofreu grande influxo das discussões acerca da solução dos casos difíceis, nos quais há uma evidente dificuldade interpretativa. Dessa forma, afirmar apenas a necessidade da interpretação de qualquer acontecimento, mal representa o esforço teórico acerca da hermenêutica. Este se dá em função dos casos em que a compreensão não se apresenta ao intérprete de imediato. Nessa assentada, parece que o brocado in claris cessat interpretatio se compreendido a partir de uma perspectiva ampla, encontra-se efetivamente equivocado, na medida em que a interpretação é o único caminho para que o homem tenha acesso ao mundo; todavia, caso interpretado de forma estrita, no sentido de que regras que são automaticamente compreendidas não demandam um esforço interpretativo, tal brocado representa corretamente a realidade do fenômeno hermenêutico. Poder-se-ia objetar que o debate acerca da procedência ou improcedência do brocado ora em exame é em si desprovido de sentido, sendo irrelevante a distinção empreendida acima. Cremos, contudo, que é importante termos em conta quais são os problemas a serem solucionados pelos debates hermenêuticos, os quais, em nosso entender, devem focar-se na superação dos momentos nos quais se verifica uma estranheza entre autor e texto, o que justifica o foco da teoria hermenêutica na solução de tais casos.

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Gadamer irá alocar todos os “momentos” da relação intérprete-objeto no âmbito da hermenêutica. Assim, a subtilitas intelligendi (o poder de compreender), a subtilitas explicandi (o poder de interpretar) e a subtilitas applicandi (o poder de aplicar) estão todas contidas no fenômeno hermenêutico.279 Nas palavras do mestre alemão, “‘aplicar’ não é ajustar uma generalidade já dada antecipadamente para desembaraçar em seguida os fios de uma situação particular. Diante de um texto, por exemplo, o intérprete não procura aplicar um critério geral a um caso particular: ele se interessa, ao contrário, pelo significado fundamentalmente original do escrito de que se ocupa”.280 A inclusão da aplicação no processo hermenêutico é uma consequência lógica do abandono do objetivismo metodológico, já que a situação de fato que se põe ao intérprete será interpretada juntamente com o texto objeto da interpretação, implicando-se mutuamente e inserindo-se no âmbito da tradição (pré-compreensão) do intérprete. Como salienta Josef Bleicher, “a ‘aplicação’, como articulação entre o passado e o presente, surge como terceiro momento da unidade da compreensão, da interpretação e da aplicação, que constituem o esforço hermenêutico: a compreensão adequada de um texto, que corresponde às suas necessidades e mensagem, muda com a situação concreta a partir da qual tem lugar; é já sempre uma aplicação”.281 Esse aspecto da teoria de Hans-Georg Gadamer tem particular importância no âmbito jurídico, na medida em que se reconhecem as implicações entre

4. Interpretação e aplicação Uma das consequências do objetivismo metodológico antes descrito é a separação dos momentos de interpretação e aplicação das normas jurídicas. Com efeito, sob os influxos dessa linha de pensamento tem-se uma separação bem definida entre o intérprete, o objeto da interpretação e a questão que se pretende solucionar. Nesse cenário, o processo hermenêutico se daria em duas etapas distintas: em primeiro lugar, o intérprete desvelaria o sentido do texto legal para, então, aplicar a norma jurídica descoberta a uma determinada situação fática. É nesse sentido que se distinguem os momentos de interpretação e aplicação das normas jurídicas.278 278 Essa distinção entre interpretação e aplicação ainda encontra-se presente na doutrina. Nesse sentido, ver: MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1999, p. 6-8; FRANÇA, Limongi.

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Hermenêutica Jurídica. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 35 e 36; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. v. I. p. 134; FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1987. p. 185; ASCENSÃO, José de Oliveira, Introdução à Ciência do Direito, 2005, p. 591; MÁYNEZ, Eduardo García. Introducción al Estudio del Derecho, 2002, p. 319; COING, Helmut, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 340 e 341; DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 374; LOPES, Miguel Maria de Serpa, 1989, p. 111; RODRIGUES, Silvio, Direito Civil, 1989, p. 24; PECES-BARBA, Gregório; FERNÁNDEZ, Eusébio; ASÍS, Rafael. Curso de Teoría del Derecho. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 232. 279 Cf. GADAMER, Hans-Georg, Gadamer in Conversation, 2001, p. 37; GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 407. 280 GADAMER, Hans-Georg, O problema da consciência histórica, 1998, p. 57. Ver também: GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica. In: Verdade e Método II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 131. 281 BLEICHER, Josef, Hermenêutica Contemporânea, [s/d], p. 170.

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norma e fato, não havendo que se falar em uma interpretação isolada dos textos normativos, desconsiderando-se os fatos envolvidos em dado caso concreto.282

Existe um Princípio da Tipicidade no Direito Tributário? (2007)

5. Conclusão Diante das considerações apresentadas ao longo deste estudo, é de se concluir que os aportes de Hans-Georg Gadamer têm grande impacto sobre a compreensão acerca da hermenêutica jurídica. A compreensão da linguagem como mundo, extraída da filosofia heideggeriana, e o surgimento do homem como ser hermenêutico, coloca em cheque qualquer pretensão de distanciamento entre o intérprete e o objeto da interpretação (no caso jurídico, textos e fatos). Na medida em que o ser, com suas pré-compreensões e tradição, é a arena onde se realiza a compreensão, o objetivismo metodológico sustentado pelos formalismos jurídicos de mais variados matizes perde sustentação teórica. De caminho para o alcance da correção no âmbito jurídico, os métodos passam a veículos de acesso, os quais não podem garantir qualquer resultado. Essas considerações colocam-nos diante do horror da indeterminação. De fato, a ideia de que nenhuma verdade nos é dada conhecer no âmbito jurídico pode levar ao absurdo que qualquer uma seja a verdade. Parece-nos que aqui entra em cena a ideia de participação como instrumento de legitimação no campo da hermenêutica jurídica, tendo papel de destaque a teoria da argumentação, não como um método para alcançar a correção, mas como mecanismo de legitimação da interpretação alcançada.

1. Introdução A tipicidade, assim como o estudo dos tipos, têm tido pouca atenção dos juristas brasileiros. Salvo os penalistas e tributaristas, poucos são os estudiosos que se dedicam à análise da matéria. No campo tributário, ao qual se devotará este estudo, o formalismo jurídico transformou a tipicidade em sinônimo de determinação e o tipo em sinônimo de conceito determinado. A equivocidade destas noções de tipicidade e tipo foi evidenciada na tese de doutoramento da Prof. Misabel de Abreu Machado Derzi, tornada pública no ano de 1988,283 e vem sendo sustentada de forma irrefutável pelo Prof. Ricardo Lobo Torres, em diversos de seus trabalhos.284 Mais recentemente, importantes colaborações ao estudo da matéria foram apresentadas pelos Professores Marco Aurélio Greco,285 Humberto Ávila286 e Luís Eduardo Schoueri.287 Quer-nos parecer que o desconhecimento da doutrina brasileira acerca da teoria da tipicidade e dos tipos é o que levou ao enclausuramento dessas categorias jurídicas nos Direitos Penal e Tributário. Tal circunstância leva o jurista a uma miopia teórica, na medida em que as normas jurídicas que compõem os diversos “ramos” jurídicos contêm tipos, embora tal circunstância não seja identificada, enquanto que aquelas áreas onde 283 DERZI, Misabel de Abreu Machado Derzi. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. O trabalho foi reeditado no ano de 2008.

282 Nas palavras de Eros Grau: “Interpretação e aplicação não se realizam autonomamente. O intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso dado; a interpretação do direito consiste em concretar a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação. Assim, existe uma equação entre interpretação e aplicação: não estamos aqui diante de dois momentos distintos, porém frente a uma só operação. Interpretação e aplicação consubstanciam um processo unitário, se superpõem” (Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 76). Ver também: STRECK, Lenio Luiz, O Efeito Vinculante das Súmulas e o Mito da Efetividade: Uma Crítica Hermenêutica, 2005, p. 162.

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284 Ver, principalmente: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 468-512; TORRES, Ricardo Lobo. O Princípio da Tipicidade no Direito Tributário. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 235, jan.-mar. 2004, p. 193-232. 285 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 128-149. 286 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 165-201. 287 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 242-261.

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há uma teoria da tipicidade, notadamente o Direito Tributário, muitas vezes trabalham com noções impróprias do que seriam tipicidade e tipo jurídico. Dito isto, o propósito deste breve estudo pode ser resumido nos seguintes pontos: • esclarecer as noções de tipicidade e tipo, apresentando os traços característicos dos tipos jurídicos; • verificar se há no Direito Tributário brasileiro um princípio da tipicidade e em que consiste a tipicidade tributária; • examinar as peculiaridades hermenêuticas dos tipos jurídicos. Iniciemos, portanto, pelo estudo, mesmo que perfunctório, da teoria da tipicidade e dos tipos.

2. Tipicidade e tipo na teoria geral do direito A teoria da tipicidade e dos tipos jurídicos foi desenvolvida no Direito Tributário brasileiro a partir da ideia de que o tipo seria uma descrição abstrata e fechada de uma dada hipótese a qual, vertida em linguagem normativa, determina uma consequência jurídica, enquanto a tipicidade seria uma característica do fato concreto em que se verificam todos os elementos descritos na norma legal. Surgem daí a noção de tipo fechado, o qual daria a todos aqueles sujeitos à regra legal uma segurança jurídica absoluta no sentido de possibilidade de previsão de sua incidência concreta, e de tipicidade, como necessidade de uma continência absoluta do fato ocorrido na descrição legal abstrata. Nota-se, portanto, que da forma como corriqueiramente exposta pela doutrina pátria a tipicidade estaria presente tanto no momento da criação da norma jurídica (equivalendo aqui à determinação) quanto no instante de sua interpretação/aplicação (adequação do fato concreto à descrição abstrata).

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Nesse sentido é o entendimento manifestado por Alberto Xavier,288 Sacha Calmon Navarro Coêlho289 e Roque Antônio Carraza,290 apenas para destacarmos alguns dos principais tributaristas que defendem tal entendimento. A divergência fundamental entre a linha teórica seguida neste trabalho e a acima exposta encontra-se nas características conferidas ao tipo jurídico. Com efeito, na medida em que se buscou um fechamento e uma determinação do tipo jurídico acabou-se por transformá-lo em um conceito determinado, transfigurando a sua natureza jurídica. De fato, conforme bem destaca Ricardo Lobo Torres, “tipo é a ordenação de dados concretos existentes na realidade segundo critérios de semelhança. Nele há abstração e concretude, pois é encontrado assim na vida social como na norma jurídica. Eis alguns exemplos de tipo: empresa, empresário, trabalhador, indústria, poluidor. O que caracteriza o tipo ‘empresa’ é que nele se contêm todas as possibilidades de descrição de suas características, independentemente de tempo, lugar ou espécie de empresa. O tipo representa a média ou a normalidade de uma determinada situação concreta, com as suas conexões de sentido. Segue-se, daí, que a noção de tipo admite as dessemelhanças e as especificidades desde que não se transformem em desigualdade ou anormalidade”.291 A professora Misabel de Abreu Machado Derzi, a qual, como dito, é autora do trabalho mais completo acerca do tipo jurídico que conhecemos, aduz que “tipificar tem o sentido amplo de abstrair as particularidades individuais, para colher o que é comum ou repetitivo. Tipo será então o que resultar desse

288 XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 72-73; XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001. p. 17-20. 289 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O Princípio da Legalidade. O Objeto da Tutela. In: PIRES, Adilson Rodrigues; TÔRRES, Heleno Taveira (Orgs.). Princípios de Direito Financeiro e Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 626-629; COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 196-202. 290 CARRAZZA, Roque Antonio. O Princípio da Legalidade e a Faculdade Regulamentar no Direito Tributário. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Org.). Tratado de Direito Constitucional Tributário: Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 523; CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 398-399. 291 TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários, 2005, p. 469 e 470.

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processo de abstração generalizante, vale dizer, a forma média ou frequente, ou aquela especialmente representativa, ou ainda, o padrão normativo ideal”.292 Daí a observação de Karl Larenz no sentido de que “o tipo não se define, descreve-se. Não se pode subsumir à descrição do tipo; mas pode-se, com sua ajuda, ajuizar se um fenômeno pode ou não integrar-se no tipo”.293 Um tipo, portanto, é formado pela conjunção de características retiradas da realidade, podendo integrar o antecedente e o conseqüente das normas jurídicas. Nas palavras de Arthur Kaufmann, “o tipo constitui a altura média entre o geral e o particular, é comparativamente um concreto, um universale in re. Assim, o tipo se distingue, por parte, do conceito abstrato-geral, que se define através de um número limitado de características isoladas e que, portanto – de acordo com Kant -, são contrárias à intuição. O tipo com sua grande proximidade à realidade, com sua claridade gráfica e com sua objetividade, pelo contrário, não se pode definir, mas tão somente ‘explicitar’, tem, com efeito, um núcleo fixo, mas não possui fronteiras fixas, assim que dos ‘traços’ característicos de um tipo podem faltar um ou outros sem que seja necessário questionar a tipicidade de determinado suposto fático”.294 Jurista que prestou grande colaboração ao estudo dos tipos foi Georg Jellinek. Em sua exposição, parte Jellinek da noção de “tipos ideais”, os quais se podem “compreender no sentido de ser a expressão da mais perfeita essência do gênero”.295 Ainda segundo o autor “este ‘tipo ideal’ tem um valor essencialmente teleológico. É o τέλος a pugna por trazer à realidade todas as coisas, todos os fenômenos humanos; não é algo que é, mas sim que deve ser, e por isso ao mesmo tempo medida de valor do dado; o que lhe é conforme é bom e tem somente por ele direito de existir e a estender-se, o que não concorda com ele deve ser rechaçado e superado”.296

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Todavia, não são os “tipos ideais” a base do pensamento tipológico de Jellinek. De fato, afirma o autor que “por grande que seja o valor destes ‘tipos ideais’ para a ação, é muito insignificante seu alcance quando se trata do conhecimento teórico-científico, pois o objeto da ciência teórica o constitui o ser, não o dever ser, o mundo dado, não um a criar”.297 Georg Jellinek passa a trabalhar, então, com o que denomina os “tipos empíricos”, estes sim correspondentes à ideia de tipo sustentada nas anteriores linhas. Segundo o autor “o ‘tipo empírico’ se diferencia fundamentalmente do ‘tipo ideal’ em que não surge ele da exigência de expressar um ser objetivo que transcenda a experiência; significa tão somente a unificação de notas entre os fenômenos, unificação que depende do ponto de vista que adote o investigador. Mediante ele ordenamos a variedade dos fenômenos ao extrair deles o que lhes é comum logicamente. Este ‘tipo’ é uma abstração que na mente do investigador se aperfeiçoa e que frente à pluralidade indefinida de fenômenos permanece como o real”.298 Aspecto importante dos tipos, apresentado por Jellinek, é sua característica pro futuro, já que mudanças nos dados a serem considerados podem fazer com que determinado fato, antes típico, o deixe de ser, ou com que novo fato, impensável anteriormente, amolde-se às características típicas e, portanto, ao tipo.299 Partindo das considerações anteriores, é possível destacar como características do tipo jurídico a concretude e a abstração, na medida em que os mesmos são a conjugação, no plano abstrato, de dados empíricos. Outra característica importante dos tipos é a abertura. A expressão “tipo fechado”, como significativa de “tipo determinado”, segundo a qual caberia ao intérprete/aplicador apenas subsumir os fatos ocorridos é uma contradição de termos.300 297 JELLINEK, Georg, Teoría General del Estado, 2000, p. 80. 298 JELLINEK, Georg, Teoría General del Estado, 2000, p. 80-81.

292 DERZI, Misabel de Abreu Machado, Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, 1988, p. 47.

299 JELLINEK, Georg, Teoría General del Estado, 2000, p. 82-83.

293 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 307.

300 Ricardo Lodi Ribeiro destaca a abertura dos tipos e as consequências de tal característica no campo de sua interpretação: “Partindo ainda da distinção que Larenz oferece entre conceito abstrato e tipo, não é fácil perceber as dificuldades teóricas por que passa a teria da tipicidade fechada, ao defender a subsunção do fato imponível à hipótese de incidência. Sendo a norma tipológica aberta à realidade social e econômica, não ocorre a subsunção, fenômeno peculiar ao conceito. Mas a coordenação do fato ao tipo. Segundo Larenz, o ideal em um sistema jurídico seria a subsunção de todos os casos jurídicos a conceitos legais. Sendo esse ideal inatingível, não tendo sido alcançado sequer no auge da jurisprudência dos conceitos, surge a necessidade de, na maioria dos casos, o legislador lançar mão de tipos, que muitas vezes revelam uma pauta de valores que carecem de preenchimento. Afinal, são eles capazes, ao contrário dos conceitos abstratos, de coordenar a conduta humana em toda a sua riqueza

294 KAUFMANN, Authur. Filosofia del Derecho. Tradução Luis Villar Borda. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1999. p. 250. 295 JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Tradução Fernando de los Ríos. México: Fondo de Cultura Económica, 2000. p. 79. 296 JELLINEK, Georg, Teoría General del Estado, 2000, p. 79. Também Max Weber, trabalha a noção de tipos ideais, cf. WEBER, Max. Economia e Sociedade. 4. ed. Tradução Regis Barbosa e Karin Elsabe Barbosa. São Paulo: UNB, 2004. v. I. p. 4-13.

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Segundo Humberto Ávila, “a abertura do tipo está, então, caracterizada pelos seguintes elementos: a prescindibilidade de alguns elementos distintivos, por serem prescindíveis alguns elementos distintivos no tipo; o sopesamento, que mostra que os elementos distintivos individuais não podem ser definidos nas suas relações entre si, e que a coordenação deve ser efetuada som um ponto de vista valorativo”.301 Os tipos não são fechados ou determinados. A adequação típica se dá no campo hermenêutico, cabendo ao intérprete/aplicador verificar se um determinado dado empírico reveste-se das características do tipo legal. É consequência desta característica que o tipo ostente um traço evolutivo, alterando-se conforme o ambiente social cambia. É por isso que fatos típicos em um primeiro momento, podem eventualmente deixar de sê-lo, da mesma forma que fatos podem passar a ser típicos com o decurso do tempo, com a atualização dos traços que tornam determinado fato típico. Jellinek brinda-nos com um exemplo extraído da teoria do Estado. Segundo ele, com a fundação dos Estados Unidos da América forjou-se o tipo do estado federal, o qual teria entre suas características uma independência forte entre União e Estados. Posteriormente, com a criação das federações suíça e alemã, o tipo estado federal teve que ser atualizado, de forma a englobar também estes modelos, que possuíam traços distintos do norte-americano.302 Essa característica tem importante função na seara fiscal. Como destaca José Marcos Domingues de Oliveira, “a realidade jurídico-tributária é sabidamente conexa à cambiante realidade econômica, pois a tributação ou incide sobre fatos-signos de riqueza ou é graduada em virtude dela, daí porque se entende ser a correspondente linguagem naturalmente e necessariamente aberta em função da evolução dos fatos e da ciência”.303

e mutabilidade” (RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 32-33). Sobre a abertura dos tipos, ver também: SCHOUERI, Luís Eduardo, Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica, 2005, p. 244. 301 ÁVILA, Humberto, Sistema Constitucional Tributário, 2004, p. 194.

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Como dito ao princípio deste trabalho, essas considerações sobre os tipos jurídicos são um eco das ponderações trazidas por Misabel Derzi em seu estudo sobre os tipos jurídicos. Todavia, como também tivemos a preocupação de pontuar, nossas conclusões divergem daquelas sustentadas pela jurista mineira. A razão da dita divergência consiste no fato da Prof. Misabel Derzi defender que, dadas as características dos tipos jurídicos, acima enunciadas, estariam os mesmos banidos do Direito Tributário, no qual prevaleceria a “tendência conceitual classificatória”. Em suas palavras: • o tipo, na acepção técnica que lhe empresta a Metodologia moderna, como ordem fluida que aceita as transições contínuas e graduais, opõe-se a conceito determinado classificatório e, como tal, atende melhor aos princípios jurídicos de funcionalidade e permeabilidade às mutações sociais, assim como à igualdade material ou Justiça. Em contrapartida, a segurança jurídica, a uniformidade e a praticabilidade na aplicação da norma são alcançadas de modo mais satisfatório por meio de conceitos determinados, cujas notas irrenunciáveis fecham-nos rigidamente, em estruturas que almejam a estabilidade das relações jurídicas; [...] • considerando as tensões sempre existentes entre princípios jurídicos como segurança e justiça, consevadorismo – estabilidade das relações jurídicas e permeabilidade às mutações sociais, individualidade e aplicação uniforme da lei em massa, reconhecemos, na Ciência do Direito Tributário, ser prevalente a tendência conceitual classificatória; [...] • a lei tributária modela tributos, classificando-os esgotantemente, especificando-os em espécies, que não podem ser compreendidas pela Ciência como tipos, vale dizer, ordens flexíveis e graduáveis, as quais, por comparação, levariam à aceitação de novas formas mistas deduzidas e descobertas, implicitamente no ordenamento ou criadas no tráfego jurídico pela prática administrativa. [...].304

302 JELLINEK, Georg, Teoría General del Estado, 2000, p. 82. 303 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Legalidade Tributária. O Princípio da Proporcionalidade e a Tipicidade Aberta. In: CARVALHO, Maria Augusta Machado de (Coord.). Estudos de Direito Tributário em Homenagem à Memória de Gilberto de Ulhôa Canto. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 213. Ver, ainda: TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 325-326.

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Nossa discordância com a posição defendida por Misabel Derzi se dá em dois momentos. 304 DERZI, Misabel de Abreu Machado, Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, 1988, p. 286-287.

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Em primeiro lugar, como salientei em outros trabalhos,305 não me parece que os conceitos sirvam para se alcançar o grau de determinação buscado pela professora. Como noticiam Karl Engisch306 e Arthur Kaufmann,307 conceitos absolutamente determinados são difíceis de serem encontrados, somente figurando como tais aqueles conceitos estritamente numéricos. Dessa forma, deixando de lado a vaguedade natural da linguagem,308 é se de observar que tendo o Direito Tributário necessariamente que trabalhar com conceitos indeterminados fica comprometida esta certeza e previsibilidade absolutas sustentadas pela ilustre jurista. 309 305 Ver: SILVA, Sergio André R. G. da. Meios Alternativos de Solução de Conflitos no Direito Tributário Brasileiro. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 122, nov. 2005, p. 90-106; SILVA, Sergio André R. G. da. A Tributação na Sociedade de Risco. In: PIRES, Adilson Rodrigues; TÔRRES, Heleno Taveira (Orgs.). Princípios de Direito Financeiro e Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 192-197; SILVA, Sergio André R. G. da. A Hermenêutica Jurídica sob o Influxo da Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 64, set.-out. 2005, p. 289. 306 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução J. Baptista Machado. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 208 e 209. 307 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Tradução Luis Villar Borda e Ana María Montoya. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1999. p. 108. 308 Sobre a vaguedade dos conceitos jurídicos vale a pena citar a seguinte passagem do mestre argentino Genaro Carrió: “Há outros casos em que a incerteza na aplicação ou interpretação de certos termos não brota de que não saibamos em que sentido tenham sido usados, porque sobre isso não temos dúvidas. Aqui ocorre o seguinte. Estou diante de um caso ou exemplar concreto, cujas características individuais pude examinar em detalhe, contudo apesar de todos meus empenhos não sei se se trata de um exemplo da palavra geral ‘X’ , isto é, de um caso de aplicação dela. Minha dúvida não se origina de falta de informação sobre o objeto; sei tudo o que necessito saber dele. Ela se origina em que não sei bem onde termina o campo de aplicação da palavra ‘X’ e este caso para encontrar-se nas proximidades desses mal-desenhados limites, cuja localização não posso precisar. Mais fundamental ainda: tenho a impressão de que carece de sentido falar aqui em limites precisos” (CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguage. 4. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994. p. 31). 309 Buscando respaldo, uma vez mais, nas lições do Professor Ricardo Lobo Torres, há que se reconhecer que com a superação do positivismo jurídico e a compreensão de que a segurança jurídica deve ser ponderada com a justiça, “supera-se também a crença algum tanto ingênua na possibilidade de permanente fechamento dos conceitos tributários, como se nesse ramo do direito houvesse a perfeita adequação entre pensamento e linguagem e se tornasse viável a plenitude semântica dos conceitos. O direito tributário, como os outros ramos do direito, opera também por conceitos indeterminados, que deverão ser preenchidos pela interpretação complementar da Administração, pela contra-analogia nos casos de abuso do direito e pela argumentação jurídica democraticamente desenvolvida” (TORRES, Ricardo Lobo. Legalidade Tributária e Riscos Sociais. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 59, ago. 2000, p. 96). Sobre a utilização de conceitos indeterminados no campo do Direito Tributário, ver: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 44; OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Legalidade

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Em um segundo plano, parece-me que a assertiva de que o Direito Tributário não trabalha com tipos jurídicos não reflete a realidade, podendo ser afastada mesmo no plano empírico. Ao se passarem os olhos pela legislação tributária pátria encontram-se diversos exemplos de tipos jurídicos, como serviço, produto industrializado, receita financeira, estabelecimento industrial, estabelecimento equiparado a industrial, estabelecimento comercial, operações de crédito, propriedade, mercadoria, etc. Tomando-se por exemplo o significante mercadoria, verifica-se estar-se diante de um tipo e não de um conceito fechado. Tanto assim que este tipo tem sofrido uma verdadeira revolução com o desenvolvimento da informática e o processo de abstração pela qual estão passando os bens antes corpóreos. Veja-se bem: não só se está diante de um tipo, como estamos testemunhando sua evolução diante de nossos olhos. Essas alterações trazem consigo também as discussões quanto ao tipo estabelecimento comercial. Caso se estivesse aqui diante de um conceito determinado cujas notas se esgotassem no texto legal jamais seria possível discutir se um sítio na internet poderia ou não ser considerado um estabelecimento. Se grandes são as diferenças entre os tipos e os conceitos fechados, mais fluida é a distinção entre aqueles e os conceitos indeterminados. Como anota Misabel Derzi, com fulcro nas lições de Detlev Leenen, “a distinção entre tipo e conceito é gradual e tipológica. Entre os dois polos identificáveis nitidamente – de um lado, o tipo puro e, de outro, o conceito classificatório fechado – surgem várias transições fluidas: conceitos mais ou menos determinados, conceitos que pedem valoração ou preenchimento de significação etc.”.310 A demonstração de que tipos e conceitos podem comungar das mesmas características dos tipos foi feita por Humberto Ávila em seu Sistema Constitucional Tributário. Ao cabo de sua exposição, conclui o Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Assim devemos registrar como resultado que o tipo não representa nenhuma forma autônoma de pensamento que possa ser confrontada com o conceito. Se podemos representar o tipo como uma subespécie dos

Tributária - O Princípio da Proporcionalidade e a Tipicidade Aberta. Revista de Direito Tributário, n. 70, 2003, p. 114 e 115; SCHOUERI, Luís Eduardo, Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica, 2005, p. 250. 310 DERZI, Misabel de Abreu Machado, Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, 1988, p. 62.

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conceitos jurídicos, seja como conceito pouco nítido de classe com elementos distintivos graduáveis e prescindíveis, seja simplesmente como conceito de tipo, ou ainda como uma forma de pensamento que se contrapõe ao conceito, isso parece de importância secundária.311

Assim sendo, temos que os tipos são apenas mais uma das formas de significantes à disposição do legislador para o exercício de sua função legislativa. Como bem destaca o Prof. Ricardo Lobo Torres, para elaborar uma lei o legislador tributário pode se valer de conceitos determinados, conceitos indeterminados, cláusulas gerais ou tipos, conforme o caso,312 não havendo limitação quanto à sua liberdade para construção dos textos legais. Seguindo essa linha de entendimentos, da mesma forma que de acordo com a doutrina tradicional, falar-se-ia de tipicidade tanto no momento de criação dos tipos legais pelo legislador, como no momento de interpretação/aplicação das normas jurídicas, em que se buscaria o enquadramento dos fatos concretos nos tipos. Neste último caso, somente faria sentido falar em tipicidade se a norma legal for composta por tipos jurídicos.

3. O princípio da tipicidade no Direito Tributário Conforme antes assinalado, pela pena de grandes tributaristas pátrios a tipicidade foi equiparada, por um lado, ao princípio determinação que, segundo a doutrina predominante, requer que “os elementos integrantes do tipo sejam de tal modo precisos e determinados na sua formulação legal que o órgão de aplicação do direito não possa introduzir critérios subjetivos de apreciação na sua aplicação concreta”.313 De outro lado, entende-se a tipicidade como necessidade da adstringência do intérprete/aplicador do texto legal. Contudo, como destacado anteriormente, tipicidade e determinação não representam realidades equivalentes, mas antagônicas. Partido das premissas assentadas até aqui neste estudo parece-me mesmo que a própria menção a um princípio da tipicidade no Direito Tributário carece de sentido. 311 ÁVILA, Humberto, Sistema Constitucional Tributário, 2004, p. 199. 312 TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários, 2005, p. 487. 313 XAVIER, Alberto, Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, 2001, p. 19.

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Com efeito, adotando-se, por exemplo, uma definição de princípio como a de Robert Alexy, para quem os princípios jurídicos são mandamentos de otimização que determinam que um estado de coisas seja alcançado sempre que possível, respeitas as limitações fáticas e jurídicas, não se justificaria falarmos em um princípio da tipicidade tributária.314 Tendo em conta esta noção de princípio teríamos sim um princípio da determinação, como um mandamento no sentido de que o legislador tributário busque, respeitadas as limitações fáticas e jurídicas, editar textos legais onde os elementos da regra de incidência sejam determinados e acessíveis ao contribuinte. Porém, veja-se bem, está-se aqui diante de um princípio jurídico e não de uma regra. Da forma como a doutrina tributária muitas vezes trata a questão da determinação das normas fiscais parece que se pretende a existência de uma regra de determinação, no sentido de que ou o texto é determinado ou é inválido. Tal regra de determinação não existe, devendo-se considerar a mesma como um princípio, na forma alexiana. Lição nesse sentido encontra-se na obra de Humberto Ávila, que, após examinar o conteúdo possível da determinação das normas fiscais, aduz que “em vez do mandamento da determinação ou da ‘tipicidade’ da tributação, propõe-se aqui o ‘princípio da determinabilidade fática’. Seu significado é o seguinte: os elementos essenciais da constitucionalmente pressuposta relação tributária devem resultar com a maior precisão possível de meio de elementos distintivos da hipótese de

314 Segundo Alexy, “o ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não apenas depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas” (ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Tradução Ernest Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p .86). Com suas próprias peculiaridades, lição semelhante é encontrada em Ronald Dworkin, principalmente na distinção apresentada entre uma política e um princípio, sendo que este estabeleceria um objetivo a ser alcançado por ser uma exigência de justiça ou alguma outra dimensão moral (DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1999. p. 22). Sobre o tema, ver: HECK, Luís Afonso. Regras, Princípios Jurídicos e sua Estrutura no Pensamento de Robert Alexy. In: LEITE, George Salomão (Coord.). Dos Princípios Constitucionais: Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 52-100; ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 15-77; SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 29-37; TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários, 2005, p. 275-283.

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incidência de uma lei, cuja aplicação depende de uma constatação concreta da combinação do significado preliminar do texto da norma e da situação de fato”.315 Pode-se afirmar, portanto, que o Direito Tributário encontra-se alicerçado sobre o princípio da determinação, sendo que “só caberia dizer-se que o princípio da determinação envolve o da tipicidade quando a hipótese de incidência se expressasse através de tipo. Mas, nesse caso, são existiria lugar para a tipicidade fechada”.316 A tipicidade tributária, portanto, teria lugar em dois momentos: na edição de normas tributárias que utilizem tipos em seus textos e no momento de interpretação/aplicação de tais normas. No primeiro momento o legislador vai buscar na realidade os dados empíricos que compõem o tipo. Como destaca Ricardo Lobo Torres, “a tipificação se refere à atividade legislativa de formação do tipo, na procura da sua tipicidade, ou seja, consiste no recorte da realidade para a ordenação de dados semelhantes”.317 No segundo momento tem-se a atividade de adequação típica, ou seja, de adequação do fato concreto ao tipo legal. Ressalte-se uma vez mais que, neste caso, somente tem sentido falar em tipicidade quanto o texto for composto de um tipo jurídico, carecendo de razoabilidade falar-se em tipicidade na adequação de fato concreto a conceito classificatório.318

4. A interpretação dos tipos jurídicos Partindo das premissas apresentadas acima, resta evidente que os tipos jurídicos não são peculiaridade dos Direitos Tributário e Penal, sendo os mesmos uma das matérias-primas que o legislador tem à sua disposição para a construção dos textos legais, além, por exemplo, dos conceitos determinados e indeterminados e das cláusulas gerais. O principal problema dessa desconsideração dos tipos como categoria jurídica peculiar, é que não se atenta para a o fato de que os mesmos, em razão de sua abertura, submetem-se também a um peculiar método hermenêutico. 315 ÁVILA, Humberto, Sistema Constitucional Tributário, 2004, p. 310. Ver, ainda: PAULSEN, Leandro. Segurança Jurídica, Certeza do Direito e Tributação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 97-98. 316 TORRES, Ricardo Lobo. O Princípio da Tipicidade no Direito Tributário. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 235, jan.-mar. 2004, p. 227. 317 TORRES, Ricardo Lobo, O Princípio da Tipicidade no Direito Tributário, 2004, p. 202.

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Com efeito, tendo em vista que os tipos são graduais, no sentido de que se compondo de dados característicos de um fato empírico permitem a existência, além das categorias típico e atípico, de uma zona cinzenta onde se encontrará fatos mais ou menos típicos, tem-se que a lógica clássica bivalente, utilizada na interpretação dos conceitos determinados, mostra-se insuficiente para tratarmos dos tipos jurídicos (como de resto também o é para a compreensão dos conceitos indeterminados). Como pontua Marco Aurélio Greco, em longa passagem abaixo transcrita: Esta dificuldade enfrentada pela doutrina tem sua origem na premissa de que seria possível reconduzir roda realidade sempre a duas categorias opostas e, por consequência, a interpretação deveria orientar-se no sentido de identificar a qual delas pertenceria o objeto. Esta ideia de interpretar a realidade, inclusive jurídica, a partir de categorias opostas (lícito/ilícito; direito interno/ internacional; vigência/não-vigência; tributo/não-tributo, etc.) retrata um modelo de compreensão do mundo apoiado numa lógica bivalente que, em última análise, encontra sua origem no princípio da não contradição formulado por Aristóteles. Admitida a ideia de uma lógica bivalente é, então, possível criar uma tabela de verdade das afirmações feitas sobre a realidade. De fato, se algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo, determinada conduta, se for lícita, não será ao mesmo tempo ilícita, e assim por diante. Ocorre que esta visão bivalente está passando por uma profunda revisão. Todo modelo teórico de compreensão da realidade implica uma simplificação do objeto para fins de permitir seu exame, a partir de elementos que constituiriam seu núcleo essencial. Esta lógica bivalente (sim/não; certo/errado; 0/1 etc.) está se demonstrando insuficiente ou inadequada para explicar a realidade por corresponder a uma simplificação exagerada de um mundo complexo (simplificação, portanto, irreal). Aliás, inúmeras são as dificuldades que uma lógica bivalente traz ao intérprete do ordenamento jurídico positivo (ou seu aplicador) que pretenda utilizá-la rigorosa e cegamente diante de uma situação concreta. Basta lembrar que, se a experiência jurídica se resumisse a uma lógica formal redutível a padrões absolutos de verdade, não existiria uma quantidade tão elevada de divergências e litígios. Atualmente, estão em andamento vários estudos teóricos que partem de uma lógica não bivalente e que se reúnem no conjunto que se convencionou denominar de “lógicas deviantes” a que pertence o sistema de lógica fuzzy, particularmente adequado para explicar a experiência jurí-

318 TORRES, Ricardo Lobo, O Princípio da Tipicidade no Direito Tributário, 2004, p. 211.

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dica, pois ela parte da ideia da imprecisão da linguagem e de que – por isso – os conceitos sempre apresentam certa margem de vaguedade.319

A lógica fuzzy que, segundo Marco Aurélio Greco, seria adequada para tratar com a indeterminação da linguagem, tem também importante papel na interpretação dos tipos. Ao descrever o funcionamento da lógica fuzzy, Susan Haack explica que o mesmo se dá aplicando-se variáveis fuzzy a conceitos não-fuzzy.320 Tomando por exemplo o significante verdade, partindo da lógica clássica bivalente trabalharíamos com as noções de verdadeiro/falso. Já a lógica fuzzy trabalha com as noções de muito falso, pouco falso, falso, pouco verdadeiro, muito verdadeiro, etc. Da mesma forma se dá a interpretação dos tipos jurídicos (e também dos conceitos indeterminados), já que do típico ao atípico, há uma grande variável de possibilidades. A aplicação da lógica fuzzy no direito não escapou à análise de um jusfilósofo como Arthur Kaufmann, que afirma que “nos últimos tempos se desenvolve uma lógica, sobretudo no campo da informática jurídica, que caracteristicamente se denomina fuzzy logic, uma lógica com perfis difusos, não claramente determinados, mediante os quais se busca sobretudo assenhorar-se dos conceitos indeterminados, quiçá também da analogia. De fato, isto tampouco é novo: já Gustav Radbruch havia trabalhado para que no direito, junto com as classes de conceitos de tudo ou nada admitidos, entrassem numerosos conceitos que permitem um compromisso entre o mais ou menos, do que segue muitas vezes que não há uma única solução correta, mas muitas soluções ‘corretas’, isto é, soluções ‘defensáveis’, plausíveis, suscetíveis de consenso”.321 Kaufmann menciona expressamente a aplicação dessas novas formas de raciocínio jurídico aos tipos.322 Verifica-se, assim, que o reconhecimento da presença dos tipos no direito, com o exame da sua peculiar forma de interpretação/aplicação, representa um importante revés às doutrinas formalistas, principalmente no Direito Tributário. Ideias como segurança jurídica absoluta no texto legal, a existência de uma 319 GRECO, Marco Aurélio, Planejamento Tributário, 2004, p. 374-375. 320 HAACK, Susan. Deviant Logic. Fuzzy Logic. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. p. 234. 321 KAUFMANN, Arthur, Filosofía del Derecho, 1999, p. 82.

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única solução correta como decorrência do processo hermenêutico, interpretação/aplicação das normas tributárias com base na lógica bivalente do aplicável/ não-aplicável, válido/inválido, mostram-se, então, completamente insuficientes, requerendo uma revisão no modo de pensar do jurista.

5. Conclusão O propósito deste trabalho foi o exame das noções de tipo e tipicidade, a fim de demonstrar seus traços característicos e expor uma patologia da teoria jurídica pátria, que no mais das vezes confunde tipo com conceito, tipicidade com determinação e adequação típica. Creio ter demonstrado, com fundamento principalmente nas lições do Professor Ricardo Lobo Torres, que tal confusão é improcedente e que a mesma impede que o intérprete/aplicador das normas jurídicas tenha possibilidade de compreender os textos legais formulados através de tipos jurídicos. Partindo dos exames empreendidos, concluí não haver um princípio de tipicidade no Direito Tributário, mas sim princípios, na concepção alexiana, da determinação e da vedação à tributação por analogia. Nessa linha de entendimentos, a tipicidade tributária, que não seria um princípio jurídico, seria, de um lado, um instrumento à disposição do legislador no momento da criação do texto legal fiscal; e, de outro lado, uma exigência de remissão do fato concreto ao tipo previsto na norma (isso apenas e tão somente quando a norma for constituída por um tipo jurídico). Atreladas a esta compreensão dos tipos jurídicos estão as ideias a respeito de sua interpretação. Com efeito, tendo como premissa a noção de que um tipo é a conjunção abstrata de características de um determinado fato verificável empiricamente, na interpretação/aplicação dos fatos concretos ao tipo abstrato torna-se possível a identificação de uma variedade de possibilidades, que vão do atípico ao indubitavelmente típico. Essa circunstância abre espaço para a discussão acerca das chamadas lógicas deviantes, principalmente da lógica fuzzy, e seu papel na esfera jurídica. É importante que os juristas de todas as áreas tenham a percepção desses fenômenos, já que, como venho insistindo, os tipos não são uma peculiaridade dos Direitos Tributário e Penal, encontrando-se presentes nas normas dos mais diversos ramos jurídicos.

322 KAUFMANN, Arthur, Filosofía del Derecho, 1999, p. 250.

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Mudanças Legislativas e sua Força Persuasiva sobre o Passado: Os Exemplos do Ágio Interno e do Conceito de Receita Bruta (2015)

1. Introdução A cada inovação legislativa, os operadores do Direito Tributário questionam-se a respeito dos efeitos hermenêuticos das novas regras e a repercussão sobre o passado. Não estamos nos referindo aqui sobre o Direito Tributário Intertemporal e a retroatividade ou não das regras supervenientes para alcançar situações consumadas no passado, matéria disciplinada nos artigos 105 e 106 do Código Tributário Nacional. Assim, não nos ocuparemos das chamadas leis interpretativas, previstas no inciso I do artigo 106 do CTN. Cuidamos, isso sim, da utilidade interpretativa de novas regras sobre a interpretação dos dispositivos que as precederam. Dois exemplos servirão para ilustrar a questão posta neste texto. Recentemente, a Lei nº 12.973/14 (“Lei 12.973”) alterou as regras sobre a amortização fiscal do ágio, estabelecendo a vedação do chamado “ágio interno”, ou seja, o ágio gerado entre empresas de um mesmo grupo econômico. Logo surgiram os debates a respeito dos efeitos da nova regra como elemento de interpretação das regras anteriores, mais especificamente do artigo 7º da Lei nº 9.532/97 (“Lei 9.532”). A questão que se debate, portanto, é se a vedação agora estabelecida, a qual, salvo a opção prevista no artigo 75 da Lei 12.973, apenas entrou em vigor no dia 01 de janeiro de 2015, pode ser interpretada no sentido de que a geração de ágio intragrupo era permitida na legislação anterior (já que apenas agora está expressamente vedada). A mesma Lei 12.973 alterou a redação do artigo 12 do Decreto-Lei nº 1.598/77 (“DL 1.598”), modificando o conceito de receita bruta, para incluir no mesmo, além (i) do produto da venda de bens nas operações de conta própria; (ii) do preço da prestação de serviços em geral; e (iii) do resultado auferido nas operações de conta alheia; também (iv) as receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica não compreendidas nas mencionadas anteriormente. 111

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Sabe-se que, atualmente, a matéria relativa à inclusão das receitas operacionais da empresa323 no conceito de receita bruta, para fins de apuração da base de cálculo do PIS e da COFINS no regime cumulativo, encontra-se pendente de apreciação no Supremo Tribunal Federal324. Daí a pergunta: é possível argumentar que a redação da nova regra permite afirmar que, anteriormente à sua vigência, não havia permissão para a incidência das aludidas contribuições sobre esse tipo de receita? Percebe-se, portanto, que o objeto deste breve artigo será analisar a força persuasiva de uma nova lei sobre a interpretação da legislação anterior, buscando estabelecer um critério para determinar quando a lei nova poderá efetivamente servir de parâmetro para a (re)construção da norma jurídica baseada na legislação que lhe precedeu.

2. Em Busca de um Critério É bastante comum que, diante de uma nova lei, os operadores do direito tributário busquem a sua aplicação retroativa pela via interpretativa (obviamente, quando esta se mostra mais vantajosa). Se a lei mais recente traz dispositivo que confirma a posição anteriormente defendida pela Fazenda ou pelos contribuintes, muitas vezes estes se apressam em afirmar que a mesma nada mais fez do que declarar um comando que já estava previsto na legislação, sustentando seu caráter meramente interpretativo/declaratório e, portanto, seu efeito retroativo. Como já mencionamos, o exame das leis interpretativas foge ao escopo deste estudo. Aqui vale apenas lembrar que, segundo o inciso I do artigo 106 do CTN, as leis interpretativas tem que ser expressamente interpretativas. Ou seja, a aplicação deste dispositivo do CTN não pode ser inferida. Deve ser expressa. Deixando de lado as “leis interpretativas”, cabe-nos refletir sobre o que seria um critério adequado para a análise da força interpretativa de uma lei nova sobre a legislação que a precedeu, sendo certo que tal critério parece-nos partir da natureza e alcance da nova lei. Aqui, entendemos que é necessário fazer uma diferenciação entre situações onde a lei mais recente traz uma nova regulação sobre determinada maté-

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ria, daquelas onde se identifica uma alteração pontual em uma regulação que se mantém, em geral, inalterada. Vincente Ráo, analisando a questão das antinomias de segundo grau decorrentes da utilização dos métodos cronológico e de especialidade, traz-nos a seguinte lição: “Não é pelo fato de ser especial que a lei nova revoga a lei antiga de natureza geral; e, reciprocamente, não é apenas por ser geral que a disposição superveniente revoga a disposição particular e anterior. Para que a revogação se verifique, preciso é que a disposição nova, geral ou especial, altere explicitamente (revogação expressa) ou implicitamente (revogação tácita) a disposição antiga, referindo-se a esta, ou ao seu assunto, isto é, dispondo sobre a mesma matéria. Se as disposições nova e antiga (gerais ou especiais) não forem incompatíveis, podendo prevalecer uma e outras, umas a par de outras, não ocorrerá revogação alguma. Quando, porém, a lei nova regular por inteiro a mesma matéria contemplada por lei ou leis anteriores, gerais ou particulares, visando substituir um sistema por outro, uma disciplina total por outra, então todas as leis anteriores sobre a mesma matéria devem considerar-se revogadas.”325 (Grifo nosso)

Percebe-se, imediatamente, que esta passagem não se refere exatamente ao mesmo tema de que ora nos ocupamos. Contudo, ilustra uma situação onde o mesmo critério proposto acima foi utilizado. Para Vicente Ráo, uma lei posterior que traga uma “disciplina total” em relação a determinada matéria revoga todos os dispositivos anteriores sobre a mesma matéria, inclusive aqueles que, na sistemática anterior, eram considerados introdutores de regras especiais. Aplicando-se este critério à situação de que ora cuidamos, entendemos ser possível fazer um primeiro corte para afirmar o seguinte: Uma lei mais recente, que traga uma disciplina total nova sobre determinada matéria, não tem nenhuma relevância direta no que se refere à interpretação de dispositivos anteriores, sendo um elemento hermenêutico de reduzida importância argumentativa.

323 Que não decorrentes da venda de mercadorias, da prestação de serviços e de operações de conta alheia. 324 Ver o Recurso Extraordinário nº 659.412.

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325 RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 343.

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Observe-se que não se está afirmando que a nova disciplina não será um dos topoi a serem considerados pelo intérprete, no sentido da teoria tópica de Theodor Viehweg326. Como nos lembra Daniel Sarmento “o conceito de topoi é fundamental para a compreensão da tópica. Os topoi configuram lugares comuns na argumentação discursiva, que não vinculam o juiz, mas apenas e tão somente apresentam-lhe alternativas possíveis para a solução de determinado problema. São, em suma, diretrizes retóricas reveladas pela experiência, que objetivam servir de fio condutor para a descoberta de uma resposta razoável para o caso concreto. A decisão, de acordo com a teoria tópica, resulta no confronto dialético entre os diversos topoi pertinentes ao caso, devendo prevalecer aquele que contribuir para a construção da solução mais justa”. E continua o referido autor, “os topoi não são certos ou errados, mas apenas mais ou menos adequados para a solução de determinado problema”327. Seguindo esta orientação, a nova regra certamente poderá ser considerada pelo intérprete/aplicador como mais um elemento na construção de sentido a partir dos dispositivos que lhe antecederam. Contudo, tendo em vista o que foi afirmado acima, certamente um elemento de menor força persuasiva. A situação se altera naqueles casos onde a lei nova, ao invés de trazer uma nova disciplina a respeito de determinada matéria, mantém a disciplina anterior, lhe fazendo reduções, acréscimos ou modificações. Neste caso, uma alteração pontual pode dizer muito a respeito do alcance da(s) regra(s) prevista(s) até a entrada em vigor dessa nova lei, podendo-se afirmar, portanto, que: Uma lei mais recente, que traga reduções, acréscimos ou modificações a uma disciplina jurídica existente, trata-se de um elemento hermenêutico relevante para a interpretação dos dispositivos até então em vigor.

Veja-se que não se está afirmando, em absoluto, que nesses casos a alteração legislativa representará elemento inequívoco para a formação da convicção do intérprete/aplicador a respeito do conteúdo e alcance da legislação anterior. A posição

326 Sobre o tema, ver: VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução Tercio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979; ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 117-121. 327 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 129.

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aqui defendida é no sentido, apenas, de que neste caso a alteração legislativa terá um peso maior e, portanto, maior força persuasiva sobre o intérprete/aplicador.

3. Estudo dos Casos: Ágio Interno e Conceito de Receita Bruta À luz dos conceitos postos acima, retornamos aos casos práticos apresentados na introdução deste estudo: (i) os efeitos da Lei 12.973 sobre a discussão a respeito da legitimidade do chamado «ágio interno» na sistemática da Lei 9.532; e (ii) os efeitos da alteração do conceito de receita bruta, promovido pela mesma Lei 12.973, sobre a interpretação da Lei nº 9.718/98, no que se refere ao alcance da hipótese de incidência do PIS e da COFINS na sistemática cumulativa de apuração das contribuições.

3.1. Controvérsias sobre Ágio Interno e os Efeitos da Lei 12.973 A amortização fiscal do ágio pago na aquisição de participações societárias é certamente um dos temas sobre os quais mais se escreveu nos últimos anos, sendo objeto de alguns dos casos mais relevantes em discussão no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF. Este não é o local para voltarmos à análise de todas as questões controvertidas relacionadas à amortização fiscal do ágio sob o regime do artigo 20 do DL 1.598, em sua redação anterior à Lei 12.973, e dos artigos 7º e 8º da Lei 9.532. Para um exame dessas questões fazemos referência, por todos, ao estudo de Luís Eduardo Schoueri328. Entre os temas controvertidos sobre a sistemática de aproveitamento do ágio, anterior à Lei 12.973, está o chamado “ágio interno”. A doutrina, de forma majoritária, posiciona-se no sentido de que, no modelo anterior, não haveria restrição ao aproveitamento de ágio nas operações de compra e venda de participações societárias entre empresas do mesmo grupo econômico. Citando uma vez mais Luís Eduardo Schoueri, temos sua opinião no sentido de que “em princípio, não há, na legislação tributária, qualquer dispositivo que impeça o reconhecimento e a utilização do ágio gerado internamente, entre partes relacionadas”329.

328 SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em Reorganizações Societárias (Aspectos Tributários). São Paulo: Dialética, 2012. 329 SCHOUERI, Luís Eduardo, Ágio em Reorganizações Societárias (Aspectos Tributários), 2012, p. 112.

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Uma das grandes alterações trazidas pela Lei 12.973 foi promovida exatamente sobre o regime de aproveitamento fiscal do antigo ágio, agora segregado em “mais-valia” e “ágio por rentabilidade futura (goodwill)”. Analisando-se as regras previstas na Lei 12.973, inclusive aquelas que alteraram o artigo 20 do DL 1.598, percebe-se que a referida lei trouxe uma disciplina integralmente nova, distinta da anterior, a respeito da amortização fiscal do ágio. As novas regras incorporaram, à legislação tributária, padrões de reconhecimento e mensuração do ágio próximos àquele encontrado na contabilidade segundo os IFRS (Cf. Pronunciamento CPC nº 15-R1). As novas regras sobre utilização fiscal da mais-valia e do goodwill, previstas nos artigos 20 e 22 da Lei 12.973, apenas autorizam tal utilização no caso de aquisição de participação societária entre partes não dependentes. Dessa forma, nas operações realizadas após a entrada em vigor da Lei 12.973 está vedada a utilização fiscal da mais-valia e do ágio de rentabilidade futura (goodwill) decorrente de operações entre partes dependentes330. Não nos interessa, neste estudo, comentar se é adequada ou não a limitação do aproveitamento fiscal da mais-valia e do goodwill em operações intragrupo introduzida pela nova norma. Nossa atenção aqui está voltada apenas para determinar se a previsão de tal limitação na Lei 12.973 pode de alguma forma ser interpretada como uma confirmação de que a legislação tributária anterior não trazia qualquer limitação semelhante e, portanto, o ágio interno era pertinente no contexto da Lei 9.532, sem qualquer restrição. Note-se que o que se pretende analisar é o argumento de que a restrição contida na Lei 12.973 poderia ter um efeito sobre a controvérsia a respeito do ágio interno no regime jurídico anterior, devendo ser levada em conta, por exemplo, pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) como elemento decisivo para a anulação de autos de infração sobre o tema pendentes de julgamento. Tendo em vista a conclusão apresentada no item dois acima é possível apresentar a posição aqui defendida, no sentido de que a restrição ao aproveitamento fiscal da mais valia e do “goodwill” na Lei 12.973 não tem qualquer impacto direto sobre a interpretação das regras até então vigentes a respeito da amortização fiscal do ágio, sendo um elemento hermenêutico de limitada valia na determinação da existência ou não de similar restrição na legislação anterior. Assim sendo, as novas regras não confirmam o argumento dos con330 O artigo 25 da Lei 12.973 traz as situações onde as partes serão consideradas dependentes.

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tribuintes de que o dito “ágio interno” era permitido no regime da Lei 9.532, da mesma maneira que não se trata de uma mera declaração de algo que já se encontrava vedado (como a Fazenda talvez venha a defender). Com efeito, uma vez que a Lei 12.973 trouxe, como dito, uma disciplina integralmente nova, as alterações decorrentes do novo modelo tem limitado peso na interpretação da legislação anterior, de modo que a legitimidade ou não do ágio em operações intragrupo deve ser analisada com base nos fatos e na interpretação anterior à Lei 12.973.

3.1. O Conceito de Receita Bruta e os Efeitos da Lei 12.973 Logo após a publicação da Lei nº 9.718/98, tornou-se controvertido o conceito de faturamento empregado por seu artigo 3º, que equiparava faturamento à receita bruta. Em 2005, no julgamento dos Recursos Extraordinários nºs 346.084/ PR, 357.950/RS, 358.273/RS e 390.840/MG, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do referido dispositivo, decidindo que o conceito de faturamento, empregado na Lei nº 9.718/98, refere-se exclusivamente à receita bruta decorrente da venda de mercadorias, de mercadorias e serviços e serviços de qualquer natureza, definido nos termos do artigo 2º da LC nº 70/91.. Esta decisão da Suprema Corte levou alguns contribuintes a questionarem a incidência do PIS e da COFINS sobre diversas receitas decorrentes de atividades não contidas no binômio venda de mercadorias e prestação de serviços. Este é o caso, por exemplo, das receitas de locação e financeiras auferidas por instituições financeiras. Nesses dois casos temos situação semelhante. Empresas cuja receita operacional não se encontra entre aquelas decorrentes da venda de mercadorias e da prestação de serviços argumentam não estarem sujeitas ao pagamento da contribuição para o PIS e da COFINS. A Fazenda, em sentido oposto, vem sustentando que o conceito de faturamento deveria também incluir receitas que não decorrentes da venda de mercadoria e da prestação de serviços, desde que caracterizadas como receitas operacionais relacionadas ao objeto da empresa. Esta controvérsia está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, isso nos Recursos Extraordinários nº 659.412/RJ (locação) e nº 609.096/RS (receitas financeiras de instituições financeiras), ambos com a repercussão geral da matéria reconhecida. Esta controvérsia ganhou novas cores com edição da Lei 12.973. Com efeito, o artigo 2º desta lei modificou o artigo 12 do DL 1.598 para incluir no 117

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conceito de receita bruta “as receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica”. Por sua vez, o artigo 52 da Lei 12.973 alterou a Lei nº 9.718/98, modificando a base de cálculo da contribuição para o PIS e da COFINS estabelecendo que “faturamento a que se refere o art. 2º compreende a receita bruta de que trata o art. 12 do DL 1.598, de 26 de dezembro de 1977”. Fica claro que, com a entrada em vigor da nova lei, além das receitas de vendas de mercadorias e de prestação de serviços, também auferir qualquer receita, desde que decorrente da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica, será fato gerador da contribuição para o PIS e da COFINS. Neste ponto, ressurge o tema objeto deste breve texto. A alteração da legislação tributária para incluir a receita operacional decorrente da atividade principal da pessoa jurídica tem algum impacto sobre a interpretação da legislação anterior à Lei 12.973? Seria um critério relevante para a solução dos casos pendentes que têm por objeto a controvérsia a respeito da base de cálculo do PIS e da COFINS antes da entrada em vigor da Lei 12.973? Neste caso, entendemos que a conclusão é distinta da que apresentamos no item anterior. Se, em relação ao “ágio interno”, é possível argumentar que a mudança legislativa tem muito pouca relevância enquanto elemento de interpretação, no caso da mudança na hipótese de incidência do PIS e da COFINS outra seria a conclusão. De fato, como vimos acima, na situação de que ora nos ocupamos, ao invés de uma mudança na disciplina total de uma matéria, temos uma mudança pontual e específica, que tem como consequência um alargamento da hipótese de incidência do PIS e da COFINS. Ora, mantida a disciplina até então vigente com uma modificação pontual, parece-nos aumentar em peso o argumento no sentido de que a intervenção do legislador se fez necessária para incluir no texto legal uma situação que anteriormente não estava pelo mesmo abrangida. Deve-se ressaltar, entretanto, que também aqui este argumento não é mais do que isso, um argumento válido e relevante que deve ser considerado e sopesado pelo julgador juntamente com os outros topoi pertinentes, à luz do caso concreto. Em outras palavras, nunca a modificação legislativa, salvo se expressamente interpretativa, à luz do artigo 106, I, do Código Tributário Nacional, terá como efeito a solução definitiva de controvérsia a respeito da interpretação da legislação anterior.

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4. Conclusão Diante do exposto, é possível concluir este artigo afirmando que: • Mesmo que não seja expressamente interpretativa, uma lei nova pode ter um peso argumentativo ou força persuasiva em relação à interpretação do texto normativo que lhe precedeu. • Uma lei mais recente, que traga reduções, acréscimos ou modificações a uma disciplina jurídica existente, trata-se de um elemento hermenêutico relevante para a interpretação dos dispositivos até então em vigor. • Contudo, uma lei mais recente, que traga uma disciplina total nova sobre determinada matéria, não tem nenhuma relevância direta no que se refere à interpretação de dispositivos anteriores, sendo um elemento hermenêutico de reduzida importância argumentativa.

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A Deslegalização no Direito Tributário Brasileiro (2005)

Introdução O princípio da legalidade, forjado durante o liberalismo clássico pós Revolução Francesa,331 durante longo tempo foi compreendido a partir de uma perspectiva formalista, que pretendia que o intérprete encontrasse no texto legal soluções padronizadas para os conflitos surgidos na sociedade. Nesse cenário, o princípio da legalidade significaria mais do que a exigência de que as intervenções do poder público na esfera de direitos dos cidadãos se desse por intermédio de leis. O princípio da legalidade era compreendido a partir de uma teoria da interpretação com o mesmo compatível, a qual pretendia resguardar a possibilidade de o intérprete ter acesso à verdadeira mensagem contida no texto legal. Essa linha de entendimento, incompatível com a teoria hermenêutica contemporânea e com a insegurança e incerteza típicas da sociedade de risco, ainda prevalece na dogmática jurídica nacional, em especial no campo tributário. O presente estudo tem por objetivo examinar as transformações sofridas pelo princípio da legalidade durante o Século XX, dedicando-se à análise da legalidade tributária. A fim de alcançar tal objetivo este artigo foi dividido em duas partes distintas. Na primeira parte foram examinadas as mudanças pelas quais passou o Estado desde o liberalismo clássico até o atual Estado Democrático de Direito, examinando-se como tais transformações alteraram as relações entre os Poderes Executivo e Legislativo, e assim a noção de legalidade.332

331 Cf. GACIA DE ENTERRÍA, Eduardo. Justicia y Seguridad Jurídica en un Mundo de Leyes Desbocadas. Madrid: Civitas, 2000. p. 17-19; KERCHOVE, Michel van de. El problema de los fundamentos éticos de la norma juridica y la crisis del principio de legalidad. In: OST, François; KERCHOVE, Michel van de. Elementos para una Teoría Crítica del Derecho. Tradução Pedro Lamas. Bogotá: Editorial Unilibros, 2001. p. 336. 332 Partimos aqui das ideias desenvolvidas no primeiro capítulo de nosso Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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A partir daí será possível analisar as razões da “crise da lei”, com a superação do Legislativo pelo Executivo enquanto “Poder” mais relevante, responsável por ditar os rumos a serem seguidos pelas nações ocidentais, especialmente naquelas que adotam o regime presidencialista. Uma das consequências de tal cenário é o fenômeno da deslegalização, tanto em sentido lato como exclusão de certas matérias do campo do tratamento legal, como em sentido estrito, quando é realizada pela utilização de mecanismos de delegação legislativa, por intermédio dos quais há a transferência de competências legislativas originariamente alocadas no âmbito do Poder Legislativo para o Poder Executivo. Todos os comentários apresentados nesta primeira parte visam estabelecer os fundamentos sobre os quais será estruturada a análise do princípio da legalidade no Direito Tributário brasileiro, o qual deve ser enquadrado no cenário então exposto. Na segunda parte buscaremos examinar o princípio da legalidade tributária, partindo de sua formatação tradicional, sustentada, entre outros, por Alberto Xavier, Misabel Abreu Machado Derzi, Sacha Calmon Navarro Coêlho e Roque Antônio Carrazza. Passaremos, então, ao exame da crise da visão tradicional de legalidade tributária, principalmente a partir dos aportes da teoria hermenêutica, com a compreensão de que a interpretação jurídica envolve, no mais das vezes, um viés criativo, que faz com que seja possível a elaboração de mais de uma norma jurídica a partir de um mesmo texto legal, o que contraria a crença na possibilidade de se encontrar segurança absoluta na esfera jurídica.

Em razão das limitações dessa visão tradicional do princípio da legalidade e tendo em vista a necessidade de adequação dos textos normativos à realidade social, sempre cambiante e mutante, tem-se discutido os limites da determinação da linguagem jurídica, com o que veio a tona o debate a respeito dos conceitos indeterminados e dos tipos e sua utilização na composição dos textos dos dispositivos tributários. Será analisado, a esta altura, o que são os conceitos indeterminados bem como a possibilidade de sua utilização no campo tributário, sendo relevante perquirir também sobre a tipicidade tributária, distinguindo-se conceitos indeterminados e tipos. Com isso chegaremos ao ponto principal deste estudo, no qual serão apresentadas reflexões sobre a deslegalização, em sentido estrito, no campo tributário. A doutrina tributária, de regra, nega a possibilidade de delegação, para a competência regulamentar, da definição dos aspectos fundamentais da regra 122

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fiscal. Essa linha de entendimentos teria justificação teórica exatamente nos princípios da legalidade e da tipicidade. Todavia, carece-se de um estudo mais aprofundado dos efeitos da presença de conceitos indeterminados e tipos no texto das leis fiscais, isso no que tange especificamente à possibilidade de sua caracterização como forma de delegação legislativa e os reflexos que a mesma acarreta nas relações entre o Estado e os contribuintes. Nossa análise nessa arena terá como pano de fundo a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário nº 343.446 (DJU de 04 de abril de 2003), onde se discutia a constitucionalidade do então chamado Seguro de Acidentes de Trabalho. Diante do exposto, o objeto deste artigo consiste no estudo do conteúdo do princípio da legalidade no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, examinando-se as modificações pelas quais passou e o seu alcance possível, partindo-se da oposição à tradicional doutrina sobre o tema.

I. Notas Sobre a Deslegalização no Direito Constitucional 1. A passagem do Estado Liberal para o Estado Social e o crescimento das atividades desenvolvidas pelo Poder Executivo No curso da história recente da humanidade, a intervenção estatal nas atividades privadas e, assim, as atribuições conferidas ao Estado desenvolveram-se de forma mais ou menos acentuada, variando entre o intervencionismo exacerbado e o culto à liberdade individual contra os interesses coletivos (corporificados, a partir de determinado momento histórico, na atuação estatal). Entre o final do século XVIII e o início do século XX, principalmente a partir das Revoluções Americana e Francesa, propagou-se o modelo econômico liberal-individualista, que já havia se instalado na Inglaterra desde a Revolução Gloriosa de 1688, o qual pretendeu garantir a predominância política da classe econômica burguesa sobre as demais, assim como a sua defesa contra qualquer atuação limitadora-interventiva do Estado.

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Por tal razão, o direito fundamental, sustentáculo desse modelo político-econômico, era o direito à liberdade, o qual se figurava praticamente absoluto, oponível a qualquer intervenção estatal considerada indevida.333 Em perfeita síntese, Norberto Bobbio assevera que “como teoria econômica, o liberalismo é partidário da economia de mercado; como teoria política é simpatizante do Estado que governe o menos possível ou, como se diz hoje, do Estado mínimo”.334 Nas palavras de Marciano Seabra de Godoi, “a era do capitalismo liberal (fins do século XVIII e primeira metade do século XIX) fixou a noção do minimalismo e da neutralidade da atividade financeira, ambas provenientes da certeza de que a aparente anarquia das forças naturais do mercado levariam inexoravelmente ao bem-estar geral”.335 Com o passar dos anos, o individualismo exacerbado e as condições em que a classe dominante burguesa exercia seu domínio sobre a classe trabalhadora levaram à crise do sistema político-econômico liberal clássico, com a consequente necessidade da intervenção do Estado no âmbito das relações privadas.336 Surge a partir daí o chamado Estado Social, o qual se caracteriza pela intervenção estatal nas relações privadas e no exercício de direitos individuais, assim como pelo desenvolvimento das prestações de previdência e seguridade sociais.337 No curso da segunda metade do século XX o Estado Social entrou em crise. O assistencialismo social desse modelo foi indicado como responsável pelo crescimento da dívida pública e do déficit orçamentário,338 dando início à sua contestação e à pregação pelo retorno de um Estado Liberal não intervencionista. 333 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 40; CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O Congresso e as Delegações Legislativas. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 9; TORRES, Ricardo Lobo. O Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. p. 86. 334 BOBBIO, Norberto. El Futuro de la Democracia. Tradução José F. Fernandez Santillan. México: Fondo de Cultura Económica, 1986. p. 89. 335 GODOI, Marciano Seabra de. Justiça e Igualdade no Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 1999, p. 177. 336 Cf. REALE, Miguel. Da Democracia Liberal à Democracia Social. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 71, jul-set. 1984, p. 24. 337 É importante ter em mente, aqui, a distinção apresentada por Gilberto Bercovici entre estado social em sentido estrito e estado social em sentido amplo. O primeiro “é caracterizado pelo amplo sistema de seguridade e assistência social”. Enquanto o segundo “é o Estado intervencionista” (BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 54). No Brasil somente é possível falar em estado social em sentido amplo. 338 Cf. TORRES, Ricardo Lobo, O Orçamento na Constituição, 1995, p. 11; STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,

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Contudo, a crise por que passou o Estado Social e o surgimento de defensores de um modelo estatal neoliberal, não implicaram no desaparecimento do primeiro. De fato, como assevera Ricardo Lobo Torres “o modelo do Estado Social não desaparece totalmente. Passa por modificações importantes, com a diminuição do seu tamanho e a restrição ao seu intervencionismo. Deixa-se influenciar pelas ideias do liberalismo social, que não se confundem com as do neoliberalismo ou do protoliberalismo nem, por outro lado, com as da social democracia”.339 Apresentados esses breves apontamentos introdutórios, nota-se que a intervenção estatal nas relações privadas, e assim no exercício de direitos por parte dos indivíduos, que se encontra diretamente vinculada ao caráter mais ou menos assistencialista adotado pelo Poder Público, variou da pregação por um Estado mínimo (a qual, como visto, há algum tempo voltou a ocupar espaço de destaque no ideário político-econômico ocidental) até a prevalência de um Estado Social intervencionista e “paternalista”, sendo oportuno observar que, hodiernamente, na realidade da maioria das nações ocidentais, nenhuma dessas estruturas extremadas prevalece, havendo um Estado presente e participativo nas relações sociais, mas não centralizador das iniciativas econômicas e limitador dos direitos e interesses privados. De toda forma, é importante ter em conta que no curso do século XX, com a passagem do Estado Liberal clássico para o Estado Social, independentemente da variação de grau do intervencionismo estatal no âmbito deste último, o Estado assumiu a realização de diversas atividades que antes se encontravam na esfera de atribuições dos indivíduos,340 tendência esta que pode ser verificada, de forma acentuada, a partir de três acontecimentos específicos, quais sejam as duas Guerras Mundiais e a Grande Depressão que as medeou.341 2004. p. 58; HAYEK, Friedrich A. The Constitution of Liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. p. 302 e 303. 339 O Orçamento na Constituição, 1995, p. 15. 340 Cf. BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social, 2001, p. 186. 341 Há quem sustente não ser mais possível falar em Estado Social nos dias atuais, tendo esta forma de organização sido superada pelo Estado Democrático de Direito. Nesse sentido é a lição do professor Lenio Streck (Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito, 2004, p. 56 e 57). Parece-nos que a apontada evolução do Estado Social para o Estado Democrático de Direito não elide a afirmação de que, no âmbito do modelo estatal hodierno, cabem ao Estado diversas atribuições que fazem com que o mesmo tenha um caráter social. Tendo tal fato como referência, Paulo Bonavides chega a afirmar que a Constituição Federal de 1988 é a Constituição de um Estado Social (Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 371).

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Tal alteração no que tange à participação do Estado na vida social trouxe consigo uma modificação na função estatal preponderante em cada época histórica, com a hipertrofia do Poder Executivo, notadamente em países que, como o Brasil, adotam o sistema presidencialista de governo.342

adoção das medidas destinadas ao atendimento dos fins públicos, as quais, no mais das vezes, não podem se encontrar condicionadas à prévia manifestação da Assembleia Representativa, levaram o Poder Executivo a assumir posição preponderante no cenário político nacional, principalmente nos países que adotam o sistema presidencialista.345

2. A superação da supremacia do Poder Legislativo sobre o Executivo

b) Legitimação democrática do Poder Executivo: A legitimidade democrática daqueles que chefiam o órgão de cúpula do Poder Executivo, os quais são eleitos pelo povo, nos mesmos moldes dos membros do Legislativo, é argumento frequentemente utilizado para sustentar a legitimidade da supremacia do primeiro sobre o segundo.346

Tendo em vista que o Estado Liberal clássico tinha por finalidade a estabilização e manutenção da classe burguesa no poder, com a restrição das atuações do Poder Público na esfera de liberdade dos indivíduos (notadamente da classe burguesa), a função estatal prevalecente nesse período foi a Legislativa, transformando-se o Parlamento no senhor das regras imponíveis à sociedade, principalmente das situações em que se fazia possível a intervenção estatal na esfera privada.343 O declínio do Estado Liberal e o consequente crescimento das atribuições estatais, característico do Estado Social, modificou o quadro acima descrito, uma vez que a dinâmica das novas atividades estatais dependia de uma maior celeridade do agir administrativo, o qual não poderia ver-se emperrado pela dependência de deliberações do Parlamento.344 Assim, com o advento do Estado Social verificou-se o declínio da supremacia do Poder Legislativo sobre o Executivo, presente no Estado Liberal clássico, cujas causas mais relevantes são apontadas a seguir: a) Crescimento das atividades atribuídas ao Poder Executivo: O crescimento das atividades atribuídas ao Estado-Administração, a partir do nascimento do Estado Social, assim como a antes referida necessidade de rapidez na 342 Sobre a assunção de tarefas pelo Executivo e a sua supremacia sobre o Legislativo, ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 1-14. 343 Cf. CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira, O Congresso e as Delegações Legislativas, 1989, p. 11. 344 Cf. BONAVIDES, Paulo. O Poder Legislativo no Moderno Estado Social. In: As Tendências Atuais do Direito Público: Estudos em Homenagem ao Prof. Afonso Arinos. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 37; CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira, O Congresso e as Delegações Legislativas, 1989, p. 17; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 14 e 15; VERGOTTINI, Giuseppe de. A “Delegificação” e a sua Incidência no Sistema de Fontes do Direito. Tradução Fernando Aurélio Zilveti. In: BARROS, Sérgio Resende; ZILVETI, Fernando Aurélio (Coord.). Direito Constitucional: Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999. p. 167.

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c) O caráter técnico de algumas normas jurídicas: O tecnicismo que envolve as decisões que se exigem sejam tomas pelo Poder Público, o qual deixa as Câmaras representativas muitas vezes impotentes para estabelecer as regras de conduta que devem ser observadas no seio da coletividade, é também uma das razões que justificam a supremacia do Poder Executivo e seus órgãos técnicos.347 Questões econômicas, ambientais, energéticas, relacionadas à exploração de recursos naturais, à prevenção de acidentes naturais, etc., demandam um cabedal de conhecimento técnico que foge do domínio de qualquer congressista. Se em um primeiro momento o tecnicismo das matérias objeto de deliberação exige uma maior participação do Executivo, por intermédio de seus órgãos e agências, o mesmo põe em xeque o próprio sistema democrático, na medida em que pressupõe a substituição da deliberação pela ditadura dos técnicos.348 Evidente, portanto, o conflito existente entre o modus operandi dos Parlamentos e as exigências do mundo moderno, que faz com a participação do Poder Público 345 Cf. VERGOTTINI, Giuseppe de. A “Delegificação” e a sua Incidência no Sistema de Fontes do Direito, 1999, p. 167; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 248. 346 Cf. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 26. Ver, também: MIRANDA, Pontes de. Independência e Harmonia dos Poderes. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 20, abr.-jun. 1972, p. 9. 347 Cf. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 52 e 53; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Do Processo Legislativo, 2002, p. 14. 348 Sobre essa questão é interessante ver trabalho de José Eduardo Faria, que tem foco no risco da tecnicidade econômica para a democracia, principalmente em países em desenvolvimento: FARIA, José Eduardo; KUNTZ, Rolf. Qual o Futuro dos Direitos? Estado, mercado e justiça na reestruturação capitalista. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 65.

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na regulação de determinadas matérias se dê por intermédio de entes especializados, muitas vezes com personalidade jurídica própria, distantes das influências dos agentes e órgãos delegatários de competências democraticamente conferidas. d) A “inflação legislativa”: O fenômeno da “inflação” legislativa, decorrência da tentativa do Poder Legislativo de através da “produção” de novas leis acompanhar as mudanças sociais é também motivador de clamores pela exclusão de certas matérias da esfera de competência do Poder Legislativo.349 Assim, diante da complexidade da sociedade contemporânea, vê-se o legislador cada vez mais emitir normas casuísticas, ao invés de normas gerais.350 Tal esforço legislativo raras vezes se dá de forma a permitir a necessária coerência sistêmica, de forma que a legiferação compulsiva leva ao estado caótico atual, em que muitas vezes torna-se difícil identificar o diploma que trata de determinado caso fático. Exatamente esse esforço legislativo faz com que se busque a exclusão de determinadas matérias do campo de atuação do Poder Legislativo. e) A incapacidade da lei para tratar dos problemas na sociedade de risco: A sociedade industrial, desenvolvida sobre o arcabouço político-econômico do protoliberalismo, convivia com riscos sociais que eram controláveis por intermédio da ação do legislador, donde terem tido destaque nesse período histórico as crenças na infalibilidade do legislador na regulação da vida em sociedade.351 O Século XX pôs em xeque a crença em tal modelo. Em um primeiro momento, o surgimento de riscos financeiros que não poderiam ser assumidos pelos indivíduos, devendo ser difundidos por toda a coletividade, leva ao desenvolvimento do contrato de seguro, que tem como um de seus escopos principais a assunção coletiva de perdas individuais que não podem ser suportadas por indivíduos e empresas unilateralmente. 349 Cf. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 86-87; VERGOTTINI, Giuseppe de. A “Delegificação” e a sua Incidência no Sistema de Fontes do Direito, 1999, p. 167; MARTINES, Temistocle. Diritto Costituzionale. 10. ed. Milano: Giuffrè, 2000. p. 51; ITALIA, Vittorio. Diritto Costituzionale. Milano: Giuffrè, 2002. p. 27; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Do Processo Legislativo, 2002, p. 13; CLÈVE, Clèmerson Merlin, Atividade Legislativa do Poder Executivo, 2000, p. 54-61.

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Na sociedade de risco352, todavia, os riscos coletivos transcendem a competência controladora do legislador, ao mesmo tempo em que inviabilizam a difusão de seus custos por todos os indivíduos mediante contrato de seguro. Está-se aqui diante do risco nuclear, do risco de uma depredação irreversível do meio-ambiente, do risco de uma crise econômica de proporções mundiais, que levaria a uma palperização global e à falência dos Estados, do risco das drogas e da AIDS, do risco do terrorismo, da bioética e, em países onde, como no Brasil, ainda não foram alcançados os padrões basilares de desenvolvimento social, do risco da exclusão social, provavelmente o maior risco enfrentado em âmbito nacional e que se encontra vinculado à proliferação das drogas e da violência e até mesmo à depredação do meio-ambiente e à contaminação por doenças como a AIDS.353 Esse estado de coisas debilita as casas representativas, fazendo com que recaia maior importância sobre o Executivo. f) A globalização: Por fim, não se pode deixar de mencionar que o fenômeno da globalização, com o crescimento em importância dos tratados internacionais e o desenvolvimento de uma dogmática que apregoa sua prevalência sobre as normas de direito interno, leva também ao declínio do Poder Legislativo e à valorização do Executivo, Poder responsável pela discussão e elaboração dos tratados, em relação aos quais o Legislativo, no ordenamento jurídico pátrio, aparece apenas como órgão de referendo. Fazendo um parêntesis aqui, pode-se afirmar que todas essas características que fazem com que o Executivo tenha certa preponderância sobre o Legislativo encontram-se presentes na experiência tributária pátria. Com efeito, o crescimento das atividades atribuídas à administração pública faz com que sejam necessários recursos para fazer frente a essas despesas, com o que a tributação passa a ter fundamental importância para a manutenção do Estado; a legitimação democrática da chefia do Executivo faz com que a imposição de tributos por atos Executivos não seja completamente antidemocrática; a tecnicidade dos temas fiscais exclui a matéria tributária da competência deliberativa das assembleias representativas; a inflação legislativa põe em xeque a racionali-

350 Cf. KERCHOVE, Michel van de. El problema de los fundamentos éticos de la norma juridica y la crisis del principio de legalidad. In: OST, François; KERCHOVE, Michel van de. Elementos para una Teoría Crítica del Derecho. Tradução Pedro Lamas. Bogotá: Editorial Unilibros, 2001. p. 339

352 Ver: ROCHA, Sergio André. A Tributação na Sociedade de Risco. In: Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 15-49.

351 Sobre o tema, ver: ARNAUD, André-Jean. O Direito Traído pela Filosofia. Tradução Wanda de Lemos Capeller e Luciano Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 246).

353 Para um exame profundo acerca da pós-modernidade na realidade brasileira, ver: BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 215-284.

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dade da legislação tributária; a complexidade da sociedade de risco faz com que o Executivo tenha melhores condições de avaliar os impactos extrafiscais da tributação; e a globalização faz com que também no campo tributário busquem-se medidas de harmonização legislativa que reduzem o papel do legislador nacional.354

tucional de competências normativas ao Poder Executivo356 (as quais se encontram fora dos lindes desse estudo), bem como pela delegação legislativa.

3. A deslegalização como consequência da preponderância do Poder Executivo

Segundo Carlos Roberto de Siqueira Castro, há delegação legislativa quando da “transferência da função normativa atribuída originária e constitucionalmente ao Poder Legislativo a órgãos ou agentes especializados do próprio Legislativo ou integrantes dos demais Poderes do Estado”.357 A legitimidade da delegação de competências legislativas para o Poder Executivo depende: (1) de sua previsão no ordenamento jurídico ou, ao menos, a sua não vedação; (2) da existência de ato específico que, de forma expressa, concretize a delegação; (3) da determinação, por parte do Poder delegante, dos limites de atuação do ente delegatário; (4) da revogabilidade e indelegabilidade dos poderes delegados; (5) da preservação de igual competência pelo Poder delegante; e (6) do controle dos atos emitidos pelo delegatário pelo Poder delegante e pelo Poder Judiciário.358 Tais requisitos serão analisados a seguir:

Decorrência do cenário acima descrito e do novo delineamento das atribuições a cargo dos Poderes Executivo e Legislativo é o fenômeno da deslegalização. Como nos lembra Alf Ross, “a maioria das palavras não têm um campo de referência único, mas sim dois ou mais, cada um deles construído sob a forma de uma zona central à qual se acrescenta um círculo de incerteza”.355 O vocábulo deslegalização padece desta plurivocidade, na medida em que, em um conceito lato, designa a exclusão de determinada matéria do âmbito da regulamentação estatal; enquanto, em um conceito mais estrito, refere-se à transferência de competências legislativas do Poder Legislativo ao Poder Executivo. Em sua acepção mais ampla, a deslegalização relaciona-se com a pretensão de se reduzir a intervenção estatal nas relações privadas, entregando-se certas matérias do domínio dos entendimentos entre particulares. A seu turno, em sua acepção restrita a deslegalização refere-se à transferência de competências originariamente alocadas no Poder Legislativo ao Executivo. É nessa acepção estrita que a deslegalização encontra-se vinculada às transformações do Estado brasileiro contemporâneo cuja análise pretende-se empreender, servindo como instrumento para viabilizar as intervenções que se exigem da Administração Pública hodiernamente, concretizando-se pela atribuição consti-

4. Notas sobre a delegação legislativa

a) Possibilidade jurídica da delegação legislativa: O primeiro requisito da delegação legislativa consiste em sua possibilidade jurídica, ou seja, em ser a mesma permitida ou ao menos não expressamente ou implicitamente vedada pela Constituição Federal. b) Previsão de limites ao exercício da competência delegada em ato delegatório específico: A delegação de competências normativas deve ser estabelecida por ato específico, emanado do Poder delegante, o qual estabelecerá os limites em que será legítima a atuação do ente delegatário.

356 Cf. GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. Legislación Delegada, Potestad Reglamentaria e Control Judicial. 3. ed. Madrid: Civitas, 1998. p. 220. 354 Sobre a harmonização tributária, ver: SILVA, Sergio André R. G. da. Integração Econômica e Harmonização da Legislação Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; CATÃO, Marcos André Vinhas; SILVA FILHO, Antonio Rodrigues da. Harmonização Tributária no Mercosul. São Paulo: Aduaneiras, 2001. PIRES, Adilson Rodrigues. Harmonização Tributária em Processos de Integração Econômica. In: CARVALHO, Maria Augusta Machado de (Coord.). Estudos de Direito em Homenagem à Memória de Gilberto de Ulhôa Canto. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 1-10.

357 CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira, O Congresso e as Delegações Legislativas, 1986, p. 81. No mesmo sentido: OTTO, Ignacio de. Derecho Constitucional: Sistema de Fuentes. Barcelona: Ariel, 1998. p. 181-185; TOURINHO, Arx da Costa. A delegação legislativa e sua irrelevância no Direito brasileiro atual. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 54, abr.-jun. 1977, p. 69; FORTES, Bonifácio. Delegação Legislativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 62, out.-dez. 1960, p. 353; DUARTE, Clenício da Silva. Delegação de Competência. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 27, jan.-mar. 1974, p. 38.

355 ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2000. p. 143.

358 Cf. CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira, O Congresso e as Delegações Legislativas, 1986, p. 95.

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A exigência da previsão dos limites da atuação normativa do ente delegatário é exigência do princípio democrático, na medida em que os entes delegatários recebem atribuição de competência para exercer uma discricionariedade técnica para adotar as ações que melhor se prestem à consecução dos fins insculpidos nas normas legais. Uma vez que o legislador não tem como identificar antecipadamente qual a melhor solução a ser adotada nos casos concretos, delega ao Executivo uma competência limitada para estabelecer tais regras. Dessa forma, pode-se aduzir que a atuação dos entes delegatários trata-se de atividade infralegal, devendo pautar-se pelos standards previstos na norma delegatória, bem como nas demais normas que compõem o ordenamento jurídico. Em consonância com a lição de Laurence H. Tribe, a previsão dos standards para a legítima atuação dos entes delegatários resguarda, ainda, a possibilidade de seu controle, uma vez que será possível verificar: (1) se o seu agir está compreendido na competência que lhe foi delegada; (2) se tal competência é detida pelo Poder delegante; e (3) se a mesma está inserida no campo de competências delegáveis pelo Poder Legislativo.359 c) Revogabilidade, indelegabilidade e reserva de iguais atribuições pelo Poder delegante: Tendo em vista que os entes executivos recebem uma competência normativa limitada é óbvio que o Poder delegante (o Poder Legislativo) permanece com a competência plena para editar regras acerca das matérias afetas à esfera de competência do Executivo, podendo, a qualquer momento, excluir sua competência normativa.360

359 TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. 2nd. ed. New York: The Foundation Press, 1988. p. 364. Segundo Alexandre Santos de Aragão, “não é suficiente, contudo, apenas a previsão legal da competência da Administração Pública para editar normas sobre determinado assunto. Mister se faz que a lei estabeleça também princípios, finalidades, políticas públicas ou standards que propiciem o controle do regulamento (intelligible principles doctrine), já que a atribuição de poder normativo sem que se estabeleçam alguns parâmetros para o seu exercício nãos se coadunaria com o Estado Democrático de Direito, que pressupõe a possibilidade de controle de todos os atos estatais” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 329. No mesmo sentido, negando a legitimidade de delegações abertas de competências legislativas, ver: PIERCE JR., Richard J., SHAPIRO, Sidney A.; VERKUIL, Paul R. Administrative Law and Process. 3rd. ed. New York: The Foundation Press, 1999. p. 36. Para um estudo mais aprofundado da questão relacionada à previsão de standards para a validade de delegações legislativas, ver: BARBER, Sotirios. The Constitution and the Delegation of Congressional Power. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1975. p. 72-107. 360 Sobre esse tema, ver: CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho Administrativo. 7. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2002. t. I. p. 381.

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Sendo certo que o poder delegante permanece munido da competência transferida é igualmente certo que após a delegação tal competência deve ser exercida de forma a proteger as situações jurídicas criadas pela edição das regras por parte do delegatário. Essa questão torna relevante a discussão quanto ao fenômeno da “relegificação” que ocorre quando o poder delegante resolve, posteriormente à delegação, editar norma contrária à editada pelo ente delegatário, sendo necessária a definição de mecanismos para proteção da eficácia das normas por este editadas.361 Em outra assentada, tendo em vista que o ente delegatário exerce uma competência normativa alheia, não pode o mesmo transferi-la para outrem, sendo indelegável a competência adquirida por intermédio de delegação legislativa. d) Possibilidade de controle: Por fim, a legitimidade da delegação legislativa depende da existência de mecanismos para o controle da atividade delegada. Tal controle pode e deve ser exercido pelo Poder delegante, que se entender que os atos praticados pelo ente delegatário não estão atingindo as finalidades legais pretendidas pode, simplesmente, retirar-lhe tais prerrogativas ou editar atos contrários aos expedidos pelo Executivo; assim como pelos órgãos do Poder Judiciário, mediante a iniciativa da parte interessada (a Administração Direta ou o Administrado). O controle exercido pelo Poder delegante engloba aspectos de legalidade e mérito dos atos normativos editados pelos entes delegatários (caso em que é possível que haja a interferência de interesses políticos sobre sua atuação técnica); a seu turno o controle judicial volta-se principalmente à análise da legalidade de tais atos, sendo o controle de mérito limitado ao exame quanto ao respeito ao princípio da proporcionalidade (devido processo legal substantivo).

5. Conclusão da parte I A primeira parte deste artigo teve um propósito bem delimitado: o exame das razões da crise da lei nos Estados ocidentais modernos e da deslegalização como instrumento para a superação da mesma. 361 Sobre esse tema, ver: FRONTONI, Elisabetta. Spunti in Tema di Delegificazione: “Rilegificazione” e Sottrazione dei Regolamenti in Delegificazione All’Abrogazione Referendaria. In: MODUGNO, Franco. Trasformazioni della Funzione Legislativa: Crisi della Legge e Sistema delle Fonti. Milano: Giuffrè, 2000. p. 244.

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Cremos que, a despeito da análise meramente perfunctória apresentada, logrou-se demonstrar que não há mais como se imaginar o retorno ao modelo clássico de legalidade, em que a lei se presta à solução de todos os problemas surgidos no âmbito da coletividade e que o Poder Legislativo encontra-se preparado para deliberar sobre todos os temas relevantes para a coletividade. No seio da sociedade de risco, onde se enfrentam riscos globais e a uma primeira vista insolúveis como o risco do terrorismo, os riscos ambientais, o risco da falência dos Estados, a biotecnologia, com temas como a manipulação genética e a clonagem de serem humanos, a lei desenvolvida no âmbito do Poder Legislativo já não é bastante para garantia da segurança dos indivíduos.362 Tornou-se comum, portanto, a transferência de competências normativas para entes executivos especializados, dotados de maior qualificação técnica, do que é exemplo claro o desenvolvimento das agências reguladoras. Como se pretende demonstrar no seguinte item, o Direito Tributário não se queda fora do campo dessas modificações, com o que é imprescindível o estudo dos impactos desse estado de fatos no campo fiscal, o que se fará a seguir.

II. A Deslegalização no Direito Tributário Postos e analisados os aspectos gerais relacionados à deslegalização no âmbito do Direito Constitucional, é de se examinar os contornos assumidos pela matéria no Direito Tributário. Nessa seara, salvo as situações de deslegalização previstas expressamente no próprio texto constitucional, como as referentes à possibilidade de modificação das alíquotas do Imposto de Importação, do Imposto de Exportação, do Imposto sobre Produtos Industrializados e do Imposto sobe Operações Financeiras por ato do Poder Executivo (artigo 153, § 1º da Constituição Federal), há um entendimento generalizado no sentido de que a deslegalização não seria possível. Esse posicionamento, via de regra, tem fundamento no princípio da segurança jurídica, do qual decorrem a legalidade e tipicidade tributárias, a seguir examinadas.

362 Sobre a sociedade de risco e suas características, ver: ROCHA, Sergio André. A Tributação na Sociedade de Risco. In: Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 15-20.

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1. Visão tradicional do princípio da legalidade tributária O princípio da legalidade tributária é normalmente conceituado como uma garantia de que os tributos serão cobrados somente nas situações objetivamente descritas no texto legal.363 A visão do princípio da legalidade como uma forma de garantia de uma segurança jurídica quase absoluta, mediante a previsão, na lei, de uma descrição objetiva do tipo tributário, foi sustentada na obra de Alberto Xavier,364 a qual ilumina o pensamento da doutrina formalista do Direito Tributário.365 Com isso, percebe-se que, juntamente com o princípio da legalidade tal doutrina formalista apregoa que os conceitos utilizados na lei devem ser determinados, afastando-se os conceitos incertos, dotados de uma fluidez que traga insegurança quanto ao comando contido na regra fiscal.366 Para alcançar o desiderato de conjugar legalidade e tipicidade como formas de garantia absoluta da segurança jurídica do contribuinte, a doutrina formalista do Direito Tributário passa por uma compreensão restrita das atividades de interpretação.367 Na verdade, na medida em que a concepção tradicional do princípio da legalidade busca assegurar tal segurança jurídica plena aos contribuintes, parte a mesma

363 Nesse sentido, ver: MACHADO, Hugo de Brito. Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 21. 364 Cf. XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 36 e 37; XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001. p. 17-18. 365 Sobre o tema ver o nosso: Ética, Moral e Justiça Tributária. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 51, jul. ago. 2003, p. 111-116. 366 Nesse sentido, ver: ROLIM, João Dácio. Normas Antielisivas Tributárias. São Paulo: Dialética, 2001. p. 48; DERZI, Misabel Abreu Machado. A Desconsideração dos Atos e Negócios Jurídicos Dissimulatórios, segundo a Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001. p. 224; CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 235 e 236; OLIVEIRA, Yonne Dolácio de. Princípio da Legalidade. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Princípio da Legalidade. São Paulo: Resenha Tributária, 1981. p. 506 e 507; BOLAN, Ricardo Ferreira. O Papel da Lei na Criação de Deveres Instrumentais Tributários. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 17, 2003, p. 295. 367 Há aqui verdadeiro paralelo entre a doutrina formalista do Direito Tributário e as teorias positivistas do direito, como tivemos a oportunidade de demonstrar em SILVA, Sergio André R. G. da. Ética, Moral e Justiça Tributária. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 51, jul.-ago 2003, p. 111-116.

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da crença de que a interpretação do texto das leis tributárias leva (ou deve levar) sempre à criação de uma mesma norma jurídica, com o que a legalidade tributária não deixaria ao Administrador Público qualquer liberdade de conformação.368 Denotativa dessa linha de entendimento é a seguinte passagem de Roque Antonio Carrazza: Na verdade, em matéria tributária o princípio da estrita legalidade tributária leva ao da tipicidade fechada (ou da determinação). De fato, os elementos integrantes do tipo tributário devem ser formulados na lei de modo tão preciso e determinado que o aplicador não tenha como introduzir critérios subjetivos de apreciação, que poderiam afetar, como já escrevemos, a segurança jurídica dos contribuintes, comprometendo-lhes a capacidade de previsão objetiva de seus direitos e deveres. Enfim, os tipos tributários devem necessariamente ser minuciosos, para que não haja espaço, por parte do Fisco, nem para o emprego da analogia, nem da discricionariedade. Sempre mais notamos, portanto, que o princípio da tipicidade fechada contribui, de modo decisivo, para a segurança jurídica do contribuinte. Segurança jurídica que pulveriza quando a própria Fazenda Pública elege os critérios que reputa razoáveis, para, por exemplo, a fixação da base de cálculo do IRPJ.369

368 Ver: NABAIS, José Casalta. Contratos Fiscais: Reflexões Acerca da sua Admissibilidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. p. 222; BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. São Paulo: Dialética, 2003. p 14; ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 63; MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 42; AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 24; ROSA JR., Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário. 17. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 215-217. 369 CARRAZZA, Roque Antonio. O Princípio da Legalidade e a Faculdade Regulamentar no Direito Tributário. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário: Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 523. Encontramos lição de semelhante teor em: CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 398-399; COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O princípio da legalidade. O objeto da tutela. In: PIRES, Adilson Rodrigues; TÔRRES, Heleno Taveira (Orgs.). Princípios de Direito Financeiro e Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 626-628; COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 196-202; TÔRRES, Heleno Taveira. Segurança Jurídica em Matéria Tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. Limitações ao Poder Impositivo e Segurança Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 160-162; NOVOA, César Garcia. El Principio de Seguridad Jurídica en Materia Tributaria. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 78 e 79.

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Nesse sentido, tal linha teórica entra em contraste com a teoria hermenêutica contemporânea, segundo a qual um mesmo texto legal pode levar à criação de mais de uma norma jurídica370, fato que coloca em xeque a ideia tradicional de legalidade, na medida em que se torna impossível deixar de reconhecer certa margem de conformação ao Executivo.

2. Revés da visão tradicional: A interpretação como uma atividade criativa A posição sobre o princípio da legalidade acima apresentada tem fulcro em vetustas e ultrapassadas concepções hermenêuticas, notadamente a crença de que a interpretação de um texto consiste em revelar sua verdadeira (e única) mensagem.371 Com efeito, hoje é amplamente reconhecida a ideia de que sendo os textos jurídicos vertidos em linguagem permitem os mesmos interpretações divergentes, as quais serão forjadas tendo em consideração a pré-compreensão do intérprete.372

370 Ver: ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 124-130. 371 Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 9. A ideia de que a interpretação consiste em uma atividade voltada para a descoberta do “verdadeiro” sentido de um texto legal encontra-se presente nos trabalhos de estudiosos da teoria geral do direito e nos compêndios gerais dos diversos “ramos” jurídicos, como em: MÁYNEZ, Eduardo García. Introducción al Estudio del Derecho. 53. ed. México: Porrúa, 2002. p. 327; COING, Helmut. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 326; GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 219; DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 381; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. v. I. p. 114; RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. v. I. p. 24; ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. p. 157; BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 45; JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. I. p. 27; MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 1998. v. I. p. 51. 372 Sobre a pré-compreensão do intérprete, ver: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 354-385; LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 285-297; CAMARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001. p. 50-61; SILVA, Sergio André R. G. da. A Hermenêutica Jurídica sob o Influxo da Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 64, set.-out. 2005, p. 285-287; ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 98-112.

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Nessa assentada há de se reconhecer que a interpretação tem um viés criativo que faz com que não seja possível estabelecer aprioristicamente uma única norma jurídica que seja extraível de um determinado texto legal. Veja-se, a esse respeito, a seguinte lição de Eros Grau: As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem. Isso, contudo – note-se bem -, não significa que o intérprete, literalmente crie a norma. Dizendo-o de modo diverso: o intérprete não é um criador ex nihilo; ele produz a norma – não, porém, no sentido de fabricá-la, mas no sentido de reproduzi-la. O produto da interpretação é a norma expressada como tal. Mas ela (a norma) parcialmente preexiste, potencialmente, no invólucro do texto, invólucro do enunciado.373

Nota-se, portanto, que a própria evolução da teoria hermenêutica afasta a ideia de legalidade tributária tradicional bem como da ilusão da segurança jurídica absoluta da mesma decorrente.

373 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002. p 72 e 73. Sobre a função criativa da interpretação, ver: ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 124-130; CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 261; TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 47 e 48; LATORRE, Angel. Introdução ao Direito. Tradução Manuel de Alarcão. Coimbra: Almedina, 2002. p. 109-111; STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da constituição do direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 91 e 92; SCHROTH, Ulrich. Hermenêutica Filosófica e Jurídica. In: KAUFMANN, A.; HASSMER, N. (Orgs.). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 383 e 384; GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 432 e 433; LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 283-284; ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2000. p. 139; RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Tradução L. Cabral de Moncada. Coimbra: Arménio Amado, 1997. p. 230 e 231; LIMA Maria Ednalva de. Interpretação e Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 87.

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3. A utilização de conceitos indeterminados em matéria tributária Todavia, é a complexidade típica da sociedade de risco que definitivamente abala os alicerces de tal concepção de legalidade tributária tradicionalmente sustentada no Brasil. Com efeito, diante da complexidade e mutabilidade constante dos fatos sociais, o legislador tributário tem se valido de conceitos indeterminados como forma de, por intermédio da abertura interpretativa, alcançar-se um maior espectro de aplicação das leis fiscais. Como assevera João Francisco Bianco, “o Direito Tributário, na sua busca pela identificação de riquezas para serem objeto de tributação, não pode fossilizar-se nem se manter inerte ou estagnado no tempo. Sua adaptação às novas realidades econômicas é fundamental para a plena realização do princípio da igualdade na tributação”.374 São conceitos indeterminados aqueles cujo conteúdo é incerto aparecendo os mesmos quando “a lei refere uma esfera de realidade cujos limites não aparecem bem precisados em seu enunciado”.375 Nas palavras de Karl Engisch: A questão em exame foi analisada pelo professor Ricardo Lobo Torres, para quem, com a superação do positivismo jurídico e a compreensão de que a segurança jurídica deve ser ponderada com a justiça, “supera-se também a crença algum tanto ingênua na possibilidade de permanente fechamento dos conceitos tributários, como se nesse ramo do direito houvesse a perfeita adequação entre pensamento e linguagem e se tornasse viável a plenitude semântica dos conceitos. O direito tributário, como os outros ramos do direito, opera também por conceitos indeterminados, que deverão ser preenchidos pela interpretação complementar da Administração, pela contra-analogia nos casos de abuso do direito e pela argumentação jurídica democraticamente desenvolvida”.376 374 BIANCO, João Francisco. Segurança Jurídica e o Princípio da Legalidade no Direito Tributário. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 19, 2005, p. 21. 375 Cf. GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. 10. ed. Madrid: Civitas, 2000. v. I. p. 457. Ver, também: ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução J. Baptista Machado. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 208 e 209. 376 TORRES, Ricardo Lobo. Legalidade Tributária e Riscos Sociais. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 59, ago. 2000, p. 96. Sobre a utilização de conceitos indeterminados no campo do Direito Tributário, ver: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de

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A discussão quanto a abertura ou o fechamento dos conceitos tributários é provavelmente uma das que mais divide os tributaristas nos dias atuais. Parece-nos que aqui uma primeira premissa que se deve adotar consiste no reconhecimento de que, como noticia Karl Engisch, conceitos absolutamente determinados são difíceis de serem encontrados, somente figurando como tais aqueles conceitos estritamente numéricos.377 Dessa forma, tem-se que o apego a um suposto fechamento conceitual, característico da doutrina formalista, traz consigo uma equivocada compreensão do fenômeno linguístico, sendo inegável a presença de conceitos indeterminados nos textos das leis fiscais, o que certamente põe em xeque a crença largamente difundida na existência de uma verdade legal passível de ser alcançada via interpretação. Alberto Xavier, certamente um dos mais respeitados cultores do formalismo jurídico na seara tributária, chega a reconhecer ser impossível evitar certa margem de indeterminação conceitual nas leis fiscais, ao afirmar que “a bem dizer, não existem conceitos absoluta e rigorosamente determinados”, de forma que “deparando com aquilo que já se tem designado como uma ‘indeterminação imanente’ de todos os conceitos, se é forçado a reconhecer que a problemática da indeterminação não é tanto de natureza como de grau”.378 Com essa observação em mente Alberto Xavier afirma que “a indeterminação conceitual relevante para o Direito Tributário é precisamente aquela que afeta a referida segurança jurídica, a mencionada suscetibilidade de previsão objetiva”.379 Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 44; OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Legalidade Tributária - O Princípio da Proporcionalidade e a Tipicidade Aberta. Revista de Direito Tributário, n. 70, 2003, p. 114 e 115; SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 250-251; ABRAHAM, Marcus. O Planejamento Tributário e o Direito Privado. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 318; COSTA, Regina Helena. Praticabilidade e Justiça Tributária: Exiqüibilidade de Lei Tributária e Direitos do Contribuinte. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 183; BARBOSA, Henrique Corredor Cunha. A Consulta Fiscal e a Segurança Jurídica: uma Nova Perspectiva Diante dos Conceitos Indeterminados. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Processo Administrativo Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 293-298. 377 ENGISCH, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico, 1996, p. 208 e 209; KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Tradução Villar Borda e Ana Maria Montoya. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1999. p. 108. 378 XAVIER, Alberto, Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, 1978, p. 97. 379 XAVIER, Alberto, Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, 1978, p. 97. Entendimento semelhante encontramos em: NOVOA, César Garcia, El Principio de Seguridad Jurídica en Materia Tributaria, 2000, p. 120.

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Todavia, seguindo essa linha de entendimento [de que a lei tributária deve ser passível de uma previsibilidade objetiva], enuncia o mestre que esta é viabilizada pelos conceitos determinados. Vejam-se suas lições: Dado tudo o que – deve entender-se por conceito determinado aquele conceito empregado pela lei e na qual o órgão de aplicação do direito deva descobrir imediata, direta e exclusivamente o conteúdo que, deste modo, é lógica e conceitualmente unívoco. Houvera a participação de elementos estranhos à própria lei, houvera a intervenção de momentos subjetivos e individuais na sua aplicação – pois logo aí se perderia univocidade conceitual e, do mesmo passo, a segurança jurídica que dela não pode prescindir.380

Com o devido respeito pela doutrina professada por Alberto Xavier, torna-se evidente a contradição entre o seu pensamento e tudo o que se aduziu até o presente momento. A ideia de que se pode alcançar univocidade na interpretação das leis fiscais parece mal representar o fenômeno hermenêutico, já que, como vimos anteriormente, o processo interpretativo parte da pré-compreensão do intérprete, a qual torna impossível uma completa objetividade hermenêutica. Na medida em que se reconhece que o intérprete participa do processo hermenêutico, não se encontrando fora do mesmo como pretendia a doutrina metodológica tradicional, não se pode deixar de reconhecer a impossibilidade de se alcançar uma objetividade plena na interpretação. Tal circunstância é acentuada pela natural indeterminação conceitual e a abertura da linguagem, as quais tornam utópica uma univocidade interpretativa. Dessa forma é importante que deixemos claro: a presença de conceitos indeterminados no Direito Tributário é inevitável e a mesma traz consigo uma também inevitável relativização da noção clássica de legalidade, na medida em que se reconhece à autoridade fiscal certa margem de liberdade de conformação, devendo-se focar a atenção agora nos mecanismos de controle que protegerão os contribuintes contra um indevido exercício de tal liberdade, a qual permanece pautada pelos limites legais.381 380 XAVIER, Alberto, Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, 1978, p. 98. 381 Faz sentido neste contexto a observação de José Maria Arruda de Andrade, para quem “pode haver, portanto, uma tensão entre a legalidade e o exercício do poder regulamentar. Aqui, não se entende que caberia ao titular da competência regulamentar apenas explicitar o que a lei prescrevera. O estudo da função regulamentadora deve ser contextualizado de acordo com o regime jurídico-constitucional da

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4. A presença de tipos no Direito Tributário Além dos conceitos indeterminados, outro instrumento de abertura das regras tributárias é a presença de tipos nos textos das leis fiscais.382 Embora o tipo também seja aberto, como os conceitos indeterminados, abrindo-se para a concretização diante das situações fáticas, dos mesmos se difere por ser decorrente da conjunção de dados concretos presentes no mundo factual. Conforme salienta Ricardo Lobo Torres, “tipo é a ordenação de dados concretos existentes na realidade segundo critérios de semelhança. Nele há abstração e concretude, pois é encontrado assim na vida social como na norma jurídica. Eis alguns exemplos de tipo: empresa, empresário, trabalhador, indústria, poluidor. O que caracteriza o tipo ‘empresa’ é que nele se contêm todas as possibilidades de descrição de suas características, independentemente de tempo, lugar ou espécie de empresa. O tipo representa a média ou a normalidade de uma determinada situação concreta, com as suas conexões de sentido. Segue-se, daí, que a noção de tipo admite as dessemelhanças e as especificidades desde que não se transformem em desigualdade ou anormalidade”.383 Misabel Abreu Machado Derzi, autora do trabalho mais completo acerca do tipo tributário, aduz que “tipificar tem o sentido amplo de abstrair as particularidades individuais, para colher o que é comum ou repetitivo. Tipo será então o que resultar desse processo de abstração generalizante, vale dizer, a forma média ou frequente, ou aquela especialmente representativa, ou ainda, o padrão normativo ideal”.384 Daí a observação de Karl Larenz no sentido de que “o tipo não se define, descreve-se. Não se pode subsumir à descrição do tipo; mas pode-se, com sua ajuda, ajuizar se um fenômeno pode ou não integrar-se no tipo”.385

matéria regulada. No âmbito tributário, a própria Constituição Federal e o Código Tributário Nacional imprimem os limites a serem observados, sobretudo em relação à majoração do tributo” (ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da Norma Tributária. São Paulo: MP Editora, 2006. p. 173). 382 Fizemos análise mais detida da questão da tipicidade tributária em texto específico dedicado ao tema: ROCHA, Sergio André. Existe um Princípio da Tipicidade no Direito Tributário? Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 136, jan. 2007, p. 68-79.

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Um tipo, portanto, é um conjunto de características retiradas da realidade, as quais não necessitam estar sempre presentes para que dado fato seja típico. Daí a diferença entre o tipo e o conceito fechado. O tipo abre espaço para o mais ou menos da lógica fuzzy, na medida em que os fatos podem conter todas ou apenas algumas das características típicas.386 Na verdade, se grandes são as diferenças entre os tipos e os conceitos fechados, mais fluida é a distinção entre aqueles e os conceitos indeterminados. Como anota Misabel Derzi, com fulcro nas lições de Detlev Leenen, “a distinção entre tipo e conceito é gradual e tipológica. Entre os dois polos identificáveis nitidamente – de um lado, o tipo puro e, de outro, o conceito classificatório fechado – surgem várias transições fluidas: conceitos mais ou menos determinados, conceitos que pedem valoração ou preenchimento de significação etc.”.387 Diante dessas breves notas acerca da tipificação no Direito Tributário, as quais certamente nem de perto esgotam tão profícuo tema, importa destacar apenas que além dos conceitos indeterminados, os tipos também provocam uma abertura das regras fiscais, e assim, como se verá a seguir, implicam em uma relativização da visão tradicional do princípio da legalidade.

5. A deslegalização no Direito Tributário 5.1. Transferência para o Executivo de competências legislativas na seara fiscal Uma primeira questão que deve ser analisada, no campo da deslegalização no Direito Tributário, é referente à possibilidade de a lei atribuir ao Poder Executivo a competência para dispor acerca de qualquer dos aspectos fundamentais da regra-matriz de incidência, seja em seu antecedente ou seu consequente. A doutrina majoritária afirma que, em razão do princípio da legalidade tributária, não seria possível a estipulação, via regulamento, de qualquer dos aspectos da norma tributária impositiva, sendo a lei o veículo legítimo para o estabelecimento de deveres tributários.

383 TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários, 2005, p. 469 e 470. 384 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 47.

386 Cf. KAUFMANN, Arthur, Filosofía del Derecho, 1999, p. 250.

385 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 307.

387 DERZI, Misabel de Abreu Machado, Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, 1988, p. 62.

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Retomando a distinção entre os conceitos em sentido lato e estrito do vocábulo deslegalização, pode-se afirmar, categoricamente, que não é possível, no Direito Tributário, a deslegalização como exclusão de matérias fiscais do campo da reserva de lei, de modo que todo e qualquer tributo pudesse ser instituído e majorado por ato do Poder Executivo (deslegalização lato sensu). Todavia, quando se fala na deslegalização em sentido estrito, como delegação ao Executivo da competência para editar determinados atos normativos, com base em standards estabelecidos pelo legislador, parece-nos que a conclusão pela sua impossibilidade no Direito Tributário não é tão evidente, embora afirmada pela doutrina. Com efeito, ao tratar do tema a doutrina tributária normalmente refere-se à impossibilidade de uma lei transferir expressamente, para o âmbito do regulamento, a disciplina de determinada regra-matriz de incidência, como seria o caso de uma lei estabelecer que a alíquota de dado imposto será determinada em regulamento a ser editado pelo Executivo. Quer-nos parecer, todavia, que as relações entre lei e regulamento não devem ser tratadas assim em termos absolutos, principalmente se levarmos em conta a indeterminação das leis fiscais.

5.2. A utilização de conceitos indeterminados como instrumento de deslegalização, via delegação de competência, no Direito Tributário Feitos todos os comentários acima chega-se ao momento de enfrentar uma das questões mais controvertidas do presente estudo: a utilização de conceitos indeterminados pode ser entendida como uma forma de delegação legislativa? Como examinado no item 4 da primeira parte deste artigo, tem-se uma delegação legislativa sempre que há a transferência de competências legislativas do Poder Legislativo para ente que não seja dotado da mesma. No caso interessa-nos a delegação de competência para o Poder Executivo. No Direito Constitucional brasileiro o melhor estudo sobre a delegação legislativa foi elaborado por Carlos Roberto de Siqueira Castro, sendo que para o citado constitucionalista o fato de a interpretação da lei ter evidente caráter criativo, não bastaria para se confundir a mesma com o instituto da delegação legislativa, uma vez que esta envolveria a possibilidade de edição, ex novo, de lei delegada.388

388 CASTRO, Carolos Roberto de Siqueira, O Congresso e as Delegações Legislativas, 1986, p. 103 e 104.

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O entendimento adotado por este grande constitucionalista se fundamenta, portanto, na compreensão de que para que haja delegação legislativa é necessário que se transfira, ao Executivo, a possibilidade de inovar o ordenamento jurídico. A despeito da autoridade desse posicionamento, cremos ser possível sustentar conclusão diversa. De fato, como referido na alínea “b” do item 4 da primeira parte deste estudo, um dos requisitos para uma legítima delegação legislativa é que a lei delegante estabeleça os critérios, os standards que devem ser observados pelo ente delegatário. Nessa ordem de convicções, parece-nos que afirmar que o ente delegatário tem liberdade de conformação para inovar o ordenamento jurídico não reflete a real natureza da delegação legislativa. Isso que foi dito acima é muito importante para o deslinde da presente questão. Caracteriza-se a delegação legislativa pela transferência de competências normativas do Legislativo para outro ente, normalmente o Executivo. Tal delegação, entretanto, deve ser estabelecida em regra que contenha a moldura dentro da qual tem o Executivo a possibilidade de exercer a competência delegada. Ora, temos que com a presença de conceitos indeterminados no campo tributário pode-se alcançar o mesmo efeito da delegação legislativa. Com efeito, o que são tais conceitos indeterminados senão standards que devem ser observados pelo aplicador da regra?389 Se efetivamente há uma diferença entre a delegação legislativa e a utilização de conceitos indeterminados na composição da regra tributária parece-nos que esta consiste no fato de que, na delegação, o Executivo é o ente responsável pela concretização em ato dos standards contidos na regra de delegação. De outro lado, a utilização de conceitos indeterminados não representa, necessariamente, a transferência ao Executivo da competência pela sua determinação, mas sim a possibilidade da criação de n normas a partir do texto, inclusive aquela que seja do interesse do Executivo. Todavia, aproximam-se a delegação e a indeterminação na medida que o controle de ambas as figuras se dará pela apreciação da pertinência da norma criada pelo Executivo quando confrontada com os standards previstos na regra delegatória ou no conceito indeterminado utilizado. 389 Segundo Marco Aurélio Greco, “temos que considerar que a tipicidade pode ser vista como standard, como modelo. A lei prevê modelos de conduta e não necessariamente apenas um certo rótulo dado a conduta” (GREGO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 145).

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5.3. A utilização de tipos como instrumento de deslegalização, via delegação de competência, no Direito Tributário

5.4. São os conceitos indeterminados e os tipos compatíveis com o princípio da legalidade tributária?

A adoção de tipos na formatação da legislação tributária igualmente funciona como instrumento de delegação de atividades legislativas ao Poder Executivo, a quem cabe, mediante a edição dos chamados regulamentos tipificadores, identificar os fatos típicos. Como destaca Ricardo Lobo Torres, “assiste-se, na sociedade de risco, ao surgimento de nova equação, na qual o Executivo, por normas regulamentares, procede à tipificação (Typisierung) e até à quantificação (Pauschalierung em alemão)”.390 Ora, parece-nos que ao editar o regulamento tipificador está a Administração a assumir tarefa que originariamente encontrava-se alocada no âmbito da competência legislativa. Assim, a delegação ao administrador da competência para realizar a tipificação deve ser considerada uma espécie de delegação legislativa. Com efeito, o tipo legal, aberto por natureza, é concretizado pela atividade do Poder Executivo, a qual deve ser pautada pelo standard previsto na lei.391 É evidente, portanto, que a adoção de tipos nas normas fiscais é certamente um mecanismo de mitigação da noção tradicional da legalidade tributária,392 na medida em que a abertura do tipo legal certamente põe em xeque as noções de legalidade estrita e tipicidade cerrada conforme sustentadas normalmente pela doutrina tributária.

Diante de todos os comentários apresentados anteriormente, há que se concluir que a utilização de tipos e conceitos indeterminados nos textos das leis fiscais não contraria o princípio da legalidade, se este há de ser compreendido a partir das especificidades da sociedade de risco pós-moderna, à luz da teoria hermenêutica hodierna e tendo como parâmetros os limites da linguagem. Os tipos e conceitos indeterminados somente são contraditórios com as mitológicas figuras da legalidade estrita e da tipicidade cerrada conforme forjadas pela doutrina formalista pátria, que, como visto, pretende que o texto da lei tributária traga uma única e certa mensagem a ser revelada pelo intérprete. Assim, com fundamento em todas as considerações apresentadas ao longo deste estudo, há que se considerar que, deixando-se de lado o unicórnio do fechamento conceitual absoluto e abrindo-se a mente para a realidade da abertura textual, que de modo algum pode ser evitada, não há alternativa senão considerar que o princípio da legalidade na seara tributária limita-se a exigir que o executivo não crie tributos ex nihilo, sem que haja autorização legislativa. Todavia, a legalidade não deve ser interpretada de forma fundamentalista no sentido de que a lei não pode se abrir para a concretização por parte da Administração Pública, desde que a moldura da norma tributária esteja estabelecida no próprio ato emanado do Poder Legislativo. Não se pense que o reconhecimento de que a legalidade tributária é compatível com a delegação de atividades legislativas ao Executivo torna a criação das regras tributárias um exercício do arbítrio. Lembre-se que a legitimidade da delegação legislativa parte da existência de standards legais dos quais o ente delegatário não pode se afastar, dependendo, ainda, da possibilidade de seu controle. Assim, a delegação legislativa em nada se assemelha à atribuição de uma competência arbitrária ao Executivo.

390 TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários, 2005, p. 503. 391 Alberto Xavier, embora negue a possibilidade de sua utilização no campo tributário, concorda que a utilização de tipos e conceitos indeterminados configura espécie de delegação legislativa, ao afirmar que um “tipo de normas de delegação resulta de uma predeterminação indeterminada. Nestes casos formula-se a norma de modo vago e impreciso, de tal modo que ao órgão de aplicação do Direito, face à falta de clareza da lei, é atribuída a liberdade de emitir valorações pessoais que, na prática, equivalem à criação da norma aplicável ao caso concreto. É o que sucede com os conceitos indeterminados (Unbestimmte Rechtsbegriffe), conceitos porosos, dotados de vagueness, fuziness, open texture que, pela sua vaguidade e imprecisão, podem constituir um instrumento de delegação de competência de decisão, permitindo à Administração ou ao juiz uma atividade criadora do Direito” (XAVIER, Alberto, Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, 2001, p. 28). 392 Cf. TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários, 2005, p. 503.

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5.5. O julgamento do Supremo Tribunal Federal no caso do Seguro de Acidentes de Trabalho Como é de conhecimento geral, há alguns anos surgiu no cenário jurídico-tributário pátrio a discussão quanto à constitucionalidade da contribuição 147

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para o custeio do Seguro de Acidente de Trabalho, prevista na Lei nº 8.212/91 em seu artigo 22, inciso II. Um dos principais argumentos jurídicos do questionamento quanto à compatibilidade constitucional do referido dispositivo consistia na alegação de violação ao princípio da legalidade. A celeuma estabeleceu-se em razão das disposições contidas nas alíneas “a”, “b” e “c” do inciso II do artigo 22 da Lei nº 8.212/91, que estabelecem as alíquotas da aludida contribuição em 1%, 2% e 3%, isso a depender da atividade preponderante do contribuinte, que pode ser classificada como de risco leve, risco médio e risco grave. Diante da utilização da indeterminação legal, arguiu-se que a mesma seria inconstitucional, violando os princípios da legalidade e tipicidade tributárias, na medida em que se delegou ao Executivo a determinação do que seria a atividade preponderante da empresa, assim como das atividades que encerrariam riscos leve, médio e grave. Contrário a esse entendimento, manifesta-se o professor Ricardo Lobo Torres exatamente no sentido de que a legislação do SAT compõe-se de tipos, afirmando textualmente que “é legítima a lei que transfere ao regulamento a competência para preencher o tipo nela previsto, explicitando as suas diversas possibilidades”.393 O Supremo Tribunal Federal apreciou a questão nos autos do Recurso Extraordinário nº 343.446 (DJU de 04 de abril de 2003), relatado pelo Ministro Carlos Velloso.394 Como se infere da decisão proferida pelo Supremo Tribunal, manifestou a Corte entendimento no sentido de que “o fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de ‘atividade preponderante’ e ‘grau de risco leve, médio e grave’, não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica, C.F., art. 5º, II, e da legalidade tributária, C.F., art. 150, I. IV”. Interessante destacar a posição sustentada pelo Relator do acórdão, Ministro Carlos Velloso, que justificou seu entendimento pela constitucionalidade do artigo 22, inciso II da Lei nº 8.212/91 arguindo que se estaria no presente caso diante de uma delegação legislativa imprópria para o Executivo, a qual seria legítima diante do princípio da legalidade, uma vez que previstos na lei os standards que deveriam ser observados pelo Poder delegatário. 393 TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários, 2005, p. 504. 394 Para uma análise da decisão proferida pelo STF no caso em tela, ver: GODOI, Marciano Seabra de. Questões Atuais do Direito Tributário na Jurisprudência do STF. São Paulo: Dialética, 2006. p. 18-23.

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A leitura cuidadosa do voto proferido pelo Ministro Carlos Velloso não deixa espaço para dúvidas: o Supremo Tribunal Federal entendeu que a abertura da lei tributária, nesse caso empreendida pela utilização de tipos, corresponde sim a uma forma de delegação legislativa, não a uma delegação pura, para usarmos a terminologia do Ministro Velloso, que permitiria a edição de normas pelo Executivo sem a atenção a qualquer parâmetro legislativo infraconstitucional, mas ainda assim a uma delegação legislativa, correspondente, nas suas palavras à “atribuição que a lei comete ao regulamento para a aferição de dados, em concreto, justamente para a boa aplicação concreta da lei” . Há, todavia, um reparo a se fazer aos fundamentos apresentados pelo ilustre Ministro. Durante seu voto o Ministro Carlos Velloso incorporou às suas razões trechos de decisão proferida pela Ministra Ellen Gracie quando ainda desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Em passagem da referida decisão afirma a Ministra Ellen Gracie que “o regulamento possui uma finalidade normativa complementar, à medida que explicita uma lei, desenvolvendo e especificando o pensamento legislativo. Isso não significa ampliar ou restringir o texto da norma”. Parece-nos que nas palavras da Ministra encontra-se a contradição entre o apego ao senso comum teórico desenvolvido pela dogmática da teoria formalista do Direito Tributário e as teorias mais modernas que, como vimos vendo, reconhecem as modificações pelas quais vem passando a noção de legalidade. Com efeito, se é certo que a delegação legislativa ao Executivo não pode implicar a possibilidade de o ente delegatário alterar os standards da lei de delegação, sendo impossível que a Administração altere o texto da lei que lhe delegou a competência, não se pode perder de vista que quem efetivamente criará a norma jurídica extraível da lei editada pelo Legislativo será o Executivo. Creio que defender que no presente caso a competência legislativa foi exercida integralmente pelo Legislativo, excluindo a margem de liberdade de conformação que os tipos e conceitos indeterminados atribuem ao Executivo é buscar a mudança sem o necessário desapego dos antigos referenciais teóricos sobre a matéria. É hora de começarmos a reconhecer que na seara tributária cada vez mais parcelas de competência legislativa são delegadas ao Executivo, pois somente a partir do momento que essa realidade seja reconhecida começaremos a discutir seriamente quais mecanismos serão utilizados para coibir os desvios da Administração no exercício da liberdade de conformação que lhe foi outorgada. 149

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5.6. Do controle da atividade delegada ao Poder Executivo Uma das consequências mais danosas das ilusões teóricas impostas pelo formalismo tributário pátrio é que o apego a insustentáveis dogmas previnem a discussão acerca do atual estado de coisas, fazendo com que se perca precioso tempo para o debate de como proteger os contribuintes contra o arbítrio no cenário jurídico contemporâneo. Como visto, a abertura das normas tributárias de modo algum abre margem para que a Administração Pública inove o ordenamento jurídico, cabendo-lhe apenas tornar mais concretas as previsões contidas nos atos normativos editados pelo Poder Executivo, sendo certo que nesse processo de concretização é inevitável que se reconheça à administração alguma liberdade de conformação. Nesse contexto, é imperioso que se controle se a complementação normativa originária do Executivo encontra-se nos limites da delegação legislativa, razão pela qual não pode jamais o Legislativo deixar de apresentar os standards que pautarão a atividade legislativa da Administração Pública. É claro que esse controle nem sempre é fácil. Como esclarece Karl Engisch, com fulcro nas lições de Philipp Heck, ao estudar particularmente os conceitos indeterminados, pode-se distinguir nestes um núcleo conceitual e um halo do conceito. Em suas palavras, “sempre que temos uma noção clara do conteúdo e da extensão dum conceito, estamos no domínio do núcleo conceitual. Onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito”.395 O mesmo acontece com os tipos, já que é possível falar em fatos mais ou menos típicos, na medida em que reúnam muitas ou poucas características do tipo legal, sendo certamente possível falar em um halo do tipo, onde a qualificação de determinado fato como típico será duvidosa.396 No controle das normas complementares editadas pelo Executivo exercem papel de destaque o princípio da razoabilidade, no sentido de que deve ser justificável a inclusão de certos eventos no âmbito de um conceito indeterminado ou de um tipo legal; e o princípio da ponderação. A abertura da norma tributária jamais significará uma indeterminação absoluta, o que corresponderia à sua completa inefetividade.

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Dessa forma, ressalta a importância da atividade de controle da legalidade dos atos integrativos expedidos por parte da Fazenda, os quais, caso editados fora do limite possível de interpretação do texto legal, mostrar-se-ão ilegais. Fala-se aqui, com propriedade, na prática de atos ultra vires, com excesso de poder.397 Além da importância dos critérios de controle da adstringência do Executivo à moldura apresentada pelos standards legais, são sobremaneira relevantes os instrumentos de realização de tal controle, notadamente o processo tributário, administrativo e judicial. De toda forma, o relevante aqui é registrar que, no que se refere aos conceitos indeterminados e tipos utilizados na elaboração das leis tributárias não haverá qualquer zona de insindicabilidade judicial, conforme fala Gustavo Binenbojm ao cuidar da questão no âmbito do Direito Administrativo.398 Assim, caberá sempre ao Poder Judiciário fixar o sentido concreto e o alcance dos conceitos indeterminados e tipos na seara fiscal.

6. Conclusão Como deixamos averbado em outro estudo, “um dos desafios mais difíceis enfrentados pelos operadores do direito é a superação de dogmas que há muito habitam seu ideário teórico. Essa é a razão pela qual, na maior parte das vezes, prefere-se o conforto do senso comum teórico estabelecido, do que o horror da indeterminação trazido pela mudança de paradigmas”.399 O tema da segurança jurídica na seara tributária e seus corolários, legalidade estrita e tipicidade cerrada, ainda hoje são debatidos em sede doutrinária sob o influxo de um marco teórico inaplicável no âmbito da sociedade de risco pós-moderna, caracterizada exatamente pela insegurança, incerteza e pela ambivalência das relações jurídico-sociais. A pretensão de uma legislação tributária forjada a partir de conceitos determinados, os quais levariam a uma legalidade e tipicidade que permitiriam

397 Cf. GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez. Los Controles de la Legislación Delegada. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1995. p. 216-238. 398 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 211-224.

395 ENGISCH, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico, 1996, p. 209. 396 Cf. KAUFMANN, Arthur, Filosofía del Derecho, 1999, p. 250.

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399 SILVA, Sergio André R. G. da. A Hermenêutica Jurídica sob o Influxo da Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 64, set.-out. 2005. p. 276.

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uma segurança jurídica absoluta do contribuinte e da Fazenda Pública, mostra-se equivocada, e contrária à realidade do mundo hodierno. A defesa desses paradigmas apenas superficialmente é feita em defesa dos contribuintes. Com efeito, a distorção entre realidade e teoria é tão evidente, que o senso comum teórico do formalismo tributário não consegue impedir que a legislação aos poucos se adapte à realidade contemporânea, como aconteceu no caso da comentada contribuição para o SAT. Assim, a consequência imediata das ideias defendidas pelo formalismo tributário reinante no Brasil não é a estruturação de um sistema conforme com seus paradigmas, mas sim a falta de uma discussão acadêmica séria a respeito dos mecanismos que devem ser implementados para que a segurança jurídica seja preservada. Essa, talvez, a conclusão mais importante chegada ao cabo desses parágrafos. É importante que os tributaristas deixem de lado dogmas de longa data assimilados, para se dedicar ao estudo da nova realidade e, dessa forma, dos meios que devem ser utilizados para a proteção da segurança jurídica dos contribuintes e da Fazenda Pública. É o que hoje já se vê sendo debatido em alguns países europeus, onde se consolidam mecanismos de superação da incerteza e da insegurança, como os mecanismos alternativos de solução de controvérsias na seara tributária.400

400 Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 401-424; RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues; RIBAS, Antonio Souza. Arbitragem como meio Alternativo na Solução de Controvérsias Tributárias. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 60, jan.-fev. 2005, pp. 223-247; TÔRRES, Heleno Taveira. Transação, Arbitragem e Conciliação Judicial como Medidas Alternativas para Resolução de Conflitos entre Administração e Contribuintes - Simplificação e Eficiência Administrativa. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 86, 2003, p. 40-64.

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Parte 2 Temas de Processo Tributário

Modulação de Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade e Consequencialismo: Instrumentos de Desconstitucionalização do Direito Tributário (2013)

1. Introdução Uma das características marcantes do Direito Tributário brasileiro, quando comparado com outros ordenamentos jurídicos, consiste em sua base constitucional. De fato, uma das peculiaridades de nosso sistema tributário reside na existência de um grande número de regras e princípios constitucionais que regulam as relações entre os entes tributantes e os contribuintes, fazendo com que o sistema tributário nacional seja bastante rígido, com limites e limitações claras às competências tributárias conferidas à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Como observa Geraldo Ataliba, ao proceder à comparação entre o ordenamento jurídico tributário brasileiro e o de outros países “aqui, o legislador ordinário não pode fazer nada, não contribui, não pode contribuir para moldar o sistema. O sistema já vem feito pelo legislador constituinte. A Constituição faz o sistema inteiro e se limita a dar competências bastante estritas ao legislador ordinário, que circunscrever-se-á a desenvolver aquilo que já está fundamentalmente posto pela Constituição”401. Para Aliomar Baleeiro, tal constitucionalização do Direito Tributário brasileiro seria uma decorrência do federalismo aqui adotado, o qual exigiria 401 ATALIBA, Geraldo. Hermenêutica e Sistema Constitucional Tributário. In: ATALIBA, Geraldo (Coord.). Interpretação no Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 22. Conforme salienta Sacha Calmon Navarro Coêlho, em seu estudo sobre o controle da constitucionalidade das leis em sede tributária: “Para logo observa-se que país algum ‘constitucionalizou’ tanto o Direito Tributário. A Constituição Brasileira de 88 contém cerca de 20 artigos, 76 incisos e 39 parágrafos dedicados ao poder de tributar, às regras de competência, aos princípios juristributários e aos direitos e garantias dos contribuintes, em tratamento exaustivo e analítico” (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O Controle da Constitucionalidade das Leis e o Poder de Tributar na Constituição de 1988. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 247-248). No mesmo sentido: CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 44.

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uma maior regulação constitucional acerca das competências tributárias dos diversos entes federativos402. No cenário acima descrito, em que a constitucionalização do sistema tributário brasileiro se apresenta como realidade, tornam-se frequentes as controvérsias surgidas entre os contribuintes e os entes tributantes cuja origem remonta à interpretação/aplicação de alguma norma sediada na Constituição Federal. Com isso, o Supremo Tribunal Federal, enquanto Guardião da Constituição, passa a exercer uma função de extrema relevância na construção do sistema tributário, a ponto de gerar questionamentos acerca dos limites de sua atuação e da tensão democrática entre a mesma e a Função Legislativa403. A importância crescente das discussões tributárias apresentadas à Suprema Corte para julgamento impulsionou o desenvolvimento do estudo de dois temas relevantes e interconexos do constitucionalismo contemporâneo: o consequencialismo como argumento para fundamentação de decisões judiciais e a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão declaratória da inconstitucionalidade de um ato normativo. Segundo Ricardo Lobo Torres, “o argumento de consequência é utilizado no discurso de aplicação do direito e consiste na consideração das influências e das projeções da decisão judicial – boas ou más – no mundo fático. Efeitos econômicos, sociais e culturais – prejudiciais ou favoráveis à sociedade – devem ser evitados ou potencializados pelo aplicador da norma, em certas circunstâncias”404. Na visão de Heleno Taveira Tôrres o consequencialismo jurídico seria “uma decorrência da complexidade jurídica, pela progressiva abertura do ordenamento a cláusulas gerais que, em cotejo com a Constituição, estimulam o exercício consequencialista como forma de garantir julgamentos pautados pela razoabilidade, sopesamentos e coerência com a realidade social”405.

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Por outro lado, como pontua Humberto Ávila, em sua atividade judicante há situações em que o Supremo Tribunal Federal “declara inconstitucional a lei, porém restringe ao futuro ou a outro momento os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, estabelecendo, ou não, regras de transição. Enfim, o Tribunal resguarda a eficácia passada da lei inconstitucional por reconhecer que, assim procedendo, estará mais promovendo a ordem constitucional do que faria se declarasse a inconstitucionalidade da norma com efeitos declaratórios. A ‘modulação’ dos efeitos temporais das decisões consiste, pois, numa forma de ‘moderar’ os efeitos da anulação”406. Existe uma relação potencial entre os dois temas na medida em que o argumento consequencialista pode vir a ser o fundamento para a eventual modulação dos efeitos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Nas palavras de Fábio Martins de Andrade, “o campo limitado da modulação, que sempre há de ser aplicado como medida excepcional à luz de circunstâncias específicas da situação apresentada, pode e deve levar em conta o argumento pragmático ou consequencialista”407. Diante desses comentários, surgem duas questões das quais nos ocuparemos neste texto: • Há de fato espaço para o argumento consequencialista como fundamento expresso de decisão do Supremo Tribunal Federal na esfera tributária? • É possível a modulação dos efeitos da decisão declaratória da inconstitucionalidade de ato normativo tributário? A análise desses temas será o objeto deste breve estudo.

2. Consequencialismo e o Direito Tributário 402 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 11. 403 Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. O Protagonismo do STF na Interpretação da Constituição pode afetar a Segurança Jurídica em Matéria Tributária? In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário: 15º Volume. São Paulo: Dialética, 2011. p. 415-430.

É um truísmo afirmar que o julgador, ao exercer a função jurisdicional, leva em conta as consequências de sua decisão. Temos escrito bastante sobre

404 TORRES, Ricardo Lobo. O Consequencialismo e a Modulação dos Efeitos das Decisões do Supremo Tribunal Federal. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Direito Tributário e Ordem Econômica: Homenagem aos 60 Anos da ABDF. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 200.

406 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 496-497.

405 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 459.

407 ANDRADE, Fábio Martins de. Modulação em Matéria Tributária: O Argumento Pragmático ou Consequencialista de Cunho Econômico e as Decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 23.

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a situação atual da interpretação jurídica408. Superado o conforto ilusório das teorias formalistas, vivemos um período em que o processo de interpretação/ aplicação do direito, desenvolvido nos marcos do pós-postivismo e de teorias como a argumentação e a ponderação de bens, interesses e valores, traz para o debate concreto todos os tópicos relevantes para a tomada de uma decisão, inclusive as suas consequências sociais, políticas e econômicas. Porém, no campo do consequencialismo não estamos discutindo as motivações internas do julgador, mas sim a fundamentação de sua decisão. Como leciona Marciano Seabra de Godoi, “no Direito, o consequencialismo é geralmente relacionado ao tema da justificação ou da fundamentação das decisões judiciais. Um adepto do consequencialismo jurídico (que pode ser um juiz, um jurista, um advogado) prefere (dentre várias possíveis) ou fundamenta uma decisão judicial avaliando as consequências (sociais, econômicas) dessa decisão em comparação com as consequências de decisões alternativas”409. No Direito Constitucional em geral, o tema do consequencialismo assume contornos que fogem ao escopo do presente artigo. Nosso foco é a aplicação de argumentos consequencialistas como fundamentação de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade de atos normativos tributários. Nessa seara, o principal argumento consequencialista apresentado pela Fazenda Pública é de ordem financeira, fulcrado na manutenção do equilíbrio orçamentário e a incapacidade do Erário de (a) fazer face à despesa decorrente da restituição dos tributos indevidamente recolhidos pelos contribuintes, ou (b) de renunciar ao recolhimento de determinado tributo. Alguns autores têm sustentado que, dentro de certos parâmetros, o consequencialismo é positivo e passível de ser utilizado como fundamento de decisões do STF em matéria tributária410. Essa não é, contudo, nossa opinião. 408 Ver: ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados contra a Dupla Tributação da Renda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 55-90; ROCHA, Sergio André. Evolução Histórica da Teoria Hermenêutica: Do Formalismo do Século XVIII ao Pós-positivismo. In: ELALI, André; MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; TRENNEPOHL, Terence (Coords.). Direito Tributário: Homenagem a Hugo de Brito Machado. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 165.214.

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Já mencionamos acima o caráter constitucional do sistema tributário brasileiro. Aspecto muito bem ressaltado por Humberto Ávila reside no fato de que a Constituição Brasileira, diferentemente da Lei Fundamental Alemã, por exemplo, estabelece regras rígidas de atribuição de competência, que pouca margem deixam para o legislador infraconstitucional. Vale a pena transcrevermos seu comentário: Em primeiro lugar, o “Sistema Tributário Nacional” da CF/88 é composto substancialmente de regras de competência, ao passo que o capítulo destinado ao Regime Financeiro (das Finanzwesen) pela Lei Fundamental Alemã apenas contém a indicação de espécies tributárias, sem a determinação dos aspectos das hipóteses de incidência. Em razão disso, a atividade do Supremo Tribunal Federal centra-se na verificação do exercício do poder no âmbito atribuído pelas regras de competência e pelos princípios tributários. O resultado disso é enorme: no Brasil, as declarações de inconstitucionalidade nesse âmbito envolvem, sobretudo, leis tributárias que extrapolam os limites traçados por aspectos da hipótese das regras de competência; na experiência do Tribunal alemão, como não há regras de competência tributárias tais como as brasileiras, a inconstitucionalidade manifesta-se pelo exercício da liberdade de configuração do legislador em desconformidade com os princípios tributários.411

Como destacamos antes, na esfera tributária o argumento consequencialista pró-fisco de regra se fundamenta na necessidade financeira do Estado. Ora, considerando que o Estado cria a regra inconstitucional, o Estado aplica a regra inconstitucional e, não esqueçamos, o Estado julga a respeito da regra inconstitucional, é de se questionar se deve o contribuinte deixar de receber a proteção constitucional em razão do desvio de competência do ente federativo. Quer-nos parecer que o argumento consequencialista fundado na necessidade financeira do Estado não é legitimo para fundamentar uma decisão a respeito da constitucionalidade de ato normativo, ou para justificar a modulação dos efeitos de tal decisão, sendo externo ao sistema jurídico. Como bem identificado por Misabel Derzi, a integração do sistema jurídico por outros sistemas seria uma forma de sua corrupção por fatores que lhe são externos. Vejamos sua lapidar lição:

409 GODOI, Marciano Seabra de. O Consequencialismo Jurídico e as Modulações dos Efeitos das Decisões do STF. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário: 12º Volume. São Paulo: Dialética, 2009. p. 287. 410 Ver: CEZAROTI, Guilherme. O Consequencialismo Jurídico e as Modulações dos Efeitos das Decisões do STF. In: ROCHA, Valdir de Oliveia (Coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário: 12º Volume. São Paulo: Dialética, 2009. p. 151; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. O Consequencialismo

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Jurídico e as Modulações dos Efeitos das Decisões do STF. In: ROCHA, Valdir de Oliveia (Coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário: 12º Volume. São Paulo: Dialética, 2009. p. 343. 411 ÁVILA, Humberto, Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário, p. 521.

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Ora, o fechamento operacional do direito é essencial ao Estado de Direito e da Constituição, de modo que não é possível colher diretamente do ambiente exterior (o econômico ou político) os dados de determinação externa do sistema, como demonstrou Marcelo Neves. Embora os fatores externos do ambiente sejam básicos para o sistema, que cognitiva e semanticamente para eles abre-se, apenas através de seleção, acopladores estruturais e operacionais, pode o sistema convertê-los em dados próprios, geralmente adaptados e mesmo deformados e, a partir daí, atuar em processo contínuo. Exatamente por isso, é necessário identificar o que seria um certo “politicismo” das decisões judiciais, em especial do Supremo Tribunal Federal, autorizado e, não raramente, querido pelo próprio sistema, inconfundível com a heterodeterminação intolerável das decisões judiciais, como corrupção do sistema. Certa margem de escolha política, entretanto, é um fato inerente às decisões judiciais, especialmente às sentenças de Cortes Constitucionais, politicismo que não pode ser identificado como critério extrajurídico, estranho ao ambiente interno do próprio sistema jurídico. Aos leigos, o politicismo não aparece, porque somente se pode revelar na interpretação com que é convertido (em conversão autorizada pelos acopladores) internamente em conceitos jurídicos, tanto aqui em nosso País, como nos EUA.412

Algo que não se pode deixar de perceber é que raramente os contribuintes deixam de questionar junto ao Poder Judiciário a constitucionalidade de normas tributárias incompatíveis com a Constituição Federal, muitas vezes até mesmo valendo-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade para tanto. Ora, uma resposta rápida por parte do Poder Judiciário, mormente nos casos em que a Ação Direta é ajuizada perante o STF, teria como efeito a redução dos efeitos financeiros da decisão judicial da Suprema Corte. Contudo, nada poderia estar mais distante da realidade. Comentamos este tema em recente texto, já citado, sobre os reflexos do protagonismo do STF na interpretação da Constituição sobre a segurança jurídica em matéria tributária: [...] Se o protagonismo do STF na interpretação constitucional, no contexto da argumentação jurídica e com a participação no processo dos demais intérpretes da Constituição, não é uma ameaça à segurança ju-

412 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 44-45.

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rídica possível na sociedade de risco, o tempo que leva para a Corte se pronunciar sobre as questões é. Voltando às dimensões da segurança jurídica trazidas por Humberto Ávila na passagem antes transcrita, se é certo que às vezes a previsibilidade das consequências jurídico-tributárias de determinada conduta somente será possível após a manifestação do STF, é igualmente certo que, enquanto tal pronunciamento não for emitido, prevalecerão a incerteza e a insegurança nas relações entre Fisco e contribuintes. Podemos citar um exemplo. Em dezembro de 2010 foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.588, cujo objeto é o artigo 74 da Lei nº 2.158-35, que veiculou a regra brasileira de tributação de lucros no exterior. Passados quase 10 anos, quando este artigo foi entregue à Dialética a ação ainda não havia sido julgada pelo STF. Isso significa que há 10 anos o mercado não tem uma orientação sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do aludido dispositivo. Isso é que corrói a segurança jurídica, não o papel do Supremo Tribunal Federal em si.413

Vejamos. Após dez anos de trâmite de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que, infelizmente, não se pode chamar de exceção, faz algum sentido que argumentos de ordem consequencialista, de fundo econômico-financeiro, tenham papel na fundamentação da decisão a ser tomada pela Corte? Parece-nos que não. Essa é a realidade da maioria dos temas tributários julgados pelo Supremo Tribunal Federal. O contribuinte não foi relapso em buscar o Poder Judiciário para afastar a aplicação do ato normativo inconstitucional. O Judiciário é que, justificada ou injustificadamente, foi moroso na prestação da tutela jurisdicional. E quem deve pagar a conta, o contribuinte? Claro que não. Se o Estado-Legislativo ou o Estado-Executivo agiu contra a Constituição e o Estado-Judiciário demorou a corrigir tal comportamento, a solução da questão não pode ser o apequenamento da Constituição, o que somente viria a estimular a tão falada inconstitucionalidade útil414.

413 ROCHA, Sergio André. O Protagonismo do STF na Interpretação da Constituição pode afetar a Segurança Jurídica em Matéria Tributária? ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário: 15º Volume. São Paulo: Dialética, 2011. p. 429-430. 414 Conforme destaca Ricardo Lobo Torres, “não raro a Administração adota conduta claramente inconstitucional na expectativa de que demore ou não sobrevenha o controle judicial da constitucionalidade, o que lhe permite aumentar a arrecadação. É a inconstitucionalidade útil,

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Como já dissemos, pode-se pretender utilizar o argumento consequencialista em determinado caso tanto para suportar a declaração da constitucionalidade de ato normativo, quanto para fundamentar a modulação dos efeitos da decisão a ser proferida, de modo que esta somente tenha efeitos para o futuro. Aqui temos a interseção dos dois temas. No seguinte item analisaremos a questão da modulação dos efeitos de decisões do Supremo Tribunal Federal.

3. Modulação dos efeitos da decisão declaratória da inconstitucionalidade de ato normativo No dia 11 de novembro de 1999 foi publicada a Lei nº 9.868, a qual “dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”. Dentre as regras introduzidas no ordenamento jurídico pátrio pelo referido diploma legal, uma das mais relevantes está prevista em seu art. 27, o qual estabelece que “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. A edição da supratranscrita regra foi aparentemente bem recebida por parte da doutrina pátria. Ao examinar o texto legal em comento, Carlos Roberto Siqueira Castro aduziu que o mesmo “exterioriza a grande contribuição congressual para o tema”415 [dos efeitos da decisão proclamatória da inconstitucionalidade das normas no Direito pátrio]. No mesmo sentido é o entendimento de Daniel Sarmento, para quem “a inovação introduzida pelo art. 27 da Lei nº 9.868 é, em linha geral, digna de encômios, na medida em que outorgou ao

que fere frontalmente o princípio da moralidade” (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 24). 415 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Da Declaração de Inconstitucionalidade e seus Efeitos em Face das Leis nos 9.868 e 9.882/99. In: SARMENTO, Daniel (Org.). O Controle de Constitucionalidade e a Lei nº 9.868/99. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 95.

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STF os poderes necessários para que este tenha como exercer, a contento, a sua missão de guardião da Lei Maior”.416 Ao que tudo indica, o entendimento dos citados constitucionalistas não é unânime no meio jurídico, tanto que o aludido dispositivo legal é objeto de duas ações diretas de inconstitucionalidade, de números 2.154 e 2.258, ajuizadas respectivamente pela Confederação Nacional das Profissões Liberais e pela Ordem dos Advogados do Brasil. Parece-nos que nenhum dos dois entendimentos, seja o enaltecimento do art. 27 da Lei nº 9.868/99, seja o questionamento quanto à sua constitucionalidade, reflete o melhor posicionamento quanto à eficácia do dispositivo legal em comento. Com efeito, entendemos que a melhor compreensão quanto à questão sob análise seria no sentido de que tanto a edição do art. 27 da Lei nº 9.868/99 quanto o questionamento de sua constitucionalidade são, de fato, absolutamente inócuos.417 Há de se convir que, existindo ou não a regra de que se trata, cabe exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, à falta de norma constitucional a respeito, decidir quanto aos efeitos das decisões proferidas em sede de controle da constitucionalidade de atos normativos. Assim sendo, é certo que, mesmo antes da vigência do art. 27 da Lei nº 9.868/99, poderia o Supremo Tribunal declarar, com efeitos ex nunc, a inconstitucionalidade de ato normativo, podendo, por outro lado, afastar, a qualquer momento, a eficácia dessa regra infraconstitucional. Nessa linha de ideias, assevera Carlos Roberto Siqueira Castro, em texto aparentemente redigido antes da edição da Lei nº 9.868/99, que, diante da omissão constitucional acerca dos efeitos da decisão proferida no âmbito do controle da constitucionalidade das normas, poderia a Suprema Corte construir jurisprudência que preenchesse essa lacuna existente no ordenamento jurídico brasileiro.418 416 SARMENTO, Daniel. A Eficácia Temporal das Decisões no Controle de Constitucionalidade. In: SARMENTO, Daniel (Org.). O Controle de Constitucionalidade e a Lei nº 9.868/99. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 125. 417 Conforme salienta Paulo Roberto Lyrio Pimenta: “Parece-nos que esse dispositivo é de grande inutilidade no direito brasileiro, eis que a possibilidade de mitigação da eficácia temporal da pronúncia de inconstitucionalidade encontra-se implicitamente admitida no texto da constituição, como examinado anteriormente; sendo desnecessária, portanto, a previsão em lei infraconstitucional” (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade em Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2002. p. 99). 418 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Da Declaração de Inconstitucionalidade e seus Efeitos. Revista Ibero-Americana de Direito Público, Rio de Janeiro, jan.-jun. 2000, v. 1, p. 47.

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Nessa ordem de considerações, é possível aduzir que a questão dos efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade trata-se de matéria de natureza constitucional, cabendo à Suprema Corte, em face da omissão do legislador constituinte, resolver com exclusividade a tal respeito, falecendo ao legislador infraconstitucional competência para delimitar a ação do Supremo Tribunal nesta seara.

3.1. O controle da constitucionalidade das leis no Brasil A Constituição Brasileira de 1924 não previa o controle da constitucionalidade das leis. Com efeito, a influência das experiências inglesa e francesa, onde inexistia qualquer controle da constitucionalidade dos atos normativos, e a existência do Poder Moderador inviabilizavam o estabelecimento de um modelo de controle jurisdicional da constitucionalidade das normas.419 Com a promulgação da Constituição Republicana de 1891, sob a influência de Ruy Barbosa, foi instituído no Brasil o controle de constitucionalidade das leis. O modelo então adotado foi notadamente influenciado pelo sistema difuso norte-americano, somente podendo-se discutir a questão da inconstitucionalidade das normas no âmbito de lides interpartes. Nas palavras de Ruy Barbosa: Óbvio é, portanto, que a ação judiciária não pode estabelecer-se, onde não houver agravo ao direito de uma pessoa. Esta condição desdobra-se naturalmente da anterior. A justiça federal não pode assumir a sua autoridade protetora da Constituição “senão quando os atos do poder legislativo, ou do poder executivo, colidirem com os direitos individuais, ou a propriedade particular. Só se pode intentar a lide, quando houver relações individuais diretamente prejudicadas”.420

Até a edição da Emenda Constitucional nº 16 de 1965, o modelo brasileiro de controle da constitucionalidade dos atos normativos, embora tenha alternado momentos de progresso com outros de retrocesso, manteve as linhas gerais do controle difuso idealizado por Ruy Barbosa, nos moldes do sistema americano. A partir da vigência da mencionada emenda constitucional, entretanto, institui-se no direito pátrio nova forma de controle da constitucionalidade, com 419 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O Controle da Constitucionalidade das Leis e o Poder de Tributar na Constituição de 1988. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 153. 420 BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1933. v. IV. p. 176.

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a previsão da competência do Procurador-Geral da República para o ajuizamento de ação, perante o Supremo Tribunal Federal, questionando a constitucionalidade de lei em tese421. Conforme salienta Gilmar Ferreira Mendes, a partir da Emenda Constitucional nº 16/65 e antes da vigência da Carta de 1988, há no Brasil um sistema “misto” de controle da constitucionalidade, com a prevalência do modelo difuso sobre o concentrado422. Nada obstante, com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 e a ampliação do rol de legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, o método concentrado de controle passou a preponderar sobre o difuso423. Em consonância com o magistério de Gilmar Ferreira Mendes: A Constituição de 1988 alterou, de maneira radical, essa situação, conferindo ênfase não mais ao sistema difuso ou incidente, mas ao modelo concentrado, uma vez que as questões constitucionais passam a ser veiculadas, fundamentalmente, mediante ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.424

Desde a origem do controle da constitucionalidade das leis no Direito Constitucional brasileiro tem prevalecido o entendimento no sentido de que as normas inconstitucionais são absolutamente nulas, e não apenas anuláveis, tendo natureza meramente declaratória a decisão que reconhece a inconstitucionalidade de ato normativo, à qual devem ser reconhecidos efeitos ex tunc.425 Nas palavras de Clèmerson Merlin Clève: 421 MENDES, Gilmar Ferreira e MARTINS, Ives Gandra da Silva. Controle Concentrado de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 40-43. 422 Controle Concentrado de Constitucionalidade, 2001, p. 63. 423 Com a reforma constitucional que criou o regime da repercussão geral (Emenda Constitucional nº 45/2004) o sistema difuso de controle da constitucionalidade voltou a ganhar relevância no Brasil. 424 Controle Concentrado de Constitucionalidade, 2001, p. 64. 425 Como salienta Gilmar Ferreira Mendes “o dogma da nulidade da lei inconstitucional pertence à tradição do direito brasileiro. A teoria da nulidade tem sido sustentada por praticamente todos os nossos importantes constitucionalistas” (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 313). Também Carlos Roberto Siqueira Castro nos dá notícia do tradicional posicionamento da doutrina pátria: “Por essas razões históricas que nortearam na origem a competência recursal do Supremo Tribunal Federal no campo do controle difuso, foi natural que a doutrina constitucionalista de nosso País estendesse ao mecanismo de controle concentrado os mesmos mecanismos consagrados atributos de nulidade ab initio da lei

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A decisão judicial, seguindo a doutrina consagrada, é declaratória (declara um estado preexistente) e não constitutiva-negativa. O ato judicial não desconstitui (puro efeito revogatório) a lei tal como ocorre, por exemplo, em outros modelos de fiscalização da constitucionalidade, mas apenas reconhece a existência de um ato viciado. E, por esse motivo, a decisão produz efeitos ex tunc, retroagindo até o nascimento da norma impugnada.426

Nada obstante, conforme já mencionado, o entendimento atual vigorante acerca da retroatividade ou pró-atividade da decisão proferida no âmbito do controle da constitucionalidade das normas no Direito Comparado indica uma relativização casuística, no sentido de que, em atenção às peculiaridades do caso concreto, podem ser atribuídos a tal decisão efeitos ex nunc ou ex tunc. No dizer de Carlos Roberto Siqueira Castro: De fato, no que tange à questão dos efeitos da decisão proclamatória da inconstitucionalidade, verifica-se hodiernamente que o radicalismo crônico, que marcou a afirmação histórica dos contrapostos modelos norte-americano e austríaco, cedeu vez a abrandamentos ditados pelas demandas do realismo jurídico e da justiça pragmática. Assim se fez a ponto de possibilitar saudáveis atenuações, ora na conferência de efeitos ex tunc no campo do controle concentrado, ora na atribuição de efeitos ex nunc nas searas do controle designado difuso ou de revisão judicial, às decisões proferidas nas mais diversas situações em que despontam litígios de confrontação constitucional.427

É inquestionável a plausibilidade jurídica desse entendimento. Com efeito, resta evidente que tanto a retroatividade quanto a pró-atividade da decisão proclamatória da inconstitucionalidade de ato normativo devem ser decididas de forma casuística, tendo como fundamento o princípio da proporcionalidade e a ponderação dos interesses e valores em questão.

inconstitucional e de retroatividade radical quanto aos efeitos da decisão proclamatória do vício da inconstitucionalidade” (CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, Da Declaração de Inconstitucionalidade e seus Efeitos, 2000, p. 29.)

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Adotando-se, portanto, esse critério de análise casuística dos efeitos da decisão que reconhece a inconstitucionalidade de lei viabiliza-se o alcance do “direito justo”, cuja existência, para Karl Larenz, encontra-se estreitamente vinculada à ideia de razoabilidade.428 Em resumo, a doutrina que apregoa que os efeitos das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade dos atos normativos devem ser decididos à luz das peculiaridades de cada caso concreto parece refletir a louvável preocupação com a realização da justiça material, retratando, ainda, as modernas tendências hermenêuticas, consubstanciadas na teoria da argumentação, na tópica jurídica e no método concretizador. Nada obstante, a despeito do que restou asseverado anteriormente, é de se assinalar que, se, em regra geral, a relativização dos efeitos da decisão proferida em sede de controle da constitucionalidade das normas jurídicas presta-se à concretização de imperativos de justiça material, é certo, por outro lado, que tal não é o caso no que se refere ao controle da constitucionalidade das leis fiscais no Direito pátrio, que, conforme será demonstrado a seguir, pode ser considerado como exceção a essa regra geral (da análise casuística).

3.2. Dos efeitos da decisão proclamatória da inconstitucionalidade de norma tributária no âmbito do controle da constitucionalidade das normas Feitos os esclarecimentos anteriores, chega-se ao tema dos efeitos da decisão, proferida em sede de controle da constitucionalidade das normas jurídicas, que reconhece a inconstitucionalidade de “lei tributária”. Como vimos aduzindo, se, em outras searas do direito, a relativização casuística dos efeitos das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade das normas tem efeitos positivos, no âmbito do Direito Tributário os efeitos dessa doutrina são dos mais nefastos, servindo de carta branca para que o legislador infraconstitucional viole os mandamentos constitucionais, exigindo tributos em contradição com os princípios fundamentais que devem reger a atividade tributária. Isso porque, como é sempre possível argumentar que o interesse da Fazenda Pública deve ser considerado como um interesse público superior que

426 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 244. 427 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, Da Declaração de Inconstitucionalidade e seus Efeitos, 2000, p. 30.

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428 LARENZ, Karl. Derecho Justo: Fundamentos de Etica Jurídica. Madrid: Civitas, 1985. p. 30-31.

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reflete em favor de toda a coletividade, poder-se-ia chegar à situação em que os entes tributantes poderiam instituir tributos da forma que bem entendessem, ignorando as normas constitucionais, fiando-se na declaração com efeitos pró-futuro da inconstitucionalidade do tributo. Dessa forma, é forçoso asseverar que a decisão proclamatória da inconstitucionalidade de lei fiscal deve possuir sempre efeitos retroativos, fulminando a norma jurídica desde a sua nascença, como forma de se conferir a devida efetividade aos princípios constitucionais tributários e às regras atributivas de competência. Caso contrário é melhor apagar os arts. 145 a 156 da Constituição Federal. É cediço que o legislador brasileiro muitas vezes, de forma consciente e planejada, institui ou majora tributos de forma inconstitucional. Esse consciente agir em excesso de poder é decorrência da confiança na morosidade do Poder Judiciário, na inacessibilidade desse mesmo Poder a muitos contribuintes e na enorme dificuldade de interpretação das regras fiscais, que faz com que os contribuintes muitas vezes sequer se deem conta de que estão recolhendo aos cofres públicos tributos inconstitucionais. Assim sendo, não há duvidas de que, tendo em vista esse quadro fático, não há como, no Direito pátrio, conferir-se efeitos ex nunc à decisão proferida no âmbito do controle de constitucionalidade das leis tributárias, o que, como dito, só teria o significado de legitimar a ação inconstitucional dos entes tributantes, negando vigência a disposições constitucionais que garantem os direitos fundamentais do homem enquanto contribuinte. Com efeito, se estiver claro em determinado caso que o legislador infraconstitucional exerceu sua competência com excesso de poder, criando um dever tributário inconstitucional para o contribuinte, não há razão jurídica que justifique o enriquecimento sem causa por parte da Fazenda Pública. A afirmação de que a Fazenda não tinha qualquer direito aos valores recolhidos mas que, mesmo assim, deve permanecer com os mesmos, por uma questão econômico-financeira conjuntural, não possui qualquer fundamento jurídico. Trazemos ao presente texto, a esta altura, os comentários precisos de Humberto Ávila sobre o tema em tela: Manter os efeitos de lei tributária inconstitucional produz ainda mais um efeito devastador relativamente à insegurança do presente e do futuro. É que a alegação para se manter a validade da lei é a de que, quanto maior for a arrecadação, tanto mais os princípios serão promovidos, e, quanto maior a perda, tanto menos os princípios serão promovidos. Como as leis

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tributárias, na sua eficácia geral preponderante, promovem efeitos restritivos dos direitos de liberdade e de propriedade, quanto mais alta a carga tributária e, portanto, maior a arrecadação, tanto maior é a restrição dos direitos fundamentais dos contribuintes. No entanto – e aqui começa a perversão do raciocínio –, quanto maior a arrecadação, e, portanto, a restrição dos direitos fundamentais, tanto maior será a perda de arrecadação com a declaração de nulidade da lei tributária. Se a perda de arrecadação puder, então, funcionar como justificativa para a manutenção da lei que a viabiliza, quanto maior for a perda arrecadatória, maiores serão as chances de a lei ser mantida. Vale dizer, quanto maior for a inconstitucionalidade da lei, maior a chance de esta ser declarada constitucional! Aqui a licenciosidade do raciocínio se completa: quanto mais inconstitucional a lei, mais constitucional ela é. Aceitar este tipo de argumentação é não apenas admitir que o Direito não vincula; é incentivar também a sua violação, além de brincar com a razão. [...] O uso do critério financeiro a fim de se manter efeitos passados de leis inconstitucionais é – como bem aponta Moes – incompatível com a dogmática dos direitos fundamentais.429

Feitas essas considerações, resta ainda uma questão a ser analisada, a qual apresenta contornos distintos da que foi até o presente momento examinada, concernente à hipótese em que a declaração da inconstitucionalidade do ato normativo tem efeitos gravosos para o contribuinte, ou seja, trata-se de inquirir se as conclusões acima apresentadas mostram-se válidas também para os casos em que não se trata da inconstitucionalidade de norma impositiva tributária, mas de regra que estabelecia tratamento fiscal mais vantajoso ao contribuinte. Senão, vejamos.

3.3. Dos efeitos da decisão proclamatória da inconstitucionalidade de norma tributária benéfica ao contribuinte No presente item tratar-se-á da questão relativa aos efeitos de decisão que proclama a inconstitucionalidade de norma tributária benéfica aos contribuintes, como uma regra isentiva, por exemplo. Desde já impõe-se asseverar que a análise da presente questão reveste-se de contornos distintos daquela examinada até o presente momento.

429 ÁVILA, Humberto, Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário, p. 555.

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Com efeito, as conclusões apresentadas no item anterior têm fundamento, como visto, na proteção dos direitos constitucionais dos contribuintes, evitando a sua relativização em função da adoção de efeitos pró-futuro nas decisões proclamatórias da inconstitucionalidade de normas impositivas tributárias. Entretanto, tal justificativa não se encontra presente na situação inversa, quando a declaração da inconstitucionalidade da norma se mostra mais gravosa para o contribuinte. Assim, no caso ora sob análise é possível a definição quanto aos efeitos da decisão proclamatória de inconstitucionalidade de forma casuística, em atenção às peculiaridades do caso concreto sub judice, isso uma vez que, nesse caso, não haveria a possibilidade de utilização, pelo Poder Público, de normas inconstitucionais como instrumento para a exigência de tributos, em violação aos direitos fundamentais dos contribuintes. Note-se que o que se está afirmando é ser possível a relativização casuística dos efeitos das aludidas decisões, e não que os mesmos devam ser, obrigatoriamente, pró-futuro, como defende Hugo de Brito Machado na seguinte passagem: Imaginemos a decisão que declara inconstitucional uma lei que isenta de tributo a importação de determinada mercadoria. Se tal decisão produzir efeitos a partir da edição da lei, então todas as importações já ocorridas ensejam a consideração daquelas importações como crime de descaminho. Constitui abuso de autoridade, entre outras condutas, a de levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei. (Lei nº 4.989/65, art. 4º, alínea e). Admitamos que uma decisão declara inconstitucional um dispositivo de lei que proíbe a fiança em determinada situação. Tal decisão, se tem efeito retroativo, levará a considerar-se cometido o crime de abuso de autoridade pelo policial que prendeu, ou manteve preso, qualquer pessoa naquela situação em que a fiança era proibida, mas deixou de ser com a declaração de inconstitucionalidade. A decisão que declara inconstitucional uma lei que altera a destinação de verbas públicas, se produzir efeito retroativo levará a que se considere cometido o crime previsto no art. 315, do Código Penal, ‘dar às verbas ou rendas públicas aplicação diversa da estabelecida em lei’, por parte de todos quantos tenham obedecido a lei declarada inconstitucional.

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Inúmeros outros exemplos podem ser citados, a demonstrar que admitir o efeito retroativo da decisão que declara a inconstitucionalidade de uma lei pode levar a situações verdadeiramente absurdas.430

A partir da leitura do trecho acima transcrito, nota-se que, para defesa de sua tese, Hugo de Brito Machado partiu da análise dos supostos efeitos maléficos que adviriam da declaração da inconstitucionalidade de norma tributária, benéfica aos contribuintes, com efeitos ex tunc. Tais malefícios seriam consubstanciados, por exemplo, na configuração do crime de descaminho por aquele que importou mercadorias e não recolheu os impostos incidentes sobre a operação de importação em razão de isenção posteriormente considerada inconstitucional pela Suprema Corte. Parece-nos que a argumentação do Professor Hugo de Brito não reflete a melhor interpretação do tema sob análise. Com efeito, é de se assinalar que a situação exposta por Hugo de Brito Machado, em que um sujeito que importou mercadoria amparada por isenção concedida por lei posteriormente julgada inconstitucional, não acarretaria o efeito pelo mesmo enunciado, qual seja a imputação ao contribuinte do crime de descaminho. Tal porque, como se sabe, vige no Direito Constitucional pátrio o princípio da presunção de constitucionalidade das leis (da mesma maneira que no âmbito do Direito Administrativo há o princípio da presunção de legalidade dos atos administrativos), sem o qual se mostraria impossível a convivência social. De fato, se o questionamento quanto à constitucionalidade de uma determinada lei tivesse o condão de qualificar o seu cumprimento como antijurídico, ruiria a segurança jurídica em que se fundamenta todo o ordenamento. Por outro lado, esse entendimento teria a indesejada consequência de justificar que o administrador ou o contribuinte se negassem à observância da norma cuja constitucionalidade tivesse sendo questionada, mergulhando as relações jurídicas no caos, sendo certo que, no âmbito do Direito Tributário, em que quase todos os tributos geram discussões judiciais em torno de sua constitucionalidade, entendimento nesse sentido levaria à mais completa insegurança jurídica e à falência do Sistema Tributário. Em face do exposto, não há dúvidas quanto ao fato de que o importador que não recolheu os tributos incidentes sobre a operação de importação, amparado por nor430 MACHADO, Hugo de Brito. Contribuição Previdenciária das Agro-indústrias – Declaração de Inconstitucionalidade do § 2º do art. 25, da Lei nº 8.870/94 – Seu alcance. Inexistência de Efeitos Retroativos em Prejuízo do Contribuinte. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 56, mai. 2000, p. 100.

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ma isentiva posteriormente julgada inconstitucional, não terá, em nenhuma hipótese, consumado o crime de descaminho, da mesma maneira que a autoridade fiscal que exige tributo posteriormente declarado inconstitucional não cometeu, em nenhuma hipótese, o crime de excesso de exação, previsto no § 1º do art. 316 do Código Penal. Essas considerações, reitere-se, não guardam qualquer relação com os efeitos da decisão proclamatória da inconstitucionalidade do ato normativo, sendo antes uma decorrência do princípio da presunção da constitucionalidade dos atos normativos. Dessa forma, parece mais razoável o entendimento de que, no que tange à declaração de inconstitucionalidade de normas tributárias favoráveis aos contribuintes, o efeito temporal das mesmas será definido em consonância com a moderna doutrina sobre o tema da eficácia das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade, cabendo ao Supremo Tribunal Federal analisar, casuisticamente, se sua decisão terá efeitos ex nunc ou ex tunc, sendo certo que a adoção da eficácia retroativa da decisão do STF não encontraria limitação em nenhuma regra ou princípio constitucional. Nesse caso (declaração de inconstitucionalidade de norma favorável ao contribuinte com efeitos ex tunc), deverá ser aplicado, por analogia, o parágrafo único do art. 100 do Código Tributário Nacional, afastando-se a possibilidade de a Fazenda exigir do contribuinte, sobre os valores que deveriam ter sido recolhidos aos cofres públicos, penalidades, juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo. Assim, poder-se-ia exigir o tributo devido pelo contribuinte, mas sem quaisquer acréscimos penais ou compensatórios, uma vez que o atraso no pagamento não pode, de maneira alguma, ser-lhe imputável.

4. Conclusão Retomando as duas indagações postas na introdução deste artigo, podemos concluir este texto no sentido de que os argumentos consequencialistas, em especial aqueles de ordem econômico-financeira, não são legítimos para fundamentar decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito da constitucionalidade de atos normativos tributários ou mesmo para sustentar a modulação dos efeitos de decisão que reconheça a inconstitucionalidade de ato normativo. Por outro lado, e seguindo a mesma linha de raciocínio, somos da opinião de que a modulação dos efeitos de decisão do STF nunca se justifica em casos em que tais efeitos sejam contrários ao contribuinte. 172

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1. Introdução Verifica-se, hodiernamente, um perceptível crescimento da produção teórica sobre o processo administrativo, inclusive sobre o processo administrativo fiscal431. Contudo, aparentemente não se logrou o reconhecimento de que este é de vital importância para o funcionamento do Sistema Tributário como um todo, podendo-se afirmar, com Antonio Berliri, que os problemas relativos ao controle da legalidade dos atos administrativos fiscais são alguns dos problemas centrais do Direito Tributário, “na medida que de sua solução depende o correto funcionamento do sistema tributário”432. A notável importância do processo administrativo no Brasil é consequência do estado da arte do Sistema Tributário pátrio, onde: (a) os tributos aparecem como forma principal de custeio das atividades estatais; (b) os contribuintes muitas vezes não se sentem inclinados a efetuar o pagamento dos tributos devidos; (c) as atividades de liquidação e arrecadação tributárias foram delegadas aos sujeitos passivos; e (d) para controle dos pagamentos devidos pelos contribuintes, grandes poderes foram atribuídos à Administração Fazendária. Os fatores acima apontados, que serão objeto de exame adiante, acarretam a necessidade não só do estudo do processo administrativo, seus fundamentos e regime 431 No campo do Direito Administrativo Tributário e do Processo Tributário, merecem destaque os trabalhos do Professor Alberto Xavier, em especial os seus Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário (Rio de Janeiro: Forense, 2005) e Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro (3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005). 432 BERLIRI, Antonio. Per un Miglior Funzionamento della Giustizia Tributaria. In: Scritti Scelti di Diritto Tributario. Milano: Giuffrè, 1990. p. 899.

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jurídico, mas também a premência de sua valorização por parte dos contribuintes, a qual depende do reconhecimento de sua importância por parte do Poder Público. Diante do exposto, o propósito desse estudo consiste na análise do cenário atual da tributação no Brasil, examinando-se o papel do processo administrativo como instrumento essencial de manutenção da integridade do Sistema Tributário. Analisaremos também a necessidade de uma reforma do modelo de controle jurisdicional dos atos tributários, tendo como horizonte a necessidade de criação de uma Justiça Tributária especializada no Brasil.

2. O papel dos tributos em um Estado Social Já tive a oportunidade de analisar, em outra sede, à qual remetemos o leitor, as linhas gerais da evolução histórica do Estado Liberal até o advento do Estado Social433. Para os propósitos do presente estudo é importante apenas ressaltar que o chamado Estado Social434 caracteriza-se pela intervenção estatal nas relações privadas e no exercício de direitos individuais, assim como pelo desenvolvimento das prestações de previdência e seguridade sociais, como é possível inferir da seguinte passagem de Paulo Bonavides: Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade toas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes 433 ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 1-14. 434 É importante ter em mente, aqui, a distinção apresentada por Gilberto Bercovici entre estado social em sentido estrito e estado social em sentido amplo. O primeiro “é caracterizado pelo amplo sistema de seguridade e assistência social”. Enquanto o segundo “é o Estado intervencionista” (BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 54). Partindo dessa distinção, temos que o estado social em sentido estrito entrou em crise nas últimas décadas, sendo que o estado social em sentido amplo permanece presente hodiernamente.

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pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado Social.435 Ao se proceder à análise das disposições contidas na Constituição Federal de 1988 percebe-se que a mesma é a Constituição de um Estado Social, como reconhece o próprio Professor Paulo Bonavides em outra obra436. Dessa forma, o Estado brasileiro pode ser examinado como um Estado que assumiu a realização de diversas atividades que antes se encontravam na esfera de atribuições das pessoas de Direito Privado, acumulando funções de prestação de serviços, regulação e fomento das atividades particulares. É importante observar, então, que o crescimento das atividades estatais trouxe consigo a necessidade de recursos para o seu custeio, pressionando a arrecadação dos Estados Fiscais437 Ocidentais, os quais dependem da mesma para a consecução de seus fins. Há, assim, importante relação entre o desenvolvimento da participação estatal na vida das pessoas de Direito Privado e a ampliação das carências arrecadatórias do Poder Público, que passa a ter na arrecadação tributária fonte de recursos indispensáveis para o custeio de suas atividades. Como destaca Juan Manuel Barquero Estevan:

435 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 186. Sobre a transição do Estado Liberal para o Estado Social são pertinentes as palavras de Maria Teresa de Melo Ribeiro: “A alteração das relações entre o Estado e a sociedade, e a conseqüente transformação da Administração Pública de autoritária e agressiva em participada e prestadora de serviços, fruto da evolução do Estado Liberal para o Estado Social de Direito, pode ser aprofundada, sem dúvida, como uma das circunstâncias mais marcantes em direção à afirmação e defesa da imparcialidade administrativa. A uma relação de quase inimizade entre o Estado e o cidadão substitui-se uma relação de intimidade que, apesar da sua natureza, ou talvez mesmo por causa dela, gerará novas tensões: ‘da defesa da não intervenção do Estado na sociedade, como forma de proteção do cidadão, passa-se a reclamar a intervenção do Estado na vida econômica e social como instrumento de realização individual’. Ao chamar a si a satisfação regular e contínua da maior parte das necessidades coletivas de segurança, cultura e bem-estar, o Estado lança a sua proteção a todas as esferas da vivência individual e transforma-se numa agência de repartição e distribuição de riqueza. ‘Por isso alguns falam no EstadoProvidência, um Estado que se sente na obrigação de derramar sobre os seus membros todos os benefícios do progresso, colocando-se ao serviço de uma sociedade mais justa, especialmente para os mais desfavorecidos” (RIBEIRO, Maria Teresa de Melo. Princípio da Imparcialidade da Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1996. p. 58). 436 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 371. 437 Sobre o tema, ver: NABAIS, José Casalta. Por uma Liberdade com Responsabilidade: Estudos sobre Direitos e Deveres Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 179-189.

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Faz já alguns anos, em um trabalho que pode ser tido já por um clássico na literatura sobre o Estado social, Ernst Forstoff afirmava que o Estado fiscal ou impositivo constitui o vínculo indispensável de união entre os princípios do Estado de Direito e Estado social, porque somente através das possibilidades de ingerência do Estado impositivo pode-se garantir o desenvolvimento do Estado social, sob uma estrita observância, ao próprio tempo, das formas do Estado de Direito e, concretamente, do respeito do Direito de propriedade. Apontava, assim, a tese de que a configuração do Estado como “impositivo” constitui um pressuposto funcional do Estado social, pois este só pode alcançar seus objetivos recorrendo ao imposto como instrumento financeiro.438

Em linha com o que restou asseverado acima está o entendimento do Professor da Universidade de Nova Iorque Stephen Holmes e do Professor da Universidade de Chicago Cass R. Sunstein, abaixo transcrito: A Declaração de Independência estabelece que “para assegurar esses direitos, Governos são estabelecidos entre os homens”. À óbvia verdade de que direitos dependem de governos deve ser acrescido um corolário lógico, rico em implicações: direitos custam dinheiro. Direitos não podem ser protegidos ou efetivados sem financiamento e apoio públicos. Isso é verdade tanto para os direitos primitivos como para os direitos modernos, para os direitos dos Americanos antes e depois do New Deal de Frankiln Delano Roosevelt. Tanto o direito ao bem-estar quanto o direito à propriedade privada têm custos públicos. O direito à liberdade contratual não custa menos que o direito à saúde, o direito à liberdade de expressão não custa menos que o direito a uma habitação decente. Todos os direitos dependem do tesouro público.439

No contexto de um Estado Social, portanto, a tributação passa a ser a fonte de custeio de todos os deveres estatais, muitos deles elevados a direitos fundamentais dos cidadãos pela Constituição, como aqueles relativos, por exemplo, à saúde e à educação. 438 ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La Función del Tributo en el Estado Democrático de Derecho. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002. p. 33. 439 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton & Company, 1999. p. 15. Para um estudo acerca da teoria dos custos dos direitos ver: AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha: Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

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É nesse cenário que deve ser examinada a natureza do dever daqueles que ostentam capacidade contributiva de contribuírem com o erário público, dever este que, como sustentado pelo Professor Casalta Nabais, pode sim ser compreendido como um dever fundamental, na medida em que de seu adimplemento depende o custeio, pelo Estado, de todos os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal440. Fixa-se, assim, a primeira premissa deste estudo: em um Estado onde o Poder Público assumiu diversas atribuições referentes à garantia da saúde, da educação, da moradia, à previdência e seguridade sociais, ao fomento das atividades particulares, entre outras, os tributos passam a ter um papel fundamental, dependendo o Estado dos mesmos para financiar todas as atividades que lhe foram atribuídas pela Constituição Federal.

3. A inclinação dos contribuintes ao inadimplemento dos deveres fiscais No item anterior fez-se apologia à relevância dos tributos em um Estado Social. Contraditoriamente, deve-se analisar no presente item a inclinação dos contribuintes ao inadimplemento dos deveres fiscais. É corrente o reconhecimento de que, no mais das vezes, os contribuintes não se sentem “psicologicamente motivados” ao comprimento de suas obrigações tributárias, de modo que é possível defender, como salienta Heleno Tôrres, que, em termos sociológicos “a primeira e mais instintiva reação do contribuinte perante exigências tributárias é teoreticamente aquela de abster-se ao seu cumprimento”441. Em nosso país, tal desânimo dos contribuintes em contribuir para os cofres públicos é normalmente justificado alegando-se que o pagamento dos tributos não traz qualquer espécie de retorno ou retribuição, de forma que, in440 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998. Ver, também: TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 336; PIRES, Adilson Rodrigues. O Processo de Inclusão Social sob a Ótica do Direito Tributário. In: PIRES, Adilson Rodrigues; TÔRRES, Heleno Taveira (Org.). Princípios de Direito Financeiro e Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 80-82; TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 16; TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 15; ABRAHAM, Marcus. O Planejamento Tributário e o Direito Privado. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 78-85. 441 TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 173. Sobre o tema, ver: SCHMÖLDERS, Günter. The Psychology of Money and Public Finance. Tradução Iain Grant e Karen Green. New York: Palgrave Macmillan, 2006. p. 157-210.

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dependentemente dos pagamentos feitos os serviços públicos continuam tendo uma qualidade ruim. Em suma, o contribuinte não se sente “psicologicamente motivado” ao recolhimento pois não percebe qualquer contrapartida estatal que justifique sua privação de recursos em benefício do Estado. Sobre esse ponto de vista é possível apresentar duas ponderações. Em primeiro lugar, pode-se asseverar que diante do fenômeno da concentração de renda que atinge diversas nações, do qual o Brasil é triste exemplo, vive-se hoje um período em que se buscam novos fundamentos para a tributação. O dilema é o seguinte:

utilização da máquina estatal para evitar a revolta generalizada da massa excluída, que poderia pôr em risco seu estilo de vida)442. Além de muitos contribuintes não utilizarem grande parte dos serviços prestados pelo Estado, outra circunstância que mina o interesse em contribuir reside na complexidade do mundo atual e do papel desempenhado pelo Poder Público, de forma que no dia a dia de nossas vidas temos a falsa impressão de que não aproveitamos nada do Estado e da organização estatal e que, portanto, não devemos contribuir para sua manutenção. Esse ponto de vista foi ressaltado por Sven Steinmo, como se infere da passagem abaixo transcrita:

Como visto, o Estado-Administração necessita cada vez mais de recursos para fazer face às despesas com saúde, previdência, segurança, educação, fomento, pesquisa, etc. Para tanto, são necessárias a instituição e coleta de tributos.

Em um influente artigo intitulado “Por que o Governo é tão Pequeno em uma Democracia” (1960), Anthony Downs apresentou o que acredito ser um dos dilemas centrais enfrentados em uma democracia moderna: Eleitores são muito desinformados, mas racionalmente egoístas. Primeiramente, tendo em vista que os benefícios são muitas vezes difusos, os cidadãos são incessíveis ou ignoram uma grande parte dos benefícios que eles recebem. Porque os tributos são diretos, os cidadãos estão penosamente conscientes dos custos do governo. Porque são racionais, eles se oporão a pagar por benefícios que não percebem. Considerando a complexidade do governo moderno e o escopo e alcance das atividades desempenhadas pelo mesmo, é difícil para os cidadãos avaliar com precisão os custos versus os benefícios: os cidadãos sentem os custos do governo em forma de tributos diretos, enquanto benefícios como ar puro, boas estradas, mão de obra capacitada, defesa nacional e redução da pobreza são sentidos de forma muito menos precisa ou são pressupostos.443

Todavia, tomando ainda o exemplo do Brasil, verifica-se parte considerável da população não detém condições econômicas sequer para o custeio de suas necessidades mais fundamentais, quanto mais para contribuir para o erário público (embora o faça, mesmo sem saber, devido à sistemática de tributação indireta aqui adotada). Nesse contexto, o encargo do custeio da tributação direta recai sobre as classes mais abastadas, principalmente a classe média. Ocorre que a necessidade dos serviços públicos é inversamente proporcional à condição econômica do sujeito, de forma que aqueles mais ricos, que em princípio teriam melhores condições de contribuir para o financiamento das atividades estatais, são exatamente aqueles que delas menos necessitam. De fato, quanto maior o poder aquisitivo de determinada pessoa menos dependerá ela do Poder Público para a manutenção de sua saúde e de seus familiares, para a educação de seus filhos, para a defesa de sua propriedade, etc. Todavia, é essa pessoa, com reduzidas relações diretas de necessidade com o Estado-Administração, quem, pelo princípio da capacidade contributiva, deve contribuir mais para a Fazenda Pública. Esse é o dilema que se coloca perante todos nós, quem necessita das ações estatais não tem como contribuir, enquanto quem tem como contribuir necessita muito pouco (ou não necessita) de intervenções estatais diretas (a não ser quanto à

Não é demais destacar que o trabalho de Steinmo teve por base a análise dos sistemas tributários da Suécia, dos Estados Unidos e da Inglaterra, países cuja realidade socioeconômica é bem diferente da brasileira. Todavia, se nem sempre se pode dizer que, no Brasil, viajamos por estradas bem conservadas, temos uma mão de obra capacitada fomentada pelo Estado, uma defesa competente da soberania nacional e conseguimos vislumbrar a redução da pobreza em nosso país, é verdade, por outro lado, que também aqui é 442 Sobre esse tema ver: GUÉHENNO, Jean-Marie. O Futuro da Liberdade: A Democracia no Mundo Globalizado. Tradução Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 51 e 52. 443 STEINMO, Sven. Taxation & Democracy: Swedish, British and American Approaches to Financing the Modern State. New Haven: Yale University Press, 1993. p. 193.

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possível verificar que nossa capacidade de identificar as atividades estatais em nosso proveito é pequena, sendo inverídico afirmar que o Poder Público nada faz em benefício daqueles que contribuem aos cofres públicos, mesmo que estes não sintam tais efeitos diretamente. A despeito das considerações acima, cremos ser possível firmar, como segunda premissa deste estudo, a assertiva no sentido de que os contribuintes, por não perceberem os benefícios decorrentes do recolhimento dos tributos, tendem muitas vezes a deixar de recolhê-los.

4. Delegação das atividades de liquidação e arrecadação tributária aos contribuintes Em estudo publicado no Brasil, o Professor José Juan Ferreiro Lapatza fez importantes apontamentos sobre os sistemas de gestão tributária atualmente adotados pelos países europeus, separando o sistema anglo-saxão, baseado na autoliquidação dos deveres fiscais pelos próprios contribuintes, do sistema continental, fundamentado no exercício da liquidação tributária pela Administração Pública444. Como menciona o próprio Professor Ferreiro Lapatza, os sistemas continentais têm sido influenciados pelo sistema anglo-saxão, de forma que há uma cada vez maior utilização da delegação ao contribuinte das atividades de liquidação fiscal em países como a França, a Itália e a Espanha445. Em Portugal, essa mesma tendência foi apontada por José Luis Saldanha Sanches446, deixando este autor registrado, logo na introdução de seu estudo sobre a quantificação das obrigações tributárias, “que o modo atual de execução das tarefas financeiras de obtenção de recursos pecuniários para o Estado tem como marca essencial uma redução do papel desempenhado pela Administra-

444 LAPATZA, José Juan Ferreiro. Solución Convencional de Conflictos em el Âmbito Tributário: una Propuesta Concreta. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2004. v. II. p. 294. 445 Solución Convencional de Conflictos em el Âmbito Tributário: una Propuesta Concreta, 2004, p. 295-296. 446 SANCHES, José Luís Saldanha. A Quantificação da Obrigação Tributária: Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa. Lisboa: Lex, 2000. p. 75-76.

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ção e o correspondente aumento da participação dos particulares nos procedimentos de aplicação da lei fiscal”447. No Brasil, tal situação já era assinalada por Fábio Fanuchi na década de setenta448, tendo sido objeto de análise pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, que leciona: Quando se fala em expedição de norma jurídica individual e concreta vem, desde logo, à nossa mente, o desempenho de um órgão da Administração ou Poder Judiciário. E, se passarmos apressadamente, sem refletir, essa ideia equivocada irá provocar um bloqueio, consolidando o preconceito de que o administrado, na esfera de suas múltiplas possibilidades de participação social, reguladas pelo direito, esteja impedido de produzir certas normas individuais e concretas. Mas não é assim no direito brasileiro. Basta soabrirmos os textos do ordenamento positivo, no que concerne aos tributos, para verificarmos esta realidade empírica indiscutível: o subsistema prescritivo das regras tributárias prevê a aplicação por intermédio do Poder Público, em algumas hipóteses, e, em outras, outorga esse exercício ao sujeito passivo, de que se espera, também, o cumprimento da prestação pecuniária. Diga-se de passagem, aliás, que tem havido um crescimento significativo na participação dos súditos do Estado, instados a praticar uma série de expedientes para a produção de normas individuais e concretas nesse campo. A transferência de atividades relativas à apuração do débito tributário para a esfera dos deveres instrumentais ou formais do sujeito passivo, mediante severo controle da entidade tributante, tornou-se uma viva realidade dos nossos dias. A maior parte dos tributos, hoje, assim no Brasil que em outros países que seguem o modelo continental europeu, estão cometidos ao sujeito passivo da obrigação tributária, cabendo-lhes estabelecer em fatos os eventos tributários, e relatar os dados componentes da relação jurídica.449

447 A Quantificação da Obrigação Tributária: Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa, 2000, p. 17. 448 FANUCCHI, Fábio. Curso de Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Resenha Tributária, 1971. v. I. p. 149. 449 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 213. Para uma longa revisão bibliográfica sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 302.

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Assim, tendo em conta a proliferação, no Brasil, dos tributos sujeitos ao chamado “lançamento por homologação”, as atividades de apuração e arrecadação tributária foram significativamente delegadas aos contribuintes, a quem cabe, na realidade, a realização das tarefas previstas no artigo 142 do Código Tributário Nacional como caracterizadoras do “lançamento tributário”. Esta questão foi examinada por Alberto Xavier, que afirma não ter dúvidas “de que o sistema tributário brasileiro vigente se reveste das características de massificação e automação, raramente surgindo o lançamento como momento necessário na dinâmica da obrigação tributária que, a maior parte das vezes, pode ser espontaneamente cumprida sem a prática prévia do referido ato”450. Diante dos comentários acima, é possível firmar a terceira premissa da presente exposição, segundo a qual no estágio atual da tributação, cabe aos contribuintes liquidar suas obrigações fiscais e recolher os tributos devidos, de acordo com sua autoliquidação, aos cofres públicos. Cabe-lhes, ainda, arrecadar tributos para o Estado, proliferando-se as hipóteses de retenção na fonte, e fiscalizar o comportamento de outros contribuintes, multiplicando-se os casos de responsabilidade tributária451.

5. A relevância assumida pelas atividades de fiscalização Partindo-se das premissas assentadas acima, no sentido de que: (a) as receitas tributárias são um elemento indispensável para que o Estado possa dar cumprimento às suas atribuições; e de que (b) em um sistema que depende de comportamentos não provocados dos contribuintes, nem sempre estes estão dispostos a dirigir seu agir nesse sentido; a fiscalização exercida pela Administração Pública, com a exigência do adimplemento dos deveres fiscais, a imposição das sanções cabíveis quando de seu inadimplemento e a utilização dos instrumentos estatais de coação sempre que necessário, é a última fronteira entre a eficácia das normas tributárias e o seu completo descrédito. 450 XAVIER, Alberto. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 13. 451 Este contexto foi bem observado por Denise Lucena Cavalcanti, que destaca que “não se pode desconsiderar o grande aumento da responsabilidade do cidadão-contribuinte em apurar e arrecadar, por sua conta própria, seus tributos, exercendo ato que, de origem, caberia ao fisco, e que agora é de sua responsabilidade, inclusive passível de penalidades” (CAVALCANTI, Denise Lucena. Crédito Tributário: a função do cidadão-contribuinte na relação tributária. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 29).

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Nessa linha de ideias, é imprescindível que tal atividade de fiscalização seja desempenhada tendo como finalidade um só objetivo: a verificação da compatibilidade dos comportamentos dos contribuintes com os mandamentos legais, em estrita observância ao princípio da legalidade. Com isso, estariam resguardadas as necessidades fiscais do Estado (rectius, da coletividade), bem como a liberdade fundamental dos contribuintes de não serem submetidos ao recolhimento de qualquer tributo que não tenha fundamento no ordenamento jurídico tributário452. Infelizmente, nem sempre tais objetivos são alcançados. Em primeiro lugar, dada a complexidade das normas fiscais e a natureza criativa da interpretação453, não raro surgem divergências entre a interpretação de determinada regra pelo sujeito passivo e a interpretação do mesmo dispositivo pela Fazenda, as quais geram cobranças consideradas indevidas pelo contribuinte. Segundo as palavras de Victor Uckmar: A urgência no legislar vai em detrimento da técnica e portanto da claridade. As dúvidas na interpretação ocasionam notáveis prejuízos, tanto para a administração como para os contribuintes, comportando, ademais, para os empresários, custos ainda não constituídos pela arrecadação, com grave prejuízo no plano da competência, especialmente internacional. Frente a contrastantes interpretações de uma norma, quando o contribuinte escolha a mais favorável a si mesmo, assumirá a carga do risco de uma eventual verificação e o respectivo encurralamento constitui para a empresa um custo. E é por isso que é muito apreciado o instituto do ruling, que se deve regular com normas que assegurem objetividade e tempestividade: tal instituto, quando funciona, é de grande estímulo para ativar investimentos estrangeiros, como se sucedeu na Holanda.454 452 Como observa Mary Elbe Queiroz, “o dever-poder que compete ao Fisco é amplo e indeclinável dentro dos termos fixados na lei e decorre do exercício da competência que a lei atribui aos agentes da Administração Tributária, e se reflete num desdobramento do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, porém, encontrando-se limitado aos direitos, garantias e princípios consagrados constitucionalmente, bem como pelo sigilo fiscal inerente à função” (MAIA, Mary Elbe Gomes Queiroz. Do Lançamento Tributário – Execução e Controle. São Paulo: Dialética, 1999. p. 138). 453 Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Interpretation of Double Taxation Conventions: General Theory and Brazilian Perspective. The Netherlands: Kluwer, 2009. p. 64-69. 454 UCKMAR, Victor. El Sistema Tributario: Las Instituciones, las Administraciones, los Contribuyentes. In: MELLO, Celso Antônio Bandeira de (Org.). Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 107. Sobre esta questão, ver também: LAPATZA, José Juan Ferreiro. Poder Tributario y Tutela Judicial Efectiva. In: MELLO, Celso Antônio Bandeira de (Org.). Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 102.

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Esta é uma nota típica da sociedade de risco455, a qual, segundo Humberto Ávila, caracteriza-se, em primeiro lugar, “pela existência de uma enorme quantidade de informações” e, em segundo, pela “diversidade de interesses”456, o que acaba gerando insegurança, agravada pela tentativa vã do legislador de resolver os problemas surgidos na sociedade de risco através de mais legislação, gerando a chamada inflação legislativa457. Nota-se, portanto, que um primeiro ponto de atenção relacionado à fiscalização tributária consiste nas cotidianas divergências interpretativas entre a Fazenda Pública e os sujeitos passivos, as quais fazem com que estes se encontrem em situação de potencial autuação fiscal a cada vez que aplicam as normas fiscais. Ademais, consequência dos poderes atribuídos às autoridades fazendárias para fiscalização quanto ao cumprimento, por parte dos contribuintes, de seus deveres fiscais, foi o aumento das cobranças tributárias indevidas por parte daquelas, seja por má aplicação da legislação ou má-fé na sua aplicação. Assim, é possível firmar mais uma premissa deste estudo, no sentido de que no cenário em que atualmente se desenvolvem as atividades de arrecadação tributária, há várias situações em que podem surgir verdadeiros conflitos interpretativos entre a Fazenda e os sujeitos passivos, sendo certo, por outro lado, que a fiscalização tributária tem à sua disposição mecanismos para agir sobre os particulares, criando-lhes limitações e cobrando-lhes o recolhimento dos tributos mesmo na ausência de norma jurídica que preveja a incidência fiscal.

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b) há uma propensão dos contribuintes a inadimplirem seus deveres jurídicos tributários; c) via de regra, cabe aos sujeitos passivos de deveres fiscais apurar e recolher os tributos que lhes são cabíveis; d) a fim de assegurar o cumprimento dos deveres fiscais por parte dos contribuintes, atribui-se às autoridades administrativas grandes atribuições relacionadas à fiscalização dos comportamentos destes;

456 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização do Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 40-41.

é possível concluir que o Sistema Tributário pátrio é marcado por controvérsias entre a fiscalização e os contribuintes, as quais resultam, no mais das vezes, de divergências dos mesmos quanto à correta interpretação dos fatos ou do direito aplicáveis a determinado caso concreto, de erros cometidos pelos contribuintes, omissões dolosas de pagamento, ou ainda de cobranças manifestamente indevidas formuladas pela Fiscalização, por erro ou com propósitos ilícitos. Nesse cenário, é indiscutível a importância do processo administrativo fiscal, enquanto instrumento de controle da legalidade dos atos administrativos tributários. O processo administrativo, portanto, não é concessão do Poder Público aos administrados, mas antes direito destes em face daquele. Como observa Alberto Xavier, “a impugnação na esfera administrativa é, pois, concebida, não como ato de hostilidade contra o poder público, nem, ao revés, como favor gracioso do soberano (como sucedeu no passado), mas como um verdadeiro direito de impugnar, que se traduz numa facultas agendi (licitude do ato de impugnar) e numa facultas exigendi (o direito de que seja proferida uma decisão)”458. Com efeito, considerando que, em razão das peculiaridades do Sistema Tributário pátrio, os contribuintes estão sujeitos a constantes fiscalizações e cobranças por parte das autoridades fazendárias, formalizadas através da edição de atos administrativos, é imprescindível que o ordenamento coloque à sua disposição instrumentos para que se assegure que tal atividade desempenhada pela fiscalização irá se manter dentro dos marcos da legalidade. Essa é a razão existencial do processo administrativo fiscal. É de se assinalar, desde já, que no âmbito do processo administrativo não há lide a ser solucionada, como pretende parte da doutrina. De fato, o proces-

457 Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. A Deslegalização no Direito Tributário Contemporâneo: Segurança Jurídica, Legalidade, Conceitos Indeterminados, Tipicidade e Liberdade de Conformação da Administração Pública. In: RIBEIRO, Ricardo Lodi; ROCHA, Sergio André (Coords.). Legalidade e Tipicidade no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 228-229.

458 XAVIER, Alberto. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 19.

6. Análise das premissas firmadas Considerando as seguintes premissas: a) os tributos são a principal fonte de custeio das atividades estatais em um Estado Social; 455 Sobre a sociedade de risco e suas características, ver: ROCHA, Sergio André. A Tributação na Sociedade de Risco. In: PIRES, Adilson Rodrigues; TÔRRES, Heleno Taveira (Orgs.). Princípios de Direito Financeiro e Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 179-223.

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so administrativo fiscal corresponde a uma revisão da legalidade do ato tributário pela própria Administração Pública que, na forma do artigo 151, III, do Código Tributário Nacional, suspende a exigibilidade do crédito tributário, de forma que somente haverá que se falar na instauração de lide entre a Fazenda e o sujeito passivo se, ao final do processo, manifestar-se aquela pela legalidade da cobrança459. Nada obstante, o fato de não haver, quando da instauração do processo administrativo fiscal, lide a ser solucionada, em nada diminui a sua importância, tendo o mesmo as seguintes funções: 1. Legitimação da atividade estatal a partir da participação do sujeito passivo do dever tributário na formação do entendimento final da Fazenda Pública sobre a legalidade da cobrança formulada460. 2. Garantia dos direitos dos sujeitos passivos, assegurando-se-lhes a possibilidade de questionar a legalidade de cada ato administrativo de exigência fiscal que lhe seja encaminhado461. 3. Controle da Administração Fazendária, abrindo-se ao sujeito passivo a possibilidade de arguir e utilizar de todos os meios lícitos para demonstrar a ilegalidade do ato administrativo de cobrança462. 4. Melhor aplicação das regras tributárias, já que a participação do sujeito passivo possibilita a prática de um ato administrativo fiscal que melhor represente os fatos como efetivamente ocorridos, com uma mais correta aplicação das normas fiscais463. 5. Proteção da eficácia das decisões, uma vez que a participação do contribuinte

459 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 38-39. 460 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 14-19. 461 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 19-21.

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torna mais provável sua compreensão e aceitação da decisão tomada464. 6. Controle do mérito dos atos administrativos, tendo em vista que o administrador pode rever inclusive os atos que tenham sido praticados com base em critérios de conveniência e oportunidade465. Nessa linha de entendimentos, percebe-se que o processo administrativo fiscal é de extrema relevância para o bom funcionamento do Sistema Tributário, sendo um instrumento democrático de legitimação, garantia, controle e revisão dos atos administrativos tributários. Em um Sistema Tributário como o brasileiro, o qual é marcado pelo conflito entre os contribuintes e a Fazenda Pública, a existência de um processo administrativo fiscal que cumpra sua função institucional previne o surgimento de litígios, evitando que muitas discussões sejam apresentadas ao Poder Judiciário. Ademais de todo o exposto, considerando que os textos legais muitas vezes dão margem à extração de normas jurídicas distintas, o processo administrativo é também o campo onde Fazenda e contribuinte discutem dialeticamente a fim de determinar a norma aplicável a determinado caso concreto. Dessa forma, é indispensável a valorização do processo administrativo fiscal, a qual passa (a) pela garantia da independência técnica do órgão responsável pela revisão dos atos administrativos tributários, que garante que suas decisões serão pautadas apenas pela realização da legalidade fiscal; e (b) pelo cumprimento, pela Administração Fazendária, das decisões proferidas no processo, repudiando-se, assim, o seu questionamento pelo próprio Fisco, seja internamente, por via do recurso hierárquico, seja externamente, perante o Poder Judiciário. Diante do cenário acima apresentado, é imprescindível que os operadores do Direito Tributário se apercebam da grande relevância do processo administrativo fiscal, lutando pela sua evolução em direção à existência de órgãos julgadores capacitados tecnicamente, cujas decisões devem ser lastreadas por fundamentos jurídicos e não políticos. É necessário que tenhamos um órgão julgador administrativo composto por um corpo técnico, protegido, tanto quanto possível, de influências políticas,

462 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 21-22.

464 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 23-24.

463 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 22-23.

465 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 24-25.

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sendo que a melhor forma de se alcançar tal objetivo é o fim da dita composição paritária do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, para termos como paradigma a esfera federal, e a seleção, por concurso, de seus membros466. Contudo, a discussão não pode se estancar no processo administrativo. Nos últimos anos, vivenciamos no Brasil um movimento de inversão de valores, em que muitas vezes se crê mais na capacidade do órgão administrativo de julgamento para a revisão de um tema fiscal do que no Poder Judiciário. Tal inversão de valores, embora fundamentada empiricamente, não pode ser aceita pelo contribuinte. A existência de cortes qualificadas para julgar temas fiscais é essencial para que se desenvolva um Sistema Tributário Democrático. A este tema dedicaremos o item a seguir.

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Para uma pessoa que não está habituada a atuar na defesa dos interesses dos contribuintes perante o Poder Judiciário, poderia parecer que o processo administrativo perderia importância, diante da possibilidade sempre aberta ao contribuinte de levar a questão à apreciação do Poder Judiciário, garantida pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de 1988. Todavia, aqueles que advogam na área tributária certamente censurariam tal percepção apressada, na medida em que nem sempre é possível conseguir que o Judiciário reconheça a implausibilidade da exigência fiscal. Várias razões colaboram para tal situação: Em primeiro lugar, é de se mencionar a quantidade enorme de processos entregues à apreciação judicial. É induvidoso ser impossível a prestação de um bom serviço jurisdicional quando um único juiz é responsável por apreciar centenas de processos, sobre variadas matérias, tendo, ainda, que atender aos advogados e despachar com estes os casos mais urgentes. De outra parte, pode-se destacar o perceptível despreparo dos magistrados para a apreciação de questões relacionadas ao Direito Tributário, o qual é de-

corrência mesmo da reduzida importância dada a esta matéria desde as cadeiras das faculdades até as provas dos concursos públicos. Esse problema não para apenas aqui, na falta de conhecimentos mais profundos acerca do Direito Tributário, vai além, na medida em que a solução das lides fiscais muitas vezes depende de conhecimentos de contabilidade que o magistrado muitas vezes ignora. A especialização é a tônica do mundo contemporâneo. Se tivermos um problema no coração, não procuraremos um clínico geral, mas um cardiologista. Não que aquele não tenha condições de, eventualmente, tratar do problema, mas certamente não o fará com a mesma celeridade e qualidade que o especialista. O problema, no âmbito do processo judicial tributário, é que a maioria dos nossos julgadores são clínicos gerais, ou, o que pode ser ainda pior, especialistas em outras áreas. Assim sendo, embora consigam apreciar as questões que lhes são postas, na maioria das vezes demoram muito mais do que seria necessário caso a matéria estivesse sendo examinada por um especialista em tributação. Já passou a hora, portanto, de seguirmos em direção à criação de uma Justiça Tributária especializada, nos moldes do que ocorre com a Justiça do Trabalho e é a realidade, por exemplo, em diversos países da Europa Continental467. No Direito Brasileiro o controle dos atos administrativos é composto de duas esferas, a administrativa e a jurisdicional, sendo a primeira de opção facultativa ao contribuinte e não vinculante em caso de decisão desfavorável e a segunda a quem cabe decidir, de forma definitiva, sobre a questão relativa à legalidade, legitimidade e proporcionalidade de ato praticado pela Administração Pública. Em diversos países da Europa Continental o exercício da jurisdição no que se refere ao controle dos atos administrativos tributários foi entregue a órgãos especializados de julgamento. Na Alemanha, a Lei Fundamental determina, no inciso IV do seu artigo 19, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, estabelecendo que no caso de violação a direito individual por autoridade pública o recurso às Cortes será garantido ao titular do direito lesado. Por seu turno, o Direito Alemão estabelece uma Justiça Especial para as discussões referentes às questões administrativas, a exemplo do que ocorre no Direito Brasi-

466 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 394.

467 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 127-149.

7. A Necessidade de uma reforma do processo judicial tributário

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leiro com a Justiça do Trabalho e Justiça Militar. A grande vantagem dessa sistemática reside na alta especialização dos julgadores em matéria administrativa e tributária, possibilitando uma maior qualidade técnica das decisões proferidas pelos Tribunais. O controle dos atos administrativos editados pela administração fazendária cabe também a uma Justiça Especial, prevendo o artigo 95 da Lei Fundamental alemã o Tribunal Financeiro Federal como órgão máximo da jurisdição administrativo-fiscal. As regras acerca do controle jurisdicional dos atos administrativo-fiscais encontram-se previstas no F.G.O., cujo § 1º estabelece que “a jurisdição fiscal é exercida por cortes administrativas especiais independentes, separadas das autoridades administrativas”. A Constituição Portuguesa, na mesma linha da Lei Fundamental Alemã, consagrou o princípio da inafastabilidade da jurisdição, no item 4 do artigo 268. Estabelece, ainda a Constituição Portuguesa, no artigo 209, item 1, “b”, a inserção dos tribunais administrativos na estrutura judiciária, demonstrando a opção pela jurisdição especial, inserida no âmbito do poder judiciário. Conforme esclarece Monica Sifuentes “ [...] os tribunais administrativos foram considerados pela Constituição da República Portuguesa como tribunais verdadeiros e próprios, na expressão de Gomes Canotilho” 468. O artigo 106 da Constituição espanhola estabelece a competência dos tribunais para controlar o poder regulamentar, bem como a legalidade da atuação das autoridades administrativas, verificando, ainda, sua submissão às finalidades que lhes justificam. Regra de idêntico conteúdo se encontra inserida no artigo 8º da Lei Orgânica do Poder Judiciário Espanhol (LOPJ – Lei Orgânica nº 6/85). A competência do Poder Judiciário para conhecer e julgar, em última instância, questões administrativas, encontra-se prevista no artigo 24 da LOPJ, que estabelece que: Na ordem contencioso-administrativa será competente, em todo o caso, a jurisdição espanhola quando a pretensão que se deduza se refira a Disposições gerais ou a atos das Administrações públicas espanholas. Mesmo assim, conhecerá das que se deduzam em relação a atos dos Poderes públicos espanhóis, de acordo com o que disponham as leis. Na Itália, a análise e julgamento de questões de natureza administrativa são de competência do Conselho de Estado e tribunais administrativos regionais. 468 SIFUENTES, Mônica. Problemas Acerca dos Conflitos entre a Jurisdição Administrativa e Judicial no Direito Português. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 227, jan.-mar. 2002, p. 169.

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O Conselho de Estado italiano trata-se de órgão que exerce dupla função, consultiva e jurisdicional, conforme estabelecem os artigos. 100 e 103 da Constituição, este último, inserido no título que trata do Poder Judiciário, com a seguinte redação: “O Conselho de Estado e outras cortes de justiça administrativa possuem jurisdição sobre litígios relativos a direito administrativo, bem como sobre lides de direito civil contra a administração pública, conforme específicas previsões legais”. Ao lado da jurisdição administrativa, há na Itália uma jurisdição administrativo fiscal especial, de forma que a solução das lides fiscais encontra-se excluída da competência decisória da jurisdição ordinária. Tal jurisdição administrativo-fiscal é composta pelas Comissões Tributárias de Primeiro Grau, as Comissões Tributárias de Segundo Grau e pela Comissão Tributária Central, com sede em Roma. Em uma sociedade fundada sob o litígio, imaginar a redução do número de processos levados à apreciação do Poder Judiciário é como vislumbrar um futuro utópico, diante da realidade. Ademais, não se pode deixar de observar que a própria adoção de um sistema de autoliquidação é fator de aumento da litigiosidade no campo fiscal, o que aumenta a importância dos instrumentos de controle da legalidade dos atos tributários469. No que se refere aos problemas técnicos muitas vezes verificados no âmbito da magistratura, sua solução passa, necessariamente, pela reestruturação dos órgãos do Poder Judiciário, com a criação de cortes especializadas para o julgamento das questões tributárias470. 469 Como bem posto por Heleno Tôrres, há uma relação entre a litigiosidade no campo fiscal e a insegurança jurídica gerada pelo Sistema Tributário. Como destaca o citado autor, “basta pensar que, pelas estatísticas, quase metade de todas as ações judiciais em curso no País são de natureza tributária (como exemplo, 37% de tudo o que tramita na Justiça Federal e 51% e 56% de todo o contencioso dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente), o que expõe a elevada conflitividade e, por conseguinte, a insegurança e o estado de exceção permanente das relações tributárias. Ao lado disso, leis e atos normativos sucedemse freneticamente, nas distintas unidades do federalismo tributário brasileiro, deixando atônitos até mesmo os mais preparados e diligentes dos contribuintes que tentam cumprir com suas obrigações, ainda que nunca estejam seguros de que a tudo atenderam, sob permanente expectativa de serem vítimas de autuações tão gravosas quanto demoradas, afora fiscalizações excessivas ou cumulativas e, em muitos casos, até dos mesmos entes tributantes. A conveniência do erário e as limitações jurídicas de quem aplica as leis prevalecem sobre a técnica mais qualificada e a melhor hermenêutica jurídica. Leis vagas e lacônicas são feitas justamente para transferir ao Executivo reger o “estado de exceção” de que falamos [...]” (TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: Metódica da Segurança Jurídica do Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 27). 470 No mesmo sentido: BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Breves Reflexões sobre a Jurisdição Administrativa: Uma Perspectiva de Direito Comparado. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, nº 221, jan.-mar. 1998. p. 65-77; NOGUEIRA, Alberto. O Devido Processo Legal Tributário.

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Com isso, seria possível a seleção, para cargos da magistratura, de profissionais especializados em questões tributárias, mediante a realização de concurso específico, no qual matérias como a contabilidade poderiam ser incluídas no programa. Assim, teríamos um corpo mais preparado de magistrados examinando as questões tributárias nas primeiras instâncias, o que certamente implicaria em uma prestação da tutela jurisdicional mais célere e com melhor qualidade técnica. Por fim, há que se comentar a necessidade da prestação de uma tutela adequada pelo Poder Judiciário, aspecto que se reveste de vital importância para a garantia dos contribuintes contra exigências indevidas por parte das autoridades fazendárias. Cumpre observar, todavia, que a presente questão encontra-se vinculada àquelas que foram examinadas acima, na medida em que somente um corpo de magistrados que seja profundamente conhecedor dos temas relacionados ao Direito Tributário tem, condições de, em um curto espaço de tempo prestar uma tutela jurisdicional adequada. Um juiz tributário deve entender profundamente a legislação e a teoria tributárias, mas não só isso. É importante que tenha sólidos conhecimentos de contabilidade e entenda a “matemática dos tributos”.

8. Conclusão A missão deste artigo foi ressaltar a importância do processo tributário como medida da justiça de um Sistema Fiscal. Muitas vezes focamos os debates na carga tributária nominal e nas regras de incidência tributária, e deixamos de lado o fato de que, sem órgãos de aplicação, revisão e julgamento de qualidade, os melhores ordenamentos tributários convertem-se em instrumentos de opressão e injustiça. Nesse contexto, parece-nos que o Brasil está a precisar de uma reforma sistêmica no que se refere ao processo tributário, sendo o momento para iniciarmos uma agenda positiva sobre a matéria.

3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 84; FONROUGE, Carlos M. Giuliani. Derecho Financiero. 7. ed. Buenos Aires: Depalma, 2001. v. II. p. 806; FANUCCHI, Fábio. Processo Administrativo Tributário. In: PRADE, Péricles; Luiz Medeiros; CARVALHO, Célio Benevides (Coord.). Novo Processo Tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1975. p. 76-78.

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Meios Alternativos de Solução de Conflitos no Direito Tributário Brasileiro (2005)

1. Introdução Ao se examinar o sistema tributário brasileiro, verifica-se que transferência de atividades liquidatórias para os contribuintes471 assim como a presença cada vez mais constante de conceitos indeterminados nas leis fiscais deram impulso à discussão quanto à utilização de meios alternativos para a solução de controvérsias entre a Fazenda e os contribuintes, ainda que a mesma seja ainda incipiente. Tais meios alternativos compreendem as técnicas arbitrais (mediação ou conciliação e arbitragem), bem como a transação. Pode-se afirmar, portanto, que a discussão quanto à utilização de meios alternativos para a solução de controvérsias na seara tributária encontra-se vinculada: a) à necessidade de se desenvolverem meios de superação da complexidade característica da sociedade pós-moderna, a qual, na arena tributária vem sendo bastante injusta com o contribuinte, já que este se encontra no front da interpretação/aplicação dos textos normativos fiscais; e b) à necessidade de se superar a insegurança causada pelo uso de conceitos indeterminados nas leis tributárias. Buscar-se-á, nas seguintes linhas, analisar as causas que vêm dando impulso à temática de que ora nos ocupamos, acima descritas, para, ato contínuo, apresentarmos comentários acerca da utilização dos referidos meios alternativos de soluções de controvérsias no âmbito do Direito Tributário brasileiro.

471 Sobre o tema, ver: SILVA, Sergio André R. G. da. Controle Administrativo do Lançamento Tributário: O Processo Administrativo Fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 215-228; SILVA, Sergio André R. G. da. A Importância do Processo Administrativo Fiscal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 239, jan.-mar. 2005, p. 39-41.

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2. Sociedade de risco, complexidade e delegação de competências liquidatórias aos contribuintes O homem contemporâneo vive cercado pela contingência. Uma das principais consequências da pós-modernidade é que o nosso avanço técnico-científico, que deveria servir para nos dar controle sobre o mundo exterior, acabou servindo para a sua paulatina deterioração. As transformações iniciadas no século passado e que continuam se processando no atual trouxeram consigo o fenômeno referido como modernização reflexiva,472 o qual, nas palavras de Ulrich Beck, representa a “possibilidade de uma (auto)destruição criativa para toda uma era: aquela da sociedade industrial”. Como complementa o sociólogo alemão, “o ‘sujeito’ dessa destruição coletiva não é a revolução, não é a crise, mas a vitória da modernização ocidental”.473 Com a superação dos paradigmas da sociedade industrial por intermédio da modernização reflexiva, emerge o conceito de sociedade de risco, o qual “designa uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial”.474 A sociedade de risco e seus pontos de interseção com o direito têm sido objeto de pesquisa do Professor Ricardo Lobo Torres, para quem “a sociedade de risco se caracteriza por algumas notas relevantes: a ambivalência, a insegurança, a procura de novos princípios e o redesenho do relacionamento entre as atribuições das instituições do Estado e da própria sociedade”.475

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Tais traços fundamentais da sociedade de risco são evidentes no campo tributário. A ambivalência é notada na medida em que as relações Fisco-contribuintes são pontuadas por valores que não raro entram em colisão, corporificados, de um lado, na necessidade de proteção da arrecadação tributária, mediante o reconhecimento de que o recolhimento de tributos é um dever fundamental e que do Tesouro Público depende a manutenção da própria coletividade, e de outro, na importância da proteção do contribuinte contra exigências fiscais indevidas ou confiscatórias. A insegurança também é notória no campo fiscal, sendo decorrência de três razões principais: a) a complexidade da legislação; b) a revisão de antigos dogmas, como a ilusão de segurança jurídica absoluta na lei; e c) a inevitável presença de conceitos indeterminados nos textos das leis fiscais. A complexidade da legislação fiscal é natural em um sistema em que o Poder Legislativo vai paulatinamente deixando de editar atos gerais e abstratos e passando a editar atos individuais e concretos. Trata-se aqui do fenômeno da inflação legislativa, o qual é decorrência da tentativa do Poder Legislativo de através da “produção” de novas leis acompanhar as mudanças sociais.476 Tal esforço legislativo raras vezes se dá de forma a permitir a coerência do sistema jurídico, de modo que a legiferação compulsiva leva ao estado caótico atual, em que muitas vezes torna-se difícil identificar o diploma legal aplicável a determinado caso fático.

472 Importa mencionar que, como destacado por Eduardo C. B. Bittar, a denominação desse momento histórico não é pacífica, falando-se em modernidade reflexiva, pós-modernidade, super-modernidade, etc. (BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 96 e 97). 473 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política: Rumo a uma Teoria da Modernização Reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização Reflexiva: Política, Tradição e Estética na Ordem Social Moderna. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997. p. 12. Sobre a reflexividade da modernidade ver também: GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. p. 16. 474 Cf. BECK, Ulrich, A Reinvenção da Política: Rumo a uma Teoria da Modernização Reflexiva, 1997, p. 15. 475 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 177.

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476 Sobre o problema da inflação legislativa, ver: VERGOTTINI, Giuseppe de. A “Delegificação” e a sua Incidência no Sistema de Fontes do Direito. Tradução Fernando Aurélio Zilveti. In: BARROS, Sérgio Resende; ZILVETI, Fernando Aurélio (Coord.). Direito Constitucional: Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999. p. 167; MARTINES, Temistocle. Diritto Costituzionale. 10. ed. Milano: Giuffrè, 2000. p. 51; ITALIA, Vittorio. Diritto Costituzionale. Milano: Giuffrè, 2002. p. 27; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 13; CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 54-61.

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Essa problemática encontra-se presente na seara fiscal, onde é cada vez mais difícil para o contribuinte compreender o complexo emaranhado da legislação tributária. De outro lado, também a revisão do alcance de princípios como a legalidade e a tipicidade tem mitigado a ilusão de segurança absoluta que nutria as aspirações dos operadores do Direito Tributário. Com efeito, o princípio da legalidade tributária é normalmente conceituado como uma garantia de que os tributos serão cobrados somente nas situações objetivamente descritas no texto legal.477 A visão do princípio da legalidade como uma forma de garantia de uma segurança jurídica absoluta, mediante a previsão, na lei, de uma descrição objetiva do tipo tributário,478 foi sustentada na obra de Alberto Xavier,479 a qual ilumina o pensamento da doutrina formalista do Direito Tributário.480 Juntamente com o princípio da legalidade tal doutrina formalista apregoa que os conceitos utilizados na lei devem ser determinados, afastando-se os conceitos incertos, dotados de uma fluidez que traga insegurança quanto ao comando contido na regra fiscal.481

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A despeito dessa linha de entendimentos ser ainda predominante na doutrina tributária pátria, verifica-se que a mesma não mais se sustenta: em primeiro lugar, é assente na teoria hermenêutica contemporânea que a interpretação tem um viés criativo, não podendo ser compreendida como um método que seria aplicado por um intérprete, alheio ao processo hermenêutico, a um objeto também externo (ver item 3.2); em segundo lugar, como veremos no item seguinte, a utilização de conceitos indeterminados é uma realidade com a qual convivemos há muito tempo (basta lembrar que “renda” é um conceito indeterminado), e com a qual, feliz ou infelizmente, continuaremos convivendo (até mesmo porque, como tornaremos a afirmar, a indeterminação é natural da linguagem). Todos esses aspectos têm efeito ainda maior em um sistema em que as tarefas de liquidação tributária foram delegadas aos contribuintes, que hoje assumem completamente os riscos decorrentes de terem o encargo de interpretar e aplicar a legislação fiscal.482 Esse estado de coisas impõe a necessidade da utilização de um novo repertório de princípios pelos operadores do Direito Tributário, despontando a importân-

477 Nesse sentido, ver: MACHADO, Hugo de Brito. Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 21. 478 Vale a pena destacar que os termos “típico” e “tipicidade” serão utilizados no presente estudo como denotativos do significado pelos mesmos adquirido no Direito Tributário Brasileiro, por influência do próprio Professor Alberto Xavier, como representativos da determinação dos componentes da regra-matriz de incidência tributária. Não se desconhecem, entretanto, as objeções trazidas ao uso corrente do termo tipicidade pela Professora Misabel Abreu Machado Derzi em sua obra sobre o tipo nos Direitos Penal e Tributário (DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 286). 479 Cf. XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 36 e 37; XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001. p. 17-18. 480 Sobre o tema ver o nosso: Ética, Moral e Justiça Tributária. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 51, jul. ago. 2003, p. 111-116. 481 Nesse sentido, ver: ROLIM, João Dácio. Normas Antielisivas Tributárias. São Paulo: Dialética, 2001. p. 48; DERZI, Misabel Abreu Machado. A Desconsideração dos Atos e Negócios Jurídicos Dissimulatórios, segundo a Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001. p. 224; CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 235 e 236; OLIVEIRA, Yonne Dolácio de. Princípio da Legalidade. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Princípio da Legalidade. São Paulo: Resenha Tributária, 1981. p. 506 e 507.

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482 Sobre este tema, ver: CAVALCANTE, Denise Lucena. Crédito Tributário: a função do cidadão contribuinte na relação tributária. São Paulo: Malheiros, 2004; SILVA, Sergio André R. G. da. Controle Administrativo do Lançamento Tributário: O Processo Administrativo Fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 215-228; SILVA, Sergio André R. G. da. A Importância do Processo Administrativo Fiscal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 239, jan.-mar. 2005, p. 39-41.

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cia de princípios como a transparência,483 a praticidade,484 a proporcionalidade,485 a ponderação,486 a tolerância e a responsabilidade,487 os quais devem iluminar a construção de um novo estágio nas relações Fisco-contribuintes. De fato, o cenário acima descrito impõe a reforma do sistema de liquidação tributária e da forma de se controlar as atividades liquidatórias realizadas pelos contribuintes, sendo uma das causas que impulsionam o debate quanto à necessidade, oportunidade e possibilidade de utilização de meios alternativos de solução de controvérsias na área fiscal.

483 Sobre o princípio da transparência, ver: TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários, 2005, p. 243 e 244; e TORRES, Ricardo Lobo. O Princípio da Transparência Fiscal. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 79, 2001, p. 10. 484 Sobre o princípio da praticidade, ver: TÔRRES, Heleno Taveira. Transação, Arbitragem e Conciliação Judicial como Medidas Alternativas para Resolução de Conflitos entre Administração e Contribuintes - Simplificação e Eficiência Administrativa. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 86, 2003, p. 40-64; DERZI, Misabel Abreu Machado. A Praticidade, a Substituição Tributária e o Direito Fundamental à Justiça Individual. In: FISCHER, Octavio Campos (Coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004. p. 264; DERZI, Misabel Abreu Machado. Pós-modernismo e tributos: complexidade, descrença e corporativismo. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 100, jan. 2004, p. 75-78; PONTES, Helenílson Cunha. O princípio da praticidade no Direito Tributário (substituição tributária, plantas de valores, retenções de fonte, presunções e ficções, etc.): sua necessidade e seus limites. Revista Internacional de Direito Tributário, Belo Horizonte, n. 2, jul.-dez. 2004, p. 51-60; MANEIRA, Eduardo. O princípio da praticidade no Direito Tributário (substituição tributária, plantas de valores, retenções de fonte, presunções e ficções, etc.): sua necessidade e seus limites. Revista Internacional de Direito Tributário, Belo Horizonte, n. 2, jul.-dez. 2004, p. 61-67; ANDRADE, Alberto Guimarães. O princípio da praticidade no Direito Tributário (substituição tributária, plantas de valores, retenções de fonte, presunções e ficções, etc.): sua necessidade e seus limites. Revista Internacional de Direito Tributário, Belo Horizonte, n. 2, jul.-dez. 2004, p. 68-72. 485 Sobre o princípio da proporcionalidade, com a discussão sobre a evolução histórica do princípio e a apresentação dos principais aportes doutrinários sobre o mesmo, ver: SILVA, Sergio André R. G. da Silva. Controle Administrativo do Lançamento Tributário: O Processo Administrativo Fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 70-81. 486 Sobre o princípio da ponderação, ver: SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002; BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003. p. 49-118; ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 86-88. 487 Sobre os princípios da tolerância e da responsabilidade, ver: KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Tradução Luis Villar Borda e Ana María Montoya. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1999. p. 558-582.

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3. A problemática envolvendo os conceitos indeterminados 3.1. Breves apontamentos sobre os conceitos indeterminados São conceitos indeterminados aqueles cujo conteúdo é incerto, de modo que “a lei refere uma esfera de realidade cujos limites não aparecem bem precisados em seu enunciado”.488 Nas palavras de Karl Engisch: Por conceito indeterminado entendemos um conceito cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos. Os conceitos absolutamente determinados são muito raros no Direito. Em todo caso devemos considerar tais os conceitos numéricos (especialmente em combinação com os conceitos de medida e os valores monetários: 50 km, prazo de 24 horas, 10 marcos). Os conceitos jurídicos são predominantemente indeterminados, pelo menos em parte. É o que pode afirmar-se, por exemplo, a respeito daqueles conceitos naturalísticos que são recebidos pelo Direito, como os de “escuridão”, “sossego noturno”, “ruído”, “perigo”, “coisa”. E com mais razão se pode dizer o mesmo dos conceitos predominantemente jurídicos, como os de “assassinato” (“homicídio qualificado”), “crime”, “ato administrativo”, “negócio jurídico”, etc. Com Philipp Heck podemos distinguir nos conceitos jurídicos indeterminados um núcleo conceitual e um halo conceitual. Sempre que temos uma noção clara do conteúdo e da extensão dum conceito, estamos no domínio do núcleo conceitual. Onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito.489

Como bem percebido por Rodrigo Reis Mazzei, “através da vagueza” busca o legislador “obter predicados tanto no plano temporal (com maior duração na

488 Cf. ENTERRÍA, Eduardo Garcia de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. 10. ed. Madrid: Civitas, 2000. v. I. p. 457. 489 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução J. Baptista Machado. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 208 e 209. Sobre a vaguedade dos conceitos jurídicos, ver: CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguage. 4. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994, p. 31. Sobre os conceitos jurídicos indeterminados ver, ainda: MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Tradução Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2001. p. 54; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 97; KRELL, Andreas J. A Recepção das Teorias Alemãs sobre “Conceitos Jurídicos Indeterminados” e o Controle da Discricionariedade no Brasil. Interesse Público, Porto Alegre, n. 23, jan.-fev. 2004, p. 21-49; COSTA, Regina Helena. Conceitos indeterminados e discricionariedade administrativa. Revista de Direito Público, São Paulo, jul.-set. 1990, p. 125-138.

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aplicação do dispositivo) como também no plano da extensão (com maior amplitude na incidência do dispositivo)”.490 Parte da doutrina, ainda influenciada pelo senso comum teórico (Warat) prevalecente no período anterior, sustenta que os conceitos indeterminados permitiriam ao intérprete descobrir a vontade única contida no texto legal. Entendimento nesse sentido é defendido, por exemplo, por José Alfredo de Oliveira Baracho491 e José Marcos Domingues de Oliveira.492 Com a devida vênia, tal entendimento não é compatível com a compreensão atual acerca do papel da interpretação jurídica.

3.2. A interpretação como uma atividade criativa É vetusto o entendimento de que a interpretação jurídica seria um método para a descoberta da norma contida no texto normativo ou, melhor dizendo, para a descoberta do verdadeiro sentido do texto legal. Não se reconhecia qualquer caráter criativo a tal atividade, pressupondo que, por via da interpretação, seria possível a descoberta do único sentido contido no texto legal. Exposição nesse sentido encontra-se, por exemplo, em Carlos Maximiliano, para quem “interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém”.493 490 MAZZEI, Rodrigo Reis. Notas Iniciais à Leitura do Novo Código Civil. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Theresa (Coords.). Comentários ao Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. I, p. LXXXII. 491 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral dos Conceitos Indeterminados. Cadernos de Direito Tribtuário e Finanças Públicas, São Paulo, n. 27, p. 99. 492 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Legalidade Tributária - O Princípio da Proporcionalidade e a Tipicidade Aberta, Revista de Direito Tributário, n. 70, 2003, p. 114. No mesmo sentido: CARNÉ, Maria Dolors Torregrosa. Técnicas Procedimentales Alternativas en los Supuestos de Aplicación de Conceptos Jurídicos Indeterminados. In: MESTRES, Magin Pont; CLEMENTE, Joan Francesc Pont (Coords.). Alternativas Convencionales en el Derecho Tributario. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2003. p. 241. 493 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 9. A ideia de que a interpretação consiste em uma atividade voltada para a descoberta do “verdadeiro” sentido de um texto legal encontra-se presente nos trabalhos de estudiosos da teoria geral do direito e nos compêndios gerais dos diversos “ramos” jurídicos, como em: MÁYNEZ, Eduardo García. Introducción al Estudio del Derecho. 53. ed. México: Porrúa, 2002. p. 327; COING, Helmut. Elementos Fundamentais da Filosofia do

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Essa linha de entendimentos, todavia, não mais se sustenta no atual estágio da teoria hermenêutica. Com efeito, um primeiro aspecto presente na teoria hermenêutica contemporânea é o reconhecimento de que o texto subjacente às normas legais, estando vertido em linguagem, não enseja a possibilidade de uma única e exclusiva compreensão.494 Esse entendimento já estava presente na doutrina de Hans Kelsen, com o desenvolvimento da noção de que o texto da lei é uma moldura, dentro da qual há diversas possibilidades interpretativas.495 Posteriormente, Herbert Hart sustenta a textura aberta das normas. Para o jusfilósofo inglês a abertura da linguagem normativa é decorrência da impossibilidade de previsão, pelo legislador, das questões que surgirão e clamarão a solução legal.496 Assim, para Hart “a textura aberta da lei significa que há, de fato, áreas de conduta onde deve ser deixado para ser desenvolvido pelas cortes ou autoridades ponderar, diante das circunstâncias, entre interesses concorrentes os quais variem em peso de caso para caso”.497 Nota-se, portanto, que o próprio positivismo jurídico, representado aqui por dois de seus mais ilustres cultores, já havia superado a ideia de que os textos normativos permitem ao intérprete a descoberta “da norma jurídica” nos mesmos contida, o que evidencia que parte (majoritária, diga-se) da doutrina tributária pátria ainda se encontra sustentando posições pré-kelsenianas, de matiz napoleônico, por assim dizer, incompatíveis com o atual estágio da her-

Direito. Tradução Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 326; GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 219; DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 381; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. v. I. p. 114; RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. v. I. p. 24; ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. p. 157; BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 45; JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. I. p. 27; MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 1998. v. I. p. 51. 494 Cf. ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2000. p. 167. 495 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução João Baptista Machado. Coimbra: Almedina, 1984. p. 466 e 467. 496 HART, H. L. A. The Concept of Law. 2nd. ed. Oxford: Oxford University Press, 1997. p. 129. 497 The Concept of Law, 1997, p. 135. Sobre a textura aberta das normas jurídicas em Hart, veja-se: STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem: Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2002. p. 68.

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menêutica jurídica. É como afirma Ricardo Lodi Ribeiro: “Para doutrina formalista brasileira, um positivismo como o de Herbert Hart seria já revolucionário”. É importante notar que o reconhecimento de que a interpretação compreende uma função criativa498 não significa que o intérprete crie a norma do nada, ex nihilo. Como afirma Eros Roberto Grau, “o produto da interpretação é a norma expressada como tal. Mas ela (a norma) parcialmente preexiste, potencialmente, no invólucro do texto, invólucro do enunciado”.499 Por todo o exposto é possível concluir que, por intermédio da interpretação, cria-se uma norma jurídica a partir de um texto legal, sendo certo que os signos linguísticos quase sempre abrem espaço para a criação de normas jurídicas distintas a partir de um mesmo texto.500 Percebe-se, assim, que a utilização nos textos legais de conceitos cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos torna ainda mais abertas as possibilidades hermenêuticas, não havendo como sustentar posição, como as mencionadas anteriormente, no sentido de que os conceitos indeterminados possibilitam ao intérprete encontrar aquela “única norma” contida no texto legal.

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3.3. Conceitos jurídicos indeterminados no Direito Tributário Ao se discutir a presença de conceitos indeterminados na seara fiscal, deve-se ter como premissa a assertiva de Ricardo Lobo Torres, no sentido de que “os conceitos indeterminados são inevitáveis no direito tributário”.501 Uma das grandes discussões que a utilização de tais conceitos vagos no âmbito do Direito Tributário traz é relacionada a sustentabilidade da segurança jurídica em um sistema que utilize os mesmos.502 Parte da doutrina aduz que a utilização de conceitos indeterminados reduz a proteção e a possibilidade previsibilidade objetiva das situações tributáveis por parte dos contribuintes (ver nota 11, acima). No lado diametralmente oposto há juristas como Marco Aurélio Greco, que entendem que a segurança jurídica pretendida pela da doutrina formalista do Direito Tributário seria inalcançável, sendo a segurança jurídica, como tudo o mais, relativa;503 e tributaristas que, como Ricardo Lodi Ribeiro, defendem que os conceitos indeterminados não abalam a segurança jurídica na tributação, conforme se depreende da passagem abaixo transcrita: A estrutura tipológica adotada no direito penal e no direito tributário, embora avessa à discricionariedade, não é incompatível com os conceitos indeterminados. Bem ao contrário. Como bem destacado por Engisch, os tipos constituem subespécies dos conceitos indeterminados, apresentando toda a fluidez que caracterizam estes.

498 Sobre a função criativa da interpretação, ver: Sobre o tema, ver: TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 47 e 48; LATORRE, Angel. Introdução ao Direito. Tradução Manuel de Alarcão. Coimbra: Almedina, 2002. p. 109-111; GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 73-75; STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da constituição do direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 91 e 92; SCHROTH, Ulrich. Hermenêutica Filosófica e Jurídica. In: KAUFMANN, A.; HASSMER, N. (Orgs.). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 383 e 384; GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 432 e 433; LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 283-284; ROSS, Alf, Direito e Justiça, 2000, p. 139; RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Tradução L. Cabral de Moncada. Coimbra: Arménio Amado, 1997. p. 230 e 231. 499 GRAU, Eros Roberto, Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 72 e 73. 500 GRAU, Eros Roberto, Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 30. Em sentido contrário ao defendido neste estudo, ver: BORGES, José Souto Maior. Direito Comunitário. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 19.

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A indeterminação do conceito legal utilizado pelo legislador tributário não gera a incerteza apregoada pelos positivistas, pois, como assinalou Amílcar de Araújo Falcão, o instituto é utilizado pelo legislador não porque o conceito é 501 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 485 e 486. Sobre a temática dos conceitos indeterminados no Direito Tributário, ver: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 40-47; OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Legalidade Tributária O Princípio da Proporcionalidade e a Tipicidade Aberta. Revista de Direito Tributário, n. 70, 2003, p. 114 e 115. 502 Nas palavras de Alberto Xavier: “Sem embargo de se denotarem neste campo algumas imprecisões terminológicas, pode dizer-se que a doutrina dominante – especialmente a alemã – tende a ver a essência da segurança jurídica na susceptibilidade de previsão objetiva por parte dos particulares, das suas situações jurídicas (Vorhersehbarkeit e Vorausberecchenbarkeit), de tal modo que estes possam ter uma expectativa precisa dos seus direitos e deveres, dos benefícios que lhe serão concedidos ou dos encargos que hajam de suportar” (Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, 1978, p. 43-45). 503 Cf. GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 57 e 58.

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indeterminável, “mas porque, na norma em que está indicado, a determinação integral do seu conteúdo não foi possível, por isso que para tanto é necessário considerar dados empíricos, fáticos, técnicos ou científicos de que somente o intérprete e o aplicador, em cada hipótese concreta, disporão”.504

Analisando ambas as linhas de pensamento, somos da opinião de que a legislação tributária não pode forjar-se a partir de conceitos absolutamente determinados, como querem os defensores do formalismo fiscal. Com efeito, como bem destacam Karl Engisch505 e Arthur Kaufmann,506 conceitos absolutamente determinados são apenas os conceitos numéricos, sendo certo, portanto, que, salvo no que se refere às alíquotas não pode a legislação tributária ser construída a partir de conceitos absolutamente determinados. De outro lado, considerando a definição de Engisch no sentido de que conceitos indeterminados são aqueles que são em larga medida incertos, parece-nos que tais conceitos também não são os pilares ideais para a construção do sistema tributário. Assim, cremos que uma vez mais a virtude está no meio, que já nos dizia Aristóteles. Devemos reconhecer que a legislação tributária deve ser composta, regra geral, por conceitos relativamente determinados, ou seja, que são em alguma medida incertos. Em outra assentada, é de se reconhecer, igualmente, que não raro as leis fiscais são forjadas com conceitos indeterminados, os quais não possibilitam ao contribuinte, responsável pela sua interpretação, uma compreensão clara acerca da incidência fiscal, ou, de outro lado, fazem com que seja possível a presença de uma legítima controvérsia interpretativa entre o Fisco e o contribuinte, decorrente da atribuição de significados distintos, porém igualmente possíveis, a um conceito indeterminado. Diante desses breves comentários, resta claro que a indeterminação natural da linguagem faz com que seja necessária a criação de novas formas de relação entre Fazenda e contribuintes, contexto dentro do qual se discute sobe a implementação de meios alternativos para a solução de controvérsias na seara fiscal.

504 Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, 2003, p. 44 e 45. 505 Introdução ao Pensamento Jurídico, 1996, p. 208 e 209. 506 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Tradução Villar Borda e Ana Maria Montoya. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1999. p. 108.

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4. Conceitos indeterminados e litigiosidade tributária Um dos problemas a serem equacionados pelos especialistas em tributação é a crescente litigiosidade envolvendo matérias fiscais,507 a qual é decorrente dos aspectos tratados acima, notadamente a utilização de conceitos indeterminados nos textos das leis tributárias e a complexidade da legislação. Essa questão foi bem examinada pelo professor José Juan Ferreiro Lapatza, em texto publicado no Brasil do qual foi extraído o seguinte trecho: E resulta igualmente, de outro lado, claro que a utilização exagerada de termos ambíguos e imprecisos e de conceitos indeterminados nas normas tributárias; a utilização exagerada de presunções e ficções que mudam a realidade e a oferta de meios de prova – por exemplo, nas bases presumidas pela administração – que excedem aos normalmente admitidos pelo resto do ordenamento, brindam à Administração umas possibilidades de interpretação e qualificação que conduzirão com frequência a Administração – na defesa de seu legítimo interesse arrecadatório – a assumir posições de conflito ao estimar e qualificar novamente os fatos estimados e qualificados antes pelos contribuintes no desenvolvimento dos trabalhos de comprovação que é preciso intensificar no sistema de autoliquidação, em detrimento, talvez, dos trabalhos de investigação de fatos não declarados.508

O aspecto diferencial da litigiosidade gerada pela utilização em larga escala de conceitos indeterminados na composição dos textos legais tributários 507 Sobre a vinculação entre a difusão de meis alternativos de solução de controvérsias e a litigiosidade no campo fiscal, com ênfase da incapacidade do Poder Judiciário de cumprir propriamente sua função, ver: BERTAZZA, Humberto J.; ORTIZ, José A. Díaz. La Relación Fisco Contribuyente. Buenos Aires: ERREPAR, 2003. p. 107 e 108. 508 LAPATZA, José Juan Ferreiro. Solución Convencional de Conflictos en el Ámbito Tributario: una Propuesta Concreta. In: TORRES, Heleno (Coord.). Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2004. v. II. p. 295. Nesse mesmo sentido: RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues; RIBAS, Antonio Souza. Arbitragem como meio Alternativo na Solução de Controvérsias Tributárias. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 60, jan.-fev. 2005, p. 224 e 225; EZCURRA, Marta Villar. La Aplicación del Arbitraje a las Causas Tributarias. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 86, 2003, p. 166; TESO, Ángeles de Palma del. Las Técnicas Convencionales en los Procedimientos Administrativos. In: MESTRES, Magin Pont; CLEMENTE, Joan Francesc Pont (Coords.). Alternativas Convencionales en el Derecho Tributario. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2003. p. 22; PÉREZ, Juan Zornoza. ¿Qué Podemos Aprender de las Experiencias Comparadas? Admisibilidad de los Convenios y otras Técnicas Transaccionales en el Derecho Tributario Español. In: PISARIK, Gabriel Elorriaga (Coord). Convención y Arbitraje en el Derecho Tributario. Madrid: Marcial Pons, 1996. p. 167; BERTAZZA.

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refere-se ao fato de que, como dito anteriormente, muitas vezes ambas as partes, a Fazenda e o contribuinte, têm razão, no sentido de que a interpretação da lei fiscal por ambos sustentada pode ser considerada legítima. De fato, partindo da premissa, antes apresentada, de que na interpretação de conceitos indeterminados pode-se chegar à compreensão de normas jurídicas distintas, é possível que a Fazenda, ao interpretar determinada lei, crie a norma “A”, enquanto o contribuinte, após passar pelo mesmo processo, crie a norma “B”, sendo ambas passíveis de justificação, cabendo ao órgão de aplicação do direito (em caso de conflito, o Poder Judiciário), determinar qual norma será aplicada ao caso concreto.509 Como dito, é nesse contexto que vem à tona a discussão quanto à utilização de meios alternativos para a solução de controvérsias na seara tributária, cujos contornos serão apresentados a seguir.

5. Meios alternativos de solução de conflitos na área fiscal Conforme vimos discorrendo até o presente momento, a transferência de atividades liquidatórias para os contribuintes aliada à complexidade do fenômeno tributário e à presença cada vez mais constante de conceitos indeterminados nas leis fiscais deram impulso à discussão quanto à utilização de meios alternativos para a solução de controvérsias entre a Fazenda e os contribuintes. Tais meios alternativos compreendem as técnicas arbitrais (mediação ou conciliação e arbitragem), bem como a transação.510

509 Cf. KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 464. 510 Vale a pena mencionar o entendimento dissonante do professor argentino José Osvaldo Casás, para quem os problemas decorrentes da utilização de conceitos indeterminados não devem ser solucionados pela utilização de mecanismos alternativos de solução de conflitos, mas pela elaboração de uma legislação que possibilite uma maior certeza das relações entre Fisco e contribuinte. Eis sua lição: “Entendemos, por outro lado, que a transação não é o meio adequado para resolver outras situações de incerteza, as quais têm origem nos preceitos tributários aplicáveis, como as que se derivam da utilização de conceitos jurídicos indeterminados, pois que o que ali está em jogo não são os fatos, mas o direito. Nesse caso, como em outros análogos, a solução deve ser alcançada por outros meios tais como: a) uma transparente técnica legislativa, garantindo a intervenção de juristas na redação dos projetos; e b) o ditado de normas gerais de interpretação, a pedido dos contribuintes, responsáveis e ou entidades que os agrupem e representem, como um meio de garantir a previsibilidade da ação estatal” (CASÁS, José Osvaldo. Los Mecanismos Alternativos de Resolución de las Controversias Tributarias. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003. p. 282-284).

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Segundo de Leon Frejda Szklarowsky, “a arbitragem é uma forma alternativa de composição de litígio entre partes. É a técnica, pela qual o litígio pode ser solucionado, por meio da intervenção de terceiro (ou terceiros), indicado por elas, gozando da confiança de ambas. Com a assinatura da cláusula compromissória ou do compromisso arbitral, a arbitragem assume o caráter obrigatório e a sentença tem força judicial”.511 Ainda segundo o citado autor, “a mediação ou conciliação é também uma forma alternativa de solução de pendência, em que o terceiro, alheio à demanda e isento, em relação às partes, tenta conseguir a composição do litígio, de forma amigável, sem entrar no mérito da questão, diferenciando-se, pois, da arbitragem. Pode ser tanto judicial como extrajudicial, optativa ou obrigatória, ocorrendo também no campo do direito internacional”.512 Por fim, tem-se a transação sempre que as partes põem fim a uma disputa mediante concessões recíprocas. Para que possamos desenvolver melhor a análise da pertinência de cada um desses mecanismos para fins de solução de controvérsias no campo fiscal, tendo como pano de fundo o ordenamento jurídico pátrio, faz-se necessário superar algumas das principais objeções apresentadas contra os mesmos. Tais objeções consistem, basicamente, na alegação de que o uso de tais meios alternativos representaria uma violação dos princípios da legalidade, da indisponibilidade do crédito tributário e da capacidade contributiva.

5.1. Uso de meios alternativos para a solução de controvérsias em matéria tributária e a suposta violação dos princípios da legalidade, da indisponibilidade do crédito tributário e da capacidade contributiva – Uma abordagem teórica A fim de delimitar o contexto em que serão apresentadas as seguintes ponderações, é importante relembrar que a utilização de meios alternativos para a solução de controvérsias fiscais está sendo aqui examinada como um instrumento de superação do fenômeno da complexidade fiscal, a qual é decorren-

511 SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Arbitragem – Uma Nova Visão. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 58, set.-out. 2004, p. 226 e 227. 512 Arbitragem – Uma Nova Visão, 2004, p. 227.

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te da utilização de conceitos ambíguos e indeterminados no campo tributário, bem como da incerteza muitas vezes fomentada pela própria legislação. Dessa forma, não se estará aqui a debater o uso de meios alternativos em situações em que não há dúvidas quanto à existência do crédito tributário, mas sim apenas nos casos em que a mesma seja duvidosa em razão da indeterminação do texto legal ou dos fatos envolvidos. Como assinala Ferreiro Lapatza: O que ocorre é que toda lei tem um âmbito possível de interpretação e todo fato ou caso concreto tem um âmbito possível de percepção. Nesse âmbito – em ocasiões muito amplo, em ocasiões praticamente inexistente – movem-se os acordos a que nos estamos referindo. Somente quando há incertezas a respeito da lei ou a respeito dos fatos podem tais acordos serem inseridos no procedimento de aplicação da lei e são conformes com a lei e o Direito. Por isso tais acordos têm um induvidável caráter transacional, possibilitando ao mesmo tempo – através precisamente da transação – a mais estrita e rigoroso aplicação da lei.513 513 Solución Convencional de Conflictos en el Ámbito Tributario: una Propuesta Concreta, 2004, p. 301. Ver, também: LAPATZA, José Juan Ferreiro. Arbitrage sobre Relaciones Tributarias. In: PISARIK, Gabriel Elorriaga (Coord). Convención y Arbitraje en el Derecho Tributario. Madrid: Marcial Pons, 1996. p. 264. Nesse mesmo sentido, são precisas as palavras do Professor Heleno Taveira Tôrres: “Perplexidade – essa é a sensação de todos que iniciam leituras mais atentas sobre as propostas de aplicação de mecanismos pactícios ou soluções típicas de regimes de direito privado nos campos em que s permita mediação, conciliação, transação ou, mesmo, a adoção de medidas arbitrais na composição de conflitos em matéria tributária. Na verdade, esta sensação decorre mais do modo equivocado como estes argumentos são apresentados do que propriamente das contingências que eles projetam sobre os princípios alegados como sendo afetados na sua construção axiológica, como os da isonomia, preservação da capacidade contributiva, indisponibilidade do crédito tributário e legalidade material (tipicidade) – os maiores elementos de resistência para que se possa estender aos domínios das lides tributárias os citados mecanismos. De fato, se encarados como meios ordinários disponíveis para qualquer modalidade de conflito, seria algo deveras preocupante, tendo em vista as implicações com o princípio da legalidade estrita em matéria tributária. Cabe estabelecer, portanto, antes que uma cortina de preconceitos, os limites para a adoção desses regimes, como bem já o fizeram outros países de bases democráticas sólidas como França (Conciliation; Transaction; Régler Autrment les Conflicts, de 1984), Alemanha, Itália (Accertamento com Adesione e Conciliazione Giudiciale), Inglaterra (Alternative Dispute Resolution – ADR) e Estados Unidos (Alternative Dispute Resolution Act, de 1990; Closing Agreement, Sec. 7, 121, IRC), empregando-os de forma prévia à utilização da via judicial ou no seu curso, como nos casos de conciliação. Tal como houve mudanças nos mecanismos de arrecadação e cobrança dos tributos devidos, passando de um regime baseado exclusivamente em lançamentos de ofício ou por declaração para um modelo típico de tributação de massa, como é o regime de antecipação do pagamento por autolançamento (sujeito à homologação e controle por parte da Administração), onde o contribuinte declara, qualifica

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É nesse cenário que devem ser analisados aqueles que são os principais argumentos sustentados pelos opositores da utilização desses mecanismos alternativos, quais sejam, sua incompatibilidade com os princípios da legalidade, da indisponibilidade do crédito tributário e da capacidade contributiva. Nota-se, desde já, que o princípio da legalidade não aparece aqui como uma garantia individual, mas como determinante de um dever da autoridade pública de exigir o recolhimento de todos os tributos devidos em conformidade com os mandamentos legais. Corolário do princípio da legalidade, nesta assentada, é o princípio da indisponibilidade do crédito tributário, segundo o qual, não sendo a Fazenda Pública titular dos valores que arrecada, exercendo, na verdade, uma função pública,514 não podem as autoridades fazendárias decidir sobre a conveniência e oportunidade de demandar o recolhimento do montante de tributos devido.515 Discute-se também, nesse contexto, eventual violação do princípio da capacidade contributiva (seria mais próprio falar em violação aos princípios da isonomia e da generalidade da tributação), sob a alegação de que os meios alternativos estariam a permitir que sujeitos em situações idênticas tenham tratamentos diversos. A questão aqui é que, como tivemos a oportunidade de destacar anteriormente, a legalidade tributária não pode ser entendida como uma fórmula para que se



o fato jurídico, quantifica e liquida a dívida; o que se quer é que tais medidas de simplificação fiscal alarguem-se em seus horizontes, como prática de justiça, nos moldes do que ocorreu com o instituto da compensação, sem que se tenha qualquer notícia de prejuízo para o Erário Público. Esses meios propostos serão sempre úteis para resolver conflitos baseados na interpretação do texto normativo, naquilo que não for claro e determinável, quando sirvam para resolver os problemas decorrentes do uso excessivamente prolixo, casuístico e obscuro da linguagem das normas tributárias, propositadamente ambígua e imprecisa, repleta de indeterminações e vaguezas. Aplicando-se onde a Administração não tenha certeza da ocorrência do fato jurídico tributário, na interpretação dos fatos jurídicos, portanto, especialmente nos casos sujeitos a regimes de presunções, quando houver dificuldade de demarcação dos conceitos fáticos, quando não houver provas ou sejam estas insuficientes” (TÔRRES, Heleno Taveira. Transação, Arbitragem e Conciliação Judicial como Medidas Alternativas para Resolução de Conflitos entre Administração e Contribuintes – Simplificação e Eficiência Administrativa. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 86, 2003, p. 47-50).

514 Ver: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 14. Ver também: SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo Tributário: A Função Fiscal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 6 e 7. 515 Para um breve apanhado sobre essas posições ver: MASSANET, Juan Ramallo. La Eficacia de la Voluntad de las Partes en las Obligaciones Tributarias. In: PISARIK, Gabriel Elorriaga (Coord). Convención y Arbitraje en el Derecho Tributario. Madrid: Marcial Pons, 1996. p. 217.

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encontre no texto legal um único mandamento normativo que será extraído, de forma uniforme e inequívoca, por tantos quantos venham a ter contato com o mesmo. Do contrário, mesmo a utilização de termos relativamente determinados dá azo por vezes a mais de uma interpretação legítima do texto legal, dentro dos marcos de sua moldura linguística. É exatamente nesse âmbito que se tem discutido quanto à utilização de técnicas arbitrais e da transação como meios alternativos para a terminação de disputas entre a Fazenda e os contribuintes. Tais instrumentos teriam lugar, por exemplo, na fase de determinação da norma jurídica aplicável a determinado caso, nas situações em que for evidentemente possível a extração de comandos distintos de um mesmo texto legal, ou quando da apreciação de determinados fatos, cuja subsunção à norma não seja evidente. Nessa linha de ideias, percebe-se que a utilização desses instrumentos na seara tributária não afasta a incidência dos princípios da legalidade e indisponibilidade do crédito fiscal, uma vez que todo o procedimento se daria integralmente dentro dos marcos legais, sem que haja espaço para se argumentar que o ente tributante está deixando de aplicar a lei ao caso concreto, ou renunciando a crédito tributário devido.516 Nesse contexto, não há que se falar, de igual modo, em violação do princípio da capacidade contributiva, uma vez que não se estará deixando de tributar a capacidade econômica manifestada pelo contribuinte, mas apenas definindo qual o comportamento tributável selecionado pelo legislador. Diante de todo o exposto, é de se concluir este subitem aduzindo que (a) diante da determinação apenas relativa dos termos utilizados nos textos legais, há campo para o desenvolvimento de instrumentos alternativos para redução da litigiosidade fiscal, os quais tem por escopo harmonizar as relações entre Fazenda e contribuintes; (b) considerando a tendência no sentido da ampliação da utilização de conceitos indeterminados nas leis tributárias, a necessidade de desenvolvimento de tais mecanismos torna-se ainda mais premente, uma vez que um dos principais efeitos colaterais do uso de tais conceitos é o aumento dos litígios no campo tributário.

516 Nesse sentido, ver: RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues; RIBAS, Antonio Souza, Arbitragem como meio Alternativo na Solução de Controvérsias Tributárias, 2005, p. 237 e 238; FALCÓN Y TELLA, Ramón. El Arbitraje Tributario. In: PISARIK, Gabriel Elorriaga (Coord). Convención y Arbitraje en el Derecho Tributario. Madrid: Marcial Pons, 1996. p. 260.

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5.2. Complexidade dos fatos Vale a pena ressaltar que, embora se tenha dedicado especial atenção à questão da indeterminação linguística, é possível que a indeterminação se encontre não no texto legislativo, mas sim nos fatos envolvidos. Com efeito, muitas vezes o problema não é compreender o texto, mas os fatos que juntamente com o mesmo devem ser interpretados, de modo a se concluir pela incidência ou não da tributação. Também para a solução desses casos tem-se falado na adoção de meios alternativos para a solução de controvérsias entre Fazenda e contribuintes.

5.3. Problemas quanto à utilização de meios alternativos no Direito Tributário Brasileiro Como dito logo no início deste estudo, as pesquisas nacionais quanto ao tema em apreço são ainda incipientes, embora a questão da utilização de meios alternativos de solução de controvérsias entre Fisco e contribuintes já esteja em estágio muito mais avançado em países como França,517 Itália,518 Alemanha,519 Espanha520 e Estados Unidos.521 517 Ver: ROSEMBUJ, Tulio. Procedimientos Tributarios Consensuados: La Transación Tributaria. Buenos Aires: Instituto de Estudios de las Finanzas Públicas Argentinas, 2001. p. 75-84. RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues; RIBAS, Antonio Souza, Arbitragem como meio Alternativo na Solução de Controvérsias Tributárias, 2005, p. 232. 518 Ver: MOCSCHETTI, Francesco. Las Posibilidades de Acuerdo entre la Administración Financiera y el Contribuyente en el Ordenamiento Italiano. In: PISARIK, Gabriel Elorriaga (Coord). Convención y Arbitraje en el Derecho Tributario. Madrid: Marcial Pons, 1996. p. 117-131; ROSEMBUJ, Tulio, Procedimientos Tributarios Consensuados: La Transación Tributaria, 2001, p. 88-99. 519 Ver: SEER, Roman. Contratos, Transaciones y Otros Acuerdos en Derecho Tributario Alemán. In: PISARIK, Gabriel Elorriaga (Coord). Convención y Arbitraje en el Derecho Tributario. Madrid: Marcial Pons, 1996. p. 133-159. 520 Ver: LAPATZA, José Juan Ferreiro, Solución Convencional de Conflictos em el Âmbito Tributário: una Propuesta Concreta, 2004, p. 293-312; PISARIK, Gabriel Elorriaga (Coord). Convención y Arbitraje en el Derecho Tributario. Madrid: Marcial Pons, 1996; MESTRES, Magin Pont; CLEMENTE, Joan Francesc Pont (Coords.). Alternativas Convencionales en el Derecho Tributario. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2003. 521 Ver: ROSEMBUJ, Tulio. Procedimientos Tributarios Consensuados: La Transación Tributaria, 2001, p. 99-105; RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues; RIBAS, Antonio Souza, Arbitragem como meio Alternativo na Solução de Controvérsias Tributárias, 2005, p. 234.

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É de se reconhecer, desde já, as dificuldades da discussão da questão no Brasil, a qual é devida principalmente à preponderância de ultrapassadas doutrinas, principalmente no que se refere ao conteúdo do princípio da legalidade. Somado a isso, há que se ressaltar os problemas institucionais que teríamos que enfrentar antes de podermos discutir com seriedade a implementação de mecanismos alternativos de solução de controvérsias entre a Fazenda e os contribuintes. Como se sabe, infelizmente a realidade nacional ainda é povoada por casos de corrupção que poderiam fazer com que iniciativas em direção à adoção de tais instrumentos alternativos se transformassem em novos caminhos para a evasão tributária. Assim, discutir a utilização desses meios alternativos sem um debate prévio quanto à reforma das instituições administrativo-fiscais, principalmente daquelas responsáveis pela apreciação de pedidos de revisão da legalidade dos atos administrativos de exigência tributária, como é o caso dos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, parece-nos sem sentido. Em nosso estudo acerca do processo administrativo fiscal defendemos a substituição dos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda por uma agência com atribuição para a revisão da legalidade dos atos tributários.522 Sendo uma autarquia especial, ou seja, um ente com personalidade jurídica própria e sem subordinação hierárquica à União Federal, tal agência teria uma maior independência e imparcialidade em relação à Administração Direta,523 sendo que suas decisões seriam protegidas contra qualquer tentativa de influência política. Nossa sugestão é que o referido ente seja composto por agentes julgadores contratados por concurso, entre especialistas em tributação (não necessariamente advogados) sendo os presidentes das turmas de julgamento e o presidente da agência indicados pelo Presidente da República e referendados pelo Senado Federal.524 A existência de um órgão nesses moldes certamente abriria um maior espaço para a discussão da adoção de meios alternativos para a solução de controvérsias na seara fiscal, a qual, em nossa opinião, sob um ponto de vista pragmático, é hoje impensável.

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5.4. O que mudaria na realidade brasileira com a adoção de tais métodos alternativos? Outro questionamento procedente, ao se examinar a temática em tela, é referente às reais mudanças que adviriam caso passássemos a adotar tais mecanismos no Direito Tributário Administrativo pátrio. De fato, já temos na legislação brasileira alguns instrumentos de superação da complexidade legislativa e da indeterminação dos textos normativos, papel exercido, principalmente, pelo processo de consulta.525 Assim, no caso de qualquer dúvida quando à interpretação/aplicação da legislação tributária, pode sempre o contribuinte apresentar consulta às autoridades fazendárias acerca da melhor forma de proceder, sendo que em sua petição o contribuinte pode apresentar sua compreensão sobre o tratamento fiscal de determinada questão e indicar as razões de seu entendimento para que o mesmo seja considerado pela Fazenda. Os grandes problemas do processo de consulta são: a falta de confiança do contribuinte na consulta fiscal (a qual se justifica no plano empírico, em razão da parcialidade526 normalmente ostentada pela Fazenda em suas decisões) e a demora na resposta. O primeiro problema não seria resolvido apenas com a adoção dos meios alternativos, necessitando, como por nós proposto, uma reforma administrativa dos órgãos de julgamento administrativos. De outro lado, no que tange à questão da demora da resposta, também aqui se está diante de problema que não seria resolvido pela mera adoção dos mecanismos alternativos.

525 Sobre o processo de consulta, ver: ROCHA, Valdir de Oliveira. A Consulta Fiscal. São Paulo: Dialética, 1996. 522 Controle Administrativo do Lançamento Tributário: O Processo Administrativo Fiscal, 2004, p. 257-268. 523 Controle Administrativo do Lançamento Tributário: O Processo Administrativo Fiscal, 2004, p. 262. 524 Controle Administrativo do Lançamento Tributário: O Processo Administrativo Fiscal, 2004, p. 263.

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526 Vale ressaltar que, ao referir-nos à parcialidade não estamos sustentando que os agentes julgadores de forma intencional tomam posições pró-arrecadação. Todavia, considerando os aportes da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer e o papel da pré-compreensão no fenômeno hermenêutico, cremos que os agentes fiscais de carreira, ao examinarem determinada situação concreta, não estão dispostos a abrirem-se às opiniões contrárias, fechando-se na cela de seus conceitos prévios.

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5.5. Técnicas arbitrais no Direito Tributário pátrio? As técnicas arbitrais (a conciliação ou mediação e a arbitragem propriamente dita) envolvem a participação de um terceiro na composição de um conflito de interesses. Esse terceiro pode participar tomando uma decisão sobre a disputa (arbitragem) ou auxiliando as partes para que cheguem a um acordo sobre a contenda (conciliação). Diante dessa noção acerca das técnicas arbitrais formamos, de plano, duas convicções: uma primeira, já externada anteriormente, no sentido de que o Brasil não possui instituições para implementar a arbitragem ou a mediação como instrumentos de solução de divergências no campo tributário; uma segunda segundo a qual a utilização de tais meios alternativos passaria necessariamente pela constituição de um ente como a proposta agência para a revisão de atos tributários. Com efeito, considerando que tanto a arbitragem como a conciliação/ mediação dependem da participação de um terceiro no processo de decisão,527 parece-nos carente de lógica que tal terceiro seja um particular. Do mesmo modo, também não tem sentido que tal função seja atribuída ao Poder Judiciário, tanto que nas XXII Jornadas Latinoamericanas de Derecho Tributário, realizadas no ano de 2004 no Equador, concluiu-se que “a denominação de arbitragem fiscal deve ser reservada exclusivamente para a técnica de solução de controvérsias em matéria tributária consistente em submeter a decisão de uma controvérsia a um órgão não pertencente à jurisdição ordinária estatal, cujo laudo tenha a mesma força que uma sentença” (o grifo é nosso). Assim, tal papel somente poderia ser desempenhado por um ente especializado personalizado, público, mas independente da Administração Pública, o qual se colocaria entre a Fazenda e o contribuinte na tomada de decisão. Esse entendimento também foi aquele a que chegaram os especialistas reunidos nas aludidas jornadas Latino-Americanas, onde ficou decidido que: 527 A necessidade da participação de um terceiro, neutro e imparcial, como árbitro ou mediador é ressaltada por Tulio Rosembuj, para quem “o ato de consenso pode contar com um intérprete dos interesses, um terceiro neutro e imparcial, que ‘através da organização dos intercâmbios entre as partes lhes permita confrontar seus pontos de vista e buscar com sua assistência uma solução ao conflito que os opõem’ (Bonafé-Schmitt)”. Assim, conclui o catedrático da Universidade de Barcelona que os meios alternativos correspondem a “qualquer forma alternativa de resolução de disputa em que participa um terceiro neutro, em um procedimento alheio ou diverso ao poder judiciário” (ROSEMBUJ, Tulio. La Resolución Alternativa de Conflictos Tributarios. In: MESTRES, Magin Pont; CLEMENTE, Joan Francesc Pont (Coords.). Alternativas Convencionales en el Derecho Tributario. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2003. p. 127).

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Os acordos tributários deveriam prever a intervenção de órgãos administrativos dotados de independência funcional em relação àqueles agentes fiscais que tenham intervido previamente nos procedimentos de verificação, fiscalização ou liquidação.528

É de se assinalar, todavia, que tal fórmula, caso implementada, representaria uma mudança mais pela criação do novo ente do que pela utilização das técnicas arbitrais, já que, no final das contas, a arbitragem de conflitos é o que toda corte, administrativa ou judicial faz. Ou seja, a mudança que se precisa implementar é muito mais institucional do que procedimental.

5.6. A transação no Direito Tributário pátrio Trata-se a transação de uma forma de terminação de litígios mediante concessões mútuas das partes envolvidas (artigo 840 do Código Civil). Como é sabido, o Código Tributário Nacional prevê a transação como forma de extinção do crédito tributário no inciso III de seu artigo 156, tratando especificamente do instituto em seu artigo 171, cuja redação é a seguinte: Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário. Parágrafo único. A lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso.

Ao se proceder ao estudo desse dispositivo, percebe-se que o mesmo trata de momento distinto do que vimos analisando no presente texto. Com efeito, o artigo 171 refere-se a momento em que o crédito tributário já terá sido constituído, tanto que a transação, nesse caso, configura modalidade de sua extinção. Durante todo este estudo, ao tratarmos das incertezas legais e factuais em que se encontra submerso o fenômeno tributário, estávamos tratando de um outro momento, prévio à constituição do crédito tributário, a qual era prejudicada pela própria incerteza. 528 Disponível na internet no sítio . Acesso em 15 de julho de 2005.

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Nessa linha de ideias, parece-nos impróprio falar em transação no âmbito específico para o qual se voltou este texto, ou seja, aquele da superação da complexidade e da incerteza presentes no sistema tributário pátrio, já que, por natureza, ocorre a transação em momento posterior, em que já terá se tornado certo o crédito tributário.

6. Conclusão As transformações vividas na sociedade pós-moderna, as quais nem sempre são percebidas, seja por insensibilidade, seja em razão de um esforço intencional e consciente de manutenção da segurança trazida por referenciais conhecidos, mesmo que ultrapassados, motivam uma revisão das formas de relacionamento Fazenda-contribuintes. As características da sociedade de risco, notadamente a ambivalência, a insegurança e a incerteza, tornam muitas vezes opaca nossa visão de mundo, impondo uma mudança de paradigmas, com o surgimento de novos princípios que devem guiar o jurista da pós-modernidade (praticidade, ponderação, proporcionalidade, transparência, tolerância e responsabilidade). Como vimos, é nesse contexto que, diante do reconhecimento de que a lei não traz a segurança esperada pela doutrina fiscal de formalismo napoleônico ainda predominante no Brasil, discute-se a questão dos meios alternativos de solução de controvérsias na arena tributária. Depois de todas as considerações aqui apresentadas, concluímos nosso estudo afirmando que tais discussões, que se encontram bastante avançadas alhures, parecem não serem passíveis de importação para nossa realidade. Com efeito, conforme defendemos, o que se precisa para alcançarmos uma valorização das soluções administrativas de controvérsias tributárias é uma reforma institucional e não de procedimentos. O processo administrativo de revisão de atos tributários, assim como o processo de consulta, são instrumentos hábeis para a superação das incertezas presentes (e inevitáveis) na legislação fiscal e nos fatos tributáveis. Todavia, o seu manejo por autoridades vinculadas a referencias jurídicos ultrapassados impede o desenvolvimento de seu potencial de pacificação de controvérsias. Dessa forma, parece-nos que a discussão quanto à implementação dos ditos meios alternativos de solução de controvérsias é descabida, caso não se discuta, simultaneamente, uma reforma institucional das cortes administrativas, e desnecessária, caso tal reforma um dia venha a ser implementada com sucesso. 216

Questionamento Judicial, pela Fazenda Nacional, de Decisão Administrativa Final – Análise do Parecer PGFN/ CRJ nº 1.087/2004 (2004)

1. Introdução Como se sabe, foi publicado no Diário Oficial de 23 de agosto de 2004 o despacho do Ministro da Fazenda que aprovou os termos do Parecer PGFN/CRJ nº 1.087/2004, o qual reconhece a competência da Procuradoria da Fazenda Nacional para questionar, perante o Poder Judiciário, as decisões proferidas, em última instância, pelos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda. Eis a redação do citado despacho: Despacho: Aprovo o Parecer PGFN/CRJ Nº 1087 /2004, de 19 de julho de 2004, pelo qual ficou esclarecido que: 1) existe, sim, a possibilidade jurídica de as decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, que lesarem o patrimônio público, serem submetidas ao crivo do Poder Judiciário, pela Administração Pública, quanto à sua legalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato; 2) podem ser intentadas: ação de conhecimento, mandado de segurança, ação civil pública ou ação popular; e 3) a ação de rito ordinário e mandado de segurança podem ser propostos pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, por meio de sua Unidade do foro da ação; ação civil pública pode ser proposta pelo órgão competente; já a ação popular somente pode ser proposta por cidadão, nos termos da Constituição Federal.

A elaboração e aprovação do parecer em questão encontram-se em linha com a postura que vem sendo há algum tempo adotada pelo Ministério da Fazenda em face das decisões proferidas pelos Conselhos de Contribuintes contrárias ao entendimento da Administração Pública, representando mais um golpe desferido pela Fazenda contra o processo administrativo fiscal federal.

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O Parecer PGFN/CRJ nº 1.087/2004 põe em destaque questão que há muito vem sendo debatida pelas doutrinas administrativa e tributária pátrias, consistente na possibilidade de questionamento judicial, pela Administração Pública, de decisão final proferida no âmbito de processo administrativo fiscal. O objetivo deste estudo é examinar a questão acima delineada, analisando a doutrina e jurisprudência que se lhes figuram aplicáveis para, então, examinar-se a compatibilidade do Parecer PGFN/CRJ nº 1.087/2004 com o ordenamento jurídico pátrio.

2. A doutrina sobre o tema Podem-se mencionar duas correntes doutrinárias sobre o tema em referência, defendendo, respectivamente, a possibilidade e a impossibilidade de a Fazenda postular judicialmente a reforma de decisão proferida pelos Conselhos de Contribuintes ou a Câmara Superior de Recursos Fiscais. À primeira corrente, que defende a legitimidade do ajuizamento de ação pela Fazenda questionando a legalidade da decisão final proferida no âmbito do processo administrativo fiscal, aderiram, entre outros, Aurélio Pitanga Seixas Filho, Rubens Gomes de Souza529 e Carlos da Rocha Guimarães, cujos entendimentos fundamentam-se na distinção entre Administração Ativa e Administração Judicante e na impossibilidade de exercício de poder hierárquico pela primeira sobre a segunda. Como aduz Pitanga Seixas: [...] se a administração (ativa) não é a titular da decisão final proferida no procedimento administrativo litigioso ou contraditório, nada mais natural, e com sentido, que possa utilizar instrumentos jurisdicionais (solução de um litígio, tempestivamente) cabíveis para corrigir um erro na manifestação da vontade da administração (judicante) que não foi seu (o erro).530

Segundo Carlos da Rocha Guimarães:

529 SOUZA, Rubens Gomes de. Revisão Judicial dos Atos Administrativos em Matéria Tributária por Iniciativa da Própria Administração. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 29, jul.-set. 1952, p. 444 e 445. 530 SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Lançamento Tributário Definitivo – Sua Imutabilidade – Coisa Julgada Administrativa em Matéria Fiscal. In: Estudos de Procedimento Administrativo Fiscal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 113.

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Da mesma forma que o contribuinte, uma vez trancada a instância administrativa, por ter esgotado todos os recursos, pode ainda alegar em Juízo o seu direito, a Administração deveria acolher expressamente na lei o que está implícito, isto é, o seu direito de anular, em juízo, a decisão do Tribunal Administrativo, da mesma forma que o contribuinte não fica jungido a essa decisão e pode ir a Juízo, discutir o assunto, a Administração teria o mesmo direito. Ela compareceria a Juízo e pleitearia a anulação do acórdão do Conselho de Contribuintes. Não haveria nenhuma estranheza nessa atitude, porque não se tratando de um órgão da Administração, mas de um órgão administrativo, sem subordinação hierárquica, o seu ato, portanto, não poderia ser modificado pela simples atuação da competência hierárquica; não haveria, assim, outro recurso senão a ida a Juízo, para tentar anular o ato perante o Judiciário.531

Esse posicionamento, no sentido de que a Fazenda Pública pode buscar em Juízo a anulação de decisão final proferida pelo órgão administrativo encarregado da revisão da legalidade dos atos administrativos fiscais é defendido, ainda, pelo Ministro José Delgado532, por Gilberto de Ulhôa Canto,533 por Lídia Maria Lopes Rodrigues Ribas534 e por Yoshiaki Ichihara.535 A segunda corrente, amplamente majoritária no Direito Brasileiro, à qual aderimos expressamente em trabalho anterior,536 conta com nomes como Ricar-

531 GUIMARÃES, Carlos da Rocha. O Processo Fiscal. In: Problemas de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1962, p. 113. 532 DELGADO, José Augusto. Reflexões sobre o Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 114 e 115. 533 CANTO, Gilberto de Ulhôa. O Processo Tributário: Anteprojeto de lei orgânica, elaborado por Gilberto de Ulhôa Canto. Rio de Janeiro: FGV, 1964, p. 66-71. 534 RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues. Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 151-155. 535 ICHIHARA, Yoshiaki. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 358 e 359. 536 SILVA, Sergio André R. G. da Silva. Controle Administrativo do Lançamento Tributário: O Processo Administrativo Fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 164-171.

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do Lobo Torres,537 Paulo de Barros Carvalho,538 Ives Gandra da Silva Martins,539 Alberto Xavier,540 Maria Teresa Carcomo Lobo,541 Hugo de Brito Machado,542 Valdir de Oliveira Rocha,543 Luiz Emygido F. da Rosa Jr.,544 Bernardo Ribeiro de Moraes,545 Sacha Calmon Navarro Coêlho,546 Misabel Abreu Machado Derzi,547 Marco Aurélio Greco,548 Eduardo Botallo,549 Dejalma de Campos,550 e Luiz Fer-

537 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 311; TORRES, Ricardo Lobo. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 179. 538 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 474 e 475. 539 MARTINS, Ives Gandra da Silva, Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 78. 540 XAVIER, Alberto. Do Lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 320 e 321. 541 LOBO, Maria Teresa Cárcomo. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 252. 542 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 149 e 150; MACHADO, Hugo de Brito. Algumas Questões do Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 158 e 159. 543 ROCHA, Valdir de Oliveira. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 258. 544 ROSA JR. Luiz Emygdio F. Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário. 17. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 697. 545 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, v. II, p. 464. 546 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Processo Administrativo Tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 192 e 193. 547 DERZI, Misabel Abreu Machado. [Notas de Atualização]. In: BALLEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 858.

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nando Mussolini Júnior,551 entre outros, fundamentando-se, principalmente, nos argumentos abaixo descritos: 1. A possibilidade de questionamento judicial, pela Fazenda Pública, da decisão proferida ao cabo do processo administrativo, traria insegurança às relações jurídicas tributárias, reduzindo, demasiadamente a importância de órgãos como os Conselhos de Contribuintes, cuja imparcialidade e independência técnica são essenciais para a proteção dos contribuintes contra cobranças tributárias indevidas, movidas mais pelo afã arrecadatório do que pela correta aplicação da legislação fiscal. Nas palavras de Marcos Vinicius Neder e Maria Teresa Martinez López, “pedir a anulação da decisão proferida pelos Conselhos de Contribuintes, quando for favorável ao contribuinte, retira a razão para a existência desses órgãos”.552 2. Tendo a decisão sido proferida por órgão da Administração Pública direta, não teria esta interesse processual de agir para postular, perante o Poder Judiciário, a anulação de ato pela mesma praticado. Há que se reconhecer que tanto o Ministério da Fazenda como a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e os Conselhos de Contribuintes são órgãos administrativos inseridos na mesma pessoa jurídica de Direito Público, a União Federal, sendo desta indissociáveis. 3. Tendo em vista os mandamentos previstos nos artigos 42 e 45 do Decreto nº 70.235/72, a decisão proferida no âmbito do processo administrativo, por qualquer dos Conselhos de Contribuintes ou, quando for o caso, pela Câmara Superior de Recursos Fiscais, é definitiva, entendimento este corroborado pelo Superior Tribunal de Justiça no Mandado de Segurança nº 8.810. Vale a pena tecer alguns comentários sobre cada um desses argumentos, o que se faz a seguir.

548 GRECO, Marco Aurélio. Processo Administrativo Tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 708 e 709. 549 BOTALLO, Eduardo Domingos. Visão Atual do Processo Administrativo Tributário. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (Coord.). Direito Tributário: Homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. II, p. 843-845. 550 CAMPOS, Dejalma de. Direito Processual Tributário. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 69.

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551 MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. Processo Administrativo Tributário: Das Decisões Terminativas Contrárias à Fazenda Pública. Barueri: Manole, 2004, p. 59. 552 NEDER, Marcos Vinicius; LOPEZ, Maria Teresa Martinez. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. São Paulo: Dialética, 2002, 365.

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2.1. A insegurança jurídica e a desvalorização do processo administrativo

2.2. Da relação existente entre a Administração Ativa e a Administração Judicante

Um dos grandes problemas enfrentados no âmbito do controle da legalidade dos atos administrativos fiscais consiste na desconfiança que os contribuintes têm dos instrumentos que são postos à sua disposição pela Administração Pública, na medida em que os órgãos administrativos encarregados da revisão dos atos fiscais nem sempre agem com a independência técnica e imparcialidade esperadas. Assim, em um cenário jurídico como o atual, em que a fragilidade do processo administrativo fiscal como instrumento de defesa dos direitos dos contribuintes é evidente, a decisão tomada pelo Ministério da Fazenda vem desacreditar ainda mais os meios de controle administrativo dos atos tributários. Essa postura da Fazenda Nacional põe em foco a seguinte pergunta: em um sistema em que as autoridades fazendárias podem questionar suas próprias decisões perante o Poder Judiciário, para que serve o processo administrativo? De fato, a grande vantagem de se postergar a discussão judicial e percorrer o longo caminho do processo administrativo é a expectativa de discutir a questão com um corpo técnico de julgadores, cuja decisão final, lastreada no exame da legislação e não em ponderações políticas e fundamentações de cunho estritamente arrecadatório, caso favorável ao contribuinte, será definitiva. Com possibilidade de discussão judicial da decisão dos Conselhos de Contribuintes favorável aos contribuintes põe-se por terra, portanto, uma das principais funções do processo administrativo, ao qual restará o ostracismo. Essa orientação é inaceitável e incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro. Há que se compreender que por intermédio do processo administrativo pratica-se um ato de aplicação da lei ao caso concreto, promovendo-se a estabilização das relações jurídicas existentes entre o Estado e os administrados, cuja correção não pode cambiar ao sabor da conveniência da Administração Pública. Diante do exposto, não é demasiado afirmar que o Parecer PGFN/CRJ nº 1.087/2004 é um ato de terrorismo contra o processo administrativo fiscal, uma medida que visa dilapidar os instrumentos institucionais de defesa dos contribuintes, ao invés de fortalecê-los, uma clara demonstração de que a Fazenda vê o processo administrativo não como um direito constitucional dos contribuintes, decorrente do princípio do devido processo legal e seus corolários, mas sim como uma espécie de concessão, que pode ser a qualquer instante suprimida.

Um outro aspecto que deve ser sublinhado é que, apesar de realizarem atividades de natureza distinta, a dita Administração Ativa age por imputação volitiva da mesma pessoa jurídica de direito público sob a qual se encontra a chamada Administração Judicante.553 Nenhuma das duas possui personalidade jurídica, sendo órgãos administrativos criados por descentralização de atividades.554 Como destaca Hugo de Brito Machado:

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553 Como destaca Marcelo Caetano: “Essa ideia de imputação tem a maior importância na técnica jurídica. Aqui chama-se imputação à atribuição de um ato voluntário à pessoa que deve ser tida por sua autora. É uma noção bem conhecida pelos criminalistas. Ora na pessoa coletiva a vontade manifestada pelo órgão é imputada à própria pessoa, isto é, a pessoa manifesta-se através do órgão. É através dos seus órgãos que, tal como as pessoas físicas, as pessoas jurídicas conhecem, pensam e querem. O órgão não tem existência distinta da pessoa, a pessoa não pode existir sem órgãos. Os atos dos órgãos são atos da própria pessoa e tudo quanto diz respeito às relações entre os diversos órgãos da mesma pessoa jurídica tem caráter meramente interno” (Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 64). 554 Nas palavras de Hely Lopes Meirelles, órgãos públicos “são centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais, através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem. São unidades de ação com atribuições específicas na organização estatal. Cada órgão, como centro de competência governamental ou administrativa, tem necessariamente funções, cargos e agentes, mas é distinto desses elementos, que podem ser modificados, substituídos ou retirados sem supressão da unidade orgânica. Isto explica por que a alteração de funções, ou a vacância dos cargos, ou a mudança de seus titulares, não acarreta a extinção do órgão. Os órgãos integram a estrutura do Estado e das demais pessoas jurídicas como partes desses corpos vivos, dotados de vontade e capazes de exercer direitos e contrair obrigações para a consecução de seus fins institucionais. Por isso mesmo, os órgãos não têm personalidade jurídica nem vontade própria, que são atributos do corpo e não das partes, mas na área de suas atribuições e nos limites de sua competência funcional expressam a vontade da entidade a que pertencem e a vinculam por seus atos, manifestados através de seus agentes (pessoas físicas). (O grifo é nosso. Direito Administrativo Brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 68). Sobre a teoria do órgão, ver, ainda: CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho Administrativo. 7 ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2002, t. I, p. 250 e 251; PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 9 ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 348 e 349; CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, v. I, p. 181-183; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 104-106; MASSAGÃO, Mario. Curso de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, [196-], p. 74-78; GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 46; MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 58; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 122.

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Admitir que a Administração Pública ingresse em juízo para questionar os atos do órgão de julgamento que a integra é admitir – um redobrado absurdo – que esse órgão de julgamento seja uma pessoa distinta daquela. O Estado, enquanto titular de direitos, é corporificado pela Administração Pública, conceito no qual encartam inclusive órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, que não estejam no exercício das respectivas funções, legislativa e jurisdicional. É essa Administração, que é o próprio Estado como sujeito das relações jurídicas, que se coloca como sujeito das relações jurídicas. O Estado-Administração, por seu turno, pratica funções de controle de legalidade, por meio dos órgãos de julgamento administrativo. Não está, porém, exercitando função jurisdicional, no sentido de garantia constitucional segundo a qual nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser subtraída da apreciação do Judiciário. Só o Estado-jurisdição, corporificado pelos órgãos do Poder Judiciário, presta esta importante garantia. Assim, quando um órgão de julgamento administrativo decide um conflito entre o particular e o Estado-Administração, é o próprio Estado, titular de relações jurídicas que está manifestando a sua vontade. [...].555

Assim, mesmo que a Administração Ativa discorde da decisão proferida pela Administração Judicante, não teria aquela sequer capacidade processual para postular em juízo sua reforma, somente tendo tal capacidade a pessoa jurídica de Direito Público a que se encontra vinculada, no caso a União Federal, a qual, como dito, é, em última análise, a pessoa jurídica sob a qual funcionam os Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda e a Câmara Superior de Recursos Fiscais.556 Não se pode perder de vista, por outro lado, que no caso dos Conselhos de Contribuintes a distinção pretendida entre Administração Ativa e Judicante fica um pouco turva. De fato, as Câmaras de cada Conselho de Contribuintes são compostas de oito Conselheiros e quatro Suplementes, sendo que “metade dos Conselheiros e dos Suplentes será constituída de representantes da Fazenda Nacional, ocupante de cargo de

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Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional, e metade de representantes dos Contribuintes, estes indicados por entidades de classe de suas categorias econômicas de nível nacional” (§ 4º do art. 2º do Regimento Interno dos Conselhos de Contribuintes). Assim, nota-se que aqueles que representam os interesses da Fazenda junto aos Conselhos de Contribuintes tratam-se, de fato, de funcionários de carreira da Fazenda Nacional, exigindo-se, para a função de Conselheiro, que o servidor tenha “no mínimo, cinco anos de exercício em cargo de Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional e, de preferência, experiência no preparo e julgamento de processos fiscais” (§ 6º do referido art. 2º) e, para o exercício da função de suplente, que o servidor tenha três anos do exercício do cargo de Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional (§ 7º do art. 2º). Ademais, insta destacar que, cabendo ao Ministro da Fazenda a designação dos Presidentes de cada Câmara, somente pode recair esta atribuição sobre os representantes da Fazenda Nacional (inciso II, do parágrafo único do art. 5º do Regimento Interno dos Conselhos de Contribuintes), únicos que podem exercer a função de Presidente de Câmara. Por fim, em conformidade com o art. 14 do Regimento Interno dos Conselhos de Contribuintes, “o Conselho Pleno e a Câmara só deliberarão quando presente a maioria de seus membros, e as deliberações serão tomadas por maioria simples, cabendo ao Presidente, além do voto ordinário, o de qualidade” (grifo nosso). Dessa forma, presentes todos os representantes da Fazenda Nacional, será sempre a sua opinião que irá prevalecer, vez que, na hipótese de empate na votação ordinária, o Presidente da Câmara, portanto, um Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional com um mínimo de cinco anos de experiência, exercerá seu direito ao voto de qualidade. Diante dessas considerações, cremos não haver como se sustentar que a manifestação dos Conselhos de Contribuintes é algo completamente alheio à própria Fazenda Nacional, a justificar o questionamento de decisão da corte administrativa perante o judiciário no caso de decisão que reconheça a ilegalidade do ato administrativo questionado.

555 MACHADO, Hugo de Brito. Algumas Questões do Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 158. 556 É de se concordar, portanto, com José dos Santos Carvalho Filho, para quem “como círculo interno de poder, o órgão em si é despersonalizado; apenas integra a pessoa jurídica. Não pode, por isso, ter capacidade processual ou seja, idoneidade para figurar nos polos de uma relação processual” (Manual de Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 9).

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2.3. O artigo 42 do Decreto nº 70.235/72 e a eficácia da decisão final no processo administrativo

III – As decisões do conselho de contribuintes, quando não recorridas, tornam-se definitivas, cumprindo à Administração, de ofício, “exonerar o sujeito passivo dos gravames decorrentes do litígio” (Dec. 70.235/72, Art. 45).

De acordo com o artigo 42 do Decreto 70.235/72, são definitivas as decisões:

IV – Ao dar curso a apelo contra decisão definitiva de conselho de contribuintes, o Ministro da Fazenda põe em risco direito líquido e certo do beneficiário da decisão recorrida.

I - de primeira instância, esgotado o prazo para recurso voluntário sem que este tenha sido interposto; II - de segunda instância, de que não caiba recurso ou, se cabível, quando decorrido o prazo sem sua interposição; III - de instância especial.

Em linha com a regra acima transcrita, o artigo 45 do Decreto estabelece que “no caso de decisão definitiva favorável ao sujeito passivo, cumpre à autoridade preparadora exonerá-lo, de ofício, dos gravames decorrentes do litígio”. Tendo em vista o disposto nesses artigos é possível concluir que proferida decisão final no processo administrativo fiscal há a preclusão de seu critério jurídico para a Fazenda, de forma que a mesma se torna imutável para a Administração Pública. Esse entendimento restou vitorioso no julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do Mandado de Segurança nº 8.810 (publicação no DJ em 06/10/2003), cuja ementa encontra-se transcrita abaixo: ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – CONSELHO DE CONTRIBUINTES - DECISÃO IRRECORRIDA – RECURSO HIERÁRQUICO – CONTROLE MINISTERIAL – ERRO DE HERMENÊUTICA. I - A competência ministerial para controlar os atos da administração pressupõe a existência de algo descontrolado, não incide nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal. II - O controle do Ministro da Fazenda (Arts. 19 e 20 do DL 200/67) sobre os acórdãos dos conselhos de contribuintes tem como escopo e limite o reparo de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da Lei.

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Firmes na interpretação do dispositivo em comento, a qual foi corretamente acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça, temos certeza quanto à impossibilidade de reabertura da discussão relativa a matéria apreciada, em última instância, pelos Conselhos de Contribuintes, razão pela qual o posicionamento encampado pelo da PGFN/CRJ n.º 10087, de 19/07/2004, mostra-se absolutamente contrário aos mandamentos do ordenamento jurídico pátrio, devendo ser revisto pela própria Administração Pública ou, em caso contrário, rechaçado pelo Poder Judiciário. Não se pode perder de vista que, em linha com o disposto no inciso IX do artigo 156 do Código Tributário Nacional, a decisão administrativa irreformável extingue o crédito tributário, entendendo-se por decisão irreformável aquela que seja definitiva na órbita administrativa, não podendo ser objeto de ação anulatória. A menção à possibilidade de ajuizamento, pela Fazenda Pública, de ação anulatória, contida no dispositivo acima citado, em nada altera a posição que vem sendo defendida no presente texto. Com efeito, como demonstrado anteriormente, a impossibilidade de a Fazenda Pública ingressar em Juízo contra decisão proferida pelos Conselhos de Contribuintes é decorrência da própria natureza jurídica de tais órgãos, que agem por imputação volitiva da União Federal, de forma que não há que se cogitar da possibilidade de a União, por sua representação judicial, ajuizar ação contra ato por ela mesma praticado. Há de se prestar homenagem, na presente situação, ao princípio do nemi potest venire contra factum proprium, negando-se a possibilidade de a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional questionar judicialmente, em nome da União Federal, ato administrativo praticado, em última instância, pela própria União Federal, através de órgãos seus (os Conselhos de Contribuintes ou a Câmara Superior de Recursos Fiscais).

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3. O princípio da inafastabilidade da jurisdição e seu papel na presente discussão

realizou o ato jurídico que seria objeto de contestação judicial, anulando o ato administrativo de exigência fiscal antes praticado pelas autoridades fazendárias.

Alguns autores, ao analisarem a questão sob exame, defendem a possibilidade ou impossibilidade de questionamento, por parte da Fazenda Nacional, de decisão proferida pelos Conselhos de Contribuintes, tendo em vista a aplicabilidade ou inaplicabilidade do princípio da inafastabilidade da jurisdição ao Estado. O referido princípio encontra-se positivado no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito”. Após termos passado por todos os argumentos acima, é de se assinalar que a citada disposição não tem qualquer impacto sobre o deslinde da questão sob exame. Com efeito, o ponto controvertido aqui não é se a garantia insculpida no inciso XXXV do artigo 5º aplica-se, tão somente, aos indivíduos, ou se a mesma é igualmente aplicável ao Estado. De fato, o que se está a discutir é que a União Federal não tem interesse processual para, através de um órgão seu (Procuradoria Geral da Fazenda Nacional), questionar ato praticado por outro órgão seu (qualquer dos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda ou a Câmara Superior de Recursos Fiscais), devendo-se reconhecer que com a decisão proferida pelo órgão julgador ocorreu a preclusão do direito da Administração Fazendária de se manifestar em sentido diverso. Com razão, portanto, Ives Gandra, quando, ao comentar argumento de que o direito da Fazenda ao questionamento judicial de ato dos Conselhos derivaria do XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, afirma que “nem serve, o inc. XXXV do art. 5º, como justificativa, pois a lesão ao direito [do contribuinte] foi sanada pela própria Fazenda, e não pode a Fazenda entender que tem o direito de se ‘autocontestar’, discordando de decisão que proferiu, por pretensa lesão a um direito que teria e que ela própria reconheceu que não tem”.557 Nessa linha de convicções, definir se o XXXV do artigo 5º da Constituição Federal aplica-se ao Estado é irrelevante, pois, no presente caso, sequer é possível falar na ocorrência de lesão ou ameaça de lesão a direito da União Federal, uma vez que foi ela mesmo, por intermédio de um de seus órgãos, que

4. Hipóteses de anulação da decisão do órgão julgador administrativo: identificação de condutas criminosas ou em fraude à lei

557 MARTINS, Ives Gandra da Silva, Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 80.

558 DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Decisão Administrativa. Efeitos e Revogabilidade. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 363, jan. 1966, p. 46.

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Uma das alegações trazidas pela Fazenda para sustentar sua posição consiste na suposta necessidade de instrumentos jurídicos de defesa contra decisões proferidas em fraude à lei, ou em decorrência de práticas criminosas. Não há o que se objetar à preocupação da Fazenda, salvo no que respeita ao entendimento de que o questionamento judicial de decisões proferidas ao fim do processo administrativo fiscal seja necessário para a cassação de uma decisão decorrente do cometimento de conduta criminosa. Com efeito, parece-nos que nos casos em que a decisão decorrer da prática de ato ilícito (o que aconteceria, por exemplo, se o agente julgador tivesse sido corrompido pelo interessado para proferir decisão em determinado sentido) tem a Administração o direito de reconhecer tal fato, anulando a decisão, sendo certo que, caso o administrado discorde do entendimento manifestado pela Administração, ser-lhe-á garantido o acesso ao Poder Judiciário. Nessa situação, o único limite imponível ao poder da Administração Pública de anular suas decisões seria o prazo decadencial previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99. Nas palavras de Sampaio Dória: A estabilidade das decisões administrativas, geradoras de direitos subjetivos, só deve ser recusada quando os atos administrativos venham eivados de fraude ou ilegalidade, pois como já notava Pedro Lessa, “não há disposição de lei nem princípio de direito que vede à administração a reforma ou cassação de seus atos ilegais, visto como de atos ilegais nenhum direito pode emanar para as pessoas em benefício das quais foi realizado o ato ilegal”.558

Nessa assentada, há que se reconhecer que o que se tem defendido, ao longo deste estudo, é a impossibilidade de a Fazenda buscar, perante o Poder Judiciário, a reforma dos critérios jurídicos utilizados pelo órgão julgador para

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proferir decisão no âmbito do processo administrativo. Ou seja, não pode a Fazenda, por entender que a interpretação dada pelos Conselhos de Contribuintes à legislação tributária encontra-se equivocada, postular sua reforma perante o Judiciário. Nada obstante, quando a questão não versar sobre a juridicidade da decisão, mas sobre a licitude do comportamento do julgador, poderá a própria Administração proceder à anulação do ato praticado. A possibilidade de anulação da decisão, nos casos mencionados no parágrafo anterior, foi inclusive reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Mandado de Segurança nº 8.810, antes mencionado, tendo-se registrado, na ementa da decisão proferida pelo S.T.J., que “o controle do Ministro da Fazenda (Arts. 19 e 20 do DL 200/67) sobre os acórdãos dos conselhos de contribuintes tem como escopo e limite o reparo de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da Lei”.

5. Conclusão

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cional e a incompatibilidade do referido parecer com o ordenamento jurídico pátrio, uma vez que: (a) o mesmo mostra-se incompatível com os fins do próprio processo administrativo, entendido este como um instrumento de revisão, pela própria Administração Pública, dos atos praticados por seus agentes; (b) considerando que, em linha com a teoria do órgão, os Conselhos de Contribuintes tratam-se de órgãos da União Federal, que agem por imputação volitiva desta, não há como se cogitar do ajuizamento de ação, pela União Federal, cujo objeto é o questionamento de ato que, em última análise, foi praticado por ela mesma; e (c) considerando os mandamentos previstos nos artigos 42 e 45 do Decreto nº 70.235/72, a decisão proferida pela última instância administrativa é definitiva para a Administração Pública, de forma que, a partir dela, há a preclusão de seus critérios jurídicos para a Fazenda.

Qualquer observador do Direito Tributário brasileiro nota o desenvolvimento recente dos debates relacionados à justiça fiscal. Nada obstante, a produção doutrinária referente aos instrumentos de realização da justiça no âmbito das relações jurídicas tributárias, como o processo administrativo fiscal, não se desenvolveu da mesma maneira. Nessa linha de ideias, impõe-se reconhecer que o processo administrativo fiscal é de vital importância para o funcionamento do sistema tributário como um todo, podendo-se afirmar, com Antonio Berliri, que os problemas relativos ao controle da legalidade dos atos administrativos fiscais é um dos problemas centrais do Direito Tributário, “na medida que de sua solução depende o correto funcionamento do sistema tributário”.559 Dessa forma, é imperativo que os operadores do Direito Tributário trabalhem pela valorização do processo administrativo tributário, opondo-se a medidas que tenham por finalidade sua debilitação, como o PGFN/CRJ n.º 10087/2004. Tendo em conta as razões jurídicas aduzidas ao longo deste estudo, é possível concluir, então, pela impertinência da postura adotada pela Fazenda Na-

559 BERLIRI, Antonio. Per un Miglior Funzionamento della Giustizia Tributaria. In: Scritti Scelti di Diritto Tributario. Milano: Giuffrè, 1990, p. 899.

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Confissão Cria Tributo? Efeitos da Vontade do Contribuinte sobre o Crédito Tributário (2008)

1. Introdução O tema central deste estudo é a análise dos efeitos da manifestação de vontade do contribuinte sobre o crédito tributário, levando em conta os diversos momentos de sua dinâmica, desde a constituição até a sua extinção. Nosso ponto de partida será, portanto, a análise da evolução doutrinária e jurisprudencial que vem consolidando o entendimento no sentido de que o sistema tributário brasileiro, na maioria das vezes, reserva ao contribuinte a atividade de constituição do crédito tributário. Partindo dessa premissa será possível examinar os seus reflexos lógicos, quais sejam: i. o descabimento do processo administrativo fiscal sempre que o crédito tributário houver sido constituído pelo contribuinte, com o seguimento da cobrança administrativa, a posterior inscrição em dívida ativa e o ajuizamento da competente execução fiscal, no caso de inadimplemento; ii. na mesma linha de raciocínio, temos a impossibilidade de autuação por parte da Fazenda nos casos de créditos tributários constituídos pelos contribuintes, porém, inadimplidos, da qual deriva a inaplicabilidade de multa de ofício sobre a infração cometida; iii. a mutação da natureza do prazo aplicável à Fazenda Pública, uma vez que, constituído o crédito tributário pelo contribuinte, tem-se a incidência de prazo prescricional para o exercício da pretensão fazendária, e não mais do prazo decadencial para a constituição do crédito tributário; e iv. a inaplicabilidade, de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, do tratamento benéfico da denúncia espontânea, o qual não alcançaria as situações em que o crédito tributário tenha sido constituído pelo próprio contribuinte.

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Outra circunstância que vem sendo apontada pela jurisprudência como indicativa da constituição de crédito tributário pelo próprio contribuinte, e que merece estudo separado das acima mencionadas, é a realização de depósito judicial com vistas à suspensão da exigibilidade do crédito tributário, na forma do inciso II do artigo 151 do Código Tributário Nacional – C.T.N. Vencido o exame desses aspectos, passaremos à análise dos reflexos da vontade do contribuinte sobre a extinção do crédito tributário, considerando, especificamente, a possibilidade da utilização de meios alternativos de solução de controvérsias na esfera fiscal, em especial, da transação. Há que se ressaltar que, embora os comentários ora apresentados, de um modo geral, sejam aplicáveis às relações jurídico-tributárias entre contribuinte e todos os entes tributantes, nossas considerações, bem como a legislação mencionada, foram focadas na administração tributária federal.

2. Constituição do crédito tributário pelo contribuinte Já cuidamos da questão da constituição do crédito tributário pelo contribuinte em outras oportunidades, de modo que neste estudo apresentaremos apenas breves considerações sobre a temática que foi analisada mais detidamente em tais trabalhos.560 Observa-se sem dificuldades que a importância da tributação e a difusão do papel de sujeito passivo de deveres fiscais no âmbito de grandes parcelas da coletividade trouxeram impactos sobre a dinâmica das atividades arrecadatórias do Estado. Com efeito, tomando, por exemplo, o caso Brasileiro, há bastante tempo que as atividades de apuração e recolhimento da maioria dos tributos deixaram de depender de qualquer participação das autoridades fazendárias, que assumem cada vez mais um papel de agentes de fiscalização das atividades liquidatórias realizadas pelos sujeitos passivos.561

560 Ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 247-266; ROCHA, Sergio André. Constituição do Crédito Tributário pelo Contribuinte. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 151, abr. 2008, p. 105-115. 561 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2007, p. 255-256.

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No Brasil tal situação é evidenciada pela difusão da sistemática do chamado lançamento por homologação, previsto no artigo 150 do C.T.N.562, ao qual se sujeitam todos os tributos de grande força arrecadatória. Tal estado de coisas põe em xeque a compreensão do lançamento tributário como ato administrativo de concretização e individualização do dever tributário, o qual seria imprescindível para a constituição de todo e qualquer crédito tributário, como determina o C.T.N., destacando-se em doutrina a crise do conceito tradicional de lançamento tributário.563 De fato, embora ainda haja autores, como Hugo de Brito Machado564 e Luciano Amaro565, para quem, em decorrência da regra prevista no artigo 142 do C.T.N.566, haver-se-ia que reconhecer, simultaneamente, (i) que o lançamento 562 “Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa. § 1º O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação ao lançamento. § 2º Não influem sobre a obrigação tributária quaisquer atos anteriores à homologação, praticados pelo sujeito passivo ou por terceiro, visando à extinção total ou parcial do crédito. § 3º Os atos a que se refere o parágrafo anterior serão, porém, considerados na apuração do saldo porventura devido e, sendo o caso, na imposição de penalidade, ou sua graduação. § 4º Se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.” 563 Cf. XAVIER, Alberto. Do Lançamento Tributário no Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 10-15; FANTOZZI, Augusto. Lançamento Tributário. In: TAVOLARO, Agostinho Toffoli; MACHADO, Brandão; MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coords.). Princípios Tributários no Direito Brasileiro e Comparado: Estudos em Homenagem a Gilberto de Ulhôa Canto. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 50-51. 564 MACHADO, Hugo de Brito. Impossibilidade de Tributo sem Lançamento. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (Coord.). Direito Tributário: Homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I. p. 124. Ver também: MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos do Lançamento Tributário. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas: Do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 839. 565 AMARO, Luciano. Lançamento, essa formalidade! In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Teoria Geral da Obrigação Tributária: Estudos em Homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 377-378. 566 “Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

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é imprescindível para a constituição de todo e qualquer crédito tributário, e (ii) que o mesmo é privativo de autoridade administrativa, de modo que não se poderia reconhecer ao contribuinte a possibilidade praticar ato de constituição do crédito tributário, impõe-se destacar que tal linha de entendimento vem sendo abandonada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência pátrias. Não é necessária longa reflexão para se verificar que o entendimento no sentido de que o lançamento é indispensável para a constituição de todo e qualquer crédito tributário, sendo, além do mais, privativo de autoridade administrativa, não é compatível com a dinâmica atual da liquidação e recolhimento dos tributos em geral. Assim sendo, no estágio atual da tributação no Brasil as atividades de liquidação tributária foram transferidas aos sujeitos passivos. Diante das dificuldades práticas impostas pela redação do artigo 142 do C.T.N., há duas teorias distintas que tentam conciliar esta regra com a realidade factual em que se desenvolvem as relações Fisco-contribuintes: uma primeira que sustenta que o lançamento é sim ato administrativo, porém nem todo crédito tributário tem sua exigibilidade constituída pelo lançamento; e uma segunda para a qual todo crédito tributário tem sua exigibilidade constituída por lançamento tributário, porém, este não é atividade privativa da Administração Pública, podendo ser praticado também pelo contribuinte. Examinemos cada uma dessas teorias com um pouco mais de vagar.

2.1. Crédito tributário sem lançamento? Buscando conciliar a prescrição contida no artigo 142, no sentido de que o lançamento tributário é ato privativo de autoridade administrativa, com o fato de que são os contribuintes aqueles encarregados da liquidação tributária, sem qualquer ato prévio de cobrança das autoridades fazendárias, há aqueles que, como o Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho, sustentam a tese da existência de créditos tributários que dispensam o lançamento para serem constituídos. Em suas considerações, parte o citado Professor da premissa de que: O tributo é um dever imposto ao cidadão, por uma norma jurídica, de contribuir para as despesas governamentais, com dinheiro e em propor-

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ção à respectiva capacidade econômica. Em consequência, toda vez que surgir o dever de pagar o tributo será necessário e obrigatório liquidá-lo, no sentido que empresta à palavra o artigo 1.533 do Código Civil: “Considera-se líquida a obrigação certa, quanto à sua existência, e determinada quanto ao seu objeto”.567

Assim, “conhecendo o sujeito passivo da obrigação tributária, a sua existência, e a respectiva matéria fática, resta torná-la certa com a valoração jurídica do fato imponível, e determinar o seu valor em moeda”.568 Ao examinar a previsão contida no artigo 150 do C.T.N., o Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho reconhece que, de acordo com esta regra legal, “cabe unicamente ao devedor acertar e liquidar o valor do tributo, que deverá ser pago sem qualquer interveniência direta do Fisco”.569 Vale a pena transcrever integralmente a seguinte passagem: Nesse procedimento, o contribuinte tem integral responsabilidade pela valoração jurídica dos fatos que houver praticado – (fato imponível na lição de Geraldo Ataliba) – bem como pela liquidação do tributo que deverá pagar no prazo predeterminado pela legislação tributária. Assim, quando o devedor enquadrar juridicamente os fatos imponíveis, estará auto-acertando por sua própria conta e risco, assumindo, consequentemente, integral responsabilidade por essa valoração jurídico-tributária e por eventual erro ou incorreção na liquidação e pagamento do tributo.570

Nessa linha de raciocínio, em conformidade com o magistério de Aurélio Pitanga Seixas Filho, reconhece-se ao contribuinte a atribuição de apurar o montante de tributo pelo mesmo devido, designando-se esta atividade de auto-acertamento. Por outro lado, o vocábulo “lançamento” seria o nomem juris selecionado pela legislação para designar a atividade de acertamento desenvolvida pela Administração Pública, com o que se compatibilizam as assertivas acima com a disposição

567 SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. A Função do Lançamento Tributário. In: Estudos de Procedimento Administrativo Fiscal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 22. 568 A Função do Lançamento Tributário, 2000, p. 23.



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Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.”

569 A Função do Lançamento Tributário, 2000, p. 24. 570 A Função do Lançamento Tributário, 2000, p. 24.

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contida no artigo 142 do C.T.N., segundo a qual lançamento tributário somente pode ser realizado por autoridade administrativa. Citando uma vez mais suas lições: Por definição do Código Tributário Nacional, artigo 142, lançamento tributário é o nomem juris reservado para ato praticado pela administração fiscal que torna líquido e certo tributo devido por um determinado contribuinte. [...] Agindo o Fisco ordinária, ou extraordinariamente, a função do lançamento tributário, é de tornar certo o dever jurídico-tributário, e de liquidá-lo para que possa ser cobrado administrativamente ou através do Judiciário pelo Executivo-Fiscal.571

Em linha com o posicionamento acima delineado, afirma Aurélio Pitanga Seixas Filho que em relação à grande maioria dos tributos a arrecadação tributária prescinde do ato de lançamento, bastando, portanto, o acertamento realizado pelo contribuinte.572 A despeito da coerência do entendimento manifestado pelo Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho e todos aqueles que sustentam o mesmo posicionamento573, é de se reconhecer que apenas em uma primeira aproximação consegue o mesmo superar as dificuldades impostas pela literalidade do artigo 142 do C.T.N. Isso se dá porque somos da opinião de que optou o Código por estabelecer que o crédito tributário somente se constitui pelo lançamento, de modo que não haveria créditos tributários cuja constituição dispense o lançamento.574 Assim, ao afirmar que nos casos em que a apuração do dever tributário recai sobre o sujeito passivo, está-se diante de auto-acertamento, e não de autolançamento, fica-se diante da estranha situação do recolhimento de tributo sem a constituição do crédito tributário respectivo, o que, pela redação do artigo 142, segundo nossa interpretação, só se dá com a realização de lançamento.

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2.2. Lançamento tributário feito pelo contribuinte? Outra linha teórica que busca conciliar o conceito normativo de lançamento tributário contido no artigo 142 do C.T.N. com a realidade do lançamento por homologação é a que sustenta que nesta modalidade de lançamento este é de fato realizado pelo contribuinte, a quem cabe “verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo”. Defendi este entendimento em outra oportunidade, partindo da premissa que o lançamento é necessário para a constituição de todo e qualquer crédito tributário, de forma que, nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, seria o lançamento realizado pelo contribuinte, cabendo à Fazenda o poder-dever de verificar a correção do autolançamento efetuado no prazo decadencial de cinco anos.575 Alguns juristas como Dino Jarach,576 José Souto Maior Borges,577 Sainz de Bujanda578 e Alberto Xavier579 negam às atividades desenvolvidas pelos sujeitos passivos a natureza jurídica de lançamento (“accertamento” ou “determinación”), referindo-se às mesmas como simples atos de aplicação da lei mediante o cumprimento da obrigação tributária. Ao que nos parece, o entendimento dos citados juristas, ao negar a natureza de lançamento às atividades de apuração desenvolvidas pelos sujeitos passivos de deveres tributários parte da premissa equivocada de que tais atividades consistem em meras operações intelectuais de aplicação das normas jurídico-tributárias. Olvida-se que as atividades de lançamento realizadas pelos particulares compreendem procedimentos de escrituração fiscal e contábil que levam à determinação do montante a ser recolhido aos cofres públicos, sendo de ordinário materializadas em declarações apresentadas à Fazenda Pública. Nessa ordem de convicções, temos que a atividade de lançamento desenvolvida pelos 575 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2007, p. 252-257.

571 A Função do Lançamento Tributário, 2000, p. 26. 572 A Função do Lançamento Tributário, 2000, p. 26. 573 Para referências da doutrina neste sentido, ver: ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2007, p. 263. 574 Para referências da doutrina neste sentido, ver: ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2007, p. 264.

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576 Cf. JARACH, Dino. El Hecho Imponible: Teoria General del Derecho Tributario Sustantivo. 3a ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, [199-]. p. 35-36; JARACH, Dino. Finanzas Públicas y Derecho Tributario. 3ª ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, [199-]. p. 429-433. 577 Lançamento Tributário, 1999, p. 369-370. 578 BUJANDA, Fernando Sainz de. Notas de Derecho Financiero. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1975. t. I. v. III. p. 97-102. 579 Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro, 2005, p. 80-85.

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sujeitos passivos é tão concreta quanto a realizada pelas autoridades administrativas, e não meramente intelectual como pretendido pelos citados autores. Nessa linha de ideias o conceito de lançamento tributário corresponderia ao conjunto de atividades desenvolvidas pela Administração Fazendária, pelos sujeitos passivos dos deveres jurídico-tributários, ou por ambos, por vezes materializada em ato específico, cuja finalidade é concretizar o comando de norma jurídico-tributária, verificando a ocorrência de sua hipótese no mundo dos fatos e identificando os elementos da relação jurídica da mesma decorrente (sujeito ativo, sujeito passivo e objeto).580 Vale a pena observar que o autolançamento não corresponde ao mero cálculo do tributo devido pelo sujeito passivo, nem mesmo ao seu pagamento, mas sim à formalização de tal débito perante a Fazenda Pública, mediante a apresentação de declaração. Assim, segundo entendemos, para falarmos em lançamento tributário não basta o cálculo por parte do contribuinte e o conseqüente pagamento do valor devido, sendo necessário que tenhamos um ato do contribuinte, consubstanciado na declaração, formalizando a liquidação feita. A tal ato seria então atribuído o mesmo efeito do lançamento feito pelas autoridades administrativas.

2.3. A questão na jurisprudência do STF e do STJ, e na legislação tributária federal Sem que tenham tomado o partido de qualquer uma das teorias acima, tanto o Supremo Tribunal Federal581, quanto o Superior Tribunal de Justiça vêm decidindo que o contribuinte constitui crédito tributário mediante a apresentação de declaração à Fazenda Pública582. No caso do STJ, em algumas situações

580 Essa concepção ampla do lançamento, de origem italiana, é objeto de crítica por parte do Professor Alberto Xavier (Cf. XAVIER, Alberto, Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro, 2005, p. 30-32). 581 “DECLARADO E NÃO PAGO. AUTOLANCAMENTO. DESNECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PARA COBRANÇA DO TRIBUTO. Em se tratando de autolancamento de débito fiscal declarado e não pago, desnecessária a instauração de procedimento administrativo para a inscrição da dívida e posterior cobrança. Agravo regimental improvido”. (Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 144.609. Publicação no Diário da Justiça em 01 de setembro de 1995). 582 Esta linha jurisprudencial foi criticada por Alberto Xavier em: XAVIER, Alberto. A Execução Fiscal nos Tributos de Lançamento por Homologação. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 25, out. 1997, p. 9.

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a decisão parece sustentar que o contribuinte também realiza lançamento583, enquanto em outras se dá a entender que nos casos em que o crédito tributário fosse constituído pelo sujeito passivo o lançamento seria dispensável584. Nessas situações, entende a Fazenda ser dispensável a lavratura de auto de infração ou notificação de lançamento de débito, podendo haver cobrança diretamente pela inscrição em dívida ativa, com o conseqüente ajuizamento de execução fiscal. Conforme dispõe o artigo 1º da Instrução Normativa nº 77/98: Os saldos a pagar, relativos a tributos e contribuições, constantes das declarações de rendimentos das pessoas físicas e jurídicas e da declaração do ITR, quando não quitados nos prazos estabelecidos na legislação, e da DCTF, serão comunicados à Procuradoria da Fazenda Nacional para fins de inscrição como Dívida Ativa da União.

Esta posição da Fazenda, portanto, encontra-se em linha com o que entendem o STF e o STJ sobre a matéria.

583 “TRIBUTÁRIO. CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO (CND). RECUSA DO FISCO NA EXPEDIÇÃO. CRÉDITO DECLARADO EM DCTF. CONSTITUIÇÃO DO DÉBITO. 1. A Declaração de Contribuições e Tributos Federais – DCTF, constitui confissão de dívida e instrumento hábil e suficiente a exigência do referido crédito, ex vi do art. 5º, § 1º, do DL 2.124/84. 2. O reconhecimento do débito tributário pelo contribuinte, mediante a DCTF, com a indicação precisa do sujeito passivo e a quantificação do montante devido, equivale ao próprio lançamento, restando o Fisco autorizado a proceder à inscrição do respectivo crédito em dívida ativa. Assim, não pago o débito no vencimento, torna-se imediatamente exigível, independentemente de qualquer procedimento administrativo ou de notificação ao contribuinte, sendo indevida a expedição de certidão negativa de sua existência. 3. Recurso especial desprovido”. (Recurso Especial no 416.701. Publicação no Diário da Justiça em 06 de outubro de 2003). 584 “TRIBUTÁRIO. CONFISSÃO DE DÍVIDA. CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. 1. A declaração do contribuinte, confessando a dívida, constitui o crédito tributário para todos os efeitos, não havendo razão para, relativamente aos valores declarados, promover o ato de lançamento tributário. É que o lançamento, que é um ato exclusivo do Fisco, não é o único modo de se constituir o crédito. 2. Os valores declarados assumem, pela declaração do contribuinte, o status de crédito tributário (= constituídos), com todas as consequências daí decorrentes. Nessa linha de entendimento, a declaração apresentada pelo contribuinte para fins de parcelamento do débito na sistemática do Simples, consoante previsto na Portaria Conjunta PGFN/SRF nº 663/98, desencadeou, em razão do não recolhimento no prazo, o curso do prazo prescricional. 3. Recurso especial a que se nega provimento.” (Recurso Especial nº 905.524. Publicação no Diário da Justiça em 02 de abril de 2007).

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3. Consequências da constituição do crédito tributário pelo contribuinte Independentemente da posição que se adote, no sentido de que há tributos que prescindem de lançamento ou de que o contribuinte também o realiza, o fato é que prevalece o entendimento no sentido de que o contribuinte, mediante ato próprio (declaração), constitui crédito tributário, sendo que, como visto acima, esta posição é coerente com as características da arrecadação tributária em um sistema massificado. A consolidação desse posicionamento tem importantes reflexos sobre a dinâmica da relação jurídica tributária, ocasionando (i) a inaplicabilidade do processo administrativo fiscal como instrumento de revisão do crédito tributário; (ii) a inaplicabilidade da multa de ofício, quando o débito declarado não houver sido pago; (iii) a incidência do prazo prescricional para o exercício da pretensão da Fazenda Pública; e (iv) o afastamento, segundo a jurisprudência do STJ, do benefício da denúncia espontânea. Analisaremos cada um desses itens a seguir.

3.1. Não cabimento do processo administrativo fiscal nos casos em que o crédito tenha sido constituído pelo contribuinte Nos chamados tributos “lançados” por homologação, sempre que o crédito tributário for constituído em declaração apresentada pelo contribuinte, sem que se tenha verificado o pagamento do tributo devido, a cobrança do valor em aberto pela Fazenda Pública não é controlável por intermédio de processo administrativo fiscal. Com efeito, como já tivemos oportunidade de pontuar585, trata-se o processo administrativo fiscal de um instrumento de controle da legalidade de atos administrativos de cobrança tributária. Ora, nas situações em que o próprio contribuinte constituiu o crédito tributário mediante a apresentação de declaração à Fazenda Pública, não há que se falar em controle da legalidade de ato administrativo tributário, de modo que cobrança encaminhada pela Fazenda ao contribuinte no caso de inadimplemento não pode ser objeto de processo administrativo fiscal. Nessas situações, diante da cobrança formalizada pela Fazenda Pública de crédito tributário constituído pelo próprio contribuinte, a alternativa de que este dispõe

585 ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2007, p. 127.

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é apenas a de identificar a ocorrência de erro em sua declaração, retificando-a de modo a demonstrar para as autoridades fiscais a inexistência do crédito tributário. De fato, uma questão que em nenhum momento deve ser olvidada consiste no fato de não poder o contribuinte gerar, mediante mera manifestação de vontade, o nascimento de obrigação tributária586. Conforme determina o artigo 114 do C.T.N.587 a obrigação tributária decorre diretamente de lei, sendo que, na ausência de lei estabelecendo a tributação de determinada riqueza não pode a vontade do contribuinte, por si só, ser a gênese do dever tributário. Não há, desta forma, qualquer irregularidade no procedimento da Fazenda de encaminhar para inscrição em dívida e posterior execução fiscal créditos tributários constituídos pelo contribuinte.

3.2. Inaplicabilidade da multa de ofício Outra consequência da constituição do crédito pelo contribuinte mediante a apresentação de declaração à Fazenda Pública é que, no caso de inadimplemento dos valores declarados e a necessidade de cobrança por parte das autoridades fiscais, não será cabível a cobrança de multa de ofício, a qual somente se justifica nas situações em que a constituição do crédito tributário se formaliza mediante a lavratura de auto de infração.588 A não incidência da multa de ofício nesses casos já se encontrava prevista no § 2º do artigo 5º do Decreto-lei nº 2.124/84, segundo o qual “não pago no prazo estabelecido pela legislação o crédito, corrigido monetariamente e acrescido da multa de vinte por cento e dos juros de mora devidos, poderá ser imediatamente inscrito em dívida ativa, para efeito de cobrança executiva, observado o disposto no § 2º do artigo 7º do Decreto-lei nº 2.065, de 26 de outubro de 1983”.

586 Cf. SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Natureza Jurídica da Obrigação Tributária. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 152, mai. 2008, p. 71; ALMEIDA JÚNIOR, Fernando Osório de. A Confissão de Dívida Fiscal – Meio Inábil ao Surgimento de Obrigação Tributária. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 32, mai. 1998, p. 30. 587 “Art. 114. Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.” 588 Sobre essa questão, ver: ZILE, Alberto Sodré. A Fiscalização no Âmbito da Secretaria da Receita Federal: Poderes e Limites. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Processo Administrativo Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 55-57.

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Conforme destaca Alberto Sodré Zile, esta foi a posição adotada pela Coordenação-geral de Tributação na Solução de Consulta Interna nº 22, de 24 de agosto de 2004: Por todo o exposto, conclui-se que o valor apurado e informado pelo sujeito passivo a título de “imposto de renda a pagar”, constante na declaração de ajuste anual das pessoas físicas, inclusive o incidente sobre ganho de capital na alienação de bens e direitos de qualquer natureza, apurado e informado no Demonstrativo de Apuração de Ganhos de Capital anexo à declaração, quando não quitado no prazo estabelecido na legislação, deve ser objeto de cobrança amigável, com os acréscimos moratórios devidos, e, caso não seja pago, deve ser encaminhado à Procuradoria da Fazenda Nacional, para fins de inscrição como Dívida Ativa da União, sendo incabível se falar em lançamento de ofício do referido valor.589

Dessa forma, constituído o crédito tributário pelo contribuinte mediante a sua declaração à Fazenda Pública, no caso de inadimplemento não há mais que se falar na incidência da multa de ofício, sendo cabível apenas a cobrança da multa de mora e dos juros, observados os comentários que faremos no item 3.4 sobre a questão da denúncia espontânea.

3.3. Incidência do prazo prescricional A constituição do crédito tributário pelo contribuinte tem como efeito a configuração do termo inicial do prazo prescricional para o exercício da pretensão Fazendária ao crédito tributário. Já estando constituído o crédito não há mais que se falar na incidência do prazo decadencial590, seja o previsto no §4º do artigo 150, seja o estabelecido no artigo 173, ambos do C.T.N., passando a incidir o artigo 174 do Código, que prevê o prazo prescricional para a cobrança do crédito tributário. Neste sentido, vale a pena transcrever o seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Teori Albino Zavascki, nos autos do Recurso Especial nº 958.024

589 Cf. ZILE, Alberto Sodré, A Fiscalização no Âmbito da Secretaria da Receita Federal: Poderes e Limites, 2007, p. 55. 590 Para um estudo acerca das distinções entre os institutos da prescrição e da decadência o nosso estudo: SILVA, Sergio André R. G. da. Alguns apontamentos sobre os institutos da prescrição e da decadência. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 7, out. 2003, p. 86-107.

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(publicação no Diário da Justiça em 09 de junho de 2008), onde os efeitos da declaração do contribuinte foram bem expostos: Segundo jurisprudência do STJ, a apresentação, pelo contribuinte, de Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF (instituída pela IN-SRF 129/86, atualmente regulada pela IN8 SRF 395/2004, editada com base no art. 5º do DL 2.124/84 e art. 16 da Lei 9.779/99) ou de Guia de Informação e Apuração do ICMS – GIA, ou de outra declaração dessa natureza, prevista em lei, é modo de constituição do crédito tributário, dispensada, para esse efeito, qualquer outra providência por parte do Fisco. A falta de recolhimento, no devido prazo, do valor correspondente ao crédito tributário assim regularmente constituído acarreta, entre outras consequências, as de (a) autorizar a sua inscrição em dívida ativa; (b) fixar o termo a quo do prazo de prescrição para a sua cobrança; (c) inibir a expedição de certidão negativa do débito; (d) afastar a possibilidade de denúncia espontânea. Portanto, não pago o débito, ou pago a menor, torna-se imediatamente exigível, incidindo, quanto à prescrição, o disposto no art. 174 do CTN, de modo que, decorridos cinco anos da data prevista para o vencimento, sem que tenha havido a citação na execução fiscal ou ocorrido outra causa interruptiva, a pretensão estará prescrita. Nesse sentido, os seguintes julgados: EREsp 576661/RS, 1ª Seção, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 26.10.2006; REsp 839220/RS, 1ª T., Ministro José Delgado, DJ de 26.10.2006; RESP 437363/SP, 1ª T., Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 19.04.2004; AGA n. 87.366/SP, 2ª T., Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ de 25.11.1996; RESP 510.802/SP, 1ª T., Min. José Delgado, DJ de 14.06.2004; RESP 389.089/RS, 1ª T., Min. Luiz Fux, DJ de 16.12.2002, RESP 652.952/PR, 1ª T., Min. José Delgado, DJ de 16.11.2004; RESP 600.769/PR, 1ª T., Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 27.09.2004; RESP 510.802/SP, 1ª T., Min. José Delgado, DJ de 14.06.2004. Desta forma, constituído definitivamente o crédito tributário em 1999 e realizada a citação em 26.06.2005 (fl. 103), deve ser declarada a prescrição.

Em relação a este aspecto, considerando a falta de regência legislativa, surge dúvida relativa ao termo inicial do prazo prescricional. A análise da jurisprudência do STJ descortina a necessidade da conjugação de dois elementos para que tenha início a contagem do prazo prescricional: o vencimento do débito e a apresentação da declaração pelo contribuinte. Nesse sentido foi a decisão tomada no Recurso Especial 245

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nº 1024278, onde se reconheceu que no caso “de tributo sujeito a lançamento por homologação declarado e não pago pelo contribuinte, o prazo prescricional tem início a partir da data em que tenha sido realizada a entrega da declaração do tributo e tenha escoado o prazo para pagamento espontâneo. Para identificar-se o marco inicial da prescrição, conjugam-se a constituição do crédito pela entrega da declaração e o surgimento da pretensão com o não pagamento da dívida no prazo estipulado administrativamente” (publicação no Diário da Justiça em 21 de maio de 2008).

3.4. Inaplicabilidade da denúncia espontânea Nos idos dos anos 2000/2001, começaram a ser proferidas, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, decisões no sentido de que, nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, sempre que o contribuinte declarar um determinado montante à Fazenda, sem fazer o respectivo pagamento, não seria aplicável o artigo 138 do C.T.N.591, que prevê os requisitos para a configuração da denúncia espontânea de uma infração fiscal592. Este entendimento foi pacificado pela Primeira Seção do STJ no julgamento dos Embargos de Divergência em Agravo nº 621.481 (publicação no Diário da Justiça em 18 de dezembro de 2006).593 591 “Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração. Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.” 592 Em uma das primeiras decisões nesse sentido, a ementa foi redigida nos seguintes termos: “TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ICMS. DÉBITO DECLARADO E NÃO PAGO. DESNECESSIDADE DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. NÃO CONFIGURAÇÃO DA DENÚNCIA ESPONTÂNEA. IMPOSIÇÃO DE MULTA DEVIDA. PRECEDENTES. 1. O art. 138, do CTN, ao estabelecer a denúncia espontânea, condicionou sua incidência a tributos cujo fato gerador não fosse de conhecimento do Fisco e precedido do seu pagamento, inclusive com os juros, para ver excluída a multa. Assim, há vedação legal para o entendimento adotado no sentido de sua extensão a casos onde o tributo é declarado e não houve o pagamento. 2. A hipótese de tributo previamente declarado pelo próprio contribuinte e não honrado na data legal, não se subsume ao dispositivo em comento, posto que não se cogita da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração. [...]. (Recurso Especial nº 302.928. Publicação no Diário da Justiça em 10 de setembro de 2001). 593 “TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. DENÚNCIA ESPONTÂNEA. PARCELAMENTO DO DÉBITO OU SUA QUITAÇÃO COM ATRASO. MULTA

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Verifica-se, portanto, uma nítida vinculação entre a decisão tomada pela Primeira Seção do STJ a respeito da configuração da denúncia espontânea com a questão da constituição do crédito tributário pelo contribuinte. Com efeito, em linhas gerais a posição adotada pela corte foi no sentido de que estando o crédito tributário já constituído não mais seria cabível a denúncia espontânea da infração. Essa linha jurisprudencial faria todo o sentido, não fosse a Primeira Seção ter pacificado também o entendimento de que no caso da denúncia espontânea de uma infração não seria cobrável do contribuinte a multa de mora.594 Como se infere do parágrafo único do artigo 138 do C.T.N., o limite para que o contribuinte possa realizar a denúncia espontânea de uma infração é iminência de um lançamento de ofício, ou seja, de um ato manifesto da Administração Pública de constituição e exigência do crédito tributário. Nas situações em que o crédito tributário foi constituído pelo contribuinte, o afastamento da denúncia espontânea deve depender também da prática de um ato concreto de cobrança por parte da Fazenda Pública. No período de tempo entre a constituição do crédito tributário pelo contribuinte, mediante a apresentação de declaração à Fazenda Pública, e a formalização pelas autoridades fiscais de cobrança do valor declarado e não recolhido, não há razão que justifique a inaplicabilidade do artigo 138, e portanto, do afastamento da cobrança da multa de mora. Vale a pena observar que o artigo 138 cuida da exclusão da responsabilidade pelo cometimento de infrações tributárias. Ora, a não ser que fosse possível excluir o inadimplemento de créditos tributários constituídos pelo contribuinte do reino das infrações tributárias, não há como excluí-lo do espectro de incidência do artigo 138. No ano de 2003 escrevi um artigo dedicado ao tema em epígrafe, onde identifiquei que um dos principais aspectos negativos desta linha jurisprudencial seria o tratamento mais desvantajoso dado àqueles que, cumprindo seus



MORATÓRIA. CABIMENTO. APLICABILIDADE DA LC Nº 104/2001. ART. 155-A DO CTN. ENTENDIMENTO DA 1ª SEÇÃO. PRECEDENTES. 1. O instituto da denúncia espontânea exige que nenhum lançamento tenha sido feito, isto é, que a infração não tenha sido identificada pelo fisco nem se encontre registrada nos livros fiscais e/ ou contábeis do contribuinte. A denúncia espontânea não foi prevista para que favoreça o atraso do pagamento do tributo. Ela existe como incentivo ao contribuinte para denunciar situações de ocorrência de fatos geradores que foram omitidas, como é o caso de aquisição de mercadorias sem nota fiscal, de venda com preço registrado aquém do real, etc. [...].”

594 Nesse sentido, ver: Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 202.881 (publicação no Diário da Justiça em 25 de junho de 2001).

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deveres tributários instrumentais, de boa fé e sem qualquer intenção de sonegação fiscal, em comparação aos que, ao omitirem informações à Fazenda Pública, podem inclusive estar consumando um crime contra a ordem tributária.595 O grande erro da linha jurisprudencial em tela é desconsiderar que a denúncia espontânea nada mais é do que um instrumento para o contribuinte, diante da omissão da Fazenda, afastar algumas das consequências de uma infração tributária. No caso de tributos declarados e não pagos, a imposição da multa de ofício, como visto, é afastada pela própria declaração do contribuinte. Todavia, segundo o STJ, o arrependimento eficaz do sujeito passivo, conforme o artigo 138, impede ainda a aplicação da multa de mora. Seguindo este entendimento, cremos que somente um ato da Fazenda, anterior à denúncia espontânea do contribuinte (quitação do valor declarado e não pago), teria o condão de afastar a aplicação do artigo 138. Esta, inclusive, era a posição adotada pela Segunda Turma da corte anteriormente ao julgamento da matéria pela Primeira Seção.596 A verdade aqui é que, embora a doutrina e jurisprudência tributárias venham se direcionando para o reconhecimento do autolançamento como forma de constituição do crédito tributário, o C.T.N. originariamente não encampava tal linha de pensamento, de forma que várias questões, como a contagem do prazo prescricional, vista no item anterior, e os efeitos do autolançamento sobre a denúncia espontânea, não estão previstas de forma expressa no Código, sendo objeto de construção pelo STJ. Particularmente em relação a este último item, parece-nos que a posição da corte vem se mostrando equivocada. Assim sendo, e como já tivemos oportunidade de sustentar597, seria importante uma alteração no C.T.N. na parte dedicada à constituição do crédito tributário, de modo a se prever de forma expressa as formas em que a mesma se dá por ato do contribuinte, determinando-se, também, aspectos relacionados, como os mencionados no parágrafo anterior. 595 SILVA, Sergio André R. G. da. Denúncia Espontânea e Lançamento por Homologação: Comentários acerca da Jurisprudência do STJ. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 98, nov. 2003, p. 106-112. 596 “TRIBUTÁRIO. DENÚNCIA ESPONTÂNEA. EXCLUSÃO DA MULTA NOS TRIBUTOS SUJEITOS AO LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. Nada importa que o contribuinte tenha cumprido a obrigação acessória de declarar mensalmente o tributo devido, nem que esta circunstância dispense o Fisco de formalizar o lançamento tributário; nos tributos sujeitos a autolançamento, o pagamento pode ser feito sem a multa enquanto o débito não for inscrito em dívida ativa. Recurso especial conhecido e provido.” (Recurso Especial nº 169.738. Publicação no Diário da Justiça em 16 de novembro de 1998). 597 ROCHA, Sergio André. Constituição do Crédito Tributário pelo Contribuinte. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 151, abr. 2008, p. 115.

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4. Constituição do crédito tributário pelo contribuinte e depósito judicial Durante algum tempo discutiu-se no STJ acerca da natureza do depósito judicial integral feito pelo contribuinte com vistas à suspensão da exigibilidade do crédito tributário, na forma do inciso II do artigo 151. Em 2007 esta questão foi pacificada pela Primeira Seção, cuja posição foi no sentido de que o depósito do montante integral devido pelo contribuinte constitui o crédito tributário. Veja-se, nesse sentido, a ementa da decisão proferida nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 898.992 (publicação no Diário da Justiça em 27 de agosto de 2007): PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. DEPÓSITO DO MONTANTE INTEGRAL. ART. 151, II, DO CTN. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. CONVERSÃO EM RENDA. DECADÊNCIA. 1. Com o depósito do montante integral tem-se verdadeiro lançamento por homologação. O contribuinte calcula o valor do tributo e substitui o pagamento antecipado pelo depósito, por entender indevida a cobrança. Se a Fazenda aceita como integral o depósito, para fins de suspensão da exigibilidade do crédito, aquiesceu expressa ou tacitamente com o valor indicado pelo contribuinte, o que equivale à homologação fiscal prevista no art. 150, § 4º, do CTN. 2. Uma vez ocorrido o lançamento tácito, encontra-se constituído o crédito tributário, razão pela qual não há mais falar no transcurso do prazo decadencial nem na necessidade de lançamento de ofício das importâncias depositadas. [...]

Em doutrina, algumas vozes sustentavam posição idêntica à do STJ, como é o caso de Denise Lucena Cavalcanti, para quem “pode acontecer a situação em que o cidadão-contribuinte se antecipe ao fisco e, mesmo antes de o crédito tributário estar constituído, faça o depósito judicial. Neste caso, sua efetivação implica a constituição do crédito tributário”.598 A questão aqui, ao que parece, merece uma abordagem distinta. Com efeito, nas situações em que o contribuinte tem a exigibilidade do crédito tributário 598 CAVALCANTE, Denise Lucena. Crédito Tributário: a função do cidadão-contribuinte na relação tributária. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 125.

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suspensa em decorrência de depósito judicial integral, o mesmo tem que declarar, em sua Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF – o montante de tributo devido. Dessa forma, é possível sustentar que nos casos em que realizado depósito judicial, o crédito tributário, em princípio, teria sido constituído pelo contribuinte mediante a entrega da DCTF, estando com a exigibilidade suspensa por força do disposto no inciso II do artigo 151 do C.T.N. Contudo, caso o contribuinte não constitua o crédito tributário objeto do depósito em sua DCTF, parece que a solução deveria ser distinta daquela acolhida pelo STJ. De fato, cremos que o depósito judicial, por si só, não representa um ato de constituição do crédito tributário passível de substituir a declaração em DCTF. Até porque, diga-se, tais atos tem motivações completamente distintas: enquanto a declaração em DCTF é um ato de reconhecimento de dívida, o depósito judicial é um ato normalmente praticado em um contexto de não reconhecimento de uma dívida fiscal.

5. Meios alternativos de solução de controvérsias e manifestação de vontade do contribuinte Há algum tempo que os debates a respeito da utilização de meios alternativos como instrumento de solução de controvérsias na esfera tributária vêm se desenvolvendo599, podendo-se afirmar que a discussão quanto à utilização de meios alternativos para a solução de controvérsias na seara tributária encontra-se vinculada: i. à necessidade de se desenvolverem meios de superação da complexidade característica da sociedade pós-moderna, a qual, na arena tributária vem sendo bastante injusta com o contribuinte, já que este se encontra no front da interpretação/aplicação dos textos normativos fiscais; e

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A transferência de atividades liquidatórias para os contribuintes aliada à complexidade do fenômeno tributário e à presença cada vez mais constante de conceitos indeterminados e tipos nas leis fiscais deram impulso à discussão quanto à utilização de meios alternativos para a solução de controvérsias entre a Fazenda e os contribuintes. Tais meios alternativos compreendem as técnicas arbitrais (mediação ou conciliação e arbitragem), bem como a transação.600 Segundo de Leon Frejda Szklarowsky, “a arbitragem é uma forma alternativa de composição de litígio entre partes. É a técnica, pela qual o litígio pode ser solucionado, por meio da intervenção de terceiro (ou terceiros), indicado por elas, gozando da confiança de ambas. Com a assinatura da cláusula compromissória ou do compromisso arbitral, a arbitragem assume o caráter obrigatório e a sentença tem força judicial”.601 Ainda segundo o citado autor, “a mediação ou conciliação é também uma forma alternativa de solução de pendência, em que o terceiro, alheio à demanda e isento, em relação às partes, tenta conseguir a composição do litígio, de forma amigável, sem entrar no mérito da questão, diferenciando-se, pois, da arbitragem. Pode ser tanto judicial como extrajudicial, optativa ou obrigatória, ocorrendo também no campo do direito internacional”.602 Por fim, tem-se a transação sempre que as partes põem fim a uma disputa mediante concessões recíprocas. Deixando de lado a aplicação, na esfera fiscal, das diversas técnicas arbitrais, devemos focar nossa atenção no presente estudo aos efeitos da transação tributária, que tem previsão no artigo 171 do C.T.N., segundo o qual “a lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário”. Um primeiro aspecto a ser destacado no dispositivo acima é que a transação, na forma em que se encontra prevista no código, só tem lugar nas situações em que houver alguma controvérsia entre o sujeito passivo e o ente tributante.

ii. à necessidade de se superar a insegurança causada pelo uso de tipos e conceitos indeterminados nas leis tributárias.

599 Para uma análise mais profunda do tema, com a análise de bibliográfica nacional e estrangeira sobre a matéria, ver: ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados contra a Bitributação da Renda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 202-213; ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2007, p. 321-342.

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600 Em sentido contrário: CASÁS, José Osvaldo. Los Mecanismos Alternativos de Resolución de las Controversias Tributarias. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003. p. 282-284. 601 SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Arbitragem – Uma Nova Visão. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 58, set.-out. 2004, p. 226 e 227. 602 SZKLAROWSKY, Leon Frejda, Arbitragem – Uma Nova Visão, 2004, p. 227.

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Partindo da premissa, que há muito vimos defendendo603, de que no processo administrativo não há litígio entre Fazenda e contribuinte, uma interpretação mais focada no elemento gramatical poderia sugerir que a transação somente seria possível em havendo uma disputa judicial em andamento. Contudo, não se pode deixar de considerar que (i) parte da doutrina sustenta, de forma inequívoca, a existência de um processo administrativo fiscal litigioso604; e que (ii) tal posição era certamente predominante à época em que editado o C.T.N., dando evidência disso o artigo 14 do Decreto nº 70.235/72, segundo o qual “a impugnação da exigência instaura a fase litigiosa do procedimento”. Desta forma, cremos, com Paulo de Barros Carvalho, que a palavra litígio constante no artigo 171 deve ser interpretada de forma abrangente, incluindo não só o caso de disputas judiciais, mas também de controvérsias administrativas.605 Questão que gera grandes discussões neste campo consiste na compatibilização entre os meios alternativos de solução de controvérsias, inclusive a transação, e os princípios da legalidade e da indisponibilidade do crédito tributário. O exame desta matéria impõe um esclarecimento preliminar no sentido de que a utilização de todo e qualquer meio alternativo para a solução de controvérsias em matéria tributária encontra-se relacionado à indeterminação legítima da legislação ou dos fatos tributáveis, característica da sociedade pós-moderna.606 Partindo dessa premissa, já concluímos que a utilização de tais meios alternativos são absolutamente compatíveis com os ditos princípios da legalidade tributária e da indisponibilidade do crédito tributário, já que em nenhum momento se tem o rompimento da moldura legal, mas apenas o enquadramento conjunto pela Fazenda e o contribuinte do fato ocorrido em uma das possibilidades hermenêuticas apresentadas pelo texto legal.607 Nesse contexto, e considerando as premissas brevemente expostas acima, não vemos na transação uma situação de atuação extra lege, seja da manifesta-

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ção da Fazenda, seja daquela feita pelo contribuinte, já que, em todo caso, em momento algum há um transbordamento das margens do texto normativo.

6. Conclusão O propósito deste estudo foi a análise dos reflexos das manifestações de vontade do contribuinte sobre o nascimento, desenvolvimento e a morte do crédito tributário. Esperamos ter demonstrado o quanto a administração tributária em uma sociedade massificada depende da participação do contribuinte na dinâmica da relação tributária. Embora a matéria em questão já se encontre bastante desenvolvida doutrinária e jurisprudencialmente, cremos que é hora de uma reforma legislativa, com alterações no Código Tributário Nacional, para que a lei geral tributária se atualize e disponha sobre questões que têm sido abordadas apenas nas decisões judiciais.

603 ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2007, p. 127-129. 604 Cf. XAVIER, Alberto. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 5. 605 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 461-462. 606 Cf. ROCHA, Sergio André, Interpretação dos Tratados contra a Bitributação da Renda, 2008, p. 204-205. 607 Cf. ROCHA, Sergio André, Interpretação dos Tratados contra a Bitributação da Renda, 2008, p. 213.

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O Protagonismo do STF na Interpretação da Constituição Pode Afetar a Segurança Jurídica em Matéria Tributária? (2011) O controle da constitucionalidade dos atos normativos, surgido no julgamento do caso Marbury vs Madison pela Suprema Corte Norte-Americana608, vincula-se a alguns dos princípios fundamentais do constitucionalismo moderno: a supremacia do texto constitucional e sua rigidez609. Nesse contexto, é possível afirmar que uma das funções do controle de constitucionalidade é trazer segurança jurídica mediante a proteção dos direitos fundamentais previstos nas Constituições contra a vontade das maiorias políticas transitórias610. Contudo, como se passa em todos os campos do direito na pós-modernidade, caracterizada pela ambivalência e a complexidade611, instrumentos criados

608 Sobre Marbury vs. Madison, ver: TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. New York: The Foundation Press, 1988. p. 23-32. 609 Nas palavras de Luís Roberto Barroso: “Duas premissas são normalmente identificadas como necessárias à existência do controle de constitucionalidade: a supremacia e a rigidez constitucionais. A supremacia da Constituição revela sua posição hierárquica mais elevada dentro do sistema, que se estrutura de forma escalonada, em diferentes níveis. É ela o fundamento de validade de todas as demais normas. Por força dessa supremacia, nenhuma lei ou ato normativo – na verdade, nenhum ato jurídico – poderá subsistir validamente se estiver em desconformidade com a Constituição. A rigidez constitucional é igualmente pressuposto do controle. Para que possa figurar como parâmetro, a norma constitucional precisa ter um processo de elaboração diverso e mais complexo do que aquele apto a gerar normas infraconstitucionais. Se assim não fosse, inexistiria distinção formal entre a espécie normativa objeto de controle e aquela em face da qual se dá o controle. Se as leis infraconstitucionais fossem criadas da mesma maneira que as normas constitucionais, em caso de contrariedade ocorreria a revogação do ato anterior e não a inconstitucionalidade” (BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 23-24). Ver também: CLÈVE, Clèmerson Merlin, A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 28-35. 610 Ver: FISCHER, Octavio Campos. Os Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 58-59. 611 Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. A Tributação na Sociedade de Risco. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, v. 24, 2010, p. 544-547.

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para conferir segurança muitas vezes se tornam também geradores de insegurança. Tal o que ocorre com o controle de constitucionalidade dos atos normativos. Um dos temas mais preocupantes neste particular consiste exatamente na tensão democrática entre a tendência de expansão da atuação da Corte Constitucional na tomada de decisões políticas fundamentais da sociedade e a competência dos representantes eleitos dos cidadãos para tomarem tais decisões. Essa questão ganha complexidade em razão da constitucionalização do direito, com a Constituição Federal irradiando seus princípios por todo o ordenamento jurídico. Como destaca Pietro Perlingieri, “a solução para cada controvérsia não pode mais ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-la e resolvê-la, mas, antes à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, em particular, de seus princípios fundamentais, considerados como opções de base que o caracterizam”612. A constitucionalização tem um papel ainda mais relevante no Direito Tributário brasileiro. De fato, uma das peculiaridades de nosso ordenamento jurídico reside na existência de um grande número de regras e princípios constitucionais que regulam as relações entre os entes tributantes e os contribuintes, fazendo com que o sistema tributário nacional seja bastante rígido, com limites e limitações claras às competências tributárias conferidas à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Como observa Geraldo Ataliba, ao proceder à comparação entre o sistema tributário pátrio e aqueles vigentes em outros países “aqui, o legislador ordinário não pode fazer nada, não contribui, não pode contribuir para moldar o sistema. O sistema já vem feito pelo legislador constituinte. A Constituição faz o sistema inteiro e se limita a dar competências bastante estritas ao legislador ordinário, que circunscrever-se-á a desenvolver aquilo que já está fundamentalmente posto pela Constituição”613. 612 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 5. Vários artigos sobre a constitucionalização do direito podem ser encontrados na obra coletiva organizada por Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento, A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007). 613 ATALIBA, Geraldo. Hermenêutica e Sistema Constitucional Tributário. In: ATALIBA, Geraldo (Coord.). Interpretação no Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 22. Conforme salienta Sacha Calmon Navarro Coêlho, em seu estudo sobre o controle da constitucionalidade das leis em sede tributária: “Para logo observa-se que país algum ‘constitucionalizou’ tanto o Direito Tributário. A Constituição Brasileira de 88 contém cerca de 20 artigos, 76 incisos e 39 parágrafos dedicados ao poder de tributar, às regras de competência, aos princípios juristributários e aos direitos e garantias dos contribuintes, em tratamento

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Em consonância com o magistério de Aliomar Baleeiro, tal constitucionalização do Direito Tributário brasileiro seria uma decorrência do federalismo aqui adotado, o qual exigiria uma maior regulação constitucional acerca das competências tributárias dos diversos entes federativos614. No cenário acima descrito, em que a constitucionalização do sistema tributário brasileiro se apresenta como realidade, há que se analisar a tensão entre o exercício da função de controle da constitucionalidade das leis pelo Supremo Tribunal Federal e o princípio democrático previsto no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal. O cerne da questão é bem posto por Gustavo Binenbojm: Como visto no decorrer do presente capítulo, a jurisdição constitucional se afirmou, pelo mundo afora, como o mais importante instrumento de contenção do poder político nas democracias contemporâneas, chegando mesmo a ser considerado “elemento necessário da própria definição do Estado de direito democrático”. É que, por intermédio da sua constitucionalização, determinados princípios e direitos são subtraídos do embate político cotidiano, ficando preservados contra maiorias legislativas ocasionais. A rigidez constitucional, pressuposto da supremacia da Lei Maior, e os mecanismos de controle da constitucionalidade representam, assim, os limites institucionais do poder da maioria. Não obstante suas virtudes e sua reconhecida utilidade para o próprio funcionamento do regime democrático, a jurisdição constitucional mantém com a democracia uma tensão permanente, uma relação de equilíbrio instável, que coloca em xeque, de tempos em tempos, a sua legitimidade para anular decisões tomadas pelos representantes do povo.615

A discussão que se coloca aqui se relaciona à competência do Poder Judiciário, cuja legitimidade no Brasil se dá pelo processo decisório616 e pelo rito de seleção dos membros de seus membros, e não pela eleição popular, para sobrepujar exaustivo e analítico” (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O Controle da Constitucionalidade das Leis e o Poder de Tributar na Constituição de 1988. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 247-248). No mesmo sentido: CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 44. 614 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 11. 615 BINENBOJN, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 44-45. 616 Ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 14-19.

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a vontade manifestada pelos membros do Executivo e do Legislativo, eleitos pelo povo. Conforme relata Luís Roberto Barroso “nos Estados Unidos tem-se travado, nos últimos anos, uma ampla discussão sobre o controle de constitucionalidade pelo Judiciário e seus limites. Sustenta-se que os agentes do Executivo e do Legislativo, além de ungidos pela vontade popular, sujeitam-se a um tipo de controle e responsabilização política de que os juízes estão isentos”617. Nesse contexto é que surgem visões procedimentalistas como as sustentadas por Jürgen Habermas618 e John Hart Ely619, que vão ver na interpretação consti-

617 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 163. Vejamos as ponderações de Gilmar Ferreira Mendes: “É claro que a Corte Constitucional não pode olvidar a sua ambivalência democrática. Ainda que se deva reconhecer a legitimação democrática dos juízes, decorrente do complexo processo de escolha e nomeação, e que a sua independência constitui requisito indispensável para o exercício de seu mister, não se pode deixar de enfatizar que aqui também reside aquilo que Grimm denominou ‘risco democrático’ (demokratisches Risiko). É que as decisões da Corte Constitucional estão inevitavelmente imunes a qualquer controle democrático. Essas decisões podem anular, sob a invocação de um direito superior que, em parte, apenas é explicitado no processo decisório, a produção de um órgão direta e democraticamente legitimado. Embora não se negue que também as Cortes ordinárias são dotadas de um poder de conformação bastante amplo, é certo que elas podem ter a sua atuação reprogramada a partir de uma simples decisão do legislador ordinário. Ao revés, eventual correção da jurisprudência de uma Corte Constitucional somente há de se fazer, quando possível, mediante emenda. Essas singularidades demonstram que a Corte Constitucional não está livre do perigo de converter uma vantagem democrática num eventual risco para a democracia. Assim como a atuação da jurisdição constitucional pode contribuir para reforçar a legitimidade do sistema, permitindo a renovação do processo político com o reconhecimento dos direitos de novos ou pequenos grupos e com a inauguração de reformas sociais, pode ela também bloquear o desenvolvimento constitucional do País. A possível aporia relativa à ameaça ao desenvolvimento do processo democrático pela atuação de um órgão concebido exatamente para protegê-lo não há de se resolver, certamente, com a eventual eliminação da jurisdição constitucional. O equilíbrio instável que se verifica e que parece constituir o autêntico problema da jurisdição constitucional na democracia afigura-se necessário e inevitável. Todo o esforço que se há de fazer é, pois, no sentido de preservar o equilíbrio e evitar disfunções” (MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: Hermenêutica Constitucional e Revisão de Fatos e Prognoses Legislativos pelo Órgão Judicial. In: Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 503-504). 618 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v I. p. 325-326. 619 ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 2002. p. 101-104.

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tucional “uma atitude voltada especialmente para a garantia das condições democráticas do processo legislativo, e não para a avaliação de seus resultados”620. Essa visão procedimentalista é criticada por autores como Ronald Dworkin, para quem não é possível “imaginar em que argumento se poderia pensar para demonstrar que decisões legislativas sobre direitos têm mais probabilidade de serem corretas que decisões judiciais”621. Em outra passagem Dworkin enfrenta diretamente a questão da compatibilidade entre jurisdição constitucional e democracia, aduzindo que: Sem dúvida, é verdade, como descrição bem geral, que numa democracia o poder está nas mãos do povo. Mas é por demais evidente que nenhuma democracia proporciona a igualdade genuína de poder político. Muitos cidadãos, por um motivo ou outro, são inteiramente destituídos de privilégios. O poder econômico dos grandes negócios garante poder político especial a quem os gere. Grupos de interesse, como sindicatos e organizações profissionais, elegem funcionários que também têm poder especial. Membros de minorias organizadas têm, como indivíduos, menos poder que membros individuais de outros grupos que são, enquanto grupos, mais poderosos. Essas imperfeições no caráter igualitário da democracia são bem conhecidas e, talvez, praticamente irremediáveis. Devemos levá-las em conta ao julgar quanto os cidadãos individualmente perdem de poder político sempre que uma questão sobre direitos individuais é tirada do legislativo e entregue aos tribunais. Alguns perdem mais que outros apenas porque têm mais a perder. Devemos também lembrar que alguns indivíduos ganham em poder político com essa transferência de atribuição institucional. [...].622

Vê-se, portanto, que a questão do alcance da legitimidade democrática da jurisdição constitucional é recoberta de polêmicas, até por ser um tema, 620 Cf. BINENBOJN, Gustavo, A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira, 2010, p. 113. Segundo Lenio Luiz Streck: “Sustentando a tese procedimentalista, Habermas critica com veemência a invasão da política e da sociedade pelo Direito. O paradigma procedimentalista pretende ultrapassar a oposição entre os paradigmas liberal/formal/burguês e o do Estado Social de Direito, utilizando-se, para tanto, da interpretação da distinção entre política e direito à luz da teoria do discurso. Parte da ideia de que os sistema surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados Sociais, denotam uma compreensão procedimentalista do Direito” (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 155). 621 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 26. 622 DWORKIN, Ronald, Uma Questão de Princípio, 2001, p. 31.

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como já afirmamos, ambivalente, na medida em que a jurisdição constitucional é garantia623 e ameaça aos valores democráticos. Pode-se concordar com Robert Alexy quando afirma que “o princípio fundamental: ‘todo poder estatal origina-se do povo’ exige compreender não só o parlamento mas também o tribunal constitucional como representante do povo”624. Não sendo esta a sede para nos aprofundarmos mais sobre esta matéria, resta-nos concordar com Daniel Sarmento, quando afirma que, embora haja campos onde o ativismo judicial seja necessário, “como a tutela dos direitos fundamentais, a proteção das minorias e a garantia do funcionamento da própria democracia”, há também situações em que “pode ser recomendável uma postura de autocontenção judicial, seja por respeito às deliberações majoritárias adotadas no espaço político, seja pelo reconhecimento da falta de expertise do Judiciário para tomar decisões que promovam eficientemente os valores constitucionais em jogo, em áreas que demandem profundos conhecimentos técnicos fora do Direito – como economia, políticas públicas e regulação”625. Na medida em que se reconhece, com Peter Häberle, a existência de uma sociedade aberta de interpretes da Constituição626, essa autocontenção da Corte

623 A função da jurisdição constitucional como instrumento de superação dos déficits democráticos do próprio processo legislativo é ressaltada por José Adécio Leite Sampaio, quando aponta que a “fiscalização de constitucionalidade termina sendo um instrumento eficaz de controle do processo legislativo, especialmente para desmascarar a transformação do voto dessa minoria, interessada ou interesseira, na mítica vontade geral da maioria” (SAMPAIO, José Adécio Leite. Discurso de Legitimidade da Jurisdição Constitucional e as Mudanças Legais do Regime de Constitucionalidade no Brasil. In: SARMENTO, Daniel (Coord.). O Controle de Constitucionalidade e a Lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 170). 624 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático. Tradução Luís Afonso Heck. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 217, jul.-set. 1999, p. 66. 625 SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e possibilidades. In: SARMENTO, Daniel (Coord.). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 137-138. 626 Nas palavras do autor alemão, “propõe-se, pois, a seguinte tese: no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição” (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 13). Sobre a sociedade aberta de intérpretes, ver: COELHO, Inocêncio Mártires. As Ideias de Peter Häberle e a Abertura da Interpretação Constitucional no Direito Brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 211, jan.-mar. 1998, p. 125-134.

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Constitucional na apreciação de certas matérias torna-se necessária para que se permita aos demais atores da interpretação constitucional exercerem seus papéis. Feitos esses comentários, cumpre-nos agora aplicá-los ao Direito Tributário, levando em conta a já referida característica deste “ramo” do Direito relativa à sua fundação sistêmica radicada na Constituição Federal. A interpretação/aplicação do Direito é feita por sociedade plural de intérpretes, de modo que, no Direito Tributário, temos que os textos legais, inclusive o constitucional, são interpretados/aplicados pelos agentes públicos e privados627. Se levarmos em conta especificamente o texto da Constituição e sua aplicação direta628, fica claro que a sociedade como um todo compõe o seu conjunto de intérpretes. Contudo, mesmo que assim seja, temos que considerar a pluralidade de atores no processo hermenêutico juntamente com a indeterminação do texto interpretado. Na visão kelseniana é da indeterminação dos textos normativos que decorre a ideia de que estas são molduras, dentro das quais podem ser criadas mais de uma norma jurídica. Nas palavras de Kelsen: Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do Tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.629

627 Ver: TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 60-63. 628 Sobre o tema, ver: BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 141-156. 629 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução João Baptista Machado. Coimbra: Armenio Amado, 1984. p. 467.

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A indeterminação dos textos normativos e noção de que os mesmos são molduras tornam relevante a separação entre a interpretação realizada por um órgão de aplicação do direito (aquele responsável pela criação das normas concretas) e a interpretação realizada por quem não é órgão aplicador da regra interpretada (por exemplo, interpretação realizada pelas pessoas de direito privado que devem observar o direito e aquela oferecida pela ciência jurídica). Quando se fala em interpretação constitucional, parece-nos que há dois órgãos de aplicação: o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal630. O Poder Legislativo, ao exercer sua função de edição de leis, interpreta a Constituição para que a mesma seja exercida considerando os limites previstos na Lei Maior assim como os fins na mesma estabelecidos, exercendo uma interpretação constitucional de primeiro grau. Já o Supremo Tribunal Federal fiscaliza a compatibilidade entre a atividade legislativa e o Texto Constitucional, exercendo uma interpretação constitucional de segundo grau e dando a última palavra sobre a sua interpretação. Ao concretizar sua função, todavia, a Corte Constitucional deve levar em conta a ideia de constituição como moldura. Como comenta Virgílio Afonso da Silva, “a metáfora da moldura, no campo da teoria constitucional, é usada para designar uma constituição que apenas sirva de limites para a atividade legislativa. Ela é apenas uma moldura, sem tela, sem preenchimento. À jurisdição constitucional cabe apenas a tarefa de controlar se o legislador age dentro da moldura. Como o legislador age no interior desses limites é uma questão de oportunidade política”631. Quando trazemos essa discussão para o Direito Tributário, temos uma complicada equação para resolver. Se, por um lado, há que se evitar que o Supremo Tribunal Federal substitua o legislador na tomada de decisões motivadas por juízos de conveniência e oportunidade, por outro, a autocontenção judicial 630 Lecionava Celso Ribeiro Bastos: “Como se sabe, praticamente todos os indivíduos acabam interpretando o Texto Supremo. O Poder Legislativo o faz quando elabora determinada lei de acordo com o que estipula a Constituição, ou ainda quando considera as possíveis interpretações que, em situações futuras, possam ter as regras que irá aprovar. Também quando altera a própria Constituição tem de obedecer aos limites por esta impostos. Mas é certo que a interpretação mais relevante é aquela efetuada pelo Poder Judiciário, seja na adequação, a cada caso concreto, da norma abstrata, seja na verificação em abstrato da constitucionalidade de determinada regra” (BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 65). 631 SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 116.

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neste campo não pode ser acentuada demais, a ponto de abrir espaço para a utilização da “inconstitucionalidade útil” como forma de agir do poder público632. Tendo o sistema tributário nacional, como exposto anteriormente, base constitucional, o que vem a limitar a competência do legislador infraconstitucional nesta seara, é importante ter em consideração que muitas vezes este legislador atua além dos limites de sua competência, agindo, em evidente excesso de poder, de forma inconstitucional. Com efeito, não são poucos os casos de inconstitucionalidade no âmbito do Direito Tributário, os quais chegam ao Supremo Tribunal Federal, após anos de tramitação pelos Juízos de primeira e segunda instância, passando, por vezes, pelo Superior Tribunal de Justiça. No intuito de corroborar o que ora se afirma recorre-se, uma vez mais, aos ensinamentos do saudoso Geraldo Ataliba, que, prosseguindo em uma análise comparatística do Direito Tributário pátrio, afirma: Portanto, esta observação tem a grande utilidade de nos colocar em alerta nesta transplantação de problemas, soluções, doutrinas, princípios, legislação e jurisprudência, porque na Europa a liberdade do legislador é fantástica. Toda a lei, praticamente, que o legislador faça, em matéria tributária, é válida, é constitucional. Desde que obedeça ao princípio da igualdade e ao da legalidade, lá, qualquer lei tributária é constitucional. É rara a vez, que se leva uma questão tributária à Suprema Corte, por razão constitucional. Na Alemanha ainda há, porque é um Estado federal muito parecido com o Brasil, uma ou outra questão constitucional tributária. Aqui, sabemos que 80% da legislação tributária é inconstitucional, desobedece a Constituição. Por quê? Porque desconhecendo a nossa Constituição, e esta é a diferença essencial entre o nosso sistema constitucional e o estrangeiro, o legislador copia soluções muito bonitas, muito interes-

632 Segundo Ricardo Lobo Torres: “Não raro a Administração adota conduta claramente inconstitucional na expectativa de que more ou não sobrevenha o controle judicial da constitucionalidade, o que lhe permite aumentar a arrecadação. É a inconstitucionalidade útil, que fere frontalmente o princípio da moralidade. O Min. Otávio Gallotti, por ocasião de sua posse na Presidência do Supremo Tribunal Federal, definiu ‘inconstitucionalidade útil’: são atos deliberadamente inconstitucionais, praticados com finalidades corporativas ou pelo desejo de governadores que querem consertar as finanças de seus Estados. Eles praticam esses atos torcendo pelos efeitos que eles produzem até serem corrigidos. O Min. Sepúlveda Pertence, no julgamento em que se discutia sobre a possibilidade de se fixar a eficácia ex nunc da declaração de inconstitucionalidade no controle concentrado, advertia que essa solução, se generalizada, traz também o grande perigo de estimular a inconstitucionalidade” (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 24).

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santes, muito adequadas, do legislador europeu, ou da literatura europeia e transplanta-as imediatamente.633

Seguindo essa linha de entendimentos, se os limites do exercício das competências tributárias pelos entes tributantes se encontram expressamente previstos na Constituição (diferentemente do que ocorre em outros países), deve caber ao Poder Judiciário, em especial ao Supremo Tribunal Federal, como órgão da aplicação da Lei Maior em segundo grau, controlar tal atividade legislativa. Voltando ao comentário de Daniel Sarmento, antes citado, e trazendo-o para o Direito Tributário, se é certo que há áreas em que se pode cogitar de uma autocontenção do Supremo Tribunal Federal, parece-nos que, na maioria das vezes, é não só legítima como necessária a função da Corte como órgão de aplicação da Constituição em última instância, protegendo os contribuintes contra cobranças de tributos incompatíveis com a Lei Maior. Um estudo de caso pode ajudar a aplicar as considerações acima ao Direito Tributário. A chamada guerra fiscal se tornou uma das questões tributárias mais polêmicas e mais populares dos últimos tempos. Ao contrário da maioria dos temas fiscais, que ficam restritos aos especialistas, a questão em volta da guerra fiscal ganhou os noticiários da TV aberta e assim divulgação maciça para a população. O capítulo mais recente da novela A Guerra Fiscal, aconteceu no dia 01 de junho de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal julgou, de uma vez só, quatorze Ações Diretas de Inconstitucionalidade cujo objeto era a inconstitucionalidade de legislações estaduais concedendo benefícios fiscais de ICMS634. Essas decisões do STF, embora tenham seguido a jurisprudência consolidada da Corte sobre a matéria635, foram recebidas pela mídia como uma mensagem clara aos estados de que a guerra fiscal não seria tolerada. Em linha com tudo o que foi dito acima, tendo-se verificado uma clara afronta ao artigo 155, § 2º, XII, “g” da Constituição Federal, com a concessão de benefícios fiscais sem a observância do rito previsto na Lei Complementar nº 24/75, não há alternativas de autocontenção da jurisdição constitucional.

633 ATALIBA, Geraldo, Hermenêutica e Sistema Constitucional Tributário, 1975, p. 23. 634 ADI 2906/RJ, ADI 2376/RJ, ADI 3674/RJ, ADI 3413/RJ, ADI 4457/PR, ADI 3794/PR, ADI 2688/PR, ADI 1247/PA, ADI 3702/ES, ADI 4152/SP, ADI 3664/RJ, ADI 3803/PR, ADI 2549/DF e ADI 2352/ES. 635 Ver: MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e Prática. 5 ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 273-281.

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Cabe à Suprema Corte expurgar do ordenamento jurídico os atos normativos inconstitucionais editados pelos Estados. Após as referidas decisões, os olhos voltaram-se para o Supremo Tribunal Federal como se o mesmo pudesse acabar com a dita guerra fiscal. Aqui vemos, claramente, um campo onde a autocontenção da Corte Constitucional deve prevalecer. Em primeiro lugar, a guerra fiscal, em si, não é necessariamente ruim636. O problema maior hoje é que ela ocorre em contradição ao disposto na Constituição Federal, gerando enorme insegurança para os contribuintes que seguem as disposições de leis, decretos e demais atos editados pelos Estados e o Distrito Federal, sem saberem ao certo se os mesmos são válidos. Por outro lado, em segundo lugar, a solução da guerra fiscal é eminentemente política, passando por questões macroeconômicas e relacionadas à distribuição de receitas tributárias entre os entes federativos, não cabendo ao Supremo Tribunal Federal participar do desenho da solução para a questão. No ano de 2009, o Governador do Distrito Federal ajuizou a Ação De Descumprimento De Preceito Fundamental nº 198 alegando que os artigos 2º, § 2º, e 4º, da Lei Complementar nº 24/75 contrariam o preceito fundamental do princípio democrático. O argumento central da ação do Distrito Federal é no sentido de que a Lei Complementar nº 24/75, ao exigir a unanimidade dos votos dos Estados e do Distrito Federal para a aprovação do benefício fiscal, viola o princípio democrático, uma vez que ignora a vontade da maioria. Aqui nos parece que já entramos no campo da referida autocontenção da Corte Constitucional. Ora, não cabe ao STF se substituir ao legislador complementar na definição dos critérios para a edição da regra prevista no artigo 155, § 2º, XII, “g” da Constituição Federal, da mesma maneira que não é papel do STF decisões políticas como a cobrança do ICMS na origem ou no destino ou a

636 Muito interessantes as considerações de Paulo de Barros Carvalho: “A guerra fiscal tem um lado positivo, que pode ser traduzido pela competição e atração de capitais. Agora, tem também um lado negativo. A Constituição Federal traz os instrumentos para a solução dos conflitos. Eliminar a guerra fiscal eu acho impossível, já que é algo natural em uma economia tão diversificada. Por mais que se estabeleça um controle, penso que jamais esse controle será plenamente satisfatório. Quanto à guerra fiscal em si, acho que o nome é muito problemático. Talvez o termo concorrência fiscal seja realmente mais apropriado do que guerra fiscal. Ela sempre ocorreu, só que agora, considerando o tamanho da economia brasileira, ganha outras proporções” (CARVALHO, Paulo de Barros. [Entrevista ao Tax View]. Tax View Ernst & Young Terco, São Paulo, n. 34, mar. 2011, p. 13. Disponível na internet em: www.ey.com.br).

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uniformização das alíquotas interestaduais. A guerra fiscal é tema cuja solução é política e deve ser desenvolvida no fórum político. Dessa forma, embora, regra geral, o Direito Tributário não deixe muito espaço para a autocontenção judicial, também nesta seara há situações onde o princípio democrático imporá que se deixe a decisão nas mãos das assembleias representativas, para que seja tomada pelos representantes do povo. Voltamos agora ao tema título do presente texto. O protagonismo do STF na interpretação da constituição pode afetar a segurança jurídica em matéria tributária? Ao colocarmos esta pergunta, temos que considerar, primeiramente, a luz de tudo o que dissemos acima, se há uma alternativa ao protagonismo do STF na interpretação da Lei Maior. Mesmo que a interpretação seja pluralista e que haja meios para que, nos marcos da argumentação jurídica637, haja participação dos interessados no processo de tomada de decisão do Supremo Tribunal Federal, sempre caberá ao órgão de aplicação do direito a palavra final na criação da norma jurídica extraível de um ou mais textos normativos. Por outro lado, temos que, em verdade, a existência de um Sistema Constitucional Tributário, resguardado por uma Corte Constitucional operante é mais garantia de segurança jurídica do que ameaça à mesma. Segundo Heleno Taveira Tôrres: A construção de sistema tributário em bases constitucionais tem como fim precípuo prover o ordenamento de intensa efetividade e segurança jurídica aos direitos fundamentais, diante da função tributária do Estado. A estrutura do sistema, organizada a partir de determinações objetivas de competências e classificações de tributos ou de regimes impositivos, por si só, já orienta o hermeneuta para a compreensão da estrutura do sistema tributário a partir do ápice, que é a constituição. De se ver, pois, que o sistema tributário reclama uma interpretação dos textos jurídico-tributários sob bases de uma metodologia sistêmica, sob uma vedação de análises atomísticas, isoladas ou desgarradas do todo que o compõe. [...].638

Ao comentar o princípio da segurança jurídica, Humberto Ávila sustenta que o mesmo pode ser analisado a partir de duas perspectivas. A primeira seria 637 Ver: ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados contra a Bitributação da Renda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 81-83. 638 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 338-339.

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uma “dimensão formal-temporal da segurança jurídica”, que permitiria às pessoas saber “de antemão quais normas são vigentes”. A segunda perspectiva, por sua vez, “demanda uma ‘certa medida’ de compreensibilidade, clareza, calculabilidade e controlabilidade conteudísticas para os destinatários da regulação”639. Poder-se-ia pensar, então, que o tal protagonismo do STF na interpretação constitucional entraria em colisão com o princípio da segurança jurídica, já que, até a manifestação da Corte, a capacidade de previsão do contribuinte quanto à interpretação de certos textos normativos é apenas relativa. Uma posição nesse sentido teria um viés quase napoleônico, para fazermos referência ao nascimento das codificações e deificação da função legislativa comum àquele período, não sendo sustentável no auge da sociedade de risco. Como bem aponta Ricardo Lodi Ribeiro, “nesse novo contexto, a segurança jurídica não significa qualquer garantia de previsão absoluta de conteúdo por meio de conceitos, uma vez que é impossível à linguagem do Direito assegurar uma pré-determinação absoluta”640. Assim sendo, não nos parece que o protagonismo do STF na revisão da constitucionalidade dos atos normativos acarrete, em si, déficits de segurança jurídica. Agora, esta afirmação considera a segurança jurídica possível na pós-modernidade, e não a segurança jurídica utópica que alguns autores do Direito Tributário nacional ainda teimam em defender, em doutrinas onde a certeza e determinação dos textos normativos aparecem como regras e não como princípios, como verdadeiramente são. Para aqueles que vivem no mundo ilusório da legalidade estrita e tipicidade cerrada como classicamente conceituadas em algumas páginas da doutrina brasileira, onde a segurança jurídica é absoluta, a incerteza natural causada pela participação ativa da Corte Constitucional no desenho do ordenamento jurídico tributário provavelmente aparece como ameaça à segurança jurídica. O que dissemos no parágrafo anterior, contudo, deve ser posto em perspectiva com a realidade prática que vivemos hoje. Se o protagonismo do STF na interpretação constitucional, no contexto da argumentação jurídica e com a participação no processo dos demais intérpretes da Constituição, não é uma

639 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 296-297. 640 RIBEIRO, Ricardo Lodi. A Segurança Jurídica do Contribuinte. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 57. Ver: ROCHA, Sergio André. A Tributação na Sociedade de Risco. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, v. 24, 2010, p. 547.

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ameaça à segurança jurídica possível na sociedade de risco, o tempo que leva para a Corte se pronunciar sobre as questões é. Voltando às dimensões da segurança jurídica trazidas por Humberto Ávila na passagem antes transcrita, se é certo que às vezes a previsibilidade das consequências jurídico-tributárias de determinada conduta somente será possível após a manifestação do STF, é igualmente certo que, enquanto tal pronunciamento não for emitido, prevalecerão a incerteza e a insegurança nas relações entre Fisco e contribuintes. Podemos citar um exemplo. Em dezembro de 2010 foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.588, cujo objeto é o artigo 74 da Lei nº 2.158-35, que veiculou a regra brasileira de tributação de lucros no exterior. Passados quase 10 anos, quando este artigo foi entregue à Dialética a ação ainda não havia sido julgada pelo STF. Isso significa que há 10 anos o mercado não tem uma orientação sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do aludido dispositivo. Isso é que corrói a segurança jurídica, não o papel do Supremo Tribunal Federal em si.

Sobre o Direito a um Processo Administrativo com Duração Razoável (2007)

1. Introdução Uma das inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 31 de dezembro de 2004, foi a inserção do inciso LXXVIII no artigo 5º. da Constituição Federal, segundo o qual “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. O direito à duração razoável do processo, no âmbito judicial, já se encontrava expresso no item 1º. do artigo 8º. da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que, ao tratar das garantias judiciais, dispõe que “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.641 A questão mais relevante nos dias atuais, todavia, não parece ser a definição do momento em que o “direito” a um processo com duração razoável foi inserido na Constituição, mas sim: (a) o que vem a ser a duração razoável de um processo; e (b) quais são os meios que garantem a celeridade de sua tramitação. O objeto deste estudo é a análise dessas duas questões, tendo como pano de fundo o processo administrativo fiscal. Para fins didáticos, adotar-se-á como paradigma o processo administrativo fiscal federal. Primeiramente, será examinada a pertinência da classificação da duração razoável do processo como um direito. Em seguida, analisar-se-á o conteúdo da expressão duração razoável do processo. A partir daí será possível identificar

641 Sobre o tema, ver: PALHARINI JÚNIOR, Sidney. Celeridade Processual – Garantia Constitucional Pré-Existente à EC N. 45 – Alcance da “Nova” Norma (art. 5º., LXXVIII, da CF). In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al. (Coords.). Reforma do Judiciário: Primeiras Reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 768; CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 86.

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quais seriam os reflexos da norma contida no do inciso LXXVIII no artigo 5º. da Constituição Federal sobre o processo administrativo fiscal. Serão estudadas, então, algumas medidas que podem ser utilizadas para assegurar a duração razoável dos processos desenvolvidos no âmbito da administração tributária.

2. Duração razoável do processo: Direito, princípio ou ambos? Para André Luiz Nicolitt, “a duração razoável do processo está inserta no artigo 5º, inciso LXXVIII, da CRF/88 que trata dos direitos e das garantias fundamentais. Com efeito, sua natureza jurídica não já de ser outra senão um direito fundamental. Trata-se de verdadeiro direito subjetivo público, autônomo, de índole constitucional”.642 A caracterização da duração razoável do processo como um direito subjetivo público, ou uma garantia constitucional, tem como consequência o reconhecimento de uma prestação, um dever por parte do Poder Público, que lhe seja correspondente. Com efeito, pode-se afirmar que duas das principais características dos direitos, liberdades e garantias constitucionais consistem na sua eficácia direta e aplicabilidade imediata, com a criação de um dever jurídico para o Poder Público, isso sem que seja necessária a intermediação concretizadora de qualquer outro ato, legislativo ou administrativo.643 Como visto, alguns autores, provavelmente inspirados na inserção do dispositivo no artigo 5º. da Constituição Federal, sustentam que a duração razoável do processo seria um direito fundamental.644 Há que se perguntar, contudo: é a duração razoável do processo apenas uma regra que prescreve um direito fundamental?

642 NICOLITT, André Luiz. A Duração Razoável do Processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 21. 643 Ver: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Almedina, [s/d]. p. 376-377. 644 Cf. NICOLITT, André Luiz. A Duração Razoável do Processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 21; CARVALHO, Fabiano. EC n. 45: Reafirmação da Garantia da Razoável Duração do Processo. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al. (Coords.). Reforma do Judiciário: Primeiras Reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 216-218; RODRIGUES, Horácio Wanderlei. EC n. 45: Acesso à Justiça e Prazo Razoável na Prestação Jurisdicional. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al. (Coords.). Reforma do Judiciário: Primeiras Reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 288; SPALDING, Alessandra Mendes. Direito Fundamental à Tutela Jurisdicional Tempestiva à Luz do Inciso LXXVIII do artigo 5º da CF Inserido pela EC N. 45/2004. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al. (Coords.). Reforma do Judiciário: Primeiras Reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 33.

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Partindo da noção acima apresentada quanto ao conteúdo dos direitos, liberdades e garantias constitucionais impõe-se reconhecer que, a despeito de sua inserção “geográfica” no artigo 5º. da Constituição Federal, a duração razoável do processo não é apenas uma regra prescritiva de um direito fundamental, mas também e talvez principalmente um princípio constitucional. Ao se fazer tal afirmação é importante esclarecer qual a noção de princípio que está sendo aqui utilizada, já que, nas acertadas palavras de Virgílio Afonso da Silva, “o termo princípio é plurívoco. Isso, em si, não significa nenhum problema. Problemas só surgem a partir do momento em que o jurista deixa de perceber esse fato e passa a usar o termo como se todos os autores que a ele fazem referência o fizessem de forma unívoca”.645 No presente trabalho está sendo adotado o conceito de princípio como norma finalística, mandado de otimização, para utilizar a expressão de Robert Alexy, o qual determina que dado estado de coisas seja alcançado tanto quanto possível, resguardadas as limitações fáticas e jurídicas.646 Ora, a duração razoável do processo trata-se de norma que indica um estado de coisas a ser alcançado, respeitadas as limitações fáticas e jurídicas e, portanto, um princípio.647 Nota-se, portanto, que o inciso LXXVIII no artigo 5º. da Constituição Federal estabelece tanto um direito fundamental a um processo razoável, que pode ser exercido em situações concretas em que a desídia do julgador causar danos às partes, isso sem a intermediação de qualquer ato legislativo ou administrativo, até mesmo suscitando a responsabilização do Estado no caso de seu descumprimento, como é também um princípio, a ser concretizado pelo Legislativo e pelo Executivo.

645 SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 35. 646 Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Tradução Ernest Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p .86. 647 Nesse sentido: OLIVEIRA, Robson Carlos de. O princípio constitucional da razoável duração do processo, explicitado pela EC n. 45 de 08.12.2004, e sua aplicação à execução civil: necessidade de que o Poder Judiciário através dessa norma-princípio flexibilize as regras jurídicas e passe a aplicálas, garantindo um efetivo e qualificado acesso à justiça. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al. (Coords.). Reforma do Judiciário: Primeiras Reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 655; GÓES, Gisele Santos Fernandes. Razoável Duração do Processo. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al. (Coords.). Reforma do Judiciário: Primeiras Reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 265.

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Fica evidenciada, portanto, a natureza multidimencional648 da norma expressa no inciso LXXVIII no artigo 5º. da Constituição Federal: de um lado, trata-se de uma regra, passível de ser aplicada em dado caso concreto; de outro, é um princípio, indicando um estado de coisas a ser alcançado.

3. Conteúdo do princípio da duração razoável do processo A expressão duração razoável do processo é indeterminada. São conceitos indeterminados aqueles cujo conteúdo é incerto aparecendo os mesmos quando “a lei refere uma esfera de realidade cujos limites não aparecem bem precisados em seu enunciado”.649 Em princípio, um processo com duração razoável é aquele em que há a justa ponderação entre o tempo necessário para o desenvolvimento de um procedimento contraditório, onde as partes possam exercer as posições ativas necessárias para garantir seu direito (ampla defesa), e o tempo dentro do qual foi apresentada a decisão pelo julgador. Como bem pondera José Rogério Cruz e Tucci, para que haja a violação ao direito a um processo sem dilações indevidas, a demora na solução da questão deve ser decorrente da inércia injustificada da autoridade julgadora.650

648 Sobre a “multidimensionalidade” nas normas jurídicas ver: ÁVILA, Humberto. Legalidade Tributária Multidimensional. In: FERRAZ, Roberto (Coord.). Princípios e Limites da Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 279-282. 649 Cf. ENTERRÍA, Eduardo Garcia de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. 10. ed. Madrid: Civitas, 2000. v. I. p. 457. Sobre os conceitos indeterminados, ver: ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução J. Baptista Machado. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 208-209. 650 Em suas palavras: “O reconhecimento desses critérios traz como imediata consequência a visualização das dilações indevidas como um conceito indeterminado e aberto, que impede de considerá-las como a simples inobservância dos prazos processuais pré-fixados. Assim, é evidente que se uma determinada questão envolve, por exemplo, a apuração de crimes de natureza fiscal ou econômica, a prova pericial a ser produzida poderá exigir muitas diligências que justificarão duração bem mais prolongada da fase instrutória. Também não poderão ser tachadas de ‘indevidas’ as dilações proporcionadas pela atuação dolosa da defesa, que, em algumas ocasiões, dá azo a incidentes processuais totalmente impertinentes e irrelevantes. E, ademais, é necessário que a demora, para ser reputada realmente inaceitável, decorra da inércia, pura e simples, do órgão jurisdicional encarregado de dirigir as diversas etapas do processo. É claro que o excesso de trabalho, a pletora de causas, não pode ser considerado como justificativa plausível para a lentidão da tutela jurisdicional” (CRUZ E TUCCI, José Rogério, Tempo e Processo, 1997, p. 68-69).

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Parece que uma das questões principais é definir a quem cabe determinar a duração razoável de um processo: ao legislador ou ao julgador. Ou seja, caberia ao legislador definir prazos para a razoável tramitação do processo, administrativo ou judicial, ou esta seria matéria que seria concretizada, diante de cada caso concreto?651 A primeira solução tende a ser a mais adequada para que a duração razoável do processo seja alcançada. Assim, caberia, em princípio, ao legislador determinar o tempo máximo de duração do processo, somente aceitando-se o seu desrespeito em situações onde a complexidade da matéria (questões de fato e de direito), o comportamento das partes ou outras circunstâncias fossem responsáveis pela dilação indevida. Isso, de fato, não é nenhuma novidade, estando a legislação processual, tanto a regente dos processos desenvolvidos perante o Poder Judiciário como a regente dos processos administrativos, povoada de prazos a serem observados pelos julgadores. Por exemplo, a Lei nº 11.457, de 16 de março de 2007, que criou a “Super Receita”, estabeleceu em seu artigo 24 que “é obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte”. Todavia, a referida lei não estabeleceu quaisquer sanções para o caso do descumprimento do prazo. Como se sabe, tais prazos são denominados impróprios, já que são prazos em relação aos quais não se opera a preclusão temporal.652 O mais importante, portanto, não é a previsão dos prazos em si, mas sim a determinação da consequência pelo seu descumprimento. Fala-se muito da responsabilização do Estado por danos causados em decorrência da demora injustificada do processo. Todavia, se a finalidade é alcançar a duração razoável do processo parece-nos importar mais a existência de meios de punição do julgador.653 Assim, é muito importante que o ônus por eventual responsabilização do Estado pela demora injustificada de processo administrativo ou judicial não re-

651 Sobre essa discussão, ver: NICOLITT, André Luiz, A Duração Razoável do Processo, 2006, p. 24-32. 652 Cf. ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 178; MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro: Administrativo e Judicial. São Paulo: Dialética, 2001. p. 258. 653 Cf. ROCHA, Sergio André Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 178-179. Destacando a importância da previsão de sanções aplicáveis ao agente administrativo, ver: FRAGA, Gabino. Derecho Administrativo. 14. ed. Mexico: Porrua, 1971. p. 276.

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caia sobre os cofres públicos tão somente, mas que se busque, junto ao causador do dano, alguma reparação pela indenização custeada por toda a sociedade.

4. Duração razoável do processo e impossibilidade material de um processo sem dilações indevidas: Os direitos e seu custo Na passagem de José Rogério Cruz e Tucci transcrita na nota de rodapé 11, sustenta o professor que as condições materiais em que se desenvolve o processo (“o excesso de trabalho, a pletora de causas”) não servem de escusa para a demora do término do processo. Uma interpretação extremada de tal orientação desconsideraria questão de ordem financeiro-econômica relevante, que pode ser sintetizada na sugestiva frase de Flávio Galdino: direitos não nascem em árvores.654 Ora, considerando a premissa básica de que os recursos financeiros do Estado são limitados, ao se buscar definir a duração razoável do processo é imperioso que se leve em consideração a capacidade das cortes judiciais e administrativas, tendo por pauta sua estrutura e a capacidade de investimento na melhora de seus serviços. Há que se considerar, portanto, que o direito a um processo, administrativo ou judicial que se desenvolva em um prazo razoável concorre por dotações orçamentárias, por exemplo, com os direitos à educação e à saúde. Dessa forma, não se pode, de maneira alguma, tratar a questão da duração razoável do processo sem a consideração da capacidade material de prestação de serviços dos órgãos julgadores jurisdicionais e administrativos, da mesma maneira que a questão não pode ser pensada como se o Estado tivesse uma capacidade ilimitada de investimento no custeio dos processos judiciais e administrativos.

5. Duração razoável e processo administrativo fiscal Ao tratarmos da duração razoável do processo administrativo fiscal é importante ter em mente a natureza ambivalente das relações fisco-contribuinte. 654 GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. Sobre esta questão, ver também: AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha: Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton & Company, 1999.

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De fato, considerando, de um lado, o dever tributário como um dever fundamental de cujo adimplemento depende a realização dos fins constitucionais do Estado e, de outro lado, a necessidade de garantia do direito fundamental dos contribuintes a não serem tributados além do permitido pela Constituição Federal, verifica-se a inafastável ambivalência do relacionamento das autoridades fiscais com os contribuintes, de modo que não há como tomar-se posições apriorísticas em favor de um ou de outro.655 É com essas ponderações em mente que se deve examinar o princípio da duração razoável do processo administrativo fiscal. Considerando o lado dos contribuintes, quando se está diante de auto de infração contrário às disposições legais ou na pendência de consulta cuja resposta é relevante para a correta tomada de decisões pela empresa ou pessoa física, a demora desfecho do processo tem consequências bastante negativas,656 como: (a) o aumento de despesas com a representação jurídica; (b) os riscos atrelados a eventuais erros da Administração Fazendária, principalmente para os contribuintes que necessitam comprovar sua regularidade fiscal; e (c) impossibilidade de se adotar medidas gerenciais necessárias para a compatibilização entre os procedimentos da empresa e o entendimento das autoridades fiscais sobre a questão objeto do processo. Por outro lado, como se sabe, a apresentação de impugnação contra auto de infração tem como efeito a suspensão da exigibilidade do crédito tributário (artigo 151, III, do Código Tributário Nacional). A seu turno, a apresentação de consulta fiscal antes da ocorrência do fato gerador acarreta tanto a impossibilidade de instauração de procedimento de fiscalização em relação à matéria consultada (artigo 48 do Decreto nº 70.235/72) como a suspensão da fluência dos juros de mora (artigo 161 do Código Tributário Nacional). Ou seja, nos casos em que válido o auto de infração ou em que a resposta à consulta geraria a obrigação de pagamento de tributos pelo contribuinte, a demora do processo causa uma perda financeira que acaba por ser repartida pela coletividade como um todo. O princípio da duração razoável do processo administrativo fiscal, portanto, não pode ser compreendido como sendo afeto apenas à proteção do contribuinte con655 Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 402-403. 656 Ver: PIRES, Adilson Rodrigues. Algumas Reflexões sobre o Processo Administrativo Fiscal. Prazo para Conclusão do Processo em Primeira e Segunda Instâncias. In: ROCHA, Sergio André Rocha (Coord.). Processo Administrativo Fiscal: Estudos em Homenagem ao Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 37.

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tra o silêncio da Administração Pública,657 significando também a garantia de que os cofres públicos não serão empobrecidos pela duração indevida do processo.

6. Instrumentos para a garantia da duração razoável do processo administrativo fiscal Cumpre agora examinarmos algumas medidas que poderiam ser utilizadas para a concretização do princípio da duração razoável do processo administrativo fiscal, entre as quais poderiam ser cogitadas as seguintes: (a) a previsão de prazos, com sanção ao servidor no caso de descumprimento e suspensão da fluência dos juros moratórios; (b) a previsão de limites de alçada para a interposição de recursos; (c) a uniformização dos critérios decisórios e a vinculação dos órgãos de aplicação; (d) o reconhecimento do direito do contribuinte em razão da inércia da autoridade administrativa; (e) a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal; e (f) a adoção de medidas para evitar a corrupção na atividade de fiscalização tributária.

6.1. Previsão de prazos, com sanção ao servidor no caso de descumprimento e suspensão dos juros de mora Como mencionado anteriormente, uma das formas de se assegurar a tramitação do processo em um prazo razoável é a previsão legal de prazos para a prática de atos processuais. Embora tais prazos não ensejem a ocorrência da preclusão temporal (ou seja, o descumprimento do prazo não afasta o dever da Administração Pública de decidir), é imperioso que a injustificada perda do prazo pelo servidor responsável acarrete-lhe alguma sanção. É de se evitar, portanto, que a responsabilização civil do Estado seja a única forma de sancionamento em decorrência da violação ao direito a um processo administrativo com prazo razoável, transferindo-se para coletividade o ônus da falta de diligência do servidor.658

657 Sobre o silêncio da Administração Pública, ver: ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 176-179. 658 Ver, também: BRANDÃO, Cláudio. O Controle das Omissões e do Silêncio da Administração Pública. In: OSÓRIO, Fábio Medina; SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo: Estudos em Homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 13-14.

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O Professor Adilson Rodrigues Pires dá notícia de Projeto de Lei que “propõe a fixação de prazos para a conclusão dos processos administrativos sob pena de ‘suspensão da fluência dos juros de mora ou de multa moratória’”.659 Segundo sua opinião, “a iniciativa há de ser acolhida, sobretudo quando se leva em conta que, segundo a proposta, fica suspensa a incidência de correção monetária sobre o valor original da dívida discutida. Somente assim o contribuinte conseguirá se livrar da árdua e desproporcional obrigação de pagar dívida em valor que supera, em muito, o apurado no início da discussão”.660 Concordamos com o citado autor quanto à pertinência de medida neste sentido. Apenas reiteramos, todavia, que em um caso em que o tributo cobrado fosse efetivamente devido, a interrupção da fluência dos juros representaria uma sangria indevida dos cofres públicos, a clamar a responsabilização do servidor que lhe der causa. Vê-se, portanto, que a regra contida no novel artigo 24 da Lei nº 11.457/07, que criou a “Super Receita”, não é por si só bastante para a garantia de um processo administrativo fiscal com uma duração razoável, sendo necessário que se regulamentem as consequências do descumprimento do prazo de 360 dias lá previsto para que seja proferida a decisão administrativa.

6.2. Limites de alçada para recurso Questão que merece ser examinada consiste na possibilidade de se estabelecerem limites de alçada para a interposição de recurso no âmbito do processo administrativo fiscal. Foi isso que se tentou quando da edição da Medida Provisória nº 232, de 30 de dezembro de 2004, a qual, em seu artigo 10, previa o julgamento em instância única, pelas Delegacias da Receita Federal de Julgamento, dos processos de exigência de crédito tributário de valor inferior a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), assim considerado principal e multa de ofício. Como se sabe, a maioria dos dispositivos da referida Medida Provisória não foram incluídos em sua lei de conversão, de número 11.119, a qual foi publicada na imprensa oficial em 17 de maio de 2005. 659 PIRES, Adilson Rodrigues, Algumas Reflexões sobre o Processo Administrativo Fiscal. Prazo para Conclusão do Processo em Primeira e Segunda Instâncias, 2006, p. 40. 660 PIRES, Adilson Rodrigues, Algumas Reflexões sobre o Processo Administrativo Fiscal. Prazo para Conclusão do Processo em Primeira e Segunda Instâncias, 2006, p. 40.

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Entre os dispositivos não acolhidos pela lei de conversão encontram-se os que tratavam do processo administrativo fiscal, inclusive aquele que limitava o acesso aos Conselhos de Contribuintes. Tanto assim que o artigo 4º da Lei nº 11.119/2005 reabriu os prazos para a interposição de recursos que, em razão do disposto na Medida Provisória nº 232/2004, porventura não tivessem sido interpostos. Analisando este dispositivo em outra oportunidade, manifestei-me pela sua inconstitucionalidade, por entender que o mesmo viola os princípios da ampla defesa, do duplo grau de cognição e, principalmente, da isonomia. Com efeito, embora reconheça a possibilidade de se prever instância única para a apreciação de processos administrativos fiscais, o entendimento que defendo é no sentido de que tal instância deveria ser sempre a última, e não a mais subalterna.661 Assim, se há no sistema cortes de julgamento diferenciadas em razão de sua experiência técnica, não nos parece que se encontra em conformidade com os princípios da ampla defesa e do duplo grau de cognição reservar tais cortes apenas para os contribuintes que se sujeitam a exigências fiscais de valores elevados, os quais, de regra, tem maiores condições financeiras. Não se pode esquecer aqui que os custos do processo administrativo são normalmente menores para o contribuinte do que aqueles envolvidos em um processo judicial, principalmente em razão da desnecessidade de representação por advogado. Por outro lado, também não se pode olvidar que estatisticamente as chances de êxito administrativo na primeira instância são significativamente inferiores às chances de êxito na segunda instância. Até porque, conforme estabelece o artigo 7º, inciso V, da Portaria MF nº 341/2011, na esfera federal os julgadores das Delegacias de Julgamento encontram-se vinculados ao “entendimento da RFB expresso em atos normativos”. Dessa forma, negar o acesso aos Conselhos de Contribuintes para toda uma casta de contribuintes significa fechar para estes as portas para uma solução menos onerosa da controvérsia instaurada com a Fazenda.662 Consequência de tudo quanto se disse acima é a incompatibilidade da limitação de que se cogita com o princípio da isonomia. 661 Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 125. 662 Destacando o bom trabalho realizado pelos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda: BOITEUX, Fernando Netto. Os Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda e seu Regime Jurídico. In: ROCHA, Sergio André Rocha (Coord.). Processo Administrativo Fiscal: Estudos em Homenagem ao Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 180-181.

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De fato, no caso em exame parece inexistir um vínculo de correlação lógica entre a limitação pretendida e o fator de discriminação escolhido, razão pela qual a mesma seria também incompatível com o princípio da isonomia. A inconstitucionalidade da regra constante no artigo 10 da Medida Provisória nº 232/04 não significa, todavia, que não seja possível a utilização de limites de alçada como instrumento de redução do número de processos apreciados na segunda instância e, consequentemente, instrumento de redução do tempo dos processos. O grande problema da mencionada regra foi o fator de discriminação selecionado. Ora, parece-me que tal problema seria solucionado se o critério de exclusão eleito pela legislação fosse proporcional, alcançando a todos. Poder-se-ia determinar, por exemplo, que não seria possível a apresentação de recurso nos casos em que o valor total envolvido fosse inferior a um percentual do ativo permanente ou do patrimônio líquido da empresa ou do patrimônio da pessoa física. Regra nesse sentido seria compatível com a Constituição, na medida em que traria uma limitação justificável em razão dos princípios da eficiência e da duração razoável do processo, que neste caso sairiam vitoriosos em uma ponderação com a ampla defesa e o duplo grau, ao mesmo tempo em que se mostraria compatível com o princípio da isonomia.

6.3. Uniformização dos critérios decisórios e vinculação dos órgãos de aplicação Um dos instrumentos para a redução do tempo do processo é a uniformização das decisões dos órgãos administrativos de julgamento, com a sua aplicação vinculante às autoridades fiscais. Uma vez uniformizados os critérios jurídicos acerca da interpretação/aplicação da legislação tributária em dada situação, é importante que haja mecanismos que vinculem as autoridades fazendárias de fiscalização a tais critérios, de forma a evitar novas autuações sobre a mesma matéria. Esse foi o objetivo que orientou a inclusão dos artigos 72 a 75 no Anexo II do Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, os quais estabelecem a possibilidade de edição de súmulas, pelo Pleno e pelas Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais. 279

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Importa mencionar que há autores, como Eduardo Bottallo, que criticam a possibilidade de tais súmulas. Para o citado Professor, a atribuição de efeitos vinculantes às súmulas faz com que as mesmas deixem de ter efeitos meramente persuasivos, como seria aconselhável, investindo o órgão que as edita de inconveniente Poder Legislativo.663 Além disso, sustenta Eduardo Bottallo que “a função administrativa judicante apresenta expressiva identificação com a atividade jurisdicional. Tal circunstância acentua seu sentido de independência: os órgãos encarregados de seu exercício estão investidos de plena competência para examinar e solucionar as questões que lhes são submetidas, rigorosamente de acordo com o Direito aplicável, com total isenção e libertos do princípio da hierarquia, que, sob distintos fundamentos e a outros propósitos, se faz presente em alguns setores da Administração Pública”.664 Partindo dessa assertiva, sustenta o Professor que o império das súmulas não se presta ao alcance dos desideratos acima mencionados. Embora reconheça a pertinência das críticas apresentadas pelo Professor Eduardo Bottallo, entendo que devemos lutar pelo processo administrativo fiscal possível, o qual certamente não equivale ao processo administrativo fiscal ideal. Como venho destacando em alguns estudos, característica fundamental de um sistema tributário de massas é a transferência das atividades de apuração e recolhimento dos tributos para os contribuintes, responsáveis pela interpretação/aplicação da legislação tributária.665 Característica dessa sistemática, a qual, diga-se, é a atualmente vigente na maioria dos estados ocidentais contemporâneos, é o crescimento das controvérsias entre Fisco e contribuintes.666 Dessa forma, é possível prever a manutenção de grandes números de processos fiscais, tanto administrativos quanto judiciais, sendo que em um sistema massifica-

663 BOTTALLO, Eduardo. Súmulas Obrigatórias do Primeiro Conselho de Contribuintes e Direitos dos Administrados. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário – 10º Volume. São Paulo: Dialética, 2006. p. 63-64. 664 BOTTALLO, Eduardo. Curso de Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 62. 665 Sobre o tema, ver: Cf. ROCHA, Sergio André, Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário, 2010, p. 295-315. 666 Cf. ROCHA, Sergio André. Meios Alternativos de Solução de Conflitos no Direito Tributário Brasileiro. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, v. 122, nov. 2005, p. 98; FERREIRO LAPATZA, José Juan. Solución Convencional de Conflictos en el Ámbito Tributario. In: TÔRRES, Heleno (Coord.). Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2004. v. II. p. 295.

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do de processos não é possível, infelizmente, que cada caso seja apreciado de forma individualizada, desconsiderando que, em matéria tributária, a repetição é a tônica. Seguindo essa linha de entendimentos, parece que a edição de súmulas vinculantes no campo do processo administrativo fiscal encontra-se em linha com o princípio da duração razoável do processo, sendo instrumento de garantia da efetividade do processo administrativo fiscal possível.

6.4. Reconhecimento do direito do contribuinte Um outro instrumento que pode ser utilizado para a garantia da celeridade processual é o reconhecimento do direito do contribuinte, com a inversão da tarefa de demonstração da ocorrência dos fatos objeto do processo e a atribuição de um efeito positivo ao silêncio administrativo.667 Uma situação que ilustra bem este caso é a relativa ao procedimento de habilitação de créditos decorrentes de decisão judicial para fins de sua compensação, restituição ou ressarcimento. Conforme prevê o artigo 82 da Instrução Normativa nº 1.300/2012, “na hipótese de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado, a Declaração de Compensação será recepcionada pela RFB somente depois de prévia habilitação do crédito pela DRF, Derat, Demac/RJ ou Deinf com jurisdição sobre o domicílio tributário do sujeito passivo”. De acordo com o § 3º deste mesmo artigo, a Fazenda tem um prazo de 30 dias para decidir sobre a habilitação do crédito. Contudo, não há qualquer previsão a respeito das consequências da eventual perda deste prazo. Creio que na presente situação a melhor alternativa seria o reconhecimento automático da habilitação do crédito após o decurso do prazo de 30 dias, garantindo-se à Fazenda, por óbvio, o direito à posterior verificação do crédito habilitado, isso no âmbito de sua atividade de fiscalização e dentro dos limites do prazo decadencial.

6.5. Prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal Em estudo específico acerca do instituto da prescrição, deixei assentada definição no sentido de que esta corresponde à “convalescença da lesão com a

667 Cf. BRANDÃO, Cláudio, O Controle das Omissões e do Silêncio da Administração Pública, 2006, p. 9.

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conseqüente mutilação da pretensão de direito material quanto à realização de um direito subjetivo”.668 Como fiz questão de frisar naquela oportunidade, a prescrição não tem nada que ver com o direito de ação, fulminando, como reconhece hoje o artigo 189 do Código Civil, a pretensão quanto ao exercício do direito. Nesta assentada, vê-se bem que para que se possa falar em prescrição é imperioso que se tenha tido uma lesão a um direito, sem a qual não se pode falar no nascimento da pretensão do seu sujeito ativo. Assim sendo, entendo que não há que se falar em qualquer espécie de prescrição no curso do processo administrativo fiscal, já que, suspensa a exigibilidade do crédito tributário pela impugnação, não há, para a Fazenda, a possibilidade do exercício de sua pretensão.669 Há autores, todavia, que sustentam a aplicabilidade da prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal, podendo-se citar os nomes de Marcos Rogério Lyrio Pimenta,670 Djalma Bittar671 e Hugo de Brito Machado Segundo.672 Consciente da impossibilidade de se arguir a ocorrência da prescrição nesta situação, Hugo de Brito Machado Segundo, que, em linha com a doutrina de Marco Aurélio Greco prefere falar na preclusão do direito da Fazenda, sustenta que neste caso o que há é o abandono do processo.673 Concordo com o citado autor quando afirma que o fundamento da preclusão aqui seria o abandono do processo. Contudo, discordo da conclusão alcançada. De fato, é certamente um meio para se alcançar a duração razoável do processo que se estabeleça a preclusão do direito da Fazenda de prosseguir com

668 ROCHA, Sergio André. Alguns Apontamentos sobre os Institutos da Prescrição e da Decadência. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 7. out. 2003, p. 95. 669 Nesse sentido: DE SANTI, Eurico Marcos Diniz. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 239; FEITOSA, Celso Alves. A Questão da “Prescrição Intercorrente” no Processo Administrativo Fiscal. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 94, jul. 2003, p. 18-21; SOARES DE MELLO, José Eduardo. Processo Tributário Administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 160. 670 PIMENTA, Marcos Rogério Lyrio. A Prescrição Intercorrente no Processo Administrativo Tributário. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 71, ago. 2001, p. 126. 671 BITTAR, Djalma. Prescrição Intercorrente em Processo Administrativo de Consolidação do Crédito Tributário. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 92, set. 2001, p. 22. 672 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo Tributário. São Paulo: Atlas, 2004. p. 202-206. 673 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito, Processo Tributário, 2004, p. 205.

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o processo administrativo nas hipóteses em a mesma tenha abandonado o processo, e apenas nessas hipóteses. Nada obstante, há que se reconhecer que, embora tal saída seja viável e até mesmo indicada para concretização da duração razoável do processo administrativo fiscal, a mesma não se encontra prevista na legislação, não sendo a preclusão do direito da Fazenda ao processo administrativo fiscal causa de extinção do crédito tributário. Tanto é assim que os defensores da tese da prescrição intercorrente/preclusão acabam por evocar o inciso V do artigo 156 do Código Tributário Nacional (prescrição e decadência) para suportar a extinção do crédito tributário. Como afirmado anteriormente, não se tratando aqui de prescrição ou decadência parece inaplicável o referido dispositivo do Código. Assim, é possível concluir que a legislação em vigor não estabelece a possibilidade da prescrição intercorrente no curso do processo administrativo fiscal, sendo indicado, portanto, que se venha a consagrar na legislação a preclusão do direito da Fazenda nos casos de abandono, pela mesma, do processo. Tal previsão certamente seria um instrumento de concretização do princípio da duração razoável do processo.

6.6. A adoção de medidas para evitar a corrupção na atividade de fiscalização tributária Como se sabe, não são insignificantes os níveis de corrupção no âmbito da fiscalização tributária, sendo que não raro autos de infração são lavrados tendo em vista não a arrecadação de tributos, mas a satisfação de interesses pessoais da autoridade autuante. A lavratura desses autos de infração e a sua contestação pelo contribuinte acarretam um aumento do número de processos, o que certamente tem impactos sobre a duração do processo administrativo fiscal. Em outro trabalho, analisei esta questão detidamente, apresentando e discutindo medidas que poderiam ser adotadas para que tal problema fosse sanado.674 674 Tais medidas compreenderiam: 1. um melhor controle preventivo da lavratura de autos de infração; 2. a revitalização do processo administrativo; 3. a redução do custo do processo administrativo; 4. a instituição de um controle ulterior das autuações fiscais posteriormente consideradas improcedentes pela própria Administração; 5. a criação de mecanismos para um controle mais próximo da atividade de arrecadação tributária pelo Ministério Público; 6. a modificação da sistemática de controle jurisdicional da legalidade dos atos administrativos, de forma que este se torne mais adequado ao cumprimento de suas finalidades

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O estudo e a adoção de medidas que reduzam a corrupção da atividade de fiscalização tributária terá certamente um impacto positivo sobre o funcionamento dos órgãos de julgamento e, por via de consequência, sobre o tempo de tramitação do processo administrativo fiscal.

7. Conclusão O propósito deste estudo foi examinar o princípio/direito da duração razoável do processo, especialmente do processo administrativo fiscal. Embora a exigência de eficiência processual não seja novidade, espera-se que a sua previsão constitucional aumente os esforços para sua concretização prática, para o que é importante que estudemos e pesquisemos a respeitos dos mecanismos que podem favorecer a realização de um processo administrativo fiscal sem dilações indevidas.

A Contabilidade como Prova no Processo Administrativo Fiscal675 (2010)

1. Delineamentos preliminares sobre o conceito de prova O direito, se visto como um conjunto de proposições prescritivas que visam determinar o comportamento humano, está sempre na dependência da demonstração da ocorrência de determinados fatos, os quais se encontram previstos nas hipóteses de incidência das normas jurídicas. Ocorre que os fatos em si, uma vez verificados em determinado momento no tempo, se exaurem, não havendo meios para emprestar-lhes nova vida. Entretanto, a interpretação/aplicação das regras jurídicas depende da verificação da ocorrência dos fatos, o que faz com que seja necessário ter-se no ordenamento jurídico mecanismos que viabilizem a descoberta das circunstâncias em que tais fatos aconteceram. Esses mecanismos são as provas.676 Normalmente, o conceito de prova vem vinculado à descoberta da verdade acerca dos fatos trazidos ao processo, daí a dicotomia entre as denominadas verdades formal e material em matéria processual. Entretanto, a própria natureza efêmera dos fatos, antes afirmada, torna despicienda a discussão, na medida em que a verdade material pretendida pelos processualistas mostra-se impossível de ser alcançada. Como afirmam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart “seja no processo, seja em outros campos científicos, jamais se poderá afirmar, com segurança absoluta, que o produto encontrado corresponde à verdade. Realmente, a essência da verdade é inatingível (ou ao menos o é a certeza da aquisição desta)”.677 675 Texto elaborado antes da edição da Lei n. 12.973/14.

institucionais; 7. o estabelecimento de regras que pautem a emissão de certidões pelas autoridades fazendárias, de forma a proteger os direitos dos contribuintes; 8. a criação de instrumentos que reduzam o sentimento de impunidade que paira sobre as atividades ilícitas muitas vezes desenvolvidas pela fiscalização; e 9. a responsabilização do Estado pelos danos causados aos contribuintes pela má-atuação de seus servidores na área tributária (ROCHA, Sergio André. Ética da Administração Fazendária e o Processo Administrativo Fiscal. In: ROCHA, Sergio André Rocha (Coord.). Processo Administrativo Fiscal: Estudos em Homenagem ao Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 638-653).

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676 Para um estudo mais aprofundado da prova no processo administrativo fiscal, ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 159-188. 677 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento: A Tutela Jurisdicional Através do Processo de Conhecimento, 2001. p. 279. Sobre essa questão, vale a pena mencionar o magistério de Eros Roberto Grau: “A realidade (realidade da qual tomamos consciência) é o que aparenta ser (se apresenta = “presenta”) para cada consciência. Diante de um

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Dessa forma, tem-se que a prova não se afigura como instrumento para a demonstração da verdade acerca de determinado fato, servindo, isso sim, para formar no julgador a convicção quanto à sua ocorrência, a qual será sempre, espera-se, verossímil, mas nunca absolutamente verdadeira (ou ao menos não é absolutamente verdadeira a certeza da apreensão de sua verdade).678 Trazendo à baila o magistério de Piero Calamandrei, que mesmo longo merece ser transcrito integralmente: [...] todas as provas, se bem examinadas, não são mais que provas de verossimilhança. Esta afirmação de relativismo processual, feita em relação ao processo civil por um grande jurista [Wach], pode valer igualmente não só para o processo penal, mas também fora do campo mais diretamente processual, para todo juízo histórico acerca de fatos que se dizem ocorridos: quando se diz que um fato é verídico, em substância se quer dizer que atingiu, na consciência de quem como tal julga, aquele grau máximo de verossimilhança que, em relação aos limitados meios de conhecimento de que o julgador dispõe, basta para dar-lhe a certeza subjetiva de que aquele fato aconteceu. Falo, entendamos, não das verdades lógicas ou morais, e sim das verdades dos fatos ocorridos, das verdades chamadas históricas, a respeito das quais já observava Voltaire que “lês vérités historiques ne sont que desprobalités” (“as verdades históricas nada mais são que improbabilidades”). Todo o sistema probatório civil está preordenado não só a consentir, mas diretamente a impor ao juiz que se satisfaça, ao julgar acerca dos fatos, com

objeto qualquer, minha consciência recebe o impacto do que ele representa (como ele se apresenta), para mim. Posso dizer, então, que minha consciência vê os objetos exteriores como eles são, visto que eles são (para nós), nas suas manifestações (aparições), absolutamente indicativos de si mesmos. Como, porém, os objetos e a realidade existem em suas manifestações (aparições) para mim, jamais os descrevo – os objetos e a realidade; descrevo apenas o modo sob o qual eles se manifestam (= o que representam) para mim” (O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 15). No mesmo sentido: SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. I. p. 338. Para um estudo mais profundo sobre o tema, ver: TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005. p. 1-35. 678 Segundo os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, é de se assinalar que “a reconstrução de um fato ocorrido no passado sempre vem influenciada por aspectos subjetivos das pessoas que assistiram ao mesmo, ou ainda daquele que (como o juiz) há de receber e valorar a existência concreta. Sempre, o sujeito que percebe uma informação (seja presenciando diretamente o fato, ou conhecendo-o de outro meio) altera o seu real conteúdo, absorve-o à sua maneira, acrescentando-lhe um toque pessoal que distorce (se é esta a palavra que pode ser utilizada) a realidade. Mais que isso, o julgador (ou o historiador, ou, enfim, quem quer que deva tentar reconstruir fatos do passado) jamais poderá excluir, terminantemente, a possibilidade de que as coisas tenham se passado de forma diversa àquela a que suas conclusões o levaram” (Manual do Processo de Conhecimento, 2001, p. 281).

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o sub-rogado da verdade que é a verossimilhança. Ao juiz não é permitido, como se dá com o historiador, que se mantenha em dúvida acerca dos fatos que tem de decidir; deve a todo custo (essa é sua função) resolver a controvérsia em uma certeza jurídica. Para consegui-lo, vê-se forçado como extrema ratio a contentar-se com aquela que alguns continuam denominando “verdade formal”, alcançada mediante o artifício das provas legais e o mecanismo autônomo da distribuição do ônus da prova; mas, mesmo que no sistema das provas “livres” possa parecer que a liberdade de avaliação seja o instrumento mais apropriado para a consecução da chamada “verdade substancial”, a avaliação, embora livre, leva sempre a um juízo de probabilidade e de verossimilhança, não de verdade absoluta. Ainda que todas as testemunhas estejam concordes em testemunhar um fato, o juiz, quando conclui que aquele fato é verdadeiro, em essência quer dizer, talvez sem que ele próprio perceba, que, como todas aquelas testemunhas estão de acordo em relatar o fato daquele modo, é verossímil que o fato tenha ocorrido precisamente assim [...]. Até nos casos, muito raros, em que o juiz pode “conhecer os fatos da causa” mediante a inspeção (art. 118, CPC), a percepção direta do fato, que lhe dá o máximo grau de certeza subjetiva, não basta para excluir que a verdade seja distinta do que, por erro dos sentidos, pode ter-lhe parecido. Mesmo para o juiz mais escrupuloso e atento vale o limite fatal de relatividade, próprio da natureza humana: o que vemos é apenas o que nos parece ver. Não verdade, não verossimilhança: ou seja, aparência (que pode ser também ilusão) de verdade.679

Nesse contexto, parece-nos correta a assertiva de Carnelutti, que, ao analisar o conceito de prova como sendo um meio legal para a demonstração da verdade de um fato, esclarece que: Uma definição deste gênero [no sentido de serem as provas meios idôneos para a demonstração da verdade dos fatos] não pode a rigor reputar-se inexata, porém, para não parecer como tal, deve ajudar-se com a metáfora que vimos utilizada na antítese entre verdade material e verdade formal: de fato, a verdade que se obtém com os meios legais somente pode ser a segunda e de maneira alguma a primeira. Dizer, portanto, que prova em sentido jurídico é a demonstração da verdade formal ou judicial, ou dizer, entretanto, que é a determinação formal dos fatos discutidos, é, no

679 CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed. Tradução Douglas Dias Ferreira. Campinas: Bookseller, 2003. v. III. p. 275-277.

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fundo, a mesma coisa: aquela é somente a expressão figurada e esta uma expressão direta de um conceito essencialmente idêntico.680

Diante do exposto, tem-se que o conceito de prova se encontra diretamente vinculado à formação da convicção do julgador681 quanto à existência e validade dos fatos trazidos à sua apreciação. Nota-se que ao se influenciar o entendimento do julgador quanto a determinado fato não se estará comprovando sua veracidade, mas a verossimilhança de sua ocorrência. Diante do exposto, é possível delinear conceito de prova como sendo o meio utilizado para, a partir da representação de um determinado fato, se formar a convicção daquele que haja de proferir decisão no âmbito de relação jurídica processual. Feitos esses comentários introdutórios, e uma vez afirmado que as provas não se prestam à demonstração absoluta dos fatos que se pretende provar, cumpre-nos analisar o princípio da verdade material e sua aplicação e alcance no Processo Administrativo Fiscal.

2. O Princípio da Verdade Material A análise do conteúdo do princípio da verdade material deve ser conciliada com as assertivas apresentadas acima. Com efeito, partindo-se da premissa de que a pretensão pela descoberta objetiva e infalível da verdade é vã, tem-se que o princípio em comento não pode significar a exigência de que, no âmbito do processo administrativo, tal verdade seja necessariamente alcançada. Dessa forma, o princípio da verdade material, corolário da própria imposição da legalidade dos atos administrativos, determina uma tripla exigência: a) que se demonstre, com maior grau de verossimilhança possível, a veracidade dos fatos 680 CARNELUTTI, Francesco. A Prova Civil. Tradução Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2001. p. 72-73. Sobre o tema ver, também, BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y Verdad en el Derecho. Barcelona: Marcial Pons, 2002. p. 71-88; ECHANDÍA, Hernando Devis. Teoria General del Proceso: Aplicable a toda clase de procesos. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Universitaria, 1997. p. 59. Em sentido contrário, defendendo que o processo em geral “dirige-se a conseguir uma decisão sobre os fatos de algum modo verdadeira”, ver: TARUFFO, Michele. La Prueba de los Hechos. Tradução Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Editorial Trotta, 2002. p. 56-71. 681 Cf. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1998. v. III. p. 109; ECHANDÍA, Hernando Devis. Teoria General de la Prueba Judicial. Buenos Aires: Víctor P. de Zavalía Editor, 1972. p. 34.

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alegados no âmbito do processo; b) limitando-se as situações em que se presume a ocorrência dos fatos relevantes; c) sendo deferido às partes o direito de produzir as provas necessárias para bem demonstrar a procedência de suas alegações. É exatamente no contexto dessa tripla vertente que a verdade material se vincula ao princípio da legalidade, na medida em que tem por finalidade garantir que a Administração Pública envidará esforços para demonstrar a ocorrência dos fatos tributáveis, somente podendo promover a incidência da regra jurídica caso formada a convicção quanto à ocorrência de sua hipótese.682 Tendo em vista que a Administração Pública, exercendo uma função em sentido jurídico,683 tem por finalidade sempre a aplicação dos mandamentos legais, impõe-se, pelo princípio da verdade material, que ela não fique adstrita às alegações e provas trazidas aos autos do processo pelas partes, podendo ela mesma, no exercício de suas atividades, determinar a produção das provas que entenda necessárias à formação de sua convicção quanto à ocorrência de determinado fato.684 Conforme notado por Mary Elbe Queiroz, as autoridades administrativas “têm plena liberdade para colher as provas que entenderem necessárias à demonstração da ocorrência, ou não do fato jurídico-tributário”.685 Portanto, o aspecto mais importante relacionado ao princípio da verdade material consiste no dever de provar da Administração Pública, não podendo, como

682 Cf. XAVIER, Alberto, Do Lançamento: Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 121; FIGUEIREDO, Lucia Valle. Estudos de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 96. 683 ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 20. 684 Cf. MEDAUAR, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 121. 685 QUEIROZ, Mary Elbe. Do lançamento Tributário – Execução e Controle. São Paulo: Dialética, 1999. p. 107. No mesmo sentido, ver texto mais recente da autora: QUEIROZ, Mary Elbe. Princípios que Norteiam a Constituição e o Controle Administrativo do Crédito Tributário. In: TÔRRES, Heleno (Coord.). Teoria Geral da Obrigação Tributária: estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 492. Nas palavras de Leandro Paulsen, René Bergmann Ávila e Ingrid Schroder Sliwka: “O processo administrativo é regido pelo princípio da verdade material. Segundo esse princípio, a autoridade julgadora deverá buscar a realidade dos fatos, conforme ocorrida, e para tal, ao formar sua livre convicção na apreciação dos fatos, poderá julgar conveniente a realização de diligências que considere necessárias à complementação da prova ou ao esclarecimento de dúvida relativa aos fatos trazidos ao processo. [...]” (PAULSEN, Leandro; ÁVILA, René Bergmann; SLIWKA, Ingrid Schroder. Direito Processual Tributário. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 29).

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regra geral, a aplicação da regra jurídica pela autoridade administrativa ter fundamento em mera presunção ou ficção da ocorrência de sua hipótese de incidência. É possível afirmar, assim, que o princípio da verdade material impõe às autoridades administrativas o dever de investigar as circunstâncias em que determinado fato ocorreu, a fim de verificar se o mesmo é relevante para fins jurídicos.686 Por outro lado, em razão da já mencionada conexão do princípio em comento com a imperiosa observância das disposições legais, a verdade material cobre as provas apresentadas pelos administrados de certa relatividade, uma vez que a autoridade julgadora não está adstrita às mesmas para a formação de sua convicção.

3. Ônus da Prova e “Dever de Provar” Como se pode inferir das lições de Carnelutti, o ônus se diferencia de um dever na medida em que (1) quando alguém deixa de adimplir um seu dever lesiona o direito de alguém, sendo-lhe imputável uma sanção, enquanto que a não-realização de um ônus apenas faz com que a parte não alcance os efeitos úteis que o mesmo lhe traria, sujeitando-se, inclusive, a efeitos negativos advindos de tal abstenção; e (2) o dever tutela um direito alheio, enquanto o ônus refere-se ao exercício de um direito da própria parte.687 A partir dessa noção de ônus, nota-se que, no âmbito do processo administrativo de controle da legalidade de atos emanados pela Administração, não há que se falar na existência de ônus das autoridades administrativas em provar os fatos que deram origem à emissão do ato impugnado. Com efeito, como visto acima, a autoridade administrativa tem o “dever de provar” os fatos pela mesma

686 Cf. SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo Tributário: A Função Fiscal. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 46. 687 Nesse sentido, ver os comentários de Giacomo P. Augenti, em apêndice à já citada obra de Carnelutti, A Prova Civil, 2001, p. 255. Conforme salienta José Frederico Marques, “o ônus é um imperativo em função do próprio interesse daquele a quem é imposto. Descumprida a ordem legal contida num ônus, a consequência é um prejuízo para a pessoa que desatendeu ao preceito jurídico. No ônus, como esclarece Carnelutti, há a subordinação de um ou mais interesses do respectivo titular a outro interesse dele próprio que lhe é imposto para que o primeiro se faça condição da obtenção do segundo. A parte tem, por exemplo, ônus de propor a ação, se quer ver decidida sua pretensão. No ônus processual, deixa a lei à livre vontade da parte onerada o cumprimento do imperativo jurídico ou a consequência danosa do seu descumprimento, visto ser indiferente que o interessado atenda ou desatenda ao encargo que lhe pesa” (MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Millenium, 2000. v. II. p. 263).

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alegados (princípio da verdade material). Vale a pena destacar, nesse sentido, o entendimento de Alberto Xavier: Ao contrário do que entendia a antiga jurisprudência do Reichfinanzhof e do Supremo Tribunal Administrativo da Prússia, apoiada na doutrina por Rauschning, Berger e Louveaux, segundo a qual no procedimento de lançamento existiria uma repartição do ônus da prova semelhante à que vigora no processo civil, cabendo à Administração provar os fatos constitutivos do seu direito e ao contribuinte provar os fatos impeditivos, é hoje concepção dominante que não pode falar-se num ônus da prova o Fisco, nem em sentido material nem em sentido formal. Com efeito, se é certo que este se sujeita às consequências desfavoráveis resultantes da falta de prova, não o é menos que a averiguação da verdade material não é objeto de um simples ônus, mas de um dever jurídico. Trata-se, portanto, de um verdadeiro encargo da prova ou dever de investigação, que não se vê vantagem em designar por novos conceitos, ambíguos quanto à sua natureza jurídica, como o de ônus da prova objetivo (objektive Beweislast), ônus da probabilidade (Vermutunglast) ou situação, base ou condição da prova (Beweislagen).688

A seu turno, para o administrado há verdadeiro ônus de provar, uma vez que, não tendo o mesmo o dever de provar, submete-se a consequências negativas caso não logre demonstrar a procedência dos fatos pelo mesmo alegados. É importante salientarmos que muitas vezes se afirma, equivocadamente, que no âmbito do processo administrativo haveria uma transferência do ônus da prova da Administração para o administrado, sob a alegação de que o ato administrativo objeto do pedido de revisão gozaria de presunção de legitimidade. Tal assertiva não corresponde à melhor interpretação dos postulados fundamentais do processo administrativo. Nas palavras do Professor Paulo de Barros Carvalho: Com a evolução da doutrina, nos dias atuais, não se acredita mais na inversão da prova por força da presunção de legitimidade dos atos administrativos e tampouco se pensa que esse atributo exonera a Administração 688 Do Lançamento: Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário, 2002, p. 145-146. Em sentido contrário é o entendimento de Isso Chaitz Scherkerkewitz, para quem “a dilação probatória não é um dever, é um ônus. Não existe o dever, para nenhuma das partes, de provar algo. Apenas existe o ônus da prova, posto que quem não prova, não ganha” (SCHERKERKEWITZ, Isso Chaitz. Presunções e Ficções no Direito Tributário e no Direito Penal Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 154). Com a devida vênia, esse entendimento parte da premissa equivocada de que a Administração Pública teria disponibilidade sobre o direito em questão, podendo o servidor decidir se “quer ganhar ou não”.

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de provar as ocorrências que afirmar terem existido. Na própria configuração oficial do lançamento, a lei institui a necessidade de que o ato jurídico administrativo seja devidamente fundamentado, o que significa dizer que o Fisco tem que oferecer prova contundente de que o evento ocorreu na estrita conformidade da previsão genérica da hipótese normativa.689

Nessa ordem de raciocínio, a Administração não goza de ônus de provar a legalidade de seus atos, mas sim de verdadeiro dever de demonstrá-la. Assim, não há que se falar em transferência do ônus da prova da Administração para o administrado, sendo certo que, enquanto este tem mero ônus de provar os fatos que demonstram a ilegalidade e ilegitimidade do ato administrativo, aquela tem verdadeiro dever jurídico.690 É de se assinalar que quando se fala em dever de provar da Administração Pública se está referindo não ao dever de formar o convencimento do julgador quanto à verossimilhança de determinados fatos a partir de sua representação, mas sim no dever das autoridades administrativas de investigarem a verdade material lastreando os seus atos administrativos em representações idôneas dos fatos que se alega terem ocorrido. Conforme salienta o Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho, em perfeita síntese: A autoridade fiscal, ao desenvolver o dever de inspecionar a verdade dos fatos praticados pelo contribuinte, não está cumprindo um dever de provar no sentido jurisdicional (litigioso) de formar o convencimento do juiz, nem está se desincumbindo de qualquer “ônus de prova”, pois não tem interesse próprio a defender, está, isto sim, agindo por dever de ofí-

689 CARVALHO, Paulo de Barros. Notas sobre a Prova no Procedimento Administrativo Tributário. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (Coord.). Direito Tributário: Homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. II. p. 860. 690 No âmbito do processo administrativo federal, o dever da Administração Pública relativo à produção de provas pode ser inferido do disposto no art. 29 da Lei nº 9.784/99, que estabelece que: “Art. 29. As atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações probatórias”. A dicotomia entre o dever da Administração e o ônus do administrado resta ainda mais evidente diante da previsão insculpida no art. 36 desse mesmo diploma legal, cuja redação é a seguinte: “Art. 36. Cabe ao interessado a prova dos fatos que tenha alegado, sem prejuízo do dever atribuído ao órgão competente para a instrução e do disposto no art. 37 desta Lei”. Também afirmando o dever de provar que recai sobre a Administração Pública: QUEIROZ, Mary Elbe, Do Lançamento Tributário – Execução e Controle, 1999, p. 142; MARTINS, Natanael. A Questão do Ônus da Prova e do Contraditório no Contencioso Administrativo Federal. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Processo Administrativo Fiscal. São Paulo: Dialética, 1995, p. 113.

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cio para formar seu próprio convencimento quanto aos fatos que devem ser considerados para determinação do valor do tributo.691

Uma vez consignado que as provas são representações de fatos relevantes para determinação do conteúdo de determinadas relação jurídica, e que, o processo administrativo fiscal é regido pelo princípio da verdade material, que impõe à autoridade administrativa o dever de provar a ocorrência do fato gerador, cumpre-nos examinar qual o valor da escrituração contábil do contribuinte como instrumento de prova.

4. Do Valor Probatório dos Documentos Elaborados pelos Administrados no Processo Administrativo Fiscal Como já foi observado anteriormente, os fatos sobre os quais se aplicam as normas jurídicas, de regra, aconteceram no passado, sendo que dos mesmos não resta mais do que sua representação, a qual se dará por intermédio de algum dos chamados meios de prova. Nesse contexto, e tendo em conta especificamente as normas impositivas tributárias, verifica-se que os acontecimentos da vida eleitos pelo legislador para figurarem como hipóteses de incidência de deveres jurídicos de pagamento de tributos também ocorrem em determinado momento, exaurindo-se no primeiro instante seguinte à sua consumação.

691 SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Princípios de Direito Administrativo Tributário. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, n. 51, jul.-ago. 2003, p. 239. Nesse mesmo sentido, é pertinente trazer à colação o magistério de Diego Marín-Barnuevo Fabo que, com lastro em Carlos Palao Taboada, destaca que a atividade probatória desenvolvida no âmbito dos processos administrativos não equivale àquela realizada no âmbito do processo jurisdicional, citando Palao Taboada para concluir que esta corresponde a “uma atividade de comprovação e não de prova em sentido técnico”. Segundo Marín Barnuevo: “Através dessa afirmação, o que pretendia o citado autor era destacar que quando a Administração aplica uma norma tributária e exige o comprimento de obrigações tributárias, não prova (no sentido que outorga o Direito Processual ao termo) os fatos que justificam o ato de lançamento, mas sim se limita a comprovar sua existência. Para ele, a única atividade que poderia merecer a consideração de prova em sentido estrito é a que pode ter lugar em um momento posterior, em uma eventual revisão judicial de sua atuação. Assim chega à conclusão de que ‘no procedimento administrativo somente se pode falar de prova em sentido impróprio’”(FABO, Diego Marín-Barnuevo. La Distribución de la Carga de la Prueba en Derecho Tributario. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 58-59).

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Assim sendo, e de forma a preservar tais fatos para que as autoridades administrativas possam verificar a incidência fiscal sobre os mesmos, criam-se deveres instrumentais que devem ser adimplidos pelos sujeitos passivos, os quais têm por finalidade viabilizar a aludida verificação por parte da Administração Pública.692 O valor probatório da escrituração contábil e fiscal dos sujeitos passivos de obrigações jurídicas de natureza tributária deve ser analisado tendo-se em conta os princípios da legalidade693 e da verdade material. Ora, uma vez que a autoridade administrativa tem o dever de verificar se o fato ocorrido se subsume à norma jurídica que se pretende aplicar, não se pode pretender que a mesma reste vinculada às provas produzidas unilateralmente pelo administrado (no caso, o sujeito passivo tributário). Com efeito, como salienta Aurélio Pitanga Seixas Filho,694 se é verdade que os documentos particulares podem ser utilizados como prova contra aqueles que 692 Para Maurício Zockun, “uma norma jurídica instrumental será validamente produzida se prescrever condutas que tenham por finalidade prover a pessoa competente (que exerce a função de fiscalização) de informações a respeito (i) da ocorrência de fatos jurídicos que ensejam o nascimento de obrigações tributárias materiais; e (ii) seu adimplemento pelo sujeito passivo veiculado no mandamento da norma jurídica tributária. Por isso é que nas dobras dessas prescrições encontram-se os confins do ‘interesse’ da arrecadação e da fiscalização de tributos” (ZOCKUN, Maurício. Regime Jurídico da Obrigação Tributária Acessória. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 124). 693 Para uma leitura acerca dos atuais contornos do princípio da legalidade, ver: RIBEIRO, Ricardo Lodi; ROCHA, Sergio André (Coords.). Legalidade e Tipicidade no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2008. 694 Princípios Fundamentais de Direito Administrativo Tributário: A Função Fiscal, 2001, p. 56-57. A assertiva do Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho encontra fulcro em passagem de Luigi Einaudi, a seguir transcrita: “A lamentação é universal e não exclusiva de país algum: se todos declarassem a verdade, quanto mais moderados poderiam ser os impostos e quanto mais amplo o produto para o erário! [...] Quid est veritas? Desgraçadamente, o ideal que perseguem os defensores do imposto justo é um fantasma, um mito criado por uma variedade bastante tosca de razão racional: a razão contábil. Ao empregar este adjetivo, não queria dizer nada desagradável de uma classe de profissionais respeitável, necessária e utilíssima. O contador, que confecciona balanços segundo as regras indicadas pela sua disciplina, decantada por uma experiência secular e por técnicas refinadas, não deduz dos mesmos ilações estranhas ao seu próprio campo, que consiste em dar razão às variações verificadas dentro de certo intervalo de tempo no ativo e no passivo de sua empresa. O contador de quem falo é aquele que, das averiguações efetuadas, retira conclusões ultra vires em torno de algum significado das cifras tratadas. Não só se pode preparar, como veremos em seguida, para a mesma empresa e para o mesmo intervalo de tempo, balanços distintos e todos igualmente verdadeiros, segundo as finalidades perseguidas, como também os resultados obtidos devem ser interpretados distintamente, e sempre de um modo igualmente verdadeiro, segundo os fins – liquidação das relações entre os sócios durante a vida da empresa o no momento de sua liquidação, ou entre co-herdeiros, ou entre os proprietários e o fisco – para o que devem servir tais resultados” (EINAUDI, Luigi. Mitos e Paradojas de la Justicia Tributária. Tradução Gabriel Solé Villalonga. Barcelona: Ariel, 1963. p. 255-257).

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os elaboraram, não se afigura da mesma forma verdadeiro que tal documento possa servir de representação irrefutável de determinado fato perante terceiros. Note-se que o reconhecimento de uma liberdade ampla das autoridades administrativas fiscais para, analisando livre e motivadamente as provas relativas ao fato que se pretende provar, decidir quanto à sua ocorrência ou não, não pode significar, por outro lado, autorização para que a fiscalização tributária desconsidere arbitrariamente as provas produzidas pelo sujeito passivo (documentos contábeis e fiscais regularmente escriturados), valendo-se de prova indireta do acontecimento do fato por meio de arbitramento para definir o montante tributável. Nesse particular, é procedente a assertiva de Alberto Xavier: A existência de escrituração regular não constitui, pois, um limite aos poderes de investigação do Fisco, que pode socorrer-se de qualquer meio de prova para impugnar a veracidade dos fatos nela registrados, [...]. O que a existência da escrituração regular impede, isso sim, é a aplicação do mecanismo do arbitramento, na sua primeira fase de substituição da base de cálculo primária (lucro real) por uma base de cálculo subsidiária (receita bruta). Existindo escrituração regular, o Fisco está vinculado à sua adoção como base de prova da base de cálculo primária, podendo socorrer-se de outros meios probatórios para confirmar ou infirmar sua correspondência com a realidade.695

Dessa forma, é de se concluir que os documentos apresentados pelo sujeito passivo tributário como comprobatórios dos fatos relacionados com a existência ou circunstâncias de relação jurídica tributária devem ser sopesados juntamente com outros meios de prova que o julgador administrativo tenha à sua disposição, o que não significa, entretanto, que possam as mesmas ser desconsideradas pela Administração Pública sem justificativa razoável, uma vez que vigora a livre convicção motivada ou razoável do julgador, ou seja, este terá que declinar as razões que lhe fizeram dar preferência a determinada prova em detrimento de outra, sob pena de nulidade de sua decisão.696

695 Do Lançamento: Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário, 2002, p. 138. 696 Nesse sentido é a redação do art. 226 do Código Civil de 2002, que estabelece que: “Os livros e fichas dos empresários e sociedades provam contra as pessoas a que pertencem, e, em seu favor, quando, escriturados sem vício extrínseco ou intrínseco, forem confirmados por outros subsídios”.

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Pode-se concluir, portanto, que a escrituração contábil do contribuinte será sempre prova de força relativa, tanto a favor do contribuinte, como contra o mesmo697. Independentemente do que foi registrado na contabilidade da empresa, caso a autoridade administrativa logre demonstrar a ocorrência do fato gerador sem o respectivo recolhimento, será cabível a lavratura de auto de infração para formalizar a exigência do crédito tributário. Por outro lado, caso tenha o contribuinte cometido um erro em sua escrituração, não será este bastante para fazer surgir a obrigação tributária, já que, de acordo com o princípio da legalidade, apenas a lei, e não a manifestação de vontade do contribuinte, é instrumento hábil para a criação de deveres fiscais.698 A análise das questões relacionadas aos efeitos da contabilidade sobre o Direito Tributário ganhou novos contornos com a edição da Lei nº 11.638/2007 e a adaptação dos padrões contábeis brasileiros aos chamados International Financial Reporting Standards – IFRS, como passamos a demonstrar.

5. A Lei nº 11.638/2007 e a adoção dos IFRS no Brasil No dia 27 de dezembro de 2007 foi editada a Lei nº 11.638, a qual teve por finalidade dar início a um processo de harmonização dos padrões contábeis brasileiros com os IFRS699. Conforme destacado na mensagem enviada ao Presidente da Repú-

697 Como destaca Ricardo Mariz de Oliveira, para quem: “A importância da função normativa da contabilidade é de tal magnitude que, como já dito acima, a lei confere à contabilidade em ordem, lastreada em documentos regulares, a condição de prova a favor da pessoa jurídica contra o próprio fisco, a quem cabe provar a irregularidade ou inveracidade dos registros contábeis (Decreto-lei n. 1.598, de 26.12.1977, art. 9º). Fora do direito tributário também há norma no mesmo sentido de que a escrituração mantida com observância das formalidades legais faz prova a favor do comerciante: trata-se do art. 8º do Decreto-lei n. 486, de 3.3.1969. E o Código de Processo Civil, por sua vez, prescreve que os livros comerciais provam contra o comerciante, admitindo prova contrária (art. 378), e que, quando preencham os requisitos exigidos por lei, provam a seu favor em litígios com outros comerciantes (art. 379). O Código Civil de 2002 acrescentou uma norma neste mesmo sentido, a qual se encontra em seu art. 226” (OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 1015).

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blica, pelo então Ministro da Fazenda Pedro Malan, quando do encaminhamento do anteprojeto que deu origem à referida lei, esta tinha “por finalidade modernizar e harmonizar as disposições da lei societária em vigor com os princípios fundamentais e melhores práticas contábeis internacionais, o que constitui medida inadiável para uma inserção eficiente do Brasil no atual contexto de globalização econômica”. A vinculação do novo padrão contábil brasileiro ao internacional restou consignada, por exemplo, no § 5º do artigo 177 da Lei das S/A, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.638/07. Segundo tal dispositivo, “as normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários a que se refere o § 3o deste artigo deverão ser elaboradas em consonância com os padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários” (o grifo não consta no original)700. Este processo de transição, iniciado com a edição da Lei nº 11.638/07, foi ampliado com a publicação da Medida Provisória nº 449/08, posteriormente convertida na Lei nº 11.941/09. Com efeito, a adoção dos padrões internacionais, com o dinamismo que lhe é inerente, dificilmente lograria ser implementada tendo como premissa a utilização exclusiva da via legislativa, notadamente considerando-se que o anteprojeto que resultou naquela Lei nº 11.638/07 foi encaminhado ao Congresso Nacional em 2000. Desta forma, com a Medida Provisória nº 449/08 ampliou-se o campo de delegação de legislativa para a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, que juntamente com o Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC, passa a ser protagonista na definição dos padrões contábeis brasileiros.701 Além da necessidade de adequação da contabilidade brasileira à internacional, um aspecto apontado como motivador da reforma foi a tão indevida Quartier Latin, 2008 e ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A Volume II: Inovações das Leis nº 11.638/07 e nº 11.941/09. São Paulo: Quartier Latin, 2009.

698 Há diversos artigos importantes sobre o tema dos efeitos da manifestação de vontade do sujeito passivo sobre a constituição do crédito tributário em ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário – Volume 12. São Paulo: Dialética, 2008.

700 Como destacou Ian Muniz: “Os objetivos da Lei nº 11.638/07 são nobres, quais sejam, harmonizar as normas contábeis brasileiras com os chamados International Financial Reporting Standards (IFRS). As vantagens de tal harmonização são evidentes: maior uniformidade entre as demonstrações financeiras publicadas pelas companhias brasileiras, mormente as de capital aberto, com princípios contábeis internacionalmente aceitos. Em suma, leitores de qualquer parte do mundo poderão ler e entender as demonstrações financeiras de sociedades brasileiras, sem que para tanto sejam necessários ajustes e esforços interpretativos adicionais” (MUNIZ, Ian. Neutralidade Fiscal da Lei nº 11.638. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A: Inovações da Lei nº 11.638. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 158).

699 Sobre a implementação das IFRS no Brasil, ver: MCMANUS, Kieran John. IFRS: Implementação das Normas Internacionais de Contabilidade e da Lei nº 11.638 no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2009. Para um exame dos efeitos fiscais e societários de tais mudanças contábeis, ver: ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A: Inovações da Lei nº 11.638. São Paulo:

701 Ver: ARAGÃO, Paulo Cezar; ROCHA, Sergio André. Alteração dos Padrões Contábeis Brasileiros: A Neutralidade Fiscal Transitória, “Deslegalização” da Contabilidade e o Princípio da Legalidade Tributária. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A Volume II: Inovações das Leis nº 11.638/07 e nº 11.941/09. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 506-511.

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quanto tradicional “invasão” da contabilidade pelas leis fiscais. Conforme destacou L. Nelson de Carvalho, no prefácio do Manual de Normas Internacionais de Contabilidade, editado em conjunto pela FIPECAFI e a Ernst & Young: Além e acima das disposições voltadas para setores regulamentados, pairava ostensivamente o conjunto de comandos normativos contábeis nascidos da inspiração e da motivação das autoridades tributárias federais: conquanto requisitos indiscutivelmente legais para os propósitos de mesurar a base da arrecadação, imiscuíam-se os normativos de ordem tributária no campo da contabilidade dita financeira ou societária, impondo – a meu ver indevidamente – tratamentos e métricas que, justificadas a partir da ótica de tributar, não se justificavam perante a ótica de adequadamente refletir eventos econômicos da vida empresarial, visando produzir demonstrações financeiras efetivamente informativas do desempenho operacional, da situação financeira e dos fluxos de caixa futuros esperados em decorrência da gestão dos negócios sociais. [...]702.

Ora, se os padrões contábeis brasileiros haviam sido influenciados pela legislação fiscal, evidentemente que uma reforma contábil, que altere parcialmente o regime de reconhecimento de receitas e despesas e, consequentemente, a apuração do lucro das empresas, terá impacto na apuração de tributos que tenham a receita e o lucro como base de cálculo, principalmente o cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas703 e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido704 com base no lucro real. Portanto, a reforma da contabilidade

702 CARVALHO, L. Nelson. [Prefácio]. In: FIPECAFI; Ernst & Young. Manual de Normas Internacionais de Contabilidade: IFRS versus Normas Brasileiras. São Paulo: Atlas, 2009. p. xiii. 703 Segundo o artigo 6º do Decreto-Lei nº 1.598/77, “o lucro real é o lucro líquido do exercício ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação tributária”. A seu turno, o § 1º do mesmo artigo estabelece que “o lucro líquido do exercício é a soma algébrica de lucro operacional (art. 11), dos resultados não operacionais, do saldo da conta de correção monetária (art. 51) e das participações, e deverá ser determinado com observância dos preceitos da lei comercial”. Percebe-se, assim, que o ponto de partida para a determinação do lucro real, base de cálculo do Imposto de Renda, é o lucro líquido calculado de acordo com a legislação comercial. 704 O artigo 2º da 7.689/88 determina que “a base de cálculo da contribuição é o valor do resultado do exercício, antes da provisão para o imposto de renda”. Já segundo a alínea “c” do § 1º deste mesmo artigo “o resultado do período-base, apurado com observância da legislação comercial, será ajustado pela [...]”.

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brasileira teria que ser seguida por uma adaptação da legislação tributária que adequasse esta aos novos padrões contábeis705. A adaptação da legislação tributária à nova contabilidade em processo de harmonização com os padrões internacionais, contudo, ainda não pode ser implementada em toda a sua extensão, e tal ocorre por uma razão muito simples: o processo de harmonização ainda não está terminado. Diante desses dois fatos, necessidade de alterações na legislação tributária e impossibilidade de que as mesmas sejam feitas antes de consumado o processo de harmonização, o legislador pátrio adotou como regra, para fins de preservação da segurança jurídica dos contribuintes, a neutralidade fiscal das novas regras contábeis, criando, por intermédio dos artigos 15 e seguintes da Lei nº 11.941/2009, o Regime Tributário de Transição - RTT, o qual resguardou aos contribuintes a possibilidade de optarem pela utilização, para fins fiscais, dos métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007. Veja-se, nesse sentido, o seguinte trecho da exposição de motivos da Medida Provisória nº 449/08: 7. No que concerne ao Regime Tributário de Transição - RTT, objetiva-se neutralizar os impactos dos novos métodos e critérios contábeis introduzidos pela Lei nº 11.638, de 2007, na apuração das bases de cálculo de tributos federais nos anos de 2008 e 2009, bem como alterar a Lei nº 6.404, de 1976, no esforço de harmonização das normas contábeis adotadas no Brasil às normas contábeis internacionais. 8. A Lei nº 11.638, de 2007, foi publicada no Diário Oficial da União de 28 de dezembro de 2007, e entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 2008, sem a adequação concomitante da legislação tributária. Esta breve vacatio legis e a alta complexidade dos novos métodos e critérios contábeis instituídos pelo referido diploma legal - muitos deles ainda não regulamentados - têm causado insegurança jurídica aos contribuintes. Assim, faz-se mister a adoção do RTT, conforme definido nos arts. 15 a 22 desta Medida Provisória, para neutralizar os efeitos tributários e remover a insegurança jurídica. 9. O processo de harmonização das normas contábeis nacionais com os padrões internacionais de contabilidade - objetivo maior da Lei nº 11.638, de 2007 - deve prolongar-se pelos próximos anos, razão pela qual, há necessidade de que o RTT não seja aplicável apenas no ano de 2008, mas também 705 Para um estudo das interseções entre o fato contábil e o fato tributário, ver: ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Efeitos Tributários da Lei nº 11.638/07. São Paulo: Ed. do Autor, 2008. p. 9-34.

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no ano de 2009, e, se necessário, nos anos subsequentes, quando, então, ao se descortinar o novo padrão da contabilidade empresarial a ser adotado no País, possa-se regular definitivamente o modo e a intensidade de integração da legislação tributária com os novos métodos e critérios internacionais de contabilidade. Nesse contexto, o § 1º do art. 15 da proposição em tela prevê a aplicação do RTT até que seja editada lei regulando definitivamente os efeitos tributários das mudanças nos critérios contábeis, a qual pretende-se que seja neutra, ou seja, que não afete a carga tributária.

Desta feita, enquanto aguardamos a edição de uma lei de adaptação tributária às alterações contábeis cuja introdução se iniciou com a Lei nº 11.638/2007, está garantida a sua neutralidade no que tange aos seus potenciais efeitos fiscais. Contudo, ainda não se sabe ao certo se tal neutralidade é apenas transitória ou se a mesma será permanente. Um aspecto que já se identifica, consiste no fato de que, em algumas situações, independentemente do RTT, é possível que os novos padrões contábeis, embora não tenham efeitos fiscais imediatos, gerem contradições entre a contabilização de uma determinada transação e tributação que lhe será atribuída pelo contribuinte. Examinaremos este aspecto a seguir, utilizando como exemplo uma questão específica relacionada à contabilização de ágio em operações de aquisição de participação societária.

6. Fundamentação de ágio na aquisição de participação societária após a Lei nº 11.638/2007 Muito já se escreveu sobre o tratamento fiscal do ágio na aquisição de participações societárias, não sendo cabível voltarmos ao tema aqui. Dessa forma, remetemos o leitor a outros trabalhos que tratam deste tema em particular706. 706 Ver: SCHOUERI, Luís Eduardo. Tratamento Tributário do Ágio: Considerações sobre seu Fundamento. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 100, 2008, p. 167-183; OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Os motivos e os fundamentos econômicos dos ágios e deságios na aquisição de investimentos, na perspectiva da legislação tributária. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 23, 2009, p. 449-489. Nos livros sobre a Reforma da Lei das S/A mencionados na nota 23 também se encontram diversos textos especificamente sobre o ágio e seu tratamento fiscal, autoria de: Gustavo Brigagão e Carlos Scharfstein; Jimir Doniak Jr.; João Dácio Rolim e Cristiano A. G. Viotti; José Otavio Haddad Faloppa e Fábio Alves Maranesi; Luiz Sérgio Vieira Filho e Mariano Manente; Natanael Martins e Daniele Souto Rodrigues; e Paulo Cezar Aragão e Sergio André Rocha.

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Para os fins aqui propostos necessitamos, inicialmente, entender o que significa fundamento econômico para os fins do artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598/77. De acordo com o artigo 20 do Decreto-Lei nº 1.598/77, reproduzido no artigo 385 do Regulamento do Imposto de Renda, “o contribuinte que avaliar investimento em sociedade coligada ou controlada pelo valor de patrimônio líquido deverá, por ocasião da aquisição da participação, desdobrar o custo de aquisição em: I - valor de patrimônio líquido na época da aquisição, determinado de acordo com o disposto no artigo 21; e II - ágio ou deságio na aquisição, que será a diferença entre o custo de aquisição do investimento e o valor de que trata o número I”. Segundo o § 1º do citado artigo 20, “o valor de patrimônio líquido e o ágio ou deságio serão registrados em subcontas distintas do custo de aquisição do investimento”, sendo que, como estabelece o § 2º do mesmo artigo, “o lançamento do ágio ou deságio deverá indicar, dentre os seguintes, seu fundamento econômico: a) valor de mercado de bens do ativo da coligada ou controlada superior ou inferior ao custo registrado na sua contabilidade; b) valor de rentabilidade da coligada ou controlada, com base em previsão dos resultados nos exercícios futuros; c) fundo de comércio, intangíveis e outras razões econômicas”. A principal questão levantada por este dispositivo nos dias atuais é a seguinte: ao determinar que o lançamento do ágio deve indicar seu fundamento econômico entre aqueles listados pelo próprio Decreto-lei nº 1.598/77, o dispositivo em tela criou alguma precedência entre as justificativas possíveis? Embora haja posição em sentido contrário707, a resposta a este questionamento parece ser negativa. Ao declarar qual o fundamento econômico da aquisição que gerou o ágio o contribuinte estaria vinculado apenas ao dever de demonstrar sua existência (do fundamento econômico). Como bem destacado por Ricardo Mariz de Oliveira, “o que a lei determina imperativamente é o desdobramento do custo de aquisição, para refletir o valor patrimonial contábil da participação adquirida e do respectivo ágio ou deságio, cujo motivo (fundamento econômico) ela não prescreve mandatoriamente deva ser este ou aquele, ou primeiro este, depois este outro e ao fim mais outro”708.

707 Ver: GRECO, Marco Aurélio. Ágio por Expectativa de Rentabilidade Futura: Algumas Observações. In: WARDE JR., Walfrido Jorge. Fusão, Cisão, Incorporação e Temas Correlatos. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 275-288. 708 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de, Os motivos e os fundamentos econômicos dos ágios e deságios na aquisição de investimentos, na perspectiva da legislação tributária, 2009, p. 484.

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Não nos cabe neste estudo aprofundar a discussão quanto a esta questão. O que é importante destacar é que, se a referida precedência entre os fundamentos possíveis do ágio não está prevista na legislação tributária, a mesma se encontra estabelecida nas regras contábeis, valendo a pena mencionar, em especial, a regra contida nos itens 32 a 40 do Pronunciamento CPC nº 15 (CPC 15). De acordo com o item 32 do CPC 15: 32. O adquirente deve reconhecer o ágio por rentabilidade futura (goodwill), na data da aquisição, mensurado como o valor em que (a) exceder (b) abaixo: (a) a soma: (i) da contraprestação transferida em troca do controle da adquirida, mensurada de acordo com este Pronunciamento, para a qual geralmente se exige o valor justo na data da aquisição (veja item 37); (ii) do valor das participações de não controladores na adquirida, mensuradas de acordo com este Pronunciamento; e (iii) no caso de combinação de negócios realizada em estágios (veja itens 41 e 42), o valor justo, na data da aquisição, da participação do adquirente na adquirida imediatamente antes da combinação; (b) o valor líquido, na data da aquisição, dos ativos identificáveis adquiridos e dos passivos assumidos, mensurados de acordo com este Pronunciamento.

O problema prático que se deve examinar, dentro dos escopos deste estudo, é como compatibilizar o entendimento de que não há uma precedência legal entre os fundamentos econômicos do ágio pago na aquisição de participações societárias, com as novas regras contábeis. Mais especificamente, como compatibilizar o lançamento contábil de uma operação, que tenha seguido os novos padrões contábeis, de acordo com os quais a rentabilidade futura da empresa adquirida é um fundamento residual, com um tratamento tributário diverso, em razão da interpretação de que o contribuinte pode utilizar qualquer dos fundamentos previstos no Decreto-lei 1.598/1977 para justificar seu ágio. Por exemplo, é possível que, contabilmente, o ágio decorrente de rentabilidade futura seja um valor “x”, enquanto fiscalmente o mesmo ágio tenha o valor de “5x”? Embora não se possa identificar com clareza qual a direção que será adotada pela legislação tributária, hoje a resposta a este último questionamento nos parece positiva. Ao analisarmos esta questão é importante termos em perspectiva que as novas regras contábeis têm sua lógica orientada para viabilizar uma melhor possibilidade 302

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de análise das demonstrações financeiras da empresa. Ou seja, seu fim é completamente descolado do mundo jurídico e das finalidades das regras tributárias. Isso fica claro, por exemplo, quando se examina a regra a aplicável aos arrendamentos. De acordo com o Pronunciamento CPC nº 06, um contrato de aluguel onde os riscos e vantagens do ativo sejam substancialmente transferidos para o locatário deve ser contabilizado por este como um ativo, uma solução completamente descasada da natureza jurídica de tal contrato, onde se tem a transferência da posse direta de um bem para o locatário, mas a manutenção da propriedade na pessoa do locador. Fica evidente, portanto, que não se pode pretender ter as novas regras contábeis como pauta hermenêutica para a interpretação das regras jurídico-fiscais. A mudança nos padrões contábeis teve finalidades específicas que não guardam relação com a validade, efeito e alcance das leis tributárias. Tanto assim, que a saída da legislação foi a criação do RTT para evitar que tal mudança tivesse quaisquer efeitos fiscais, até que uma lei de adaptação tributária seja editada.709 Voltando à questão da contabilização do ágio, cremos que a discussão deve se centrar em determinar se o Decreto-lei nº 1.598/77 estabeleceu ou não alguma ordem de precedência entre os possíveis fundamentos econômicos do ágio. Caso a resposta seja positiva, então o CPC 15 estaria em linha com a lei fiscal. Em sendo a resposta negativa, como sustentam Ricardo Mariz de Oliveira e outros autores (posição à qual nos filiamos neste artigo), então a contabilização não deveria ter impactos sobre a aplicação da regra fiscal, já que, como falamos, as mesmas possuem fins diversos710. 709 Ver: ARAGÃO, Paulo Cezar; ROCHA, Sergio André. Alteração dos Padrões Contábeis Brasileiros: A Neutralidade Fiscal Transitória, “Deslegalização” da Contabilidade e o Princípio da Legalidade Tributária. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A Volume II: Inovações das Leis nº 11.638/07 e nº 11.941/09. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 503-506. 710 Sobre este tema, vale a pena transcrever a seguinte passagem de José Otavio Haddad Faloppa e Fábio Alves Maranesi: “Nesse contexto, entendemos caber ao contribuinte (i) diante das circunstâncias do negócio efetivamente realizado e da documentação pertinente, atribuir a fundamentação (ou, dependendo do caso, as fundamentações) do ágio pago; e (ii) providenciar demonstrativo que comprove a razoabilidade econômica e financeira de tal atribuição. Por outro lado, ao fisco caberá (i) verificar a própria existência do ágio (como, por exemplo, confirmar se os negócios de fato ocorreram, sem que tenham sido decorrentes de operações aparentes ou simuladas); e (ii) confirmar se o ágio foi devidamente qualificado/justificado, dentre as opções legalmente admitidas. [...] Se ao contribuinte é dada a liberdade de atribuir qualquer (ou quaisquer) das fundamentações econômicas elencadas no art. 386 do RIR/99, pode ocorrer que, na situação descrita no parágrafo

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7. Conclusão Diante do exposto, podemos concluir este breve estudo repetindo nosso entendimento de que as provas são representações de fatos que têm por finalidade formar a convicção de um órgão aplicador do direito a respeito da ocorrência destes. Nesse sentido, a escrituração contábil dos contribuintes exerce um papel importante como prova das transações realizadas no curso de duas atividades. Contudo, tal capacidade probatória da contabilidade é apenas relativa. Não afasta o poder-dever da autoridade administrativa de buscar a verdade material, da mesma forma que não impede que o contribuinte venha a demonstrar um erro em seus lançamentos, o qual, por si só, não deve ter como efeito o nascimento de dever tributário sem lastro legal. A mudança dos padrões contábeis brasileiros, com a adoção dos IFRS, representa um grande distanciamento entre a lógica da legislação tributária e o seu reflexo contábil. Sendo assim, considerando o princípio da legalidade que rege o Direito Tributário, temos que a discrepância entre os fins da “nova contabilidade” e aqueles das leis em vigor deve ser reconhecida, evitando-se que as novas regras contábeis tenham reflexo na interpretação das normas tributárias, em afronta à neutralidade instaurada com a criação do RTT.



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anterior, ele tenha atribuído à totalidade do ágio pago a fundamentação econômica baseada na expectativa de resultados futuros da entidade adquirida, devidamente comprovada por demonstrativo econômico-financeiro. Nesta hipótese, haveria disparidade entre as qualificações desse ágio utilizadas para fins contábeis (parte valor justo dos ativos e passivos e parte rentabilidade futura) e para fins fiscais (integralmente rentabilidade futura). Entendemos que a existência dessa disparidade, contudo, não necessariamente quer dizer que uma das fundamentações atribuídas ao ágio esteja errada. Pelo contrário. Essa é uma possibilidade válida plenamente factível, cuja causa podemos atribuir ao fato de que as avaliações, devido sua natureza subjetiva, podem ser feitas dentro de técnicas, critérios e valorações diversas para o mesmo objeto, dependendo dos objetivos que se pretendam. No caso, um objetivo seria atender exclusivamente às normas contábeis de caráter compulsório para as companhias de capital aberto; outro, seria atender às disposições da lei fiscal, as quais, conforme vimos, são diferentes, e muito, das normas contábeis” (FALOPPA, José Otavio Haddad; MARANESI, Fábio Alves. Ágio na Aquisição de Investimentos – Divergência entre Normas Contábeis e Fiscais. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A Volume II: Inovações das Leis nº 11.638/07 e nº 11.941/09. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 350-351).

Parte 3 A Lei no 12.973/2014 e o Fim do Regime Tributário de Transição

Questões Fundamentais do Imposto de Renda Após a Lei n. 12.973/14 (2015)

1. Introdução Chega a ser um truísmo afirmar que um mesmo fato social ou econômico pode ser qualificado de várias maneiras diferentes a depender da perspectiva do observador. Como leciona Paulo de Barros Carvalho, “não nos esqueçamos que a camada linguística do Direito está imersa na complexidade do tecido social, cortada apenas para efeito de aproximação cognoscitiva. O real, com a multiplicidade de suas determinações, só é susceptível de uma representação intuitiva, porém aberta para receber inúmeros recortes cognoscitivos. Com tais ponderações, torna-se hialina a afirmativa de que de um mesmo evento poderá o jurista construir o fato jurídico; como também o contabilista, o fato contábil; e o economista, o fato econômico. Tudo, portanto, sob a dependência do corte que se quer promover daquele evento”711. De uma maneira simplificada, pode-se afirmar que toda a necessidade de harmonização entre a contabilidade no padrão IFRS (International Financial Reporting Standards) e a legislação do Imposto de Renda712 decorre de uma distinta percepção a respeito de um mesmo fato. Uma das observações que mais se fez desde dezembro de 2007, quando foi editada a Lei nº 11.638 e dado início ao processo de adoção dos IFRS como padrão contábil no Brasil, foi a de que, nas décadas que precederam a referida lei, o território da contabilidade havia sido invadido pela legislação tributária. Ou seja, havia uma quantidade significativa de regras fiscais ditando como as empresas deveriam representar contabilmente determinado fato. Em linha com o que dissemos antes, a legislação tributária obrigou o contabilista a perceber os fatos da perspectiva tributária. 711 CARVALHO, Paulo de Barros. O Absurdo da Interpretação Econômica do “Fato Gerador”. Direito e Sua Autonomia - o Paradoxo da Interdisciplinariedade. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; PASIN, João Bosco Coelho (Orgs.). Direito Financeiro e Tributário Comparado: Estudos em Homenagem a Eusebio González García. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 247. 712 A contabilidade no padrão IFRS impacta também a apuração da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, a Contribuição para o PIS e a COFINS. Para fins de simplificação, no texto farei referência apenas ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas.

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A adoção dos IFRS foi o grito de independência da contabilidade, o reconhecimento expresso de que, embora a contabilidade sirva de base, de ponto de partida, para o cálculo do Imposto de Renda, esta é apenas uma de suas finalidades e não é nem mesmo sua função principal. Conforme se extrai da Introdução do Pronunciamento Conceitual Básico (R1): Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro, editado pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC): As demonstrações contábeis são elaboradas e apresentadas para usuários externos em geral, tendo em vista suas finalidades distintas e necessidades diversas. Governos, órgãos reguladores ou autoridades tributárias, por exemplo, podem determinar especificamente exigências para atender a seus próprios interesses. Essas exigências, no entanto, não devem afetar as demonstrações contábeis elaboradas segundo esta Estrutura Conceitual. Demonstrações contábeis elaboradas dentro do que prescreve esta Estrutura Conceitual objetivam fornecer informações que sejam úteis na tomada de decisões econômicas e avaliações por parte dos usuários em geral, não tendo o propósito de atender finalidade ou necessidade específica de determinados grupos de usuários. (Grifos nossos)

Um dos aspectos mais evidentes quando comparamos a “nova contabilidade” com os requisitos constitucionais para a apuração do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas é exatamente os diferentes cortes da realidade fática que interessam a um e a outro. Com efeito, o Imposto de Renda tem como meta aferir e tributar a capacidade contributiva realizada pelo sujeito passivo, ou seja, acréscimos patrimoniais efetivos e disponíveis. A seu turno, a contabilidade no padrão IFRS tem como meta principal determinar a capacidade da empresa de gerar fluxos de caixa futuros. Vê-se, claramente, a diferença de perspectivas. Enquanto a tributação pelo Imposto de Renda olha para o presente apenas, a “nova contabilidade” olha para o hoje querendo prever o amanhã. Padrões contábeis como a essência sobre a forma713, avaliação de ativos e passivos a valor justo ou seu ajuste a valor presente, todos são formas de “previ713 Não vamos nos deter na análise das diferenças entre o princípio contábil da essência sobre a forma e a teoria da substância sobre a forma que por vezes é utilizada para controlar atos elusivos praticados pelos contribuintes. Apenas afirmaremos que nos parecem ser institutos absolutamente distintos. Sobre o tema, ver: BRIGAGÃO, Gustavo; SCHARFSTEIN, Carlos Cornet. Discussão sobre a Aplicabilidade, para

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são” dos fluxos de caixa futuros da empresa. São precisas as palavras de Nelson Carvalho quando afirma que “demonstrações financeiras não se restringem a oferecer um olhar analítico sobre o passado, e sua talvez mais nobre missão é propor, aos seus leitores e usuários, uma avaliação, na ótica de quem as prepara e de quem as audita, sobre o futuro que espera a entidade dado o passado que teve. O principal papel - na verdade o mais nobre objetivo - das demonstrações financeiras no mundo corporativo (aí incluídos os operadores do Direito Societário, as autoridades com o poder de coletar impostos, as reguladoras do funcionamento dos mercados, credores, investidores, experts em finanças corporativas, sindicatos de trabalhadores e outros potenciais usuários) é informar sobre o futuro esperado à luz do passado realizado”714. Ora, em direito, a técnica de se estimar um resultado desconhecido com base em fatos conhecidos tem um nome próprio e se chama presunção. Obviamente, não é possível construir um sistema de tributação da renda sobre uma base presumida. As presunções, quanto autorizadas em direito tributário, ou são relativas, ou são objeto de opção pelo sujeito passivo, ou são regras que se orientam pelo princípio da praticabilidade715. Contudo, em nenhuma hipótese a regra geral será a presunção. Este fato sozinho já demonstra o potencial descompasso entre a apuração do Imposto de Renda e a contabilidade de acordo com o padrão IFRS. Tudo seria muito fácil se o Brasil não tivesse optado por adotar os IFRS como padrão contábil para todas as pessoas jurídicas, de pequeno, médio e grande portes. Na medida em que esta foi a opção, tornou-se necessário lidar com os reflexos da nova contabilidade sobre a apuração do Imposto de Renda. Isso tudo porque, por mais que a contabilidade tenha sua própria visão sobre os fatos econômicos, tal visão deixa o sistema contábil e adentra o sistema jurídico na medida em que a legislação societária lhe confere tal dignidade e status. Portanto, a “visão” da contabilidade sobre certo fato econômico, que nasce meramente contábil é tornada jurídica por força do que dispõe a Lei das S/A.

Fins Tributários,da Primazia da Essência sobre a Forma. In: In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A - Volume III. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 257-286. 714 CARVALHO, Nelson. Essência x Forma na Contabilidade. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p. 373-374. 715 Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Modelos de Regulação Jurídica, Preços de Transferência e os Novos Métodos PCI e PECEX. In: Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 323-327.

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Temos agora um lucro líquido, ponto de partida do lucro real, que nasceu determinado por uma contabilidade que procura olhar para o futuro, tornado jurídico por disposições da legislação societária. Será que essa “juridicização” do fato contábil seria o bastante para que o mesmo pudesse servir de base para o cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas? Para respondermos a esta pergunta, que é o objeto deste breve texto, iniciaremos voltando ao Decreto-Lei nº 1.598/1977.

2. O Artigo 6º do Decreto-Lei nº 1.598/1977 e o Sistema de Adições e Exclusões Segundo o artigo 6º do Decreto-Lei nº 1.598/1977 “lucro real é o lucro líquido do exercício ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação tributária”. Nota-se, portanto, que foi adotado um sistema de adições e exclusões para transformar o lucro líquido contábil em lucro real. Cabe então perguntar: tal sistema é aleatório e arbitrário ou necessário e atrelado à materialidade do Imposto de Renda? Ao que nos parece, o sistema de adições e exclusões faz parte da adequação do lucro líquido à materialidade tributável do Imposto de Renda prevista na Constituição Federal. Dessa forma, as adições são consequência de despesas contábeis que não correspondem a fatos-decréscimo de patrimônio para fins de apuração do Imposto de Renda, enquanto que as exclusões referem-se a receitas contábeis que não representam fatos-acréscimo de patrimônio para o cálculo do mesmo imposto. Portanto, o sistema de adições e exclusões deve ser visto como um instrumento para a individualização da incidência do Imposto de Renda, em obediência ao disposto no § 1º do artigo 145 da Constituição Federal.

3. RTT não era Opção Partindo do que expusemos acima, nota-se que a neutralidade tributária instituída com o Regime Tributário de Transição (RTT) não foi faculdade, ou favor, ou medida de praticabilidade tão somente. Do contrário, a instituição do RTT pela Medida Provisória nº 449/2008, posteriormente convertida na Lei nº 11.941/2009, tratou-se de exigência de fundo constitucional para a cobrança do

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Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, de modo a garantir que os fatos-acréscimo e fatos-decréscimo considerados em sua apuração estejam em linha com a materialidade do Imposto de Renda e o princípio da capacidade contributiva. Nessa mesma linha foi a conclusão de Renato Nunes, quando, ao analisar as interseções entre contabilidade e direito, afirmou que: Em termos conceituais, as acepções jurídicas de receita e renda guardam estreita correspondência com os conceitos contábeis de receita e lucro. Nada obstante, quando uma receita ou lucro originalmente verificado no sistema contábil não se compatibilizar com os princípios da capacidade econômica e da capacidade contributiva, não poderá ser utilizado para fins de incidência tributária, devendo o legislador, o Poder Judiciário, se provocado, ou até mesmo a autoridade administrativa cuidar para que isso seja observado.716

Diante da necessidade de se resguardar que o Imposto de Renda seguiria incidindo sobre renda disponível e realizada, e diante da impossibilidade de se ajustar a legislação do Imposto de Renda logo após o início da transição para os IFRS, um regime de neutralidade, como o instaurado com o RTT, tornou-se mandatório.

4. Quais são os Limites entre a Nova Contabilidade e o Imposto de Renda Em sua missão de apresentar uma visão do futuro de uma empresa, a contabilidade segundo o padrão IFRS muitas vezes requalifica fatos jurídicos, à luz do princípio da essência sobre a forma, ou mensura suas consequências considerando o seu valor justo ou o valor presente de eventos futuros. Esses são exatamente os grandes pontos potenciais de conflito entre a nova contabilidade brasileira e o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas. A possibilidade de a contabilidade requalificar um fato e considerá-lo na composição do lucro líquido da empresa, quando o mesmo não representa disponibilidade jurídica ou econômica de renda ou proventos de qualquer natureza; ou a possibilidade de a contabilidade avaliar determinado ativo ou passivo com base

716 NUNES, Renato. Tributação e Contabilidade: Alguns Apontamentos sobre as Relações entre Sistemas Jurídico e Contábil. São Paulo: Almedina, 2013. p. 294.

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em uma expectativa do que ele possa valer, sendo tal avaliação apenas uma expectativa, e não renda realizada. Portanto, há um limite intrínseco e de origem constitucional à aplicação da contabilidade segundo os IFRS à apuração do Imposto de Renda. Requalificações somente podem ser consideradas no cálculo do lucro real se representarem fatos-acréscimo ou fatos-decréscimos que equivalham a renda disponível, enquanto avaliações de ativos e passivos só podem compor o lucro real se representarem renda realizada.

5. Nem Todas as Requalificações são Contrárias ao Conceito de Renda Como mencionamos, requalificações feitas com base no princípio contábil da essência sobre a forma somente devem ser desconsideradas para fins de apuração do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas quando levarem à tributação de algo que não seja renda disponível. Tal, segundo pensamos, não será sempre o caso. Se pegarmos, por exemplo, a nova regulamentação contábil do arrendamento mercantil financeiro, temos que o mesmo é definido como “aquele em que há transferência substancial dos riscos e benefícios inerentes à propriedade de um ativo. O título de propriedade pode ou não vir a ser transferido” (Pronunciamento Técnico CPC nº 6 - R1, Item 4). Nota-se, de pronto, uma discrepância entre o conceito jurídico de arrendamento mercantil financeiro e a definição contábil. No caso dos arrendamentos financeiros, “os arrendatários devem reconhecer, em contas específicas, os arrendamentos mercantis financeiros como ativos e passivos nos seus balanços por quantias iguais ao valor justo da propriedade arrendada ou, se inferior, ao valor presente dos pagamentos mínimos do arrendamento mercantil, cada um determinado no início do arrendamento mercantil” (Pronunciamento Técnico CPC nº 6 - R1, Item 20). O item 21 Pronunciamento Técnico CPC nº 6 - R1 deixa clara a aplicação do princípio da essência sobre a forma, ao destacar que “as transações e outros eventos devem ser contabilizados e apresentados de acordo com a sua essência e realidade financeira e não meramente com a sua forma legal. Embora a forma legal de um acordo de arrendamento mercantil seja a de que o arrendatário possa não adquirir a propriedade legal do ativo arrendado, no caso dos arrendamentos mercantis financeiros, a essência e a realidade financeira são tais que o arrendatário adquire os benefícios econômicos do uso do ativo arrendado du312

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rante a maior parte da sua vida econômica em troca da obrigação de pagar por tal direito uma quantia que se aproxima, no início do arrendamento mercantil, do valor justo do ativo e do respectivo encargo financeiro”. Após o registro inicial, “os pagamentos mínimos do arrendamento mercantil devem ser segregados entre encargo financeiro e redução do passivo em aberto. O encargo financeiro deve ser apropriado a cada período durante o prazo do arrendamento mercantil de forma a produzir uma taxa de juros periódica constante sobre o saldo remanescente do passivo” (Pronunciamento Técnico CPC nº 6 - R1, Item 25). Além disso, “um arrendamento mercantil financeiro dá origem a uma despesa de depreciação (amortização) relativa a ativos depreciáveis (amortizáveis), assim como uma despesa financeira para cada período contábil” (Pronunciamento Técnico CPC nº 6 - R1, Item 25). A seu turno, “os arrendadores devem reconhecer os ativos mantidos por arrendamento mercantil financeiro nos seus balanços e apresentá-los como conta a receber por valor igual ao investimento líquido no arrendamento mercantil” (Pronunciamento Técnico CPC nº 6 - R1, Item 36). No que tange à receita, “os pagamentos do arrendamento mercantil a serem recebidos são tratados pelo arrendador como amortização de capital e receita financeira para reembolsá-lo e recompensá-lo pelo investimento e serviços” (Pronunciamento Técnico CPC nº 6 - R1, Item 37). Partindo dessa superficial análise acerca das regras do Pronunciamento Técnico CPC nº 6 - R1, vemos a diferença entre o tratamento jurídico e contábil do arrendamento mercantil financeiro, a começar pelo fato de que o ativo será depreciado ou amortizado pelo arrendatário. A Lei nº 12.973/14 (“Lei 12.973), ao tratar da matéria, incluiu os §§ 3º e 4º no artigo 13 do Decreto-Lei nº 1.598/1977, os quais estabeleceram a indedutibilidade dos encargos de depreciação, amortização ou exaustão no arrendatário, os quais devem ser excluídos do lucro líquido para a apuração do lucro real. De acordo com o artigo 45 da aludida lei, “poderão ser computadas na determinação do lucro real da pessoa jurídica arrendatária as contraprestações pagas ou creditadas por força de contrato de arrendamento mercantil, referentes a bens móveis ou imóveis intrinsecamente relacionados com a produção ou comercialização dos bens e serviços, inclusive as despesas financeiras nela consideradas”.  A seu turno, da perspectiva do arrendador, estabelece o artigo 46 da Lei 12.973 que “na hipótese de operações de arrendamento mercantil que não estejam sujeitas ao tratamento tributário previsto pela Lei nº 6.099, de 12 de 313

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setembro de 1974, as pessoas jurídicas arrendadoras deverão reconhecer, para fins de apuração do lucro real, o resultado relativo à operação de arrendamento mercantil proporcionalmente ao valor de cada contraprestação durante o período de vigência do contrato”. Segundo o § 3º deste mesmo artigo “para efeitos do disposto neste artigo entende-se por resultado a diferença entre o valor do contrato de arrendamento e somatório dos custos diretos iniciais e o custo de aquisição ou construção dos bens arrendados”. Nota-se que a Lei 12.973 optou por adotar um tratamento tributário distinto do contábil, fazendo-se eventuais ajustes ao lucro líquido para a determinação do lucro real717. Contudo, em linha com o que vimos defendendo neste artigo, cabe perguntar: seria mandatório este tratamento diferenciado? Haveria alguma inconstitucionalidade ou ilegitimidade em se pretender seguir, na legislação tributária, exatamente o mesmo tratamento dado pela contabilidade segundo o padrão IFRS? Quer-nos parecer que não. Com efeito, contanto que haja disponibilidade jurídica ou econômica de renda realizada, não nos parece relevante a maneira como a mesma é capturada. Aqui, não haveria, segundo vemos, qualquer objeção à utilização da nova contabilidade para a determinação do lucro real718. Outro exemplo semelhante temos no cálculo da depreciação de ativos. Antes da adoção dos IFRS, a contabilidade havia sido subjugada pela legislação tributária, utilizando as taxas de depreciação estabelecidas pela Receita Federal para fins contábeis. Segundo o artigo 310 do Regulamento do Imposto de Renda: Art. 310. A taxa anual de depreciação será fixada em função do prazo durante o qual se possa esperar utilização econômica do bem pelo contribuinte, na produção de seus rendimentos (Lei nº 4.506, de 1964, art. 57, § 2º). § 1º A Secretaria da Receita Federal publicará periodicamente o prazo de vida útil admissível, em condições normais ou médias, para cada espécie de bem, ficando assegurado ao contribuinte o direito de com717 “Artigo 46. [...].§ 1º A pessoa jurídica deverá proceder, caso seja necessário, aos ajustes ao lucro líquido para fins de apuração do lucro real, no livro de que trata o inciso I do caput do art. 8o do Decreto-Lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977.” 718 Em sentido contrário, afirmando que, para fins de incidência, a legislação tributária deverá sempre partir do tratamento jurídico de uma operação de arrendamento, ver: OLIVEIRA, Ricardo Mariz. A Tributação da Renda e sua Relação com os Princípios Contábeis Geralmente Aceitos. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias JurídicoContábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p. 407.

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putar a quota efetivamente adequada às condições de depreciação de seus bens, desde que faça a prova dessa adequação, quando adotar taxa diferente (Lei nº 4.506, de 1964, art. 57, § 3º).

Veja-se que a taxa de depreciação para fins fiscais deve ser determinada em função do prazo durante o qual se possa esperar utilização econômica do bem, sendo que cabe à Receita Federal publicar “periodicamente o prazo de vida útil admissível”. A contabilidade pelos IFRS também fazem uso da expressão vida útil. Segundo o Item 6 do Pronunciamento Técnico CPC nº 1 - R1 depreciação “é a alocação sistemática do valor depreciável, amortizável e exaurível de ativos durante sua vida útil”. A seu turno, vida útil é “(a) o período de tempo durante o qual a entidade espera utilizar um ativo; ou (b) o número de unidades de produção ou de unidades semelhantes que a entidade espera obter do ativo”. Embora tanto a legislação fiscal quanto o novo padrão contábil refiram-se a vida útil do ativo, a Receita Federal, através do Parecer Normativo nº 01/2011 veio esclarecer que se tratavam de conceitos distintos de vida útil. De acordo com o item 19 deste parecer “em que pese a norma tributária definir que a taxa de depreciação deve ser avaliada em função do prazo durante o qual se possa esperar a ‘utilização econômica do bem’, essa avaliação está relacionada essencialmente com o desgaste físico do bem. Já o novo critério adotado pela contabilidade tem como base o tempo em que o bem gerará benefícios econômicos para a empresa”. O artigo 40 da Lei 12.973 tratou da matéria da depreciação, ao alterar o artigo 57 da Lei nº 4.506/1964, nos seguintes temos: “Art. 57. § 1º. A quota de depreciação dedutível na apuração do imposto será determinada mediante a aplicação da taxa anual de depreciação sobre o custo de aquisição do ativo. § 15. Caso a quota de depreciação registrada na contabilidade do contribuinte seja menor do que aquela calculada com base no § 3º, a diferença poderá ser excluída do lucro líquido na apuração do Lucro Real, observando-se o disposto no § 6º. § 16. Para fins do disposto no § 15, a partir do período de apuração em que o montante acumulado das quotas de depreciação computado na determinação do lucro real atingir o limite previsto no § 6º, o valor da

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depreciação, registrado na escrituração comercial, deverá ser adicionado ao lucro líquido para efeito de determinação do lucro real.”

Nota-se que aqui a opção da medida provisória pela neutralidade da nova contabilidade. Contudo, uma vez mais estamos diante de situação onde, segundo vemos, não haveria qualquer problema, sob uma perspectiva da materialidade do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, de usarmos a nova contabilidade para a determinação da depreciação considerada na apuração do lucro real. É importante destacar que, em ambos os casos, não se está sustentando a possibilidade de aplicação imediata da legislação do Imposto de Renda existente à nova contabilidade, nem tampouco que a legislação tributária em vigor possa ser interpretada a partir do padrão contábil IFRS. O que se está afirmando é que a Lei 12.973 ou outro ato legislativo futuro poderia optar por computar, na determinação do lucro real, tais fatos conforme qualificados de acordo com a contabilidade segundo os IFRS. Pode-se concluir este item, portanto, reiterando que nem toda requalificação operada pela nova contabilidade a partir do princípio da essência sobre a forma, afronta o princípio da capacidade contributiva e a regra-matriz de incidência do Imposto de Renda.719 Esta assertiva parece ser corroborada por Luís Eduardo Schoueri, que afirma que “as novas regras contábeis da Lei nº 11.638/2007, que buscam aferir o acréscimo no patrimônio do contribuinte sob uma perspectiva mais econômica que civil, poderá servir de parâmetro para a construção de um novo ‘lucro real’ no futuro, o que não seria de modo algum incompatível com o artigo 43 do Código Tributário Nacional”720.

6. Neutralidade de Futuras Requalificações pela Contabilidade Em artigo publicado em 2010 defendi que a lei que pusesse fim ao RTT deveria também criar uma regra específica de neutralidade tributária para o 719 Em sentido contrário, afirmando que a qualificação de fatos a partir da essência econômica não pode ser utilizada no campo tributário, ver: BIANCO, João Francisco. Aparência Econômica e Natureza Jurídica. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p.184. 720 SCHOUERI, Luís Eduardo. O Mito do Lucro Real na Passagem da Disponibilidade Jurídica para a Disponibilidade Econômica. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p. 264.

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futuro. Naquela oportunidade, afirmamos que o processo iniciado com a Lei nº 11.638/2007 representou a migração “de um sistema legislativo para uma autorregulação da contabilidade por órgãos como o CPC”. Daí a conclusão de que “a neutralidade da reforma contábil não pode constituir medida temporária, mas perene. Mesmo a edição de uma lei de adaptação tributária não afastará a necessidade de manutenção da neutralidade das mudanças futuras, quer decorram de alteração legislativa, quer decorrentes de atos do CPC, que venham a ser acolhidos pela CVM e pelo CFC. Não fora assim, certamente estaremos diante de um cenário de insegurança para os contribuintes, com grande probabilidade de violações ao princípio da legalidade tributária”721. Essa exigência de neutralidade foi atendida pelo artigo 58 da Lei 12.973: Art. 54. A modificação ou a adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos emitidos com base em competência atribuída em lei comercial, que sejam posteriores à publicação desta Medida Provisória, não terá implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria. Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, compete à Secretaria da Receita Federal do Brasil, no âmbito de suas atribuições, identificar os atos administrativos e dispor sobre os procedimentos para anular os efeitos desses atos sobre a apuração dos tributos federais.

A necessidade de neutralidade reforça o que dissemos no item anterior. Sustentar que a legislação tributária pode utilizar fatos requalificados pelo IFRS não significa que tal possa ocorrer diretamente, sem que seja editada norma tributária específica.

7. Todos Ajustes no Valor de um Ativo ou Passivo devem ser Neutros até que Realizados Se nem toda requalificação realizada pela nova contabilidade deve obrigatoriamente ser neutra para fins fiscais, o mesmo não se pode dizer das avalia-

721 ARAGÃO, Paulo Cezar; ROCHA, Sergio André. Alteração dos Padrões Contábeis Brasileiros: A Neutralidade Fiscal Transitória, “Deslegalização” da Contabilidade e o Princípio da Legalidade Tributária. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A - Volume II. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 512.

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ções a valor justo (Pronunciamento Técnico CPC nº 46) e dos ajustes a valor presente (Pronunciamento Técnico CPC nº 12). As avaliações feitas na contabilidade em nome da prevalência da essência sobre a forma722 mostram expectativas de acréscimo de patrimônio que ainda não foram incorporados definitivamente. Mostram quanto seria possível auferir de ganho ou qual seria a perda se uma transação de mercado fosse feita hoje. Contudo, se o contribuinte não pretende alienar seu ativo ou ceder seu passivo hoje, quem garante que o mesmo ganho será auferido ou a mesma perda ocorrerá quando uma transação de mercado efetivamente vier a ser realizada? Há que se concordar, aqui, com Natanael Martins, quando afirma que “qualquer que seja o conceito de renda que se venha a adotar, esta deve, naturalmente, representar um efetivo acréscimo patrimonial, medido entre dois momentos” e segue o autor concluindo que “para haver incidência do tributo a renda deve estar efetivamente realizada, isto é, incorporada, definitivamente, ao patrimônio da sociedade empresarial, sob pena de não poder afirmar que este teria sido efetivamente acrescido”723. Neste ponto, de uma maneira geral andou bem a Lei 12.973, reconhecendo que efeitos positivos e negativos de avaliações a valor justo, por exemplo, só terão efeito quando da realização do ativo ou passivo. É o que estabelecem os artigos 13 e 14 da referida lei, que requerem “que o respectivo aumento no valor do ativo ou redução no valor do passivo seja evidenciado contabilmente em subconta vinculada ao ativo ou passivo”. Os referidos dispositivos consideram realização a  depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa do ativo, ou a liquidação ou baixa do passivo.

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8. Conclusão Diante do exposto, considerando novamente os dois principais pontos de potencial conflito entre a “nova contabilidade” e a apuração do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, quais sejam, as requalificações e as mensurações realizadas pelos IFRS, é possível concluir que as primeiras podem ser compatíveis com a materialidade do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, desde que passem a integrar a legislação tributária e consistam em fatos-acréscimo e fatos-decréscimo denotativos de capacidade contributiva. A seu turno, no que tange às avaliações que considerem o valor justo ou o valor presente de eventos futuros, enquanto não refletirem renda realizada, considerada como o acréscimo definitivamente incorporado ao patrimônio da empresa, não é possível que as mesmas sejam computadas na apuração do lucro real.

722 Como alerta Sérgio de Iudícibus “há um estreito relacionamento entre o grande paradigma da Contabilidade, que é a Essência sobre a Forma e um particular critério de mensuração, que é o Valor Justo. Se a essência econômica de uma determinada transação é a que deve ter sempre preferência, na contabilização, nada mais apropriado que seja realizada através de um valor, no sentido econômico” (IUDÍCIBUS, Sérgio de. Essência sobre a Forma e o Valor Justo: duas Faces da Mesma Moeda. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias JurídicoContábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p. 42). 723 MARTINS, Natanael. A Realização da Renda como Pressuposto de sua Tributação. Análise sobre a Perspectiva da Nova Contabilidade e do RTT. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p. 364. No mesmo sentido, ver: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Reconhecimento de Receitas - Questões Tributárias Importantes (uma Nova Noção de Disponibilidade Econômica?). In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias JurídicoContábeis (Aproximações e Distanciamentos): 3º Volume. São Paulo: Dialética, 2012. p. 312-314.

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Quem Disse que a Lei não tem Palavras Inúteis? Uma Leitura do Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 e da IN nº 1.492/2014 (2014)

1. Introdução Vem dos romanos o brocado verba cum effectu, sunt accipienda, traduzido por Carlos Maximiliano como “devem-se compreender as palavras como tendo alguma eficácia”. Este mesmo autor, ao comentar o referido adágio, mencionou que o mesmo significa que “as expressões do Direito interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis”724. Não é de se esperar que o legislador desperdice tempo, numa era em que ele falta a todos, elaborando regras que não tenham nenhuma eficácia prática. Surpreendentemente, como veremos adiante, é isso o que temos no artigo 72 da Lei nº 12.973/2014. O mencionado dispositivo cuida do cálculo dos lucros e dividendos distribuíveis entre 2008 e 2013 e decorre da equivocada interpretação sobre os efeitos do Regime Tributário de Transição (“RTT”) inaugurada com a edição, pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, do Parecer nº 202/2013. Como e em que sentido é possível afirmar que o aludido artigo 72 é inútil? Este não só está em vigor, como sua redação ensejou a edição da recente Instrução Normativa nº 1.492/2014, que trouxe nova redação ao artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013. A análise do artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 e do novo artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013 será o objeto deste estudo.

2. Antecedentes do Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 Desde a criação do RTT pela Medida Provisória nº 449/2008, posteriormente convertida na Lei nº 11.941/2009, pairava entre os especialistas em tributação uma dúvida a respeito do seu efetivo alcance.

724 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 250.

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Alguns autores, logo após a entrada em vigor do RTT, apontavam para o caráter apenas relativo da neutralidade tributária por ele instituída, a qual deixaria de fora diversas situações que, ao menos indiretamente, teriam efeitos tributários725. Outros, pelo menos naquela fase inicial, sustentavam uma visão mais abrangente da neutralidade fiscal726. Em artigo anterior, levantamos a questão da indefinição a respeito do alcance da neutralidade estabelecida pelo RTT, defendendo que seria importante que a legislação tributária fosse ajustada para dispor de forma expressa o tratamento fiscal a ser aplicado a situações de dúvida727. Naquela oportunidade, referimo-nos ao que chamamos “efeitos fiscais indiretos” dos novos padrões contábeis, grupo que incluía questões como a base para o cálculo dos juros sobre capital próprio e seus limites, a base da equivalência patrimonial para o cálculo de ganhos de capital ou do ágio pago na aquisição de uma participação societária e, também, o cálculo dos dividendos isentos de tributação. O tema do tratamento fiscal da distribuição de lucros e dividendos no contexto dos novos padrões contábeis ganhou repercussão com a divulgação do Parecer/PGFN/CAT nº 202/2013728 (“Parecer nº 202”). A ementa deste parecer tem a seguinte redação: “Regime Tributário de Transição. Lucros e dividendos pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas. Art. 15 da Lei nº 11.941, de 27/05/2009, e art. 10 da Lei nº 9.249, de 26/12/1995. O lucro a ser considerado para fins da isenção prevista no art. 10 da Lei nº 9.249, de 1995, é o lucro fiscal obtido com a aplicação do Regime Tributário de Transição, de que trata o art. 15 da Lei nº 11.941, de 2009, e não o lucro societário obtido com base nas regras contábeis da Lei nº 6.404, de 1/12/1976 com as alterações 725 Cf. NICÁCIO, Carlos Nogueira; QUERQUILI, Alexandre Garcia. Mudanças nas Regras Contábeis, Experiências Internacionais e a Relativa Neutralidade do Regime Tributário de Transição. In: FERNANDES, Edison Carlos; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (Coords.). Aspectos Tributários da Nova Lei Contábil. São Paulo: MP Editora, 2010. p. 47. 726 Ver: MUNIZ, Ian; MONTEIRO, Marco Antônio M. O RTT e a Neutralidade Fiscal. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A Volume II: Inovações das Leis nº 11.638/07 e nº 11.941/09. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 277. 727 Cf. ROCHA, Sergio André. As Normas de Convergência Contábeis e seus Reflexos para os Contribuintes. In: MOSQUEIRA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias JurídicoContábeis (Aproximações e Distanciamentos): 2º Volume. São Paulo: Dialética, 2011. p. 301.

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trazidas pela Lei nº 11.638, de 28/12/2007. Memorando nº 469/2012RFB/Gabin, de 23/05/2012.”

A interpretação apresentada no Parecer nº 202 pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”) foi no sentido de que “para fins de distribuição de lucros e dividendos, pelas pessoas jurídicas sujeitas ao Regime Tributário de Transição (‘RTT’), de que trata o art. 15 da Lei nº 11.941, de 2009, são considerados isentos os lucros ou dividendos distribuídos até o montante do lucro fiscal apurado no período, ou seja, do lucro líquido apurado conforme os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007”. A análise do Parecer nº 202 foi objeto de estudo anterior, de modo que não faremos, aqui, uma revisão de seus fundamentos e críticas. Naquela oportunidade, concluímos como segue: • Não nos parece haver qualquer incompatibilidade entre o Parecer nº 202, o princípio da segurança jurídica e seu subprincípio da proteção da confiança jurídica dos contribuintes. Uma vez que não houve indicação segura por parte das autoridades fazendárias de que uma ou outra interpretação seria adotada, não se pode cogitar de uma quebra da expectativa legítima dos contribuintes. • A interpretação conferida na Nota COSIT e no Parecer nº 202 ao artigo 16 da Lei nº 11.941/2009 mostra-se equivocada, na medida em que desconsidera que este dispositivo não criou uma regra geral no sentido de que os padrões contábeis existentes em dezembro de 2007 seriam aplicáveis sempre que presente algum efeito fiscal. Pelo contrário, o que o aludido artigo fez foi determinar que a antiga contabilidade fosse utilizada para fins de determinar os critérios de reconhecimento de custos, despesas e receitas considerados na apuração do lucro líquido do exercício da pessoa jurídica. • O artigo 10 da Lei nº 9.249/95 estabelece a isenção dos “resultados” distribuídos aos sócios e acionistas da pessoa jurídica. Não havendo qualquer disposição em sentido contrário, tais resultados devem ser calculados com base na legislação societária em vigor. Inclusive, por tudo o que se discutiu sobre o cenário fiscal após o fim do RTT tal será a realidade.

728 Disponível em: http://dados.pgfn.fazenda.gov.br/dataset/pareceres/resource/2022013. Acesso em 15 de abril de 2013.

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• Considerando a necessidade de eficácia da legislação tributária de modo que seja exequível pela Fazenda e pelo contribuinte, cremos que a interpretação formalizada na Nota COSIT e no Parecer nº 202 é contrária aos ditames de praticabilidade que devem guiar a elaboração e interpretação/ aplicação da legislação tributária.729 Percebe-se, portanto, da leitura da conclusão acima, que nosso entendimento é no sentido de que a opinião formalizada no Parecer nº 202 mostra-se equivocada, sendo contrária ao disposto no artigo 16 da Lei nº 11.941/2009 e no artigo 10 da Lei nº 9.249/95. Como se sabe, a interpretação veiculada no Parecer nº 202 veio posteriormente a ser ratificada pela Instrução Normativa nº 1.397/2013. Com efeito, segundo o artigo 26 da referida instrução normativa, os lucros ou dividendos distribuídos por pessoa jurídica não serão tributados na pessoa física ou jurídica beneficiária. Contudo, a desoneração somente seria aplicável aos lucros ou dividendos “obtidos com observância dos métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007”. Tanto assim, que a redação original do artigo 28 desta instrução trazia as regras aplicáveis à tributação de eventual excesso de distribuição de lucros ou dividendos, quando baseada nos International Financial Reporting Standards - IFRS. Pois bem, da mesma maneira que o Parecer nº 202, esta Instrução Normativa nº 1.397/2013 mostra-se ilegal, por contrariar os mesmos dispositivos antes mencionados. A reação das empresas foi imediata e contundente. Não só a Receita Federal havia criado tributação via Instrução Normativa, como pretendia aplicar sua interpretação retroativamente. Desta reação, surgiu o artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 (originalmente artigo 67 da Medida Provisória nº 627/2013).

3. O Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 e o Novo Artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013 O artigo 67 da Medida Provisória nº 627/2013, que teve redação final no artigo 72 da Lei nº 12.973/2014, serviu, basicamente, para garantir ao mercado que a interpretação equivocada da Receita Federal não seria aplicada. Eis sua redação: 729 Cf. ROCHA, Sergio André. Neutralidade Tributária sob o RTT e seu Alcance: O Caso dos Dividendos. In: MOSQUEIRA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias JurídicoContábeis (Aproximações e Distanciamentos): 4º Volume. São Paulo: Dialética, 2013. p. 312.

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“Art. 72. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados entre 1o de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 2013 pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, em valores superiores aos apurados com observância dos métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido do beneficiário, pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliado no País ou no exterior.” (Destaque nosso)

Percebe-se, da análise deste dispositivo, que ele tem um erro de partida, ao limitar sua aplicação aos resultados apurados entre 1º de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 2013, quando, de fato, deveriam ser incluídos em seu escopo também os resultados apurados em 2014 pelas empresas que seguirem no RTT até o fim deste ano. Tal erro, na verdade, talvez seja um instrumento de coação velado para que as empresas façam a opção, prevista no artigo 75 da Lei nº 12.973/2014, pela antecipação dos efeitos dos seus dispositivos relacionados ao fim do RTT para o ano-calendário de 2014. De fato, se nos recordarmos da redação original da Medida Provisória nº 627/2013, havia em seu texto um polêmico artigo 70, que estabelecia que regras como o artigo 67, que tratava dos dividendos, somente seriam aplicáveis caso a empresa fizesse a opção pela antecipação dos efeitos da lei para 2014. Este dispositivo acabou sendo excluído logo no início da tramitação do projeto de lei de conversão da medida provisória em questão, mas ficou um resquício no artigo 72 em relação aos resultados de 2014. No dia 18 de setembro de 2014 foi publicada a Instrução Normativa nº 1.492, que alterou o artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013, adaptando-o ao artigo 72 da Lei nº 12.973/2014. Eis sua redação: “Art. 28. A parcela excedente de lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados entre 1º de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 2013 não ficará sujeita à incidência do IRRF, nem integrará a base de cálculo do Imposto sobre a Renda e da CSLL do beneficiário, pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliado no País ou no exterior. Parágrafo único. A parcela excedente de lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados no ano de 2014 deverá:

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I - estar sujeita à incidência do IRRF calculado de acordo com a Tabela Progressiva Mensal e integrar a base de cálculo do Imposto sobre a Renda na Declaração de Ajuste Anual do ano-calendário do recebimento, no caso de beneficiário pessoa física residente no País; II - ser computada na base de cálculo do Imposto sobre a Renda e da CSLL, para as pessoas jurídicas domiciliadas no País; III - estar sujeita à incidência do IRRF calculado à alíquota de 15% (quinze por cento), no caso de beneficiário residente ou domiciliado no exterior; e IV - estar sujeita à incidência do IRRF calculado à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento), no caso de beneficiário residente ou domiciliado em país ou dependência com tributação favorecida a que se refere o art. 24 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996.”

Poderia parecer, ao leitor apressado, que o artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 teria “legitimado” o artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013. Esta leitura, contudo, seria equivocada, como passamos a analisar.

4. A Ilegalidade do Artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013 Nos primeiros parágrafos deste texto foi afirmada a inutilidade do artigo 72 da Lei nº 12.973/2013. Agora é o momento de explicar melhor o que se quis dizer. Ora, os artigos 16 da Lei nº 11.941/2009 e 10 da Lei nº 9.249/95 já garantiam a possibilidade de distribuição de lucros e dividendos, calculados com base na contabilidade segundo os IFRS, sem que fosse necessária qualquer regra explícita nesse sentido. Dessa forma, na origem, o artigo 72 não acrescenta nada ao que já dispunha o ordenamento jurídico em vigor. Este dispositivo, portanto, foi uma consequência exclusiva da equivocada interpretação da Receita Federal formalizada na Instrução Normativa nº 1.397/2013. Em outras palavras, a regra seria desnecessária. Contudo, para sepultar o equívoco da Receita Federal, acabou sendo editada. Nada obstante, desde sua primeira versão veiculada pela Medida Provisória nº 627/2013, foram notados problemas redacionais que acabavam deixando de fora algumas situações que deveriam ser alcançadas pela regra. No caso do artigo 72, ficaram de fora do dispositivo os lucros auferidos em 2014 pelas empresas 326

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que seguirem até o fim do ano no RTT. Ora, a omissão do artigo 72 não pode ter o condão de legitimar a tributação de tais resultados, como passamos a ver.

4.1. Mais uma Vez: O Alcance do RTT no Artigo 16 da Lei nº 11.941/2009 O ponto central da crítica à interpretação da Receita Federal na Instrução Normativa nº 1.397/2013 refere-se ao alcance da neutralidade introduzida pelo RTT. A questão passa pela leitura cuidadosa do artigo 16 da Lei nº 11.941/2009, abaixo reproduzido: “Art. 16. As alterações introduzidas pela Lei nº 11.638, de 28 de dezembro de 2007, e pelos arts. 37 e 38 desta Lei que modifiquem o critério de reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro líquido do exercício definido no art. 191 da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica sujeita ao RTT, devendo ser considerados, para fins tributários, os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007. Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo às normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários, com base na competência conferida pelo § 3º do art. 177 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e pelos demais órgãos reguladores que visem a alinhar a legislação específica com os padrões internacionais de contabilidade.” (destaques nossos)

A interpretação que nos parece correta deste dispositivo leva à conclusão de que a dita neutralidade tributária do RTT seria restrita a modificações introduzidas pela nova contabilidade que tenham efeitos sobre critérios de reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro real. Essa leitura fica mais clara se quebrarmos o texto do artigo 16 da seguinte maneira, seguindo os destaques acima: • as alterações introduzidas pela Lei nº 11.638; • que modifiquem o critério de reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro líquido do exercício;

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• não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica sujeita ao RTT; • devendo ser considerados, para fins tributários, os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007. Ou seja, a lei, quando faz referência à utilização, para fins fiscais, da contabilidade em vigor em dezembro de 2007, não estabelece uma regra geral. Pelo contrário, tal padrão contábil apenas deverá ser utilizado nos casos em que tenham sido afetados critérios de reconhecimento de custo, despesa ou receita com consequente impacto sobre o cálculo do lucro líquido do exercício. Neste caso, é possível falar em uma neutralidade relativa do RTT, que parece ter sido o que foi instituído pelo artigo 16 da Lei nº 11.941/2009.730 Acreditamos que o erro da interpretação veiculado no Parecer nº 202, posteriormente refletido na Instrução Normativa nº 1.397/2013, está exatamente em desconsiderar a vinculação da regra do artigo 16 da Lei nº 11.941/2009 aos critérios de reconhecimento de custo, despesa ou receita que impactem o cálculo do lucro líquido do exercício. Com efeito, a leitura feita pela PGFN no mencionado parecer, que inspirou a instrução normativa antes mencionada, desconsiderou todo o miolo do artigo 16 em comento. Para chegar à conclusão de que a neutralidade tinha a abrangência ampla sustentada pela Fazenda, a leitura feita do referido dispositivo foi algo assim: • as alterações introduzidas pela Lei nº 11.638; • não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica sujeita ao RTT; • devendo ser considerados, para fins tributários, os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007. Ao ignorar a referência aos critérios de reconhecimento de custos, despesas e receitas, a PGFN criou uma nova neutralidade tributária, que não estava prevista 730 Nesse sentido, ver: PICONEZ, Matheus Bertholo. Dividendos e Juros sobre o Capital Próprio no Novo Modelo Contábil e seu Tratamento Tributário. In: MOSQUEIRA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos): 3º Volume. São Paulo: Dialética, 2012. p. 240.

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no artigo 16 da Lei nº 11.941/2009. Esta nova neutralidade seria ampla e abrangeria qualquer impacto tributário indireto que a nova contabilidade pudesse vir a ter. Como destacamos acima, esta leitura não parece refletir a correta interpretação do artigo 16, de modo que, segundo entendemos que tanto o Parecer nº 202, quanto a Instrução Normativa nº 1.397/2013, têm um vício técnico por se basearem em uma interpretação equivocada do alcance da neutralidade tributária do RTT.

4.2. Qual o Efeito do Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014? Partindo do que foi afirmado acima, há que se reconhecer que o artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 tem um mero efeito declaratório em relação ao período mencionado em seu texto, não sendo relevante, em relação aos lucros auferidos em 2014 pelas empresas que seguirem no RTT até o final do ano, a omissão legal. Aqui, voltamos uma vez mais ao que foi antes afirmado. Esta regra era desnecessária, já que o que ela estabelece já se encontrava prescrito no artigo 16 da Lei nº 11.941/2009 e no artigo 10 da Lei nº 9.249/95. O dispositivo em comento acabou nascendo da insegurança gerada pelo equívoco da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional na edição do Parecer nº 202, seguido do erro da Receita Federal ao publicar a Instrução Normativa nº 1.397/2013. Esta assertiva fica ainda mais clara na medida em que não é lógico nem razoável que um mesmo fato econômico tenha tratamentos diversos dentro do mesmo regime, que é o RTT. De fato, se os lucros e dividendos distribuídos entre 2008 e 2013 pelas pessoas jurídicas, no âmbito do RTT, seguiriam os padrões contábeis segundo os IFRS, não há qualquer razão para as empresas que se mantiverem no RTT em 2014 não poderem utilizar o mesmo critério. Entendimento em sentido diverso teria, obrigatoriamente, que partir da premissa de que a tributação pretendida pelo novo inciso 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013 teria sido instituída pelo artigo 72 da Lei nº 12.973. Uma leitura nesse sentido, além de não encontrar qualquer base na redação do artigo 72, levaria mais uma vez este artigo à ineficácia, ao menos em relação ao Imposto de Renda, já que a regra da anterioridade (artigo 150, inciso III, “b” e “c” da Constituição Federal731) faria com que, neste caso, o tributo 731 Vale lembrar que, por não ter sido convertida em lei em 2013, a Medida Provisória nº 627 não poderia ser aplicada já em 2014 (artigo 62, § 2º, da Constituição Federal).

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só pudesse ser cobrado a partir de 2015, o que seria contrário à pretensão de cobrança do imposto sobre os lucros auferidos em 2014. Diante do exposto, parece claro que o artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013 somente poderia ser considerada legal caso extraísse sua validade da legislação que antecedeu a Lei nº 12.973/2014, notadamente do artigo 16 da Lei nº 11.941/2009 e do artigo 10 da Lei nº 9.249/95. Concluindo-se que este não é o caso, como vimos, é inevitável reconhecer a ilegalidade do mencionado artigo 28.

4.3. Poderia o Artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 ser Considerado uma Regra de Isenção ou Remissão? O item 70 da Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 627/2013 tratou do seu artigo 67, antecedente do artigo 72 da Lei nº 12.973/2014. Veja-se abaixo sua redação: “70. Os arts 67 a 69 trazem medidas relativas à aplicação do Regime Tributário de Tributação no período de 2008 até 2013. O art. 67 estabelece a isenção dos lucros ou dividendos distribuídos até a data da publicação desta Medida Provisória em valor excedente ao lucro apurado com base nos critérios contábeis vigentes em 2007.” (Destaque nosso)

A regra prevista na Medida Provisória era distinta da prevista no artigo 72. Contudo, o que nos interessa e chama a atenção é a referência de que a regra em comento traria uma isenção. Embora a regra da irretroatividade, conforme prevista no artigo 150, III, “a” da Constituição Federal, não afaste expressamente a instituição de isenções retroativas, limitando-se a Constituição a prever uma regra de legalidade das desonerações fiscais (artigo 150, § 6º), parece que tal conceito seria incompatível com o Sistema Financeiro-Tributário como um todo. Regra geral, segundo o artigo 105 do Código Tributário Nacional, “a legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116”. Note-se que esta regra não faz referência expressa a normas tributárias impositivas, mas sim à legislação tributária. Portanto, salvo os casos previstos no artigo 106 do Código Tributário, a legislação tributária será sempre prospectiva e não retroativa. 330

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Além disso, e deixando as fronteiras do Código Tributário Nacional para entrar no território da Lei de Responsabilidade Fiscal, nota-se que a concessão de uma desoneração fiscal retroativa, na forma de isenção, muito dificilmente seria compatível com os requisitos previstos no artigo 14 da Lei Complementar nº 101/2001 para a renúncia de receita por parte do Estado. Afastada a possibilidade de se considerar a regra prevista no artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 como uma regra de isenção, restaria analisarmos o seu enquadramento como uma regra de remissão, o que chegou a ser cogitado por representantes da Receita Federal em manifestações não oficiais. O Código Tributário Nacional trata da remissão no seu artigo 172, a seguir transcrito: “Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: I - à situação econômica do sujeito passivo; II - ao erro ou ignorância excusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; III - à diminuta importância do crédito tributário; IV - a considerações de equidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso; V - a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante. Parágrafo único. O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155.”

Não é necessária uma leitura muito demorada deste dispositivo para concluirmos que o artigo 72 em comento não se amolda às situações para os quais o Código Tributário Nacional prevê a concessão de remissões. Tanto o tratamento como isenção quanto o tratamento como remissão do crédito tributário compartilham um mesmo defeito de origem: devem partir da premissa de que haveria (no caso da isenção) ou houve (no caso da remissão) a ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda (das pessoas físicas e jurídicas) e também da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido, no caso das pessoas jurídicas, e que seria uma necessária uma regra para afastar os respectivos efeitos fiscais. 331

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Nada obstante, como visto acima, nenhum tributo havia a se isentar ou perdoar, sendo o artigo 72 da Lei nº 12.973/2014 uma decorrência da interpretação equivocada cristalizada pela Receita Federal na Instrução Normativa nº 1.397/2014 e a consequente necessidade de restauração da segurança jurídica perdida.

5. Pelo Prestígio do Princípio da Moralidade Na primeira década deste século, notou-se uma mudança significativa na teoria e na prática relativas ao chamado planejamento tributário. Tornaram-se frequentes as defesas quanto à necessidade de comportamentos éticos por parte dos contribuintes, falando-se em uma moral tributária calcada no princípio da solidariedade e na compreensão do dever tributário como um dever fundamental. Há que se compreender, contudo, que a exigência de comportamentos éticos não é uma via de mão única. O princípio da moralidade é pedra angular do Estado brasileiro, exigindo do Poder Público condutas sérias, leais, motivadas e esclarecedoras, como pontua Humberto Ávila732. Já é passada a hora de se retomar o estudo da moralidade do Estado na esfera tributária, especialmente do controle da legitimidade das leis aprovadas pelo Poder Legislativo, à luz dos fins visados. Klaus Tipke, no mais conhecido estudo sobre Moral Tributária, advertiu sobre a deturpação do papel do Poder Legislativo no processo de criação de leis tributárias:

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fato muitos políticos tentaram no passado, sobretudo antes das eleições se tornar amados como Políticos do tax - and spend. Eles alimentaram muitos cidadãos beneficiários ou gratuitamente tais (taxeater), que podem decidir uma eleição, à custa dos contribuintes (taxpayer)”.733

Desde a Medida Provisória nº 627/2013, quando se pretendeu coagir o contribuinte a optar pela antecipação dos efeitos da lei para 2014, estava claro o intuito da Fazenda. Embora se tenha logrado conter em parte a pretensão fiscal na redação final da Lei nº 12.973/2014, ainda restou, clandestina, escamoteada, na penumbra, a tentativa de forçar as empresas a fazerem a opção pela antecipação dos efeitos da lei para 2014. É de se esperar uma resposta rápida do Poder Judiciário, afastando a aplicação do artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013, em respeito ao artigo 16 da Lei nº 11.941/2009 e ao artigo 10 da Lei nº 9.249/95.

6. Conclusão: Nasce um Litígio Por todo o exposto neste artigo, testemunha-se o nascimento de uma nova controvérsia entre o Fisco e os contribuintes, devendo estes postular perante o Poder Judiciário o afastamento, por ilegal, do artigo 28 da Instrução Normativa nº 1.397/2013, que contraria o disposto no artigo 16 da Lei nº 11.941/2009 e no artigo 10 da Lei nº 9.249/95.

“Aos parlamentos foi um dia incumbida a missão de proteger os cidadãos contra os tributos elevados ou exagerados. Hoje não defendem mais - assim é frequentemente criticado ou lamentado - os Parlamentos o ideal do Estado austero; eles se tornaram, pelo contrário, o motor das crescentes prestações públicas - e com isso necessariamente comprometidos com altos tributos. Endividamentos não podem ser ilimitadamente somados. Em outras épocas exortava o Parlamento o Ministro da Fazenda à moderação, hoje é muito frequentemente o contrário. Sobretudo as promessas de prestações públicas feitas antes da eleição é que engendram posteriormente crescentes necessidades de recursos tributários. ‘O deputado’ - assim descreve P. Kirchhof - credencia-se junto ao eleitor ... sobretudo como precursor para programas de gastos’. As constantes promessas de prestações públicas operam ‘como uma contínua previsão de aumentos de impostos’. De 732 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 119-122.

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733 TIPKE, Klaus. Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes. Tradução Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2012. p. 45.

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Parte 4 Tributação

Internacional

A Lei n. 12.973/2014 e os Tratados Internacionais Tributários Celebrados pelo Brasil (2015)

1. Introdução A tributação de lucros auferidos por controladas e coligadas de empresas brasileiras no exterior trata-se de um dos temas mais controvertidos em matéria tributária nas últimas décadas. Os casos, administrativos e judiciais, multiplicaram-se durante a vigência do artigo 74 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001 (“MP 2.158”). O ápice dessa controvérsia foi o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, em 2013, da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.588 (“ADI 2.588”). Várias questões restaram em aberto após a decisão proferida pelo STF na ADI 2.588, conforme já comentamos em outra oportunidade734. Uma das matérias que não foi resolvida no julgamento proferido pela Suprema Corte foi exatamente a relação da regra prevista no artigo 74 da MP 2.158 com os tratados internacionais tributários celebrados pelo Brasil735. Esta matéria, relativa à aplicação das convenções internacionais tributárias no contexto da tributação de lucros auferidos no exterior, é objeto de diversos processos que tramitam perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”)736. Além de ser alvo de grande controvérsia administrativa, a matéria em questão também foi judicializada, tendo sido objeto de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 1.325.709, que

734 ROCHA, Sergio André. Tributação de Lucros Auferidos no Exterior (Lei n. 12.973/14). São Paulo: Dialética, 2014. p. 21-49. 735 São importantes duas ressalvas. Em primeiro lugar, neste texto as palavras tratado, acordo e convenção serão utilizadas como sinônimas. Em segundo, as menções a tratados, convenções e acordos tributários referem-se às convenções sobre a tributação da renda e do capital. 736 Comentamos algumas dessas decisões em trabalho anterior: (ROCHA, Sergio André, Tributação de Lucros Auferidos no Exterior (Lei n. 12.973/14), 2014, p. 67-73). Posteriormente à edição deste trabalho outras decisões importantes foram proferidas pelo CARF.

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agora encontra-se sob revisão pelo Supremo Tribunal Federal, onde está será examinada nos autos do Recurso Extraordinário n. 870.214. Tanto nós, quanto vários outros autores, escrevemos páginas e mais páginas a respeito dos fundamentos da incompatibilidade do artigo 74 da MP 2.158 com os tratados internacionais tributários737. Dessa maneira, parece-nos improdutivo voltar à análise de todos os argumentos existentes para se sustentar a inaplicabilidade de tais regras diante do disposto nos tratados em questão. Portanto, tendo deixado claro que nosso escopo não é retomar a discussão sobre os argumentos em razão dos quais se sustenta que os tratados internacionais afastam a aplicação do artigo 74 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001, delimitaremos o objeto deste breve texto na análise dos seguintes aspectos: 1. se a entrada em vigor da Lei n. 12.973/2014 (“Lei 12.973”) trouxe alguma modificação substantiva aos termos em que se debatia a matéria no contexto do artigo 74 da MP 2.158; 2. se a aplicação do artigo 7 das convenções internacionais celebradas pelo Brasil implicaria em mero diferimento da tributação para o momento da disponibilização via pagamento ou crédito dos lucros auferidos no exterior, ou se, sendo aplicável este dispositivo, teríamos o integral e definitivo afastamento da competência tributária do Estado brasileiro; e 3. qual o alcance dos tratados internacionais em relação à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.

2. A Entrada em Vigor da Lei 12.973 Alterou os Termos do Debate Acerca da Aplicação dos Tratados Internacionais? Em outro estudo, analisamos detidamente a aplicação dos artigos 7 e 10 dos tratados brasileiros, das regras de isenção de dividendos previstas em alguns tratados e das convenções que possuem regras específicas vedando a tributação de lucros não distribuídos, de modo que, como mencionado, não voltaremos a esses temas738.

737 Para uma revisão da matéria e da bibliografia aplicável, ver: ROCHA, Sergio André, Tributação de Lucros Auferidos no Exterior (Lei n. 12.973/14), 2014, p. 50-67. 738 ROCHA, Sergio André, Tributação de Lucros Auferidos no Exterior (Lei n. 12.973/14), 2014, p. 50-67.

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De todos os argumentos baseados em tratados internacionais para afastar o artigo 74 da MP 2.158, o que se tornou mais usual foi o fundado no artigo 7 das convenções. Tal se deu pelo fato de que este dispositivo encontra-se presente em todos os hoje trinta e dois tratados brasileiros em vigor. Como se sabe, o artigo 7 dos tratados firmados pelo Brasil cuidam da tributação dos chamados “Lucros das Empresas”, corporificando a regra geral de que tais lucros somente devem ser tributados no país de residência da empresa que os gerou, a não ser que esta atue no outro país por intermédio de um estabelecimento permanente. Há várias críticas que podem ser tecidas contra a redação deste dispositivo, especialmente da perspectiva de um país em desenvolvimento739. Contudo, este é um dos artigos onde os tratados brasileiros claramente preferiram o Modelo de Convenção da OCDE740, em comparação ao Modelo da ONU. A controvérsia a respeito da aplicação do artigo 7 dos tratados brasileiros, no que se refere ao artigo 74 da MP 2.158, dava-se fundamentalmente em função de este dispositivo referir-se à inclusão do lucro auferido pela controlada ou coligada no exterior na base de cálculo do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (“CSLL”). Quando da entrada em vigor da Lei 12.973 ficou claro, logo no primeiro instante, que se tinha buscado, mediante a alteração da redação do texto normativo, modificar a materialidade sujeita à tributação. Não é por outra razão que o artigo 77 da nova lei não faz mais referencia à adição, na apuração da do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, do lucro da controlada direta ou indireta no exterior. De fato, este dispositivo determina a adição da parcela do ajuste do valor do investimento em controlada direta ou indireta no exterior. A uma primeira vista, poder-se-ia assumir que a Lei 12.973 teria modificado o aspecto material da regra de incidência do Imposto de Renda e da CSLL no que tange aos resultados de controladas de empresas brasileiras situadas no

739 Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Imperialismo Fiscal Internacional e o “Princípio” do Estabelecimento Permanente. In: ROCHA, Sergio André. Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 88-99. 740 Ver: SCHOUERI, Luís Eduardo; SILVA, Natalie Matos. Brazil. In: LANG, Michael et. al. (Coords.). The Impact of the OECD and UN Model Conventions on Bilateral Tax Treaties. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. p. 177.

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exterior. Contudo, esta primeira conclusão não sobrevive à mais perfunctória análise do artigo 77 da nova lei. Com efeito, já o caput do artigo 77 da Lei 12.973 estabelece que a tal parcela do ajuste do valor do investimento é equivalente aos lucros por ela auferidos antes do imposto de renda. Ou seja, adotou-se longa expressão para se referir ao mesmo conceito previsto na legislação anterior: o lucro. Este fato ficou ainda mais evidente diante da redação do parágrafo 1 do artigo 77, o qual fez questão de reforçar que “a parcela do ajuste de que trata o caput compreende apenas os lucros auferidos no período, não alcançando as demais parcelas que influenciaram o patrimônio líquido da controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior”. Parece-nos completamente evidente que a materialidade tributável, no contexto da Lei 12.973, é a mesmíssima que era passível de tributação sob o artigo 74 da MP 2.158: o lucro741. É interessante observar que a própria redação da Lei 12.973 é contraditória sobre a matéria. Por exemplo, ao examinarmos o artigo 86 da lei, que trata das deduções referentes a ajustes de preços de transferência e da aplicação das regras de subcapitalização, a lei estabeleceu que tal dedução somente seria possível desde que “os lucros auferidos no exterior tenham sido considerados na respectiva base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica – IRPJ e da CSLL da pessoa jurídica controladora domiciliada no Brasil”. Nota-se que no artigo 86 a lei não fez referencia à parcela do ajuste do valor do investimento, mas sim ao lucro, que de resto é a materialidade tributável efetivamente prevista no artigo 77 da Lei 12.973. Não parece haver qualquer dúvida, portanto, de que o fato econômico passível de tributação, seja na MP 2.158, seja na Lei 12.973, é o mesmo, o lucro da controlada localizada no exterior742. Tão evidente quando à conclusão de que nada mudou no que se refere à materialidade tributável no que se refere aos lucros auferidos por controladas no exterior é o fato de que a nova redação não foi aleatória. Ela foi trabalhada pela Receita Federal e defendida durante todo o processo legislativo de tramitação da Medida Provisória n. 627/13. Sendo assim, é possível afirmar que se buscou, 741 ROCHA, Sergio André, Tributação de Lucros Auferidos no Exterior (Lei n. 12.973/14), 2014, p. 88-92. 742 Nesse sentido: ROCHA, Sergio André, Tributação de Lucros Auferidos no Exterior (Lei n. 12.973/14), 2014, p. 92-94.

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mediante a alteração da redação do texto normativo, afastar discussões a respeito da inconstitucionalidade do artigo 77 da Lei 12.973, assim como, no que tange à matéria que aqui nos interessa, afastar discussões a respeito da aplicação do artigo 7 das convenções internacionais tributárias celebradas pelo Brasil. Os debates sobre as relações entre forma e substância evoluíram significativamente no Brasil nas últimas décadas. É estranho perceber que a instituição que mais postula a prevalência da substância sobre a forma jurídica de transações, que é o caso da Receita Federal do Brasil, busque se excluir de uma controvérsia judicial posta mediante mera alteração redacional em um dispositivo, inovando com a expressão “parcela do ajuste do valor do investimento”, apenas para defini-la pela palavra prevista na legislação anterior: lucros. Esta patológica situação foi observada por Alberto Xavier, que ao se referir à criação da dita “parcela do ajuste do valor do investimento” asseverou que “esta arrevesada e gongória nomenclatura visa não reconhecer formalmente que o objeto da tributação são os próprios lucros das empresas estrangeiras, e não o lucro da empresa brasileira decorrente da variação de valor dos investimentos, o que pode ter sérias implicações jurídicas, teóricas e práticas, no que concerne à aplicação dos tratados contra a dupla tributação”743. A mesma crítica foi feita por Paulo Ayres Barreto. Em suas palavras, “logo se vê ser absolutamente equivocada a interpretação de que a nova legislação não alcança os lucros das controladas e coligadas no exterior, mas apenas o seu reflexo no patrimônio da investidora, pelos resultados positivos da equivalência patrimonial. Trata-se de mero jogo de palavras, em tentativa de se camuflar uma tributação sobre os lucros no exterior, que conflita com o artigo 7o dos tratados internacionais para evitar a dupla tributação”744. É importante destacar que a opinião colocada acima de que, em termos materiais, nada mudou, claramente não significa que o novo regime seja igual ao anterior. Obviamente tal não é o caso e uma das principais diferenças entre as sistemáticas decorre da previsão, no artigo 77 da Lei 12.973, da obrigação de adição dos lucros auferidos por controladas, diretas e indiretas. 743 XAVIER, Alberto. A Lei n. 12.973, de 13 de Maio de 2014, em Matéria de Lucros no Exterior: Objetivos e Características Essenciais. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões atuais de Direito Tributário: 18 Volume. São Paulo: Dialética, 2014. p. 14-15 744 BARRETO, Paulo Ayres; TAKANO, Caio Augusto. Tributação do Resultado de Coligadas e Controladas no Exterior, em face da Lei n. 12.973/2014. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões atuais de Direito Tributário: 18 Volume. São Paulo: Dialética, 2014. p. 371.

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Ao prever a tributação, de forma independente, de controladas diretas e indiretas, a nova lei efetivamente alterou o regime de aplicação dos tratados internacionais. Um dos temas controversos no regime anterior era se a presença de uma holding situada em um país que tivesse tratado celebrado com o Brasil seria suficiente para viabilizar a aplicação do acordo internacional745. Esta discussão, sob o regime da Lei 12.973, desaparece, uma vez que os lucros das controladas indiretas serão tributados de forma individualizada e independente. Dessa maneira, se a controlada indireta não estiver situada em país que tenha celebrado tratado tributário com o Brasil o fato de a controlada direta estar em país que tenha tal tratado não será suficiente para evitar a tributação no Brasil.

3. Qual o Efeito da Aplicação do Artigo 7 das Convenções Internacionais Tributárias Celebradas pelo Brasil? Vimos, no item anterior, que seja no regime do artigo 74 da MP 2.158, seja o regime atual, adotado pela Lei 12.973, a controvérsia a respeito da aplicação do artigo 7 das convenções celebradas pelo Brasil se põe da mesma maneira. Tendo esta conclusão como premissa, vale a pena comentar qual é o efeito da aplicação de tal dispositivo convencional, se mero diferimento da tributação para o momento do pagamento ou crédito dos lucros para a empresa brasileira; ou se verdadeira exclusão definitiva do lucro da empresa estrangeira da competência tributária brasileira. Aqui, vale a pena retornarmos à análise da materialidade passível de tributação dos dois regimes: anterior e atual. No regime anterior, o fato econômico tributável estava previsto no artigo 25 da Lei n. 9.249/1995, que estabeleceu serem passíveis da incidência do Imposto de Renda “os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior”. Ou seja, tendo em vista a matéria que nos interessa neste artigo, vê-se claramente que o legislador estabeleceu a tributação dos lucros auferidos no exterior. Posteriormente à Lei n. 9.249/1995, foram editadas a Lei n. 9.532/1997 e a já mencionada MP 2.158. Contudo, como bem observado por André Martins de Andrade, ambos diplomas legislativos não alteraram o aspecto material da

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incidência, mas apenas o seu aspecto temporal746. Ou seja, seguiram tributáveis os lucros auferidos no exterior, os quais seriam considerados disponibilizados nos momentos previstos nas referidas lei e medida provisória. Ora, se o fato econômico passível de incidência fiscal, sob o regime anterior, era aquele previsto no artigo 25 da Lei n. 9.249/1995, que estabelecia a tributação dos lucros auferidos pela empresa estrangeira; e se o artigo 7 das convenções internacionais tributárias celebradas pelo Brasil estabelece a competência exclusiva do país de residência para a tributação de tais lucros, a conclusão a que se chega é que a aplicação o mencionado artigo 7 leva à não tributação dos lucros estrangeiros no Brasil, não apenas no momento em que foram auferidos, mas a qualquer tempo. Dessa maneira, havendo, posteriormente à apuração do lucro pela empresa estrangeira, sua distribuição para a investidora brasileira, este evento, em si, deveria ser indiferente para fins tributários, uma vez que a distribuição do dividendo não era prevista como fato tributável no regime anterior à Lei 12.973747. Se a conclusão acima já se impunha no regime anterior, ela fica ainda mais evidente sob a sistemática da Lei 12.973. Com efeito, analisando-se as regras referentes aos lucros auferidos por controladas no exterior previstas na Lei 12.973 nota-se que em nenhum momento esta lei previu a distribuição de dividendos como aspecto material da incidência do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro. De acordo com a aludida lei, a materialidade tributável seria a tal parcela do ajuste do valor do investimento que, para nós, nada mais é do que o lucro auferido pela controlada, direta ou indireta, no exterior. No que tange à tributação de controladas, a única referencia feita ao pagamento de dividendos para o Brasil encontra-se prevista no artigo 90 da Lei 12.973, que prevê a distribuição de lucros como uma espécie de evento de aceleração do vencimento do tributo cujo pagamento foi postergado. Assim sendo, em se decidindo que o artigo 7 dos tratados brasileiros afasta a aplicação da Lei 12.973, decorreria daí que os lucros auferidos pela controlada

746 ANDRADE, André Martins de. A Tributação Universal da Renda Empresarial: Uma Proposta de Sistematização e uma Alternativa Inovadora. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008. p. 285. 745 Ver: XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 421-422; ANDRADE, André Martins de. A Tributação Universal da Renda Empresarial: Uma Proposta de Sistematização e uma Alternativa Inovadora. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008. p. 256-257.

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747 Ver: ANDRADE, André Martins de Andrade. Por uma Interpretação da Tributação em Bases Universais Conforme a Constituição. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Direito Tributário e Ordem Econômico: Homenagem aos 60 Anos da ABDF. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 688.

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no exterior não deveriam ser jamais tributados no Brasil, em razão da aplicação da regra atributiva de competência tributária exclusiva ao país de residência, prevista no mencionado artigo 7.

4. Os Tratados Internacionais Afastam a Incidência da CSLL? Uma questão controvertida a respeito dos tratados internacionais celebrados pelo Brasil é sua aplicação no que se refere à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Não faz parte da política brasileira de celebração de tratados internacionais incluir a CSLL entre os tributos sobre os quais a convenção se aplica. De fato, após a criação da contribuição apenas os tratados com Bélgica, Portugal e Trinidad e Tobago fazem referencia expressa à contribuição. Daí, na falta de uma regra expressa, a questão teria que ser resolvida com base na regra prevista no artigo 2 dos tratados celebrados pelo Brasil748, que estende a sua aplicação aos impostos idênticos ou substancialmente similares aos abrangidos pelo acordo que forem introduzidos em cada Estado contratante após a celebração da convenção. Em primeiro lugar, as convenções brasileiras nos apresentam um problema semântico. Com efeito, elas fazem uso da palavra “impostos” no artigo 2. Assim sendo, uma interpretação meramente formal dos tratados poderia levar à conclusão que apenas a criação de um novo imposto, enquanto espécie tributária, ensejaria a aplicação desse dispositivo. Esta linha interpretativa parece-nos inadequada diante da estrutura do Sistema Tributário Nacional, uma vez que, considerando a desvirtuação funcional das contribuições749, as mesmas poderiam ser utilizadas para se evitar o cumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais.

748 Trata-se do artigo 2 (4) dos Modelos de Convenção da OCDE e da ONU, que normalmente aparece como artigo 2 (2) nos tratados brasileiros. 749 Socorrendo-nos da lição de Ricardo Lobo Torres, temos que “o financiamento às ações de saúde e assistência social se faz primordialmente com a arrecadação de contribuições exóticas incidentes sobre toda a sociedade, que na realidade, do ponto de vista econômico, são impostos com destinação especial” (TORRES, Ricardo Lobo. Aspectos Fundamentais e Finalísticos do Tributo. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Tributo: Reflexão Multidisciplinar sobre sua Natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 46).

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Dessa forma, apenas o mais incontido formalismo jurídico750 para sustentar que a regra que protege a integridade da convenção internacional contra alterações legislativas futuras somente se aplicaria a impostos, não alcançando um tributo como a CSLL, que é substancialmente idêntica ao Imposto de Renda. Deixando esta questão para trás, surge outra que impõe reflexão. De fato, o dispositivo convencional de que ora tratamos apenas estabelece a aplicação do tratado a tributos substancialmente semelhantes introduzidos após a sua celebração. Seguindo essa linha de raciocínio, e considerando que a CSLL foi criada pela Lei n. 7.689/88, poderíamos afirmar que, em relação a todos os tratados celebrados anteriormente à data de entrada em vigor desta lei, a CSLL estaria automaticamente incluída no escopo objetivo da convenção, por se tratar de tributo novo, substancialmente semelhante ao Imposto de Renda. Resta, então, o caso mais complexo, referente ao tratamento a ser dispensado à CSLL no caso dos tratados celebrados posteriormente à Lei n. 7.689/88 e que não fazem referencia à CSLL. A questão foi analisada por Alberto Xavier, cuja abordagem deve ser separada em dois aspectos: temporal e substantivo. Em relação ao que estamos chamando de aspecto temporal, Alberto Xavier argumenta que o momento de corte para a aplicação à CSLL da regra do tratado sobre novos tributos não seria a edição da Lei n. 7.689/88, mas sim entrada em vigor da Medida Provisória n. 1.858-7/99751, que estendeu a tributação em bases mundiais para a CSLL. Seguindo essa lógica, argumenta o citado autor que “a introdução do princípio da universalidade permite, pois, sustentar que as convenções celebradas posteriormente à entrada em vigor da CSL, mas anteriores à consagração do princípio da universalidade, aplicam-se também automaticamente à CSL, por força da cláusula residual equivalente à disposição do art. 2o, § 4o, da Convenção Modelo OCDE, pois a consagração daquele princípio constitui a previsão de um fato gerador novo (lucro ou rendimento no exterior) equiparável à instituição de tributo em adição àquele já existente”752.

750 Sobre o formalismo jurídico, ver: ROCHA, Sergio André. O que é Formalismo Tributário? Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 227, ago. 2014, p. 146-155. 751 Sobre o tema, ver: UCKMAR, Victor; GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André et. al. Manual de Direito Tributário Internacional. São Paulo: Dialética, 2012. p. 311. 752 XAVIER, Alberto, Direito Tributário Internacional do Brasil, 2010, p. 125.

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A tese de Alberto Xavier é bastante persuasiva. Porém, deixa-nos ela com um problema a ser resolvido. O Brasil tem hoje 32 tratados em vigor. Desse total, 21 foram celebrados quando o País tributava a renda em bases territoriais753. Vê-se, assim, que essa causalidade entre inclusão do tributo na convenção internacional e tributação em bases universais não existe de forma cartesiana na política brasileira de celebração de tratados. Os tratados celebrados na fase de tributação territorial o foram para estimular o investimento estrangeiro no Brasil, principalmente garantindo a compensação da tributação de fonte brasileira no exterior, numa época em que alguns países não tinham regras domésticas garantindo tal compensação. A não incidência da CSLL na fonte sobre pagamentos, créditos, entregas, empregos ou remessas de rendimentos para o exterior poderia reforçar o argumento de Alberto Xavier. No caso de tratados celebrados entre 1988 e 1995 o Imposto de Renda e a CSLL seriam idênticos em relação à sua aplicação à residentes no Brasil, ambos os tributos eram territoriais. A única diferença apontável então seria que o Imposto de Renda também gravava não residentes, enquanto a CSLL não incidia sobre tais fatos econômicos. Avançando na discussão da matéria, resta definir qual o tratamento a ser dispensado aos tratados celebrados após existência da CSLL – adote-se a entrada em vigor da Lei n. 7.689/88 ou o início da tributação em bases universais pela CSLL como corte. Aqui entra em cena o aspecto substancial da abordagem de Alberto Xavier. De acordo com sua doutrina “ainda que tais convenções celebradas a partir de 1999 não contenham esclarecimento similar [no sentido da inclusão da CSLL no âmbito objetivo do tratado], as mesmas conclusões são aplicáveis, pois o Governo Brasileiro, em ato de natureza interpretativa, já afirmou que o imposto federal sobre a renda ‘compreende’ não só o imposto de renda, como a contribuição social sobre o lucro, de natureza idêntica, sendo inimaginável que uma ‘interpretação’ oficial possa ser válida para um país (por exemplo, Bélgica ou Portugal) e desconsiderada para outro”754. Em relação a esta questão divergimos do professor Alberto Xavier. Em sua interpretação, os tratados que reconheceram expressamente a inclusão da CSLL 753 Ver: SCHOUERI, Luís Eduardo. Contribuição à História dos Acordos de Bitributação: a Experiência Brasileira. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 22, 2008, p. 267-268. 754 XAVIER, Alberto, Direito Tributário Internacional do Brasil, 2010, p. 126.

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em seu escopo teriam uma espécie de eficácia integrativa em relação aos que não a reconheceram. Já sustentamos em outra ocasião discordância com a atribuição de efeitos vinculantes ao intérprete aos chamados tratados paralelos, como são referidos os tratados celebrados com outros países que não aquele objeto de interpretação755. Dessa maneira, não nos parece possível atribuir uma eficácia declaratória a tais regras. Os tratados tributários são fruto de uma negociação bilateral, de modo que a inclusão da CSLL em alguns tratados, e não em outros, indica não uma eficácia declaratória, mas sim o resultado de uma negociação específica com aquele Estado em cujo tratado aparece a contribuição. Note-se que, da perspectiva do outro Estado signatário do tratado não há nenhum prejuízo com a inclusão da CSLL, do contrário. Dessa forma, a ausência desta contribuição na maioria dos tratados celebrados após sua instituição não deve ser vista como mera omissão, mas sim como parte da política brasileira de negociação de convenções internacionais.

5. Conclusão Diante dos comentários anteriores, e tendo em conta as questões que colocamos na introdução deste estudo, é possível apresentar as seguintes conclusões: 1. No que se refere às controladas, o fato econômico sujeito à tributação, nos regimes da MP 2.158 e da Lei 12.973, é o mesmo: o lucro auferido pela empresa situada no exterior. 2. Sendo aplicável o artigo 7 dos tratados brasileiros, a consequência é que os lucros auferidos pela empresa controlada estrangeira não se sujeitarão à tributação no Brasil, seja no momento de sua apuração, seja naquele de sua disponibilização efetiva via pagamento ou crédito. 3. Por fim, no que se refere à aplicação dos tratados internacionais à CSLL, concluímos que, nos casos em que não há referência à CSLL na convenção: a. o fato de os tratados celebrados pelo Brasil fazerem referencia, em seus artigos 2, a “impostos”, não afasta a aplicação deste dispositivo às 755 ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados Para Evitar a Bitributação da Renda. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 200-201.

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contribuições, como por vezes sustentam as autoridades fiscais; b. assim sendo, em relação aos tratados celebrados antes da entrada em vigor da Lei n. 7.689/88 não parece haver dúvidas quanto à inclusão da CSLL no escopo objetivo da convenção; c. é possível argumentar, com Alberto Xavier, que o marco para se identificar o momento de criação da CSLL não seria a entrada em vigor da Lei n. 7.689/88, mas sim a da Medida Provisória n. 1.858-7/99, que estabeleceu a tributação em bases universais para a contribuição; d. seja como for, adote-se um ou outro corte temporal, para os tratados posteriores ao que se considere momento de instituição da CSLL não se poderia cogitar de sua aplicação à contribuição, salvo menção expressa nesse sentido; e. dessa forma, para os tratados que se enquadrem neste último caso, a convenção internacional apenas afastaria a incidência da Lei 12.973 em relação ao Imposto de Renda, e não à CSLL.

A Sujeição Passiva no IRRF de Não Residentes (2015)

1. Introdução Analisando-se a doutrina a respeito da sujeição passiva do Imposto de Renda Retido na Fonte (“IRRF”) sobre o pagamento, crédito, entrega, emprego ou remessa de rendimentos ou proventos de qualquer natureza para não residentes, identifica-se uma posição majoritária no sentido que a fonte pagadora residente no Brasil figuraria como substituto tributário do não residente. Segundo Alberto Xavier, “os casos de retenção exclusiva na fonte enquadram-se na figura jurídica da substituição tributária, elaborada pelas doutrinas alemã e italiana (como instituto autônomo em relação à ‘responsabilidade tributária’ em sentido técnico) e que foi amplamente acolhida na doutrina brasileira, que a concebe como uma modalidade de responsabilidade”756. Para Heleno Taveira Tôrres, “neste caso (retenção), a fonte pagadora se caracteriza como substituto tributário, funcionando como um intermediário no sistema de arrecadação, haja vista sua privilegiada situação em relação ao fato gerador do tributo e ao contribuinte”757. Renato Nunes, em trabalho monográfico sobre o IRRF de não residentes, traz afirmação na mesma linha, no sentido de que estaríamos diante de modelo “que a doutrina comunmente denomina substituição tributária, em que o tributo deve ser recolhido por pessoa diversa do contribuinte - aquele que guarda relação pessoal e direta com o fato jurídico tributário”758. Com a devida vênia, não concordamos com a posição apresentada pelos citados autores. Parece-nos que quem melhor sumariou a natureza jurídica do dever de retenção foi Sacha Calmon Navarro Coêlho, para quem “quanto aos 756 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 452. 757 TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação Internacional sobre as Rendas das Empresas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 134. 758 NUNES, Renato. Imposto sobre a Renda Devido por Não Residentes no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 204.

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‘retentores de tributos’ (desconto na fonte), estes são pessoas obrigadas pelo Estado a um ato material de fazer (fazer a retenção de imposto devido por terceiros). Devem, assim, reter e recolher ao Estado o tributo devido. Não são sujeitos passivos de obrigação tributária, mas antes sujeitados a uma potestade administrativa. Podem, entretanto, se a lei de cada tributo assim dispuser, ficar ‘responsáveis’ pelo tributo não recolhido. Nesse caso, formarão uma espécie diferenciada de ‘responsáveis’ por dívida tributária alheia. O fator de sub-rogação será o inadimplemento do dever de reter. A estes, evidentemente, não são transferíveis as multas. Poderão, isto sim, responder pela própria mora e ser multados por ela, caso a lei assim o determine”. Ao final, afirma Sacha Calmon “discordamos da tese que reúne sobre uma só categorização os substitutos legais tributários e os retentores de tributos alheios”759. Seguindo esta linha de entendimento, que é acompanhada também por Luís Eduardo Schoueri, que baseou sua convicção nas lições de Brandão Machado760, no caso dos agentes de retenção, a relação jurídica tributária seria estabelecida entre o Estado e o contribuinte, ao passo que se estabeleceria uma outra relação jurídica, de natureza administrativa, entre o Estado e o agente de retenção, delegatário da função de arrecadar o tributo incidente sobre fluxos financeiros sobre os quais tenha controle761. Posta a controvérsia, não nos interessa, neste texto, aprofundar no debate acadêmico acerca da natureza jurídica da responsabilidade do agente de retenção. Com efeito, o que nos importa, no presente artigo, é analisar os reflexos, para o contribuinte e o agente de retenção, da sistemática de retenção na fonte do Imposto de Renda incidente sobre pagamentos, créditos, entregas,

759 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 613. 760 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 488-490. 761 Nesse mesmo sentido é o entendimento de Luís Cesar Souza de Queiroz, para quem: “A substituição tributária é um fenômeno jurídico que decorre da coexistência de duas normas de conduta de natureza diversa e inconfundível: uma - a norma jurídica tributária, que determina em seu consequente a obrigação de, a título de tributo, o contribuinte entregar certo valor em dinheiro ao Estado-Fiscal (que é representado pelo substituto tributário, mero agente arrecadador) ou permitir que o EstadoFiscal (representado pelo substituto tributário, mero agente arrecadador), dele retire certa importância; outra - a norma jurídica administrativo-fiscal, que determina e seu consequente a obrigação de o substituto tributário (que atua como órgão meramente arrecadador) entregar (repassar) ao Estado o dinheiro recebido ou retido do contribuinte” (QUEIROZ, Luís Cesar Souza de. Imposto sobre a Renda: Requisitos para uma Tributação Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 299).

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empregos ou remessas de renda ou proventos de qualquer natureza para não residentes. Este será o objeto deste artigo.

2. Da Sujeição Passiva do IRRF O contribuinte do IRRF no caso de pagamentos, créditos, entregas, empregos ou remessas de renda ou proventos de qualquer natureza provenientes do país está previsto no artigo 682, I, do Regulamento do Imposto de Renda (“RIR”), abaixo transcrito: “Art. 682. Estão sujeitos ao imposto na fonte, de acordo com o disposto neste Capítulo, a renda e os proventos de qualquer natureza provenientes de fontes situadas no País, quando percebidos: I - pelas pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior; [...].”

Nota-se, portanto, que o contribuinte do IRRF, nas situações em exame neste artigo, é a pessoa física ou jurídica não residente cuja capacidade contributiva está sendo alcançada pela tributação brasileira. Segundo o artigo 717 do Regulamento do Imposto de Renda (“RIR”), “compete à fonte reter o imposto de que trata este Título, salvo disposição em contrário”. A seu turno, estabelece o artigo 722 do RIR que “a fonte pagadora fica obrigada ao recolhimento do imposto, ainda que não o tenha retido”. De acordo com o parágrafo único deste dispositivo, “no caso deste artigo, quando se tratar de imposto devido como antecipação e a fonte pagadora comprovar que o beneficiário já incluiu o rendimento em sua declaração, aplicar-se-á a penalidade prevista no art. 957, além dos juros de mora pelo atraso, calculados sobre o valor do imposto que deveria ter sido retido, sem obrigatoriedade do recolhimento deste”. A regra que parece embasar as interpretações no sentido de que o agente de retenção, no caso de pagamentos, créditos, empregos, entregas ou remessas de renda ou proventos de qualquer natureza para não residentes, seria um substituto tributário, é a prevista no artigo 842 do RIR, abaixo transcrito: “Art. 842. Quando houver falta ou inexatidão de recolhimento do imposto devido na fonte, será iniciada a ação fiscal, para exigência do imposto, pela repartição competente, que intimará a fonte ou o procurador a efetuar o recolhimento do imposto devido, com o acréscimo da 351

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multa cabível, ou a prestar, no prazo de vinte dias, os esclarecimentos que forem necessários, observado o disposto no parágrafo único do art. 722”. (Destaques nossos)

Este artigo deixa claro que, nos casos em que não houver retenção na fonte em operações com não residentes, em que o IRRF incide de forma definitiva, a Receita Federal do Brasil somente autuará a fonte brasileira, nunca a pessoa física ou jurídica não residente. A regra prevista no artigo 842 do RIR é uma consequência inexorável da territorialidade do exercício da função fiscal pelas autoridades administrativas brasileiras. Ou seja, diante da impossibilidade fática de a autoridade brasileira buscar a satisfação de seu crédito tributário no país do não residente, volta-se a mesma contra o responsável tributário residente no Brasil. Este cenário tende a mudar. A tônica da tributação internacional contemporânea apoia-se nos pilares de transparência e assistência administrativa, de modo que é de se esperar que, muito em breve, a territorialidade da função fiscal seja substituída por sua universalidade. Entretanto, a legislação como se encontra posta hoje deixa claro que a Receita Federal não buscaria a satisfação de seu crédito tributário junto ao não residente. Se este for considerado o critério para a identificação da substituição tributária (o fato de a autoridade fiscal brasileira, no caso de não retenção, buscar a satisfação de seu crédito tributário contra o responsável, e não o contribuinte), então evidentemente estar-se-á diante de uma hipótese de substituição tributária. Contudo, e este parece ser o aspecto mais importante aqui, trata-se este aspecto de questão de direito tributário formal, meramente acidental, a qual não altera a relação jurídica tributária que se forma entre a União Federal e o contribuinte (não residente), diante da ocorrência do fato gerador. Em outras palavras, ocorrido o fato gerador, surgem duas relações jurídicas. Uma de direito tributário, que se estabelece entre a União Federal e a pessoa física ou jurídica não residente, contribuinte do IRRF; e outra, de natureza administrativa, que se estabelece entre a União Federal e o agente de retenção, pela qual este assume o dever de reter e recolher o IRRF aos cofres públicos. Caso este não cumpra seu dever de retenção e recolhimento, e somente neste caso será o agente de retenção responsável pelo recolhimento do tributo ao Estado.

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3. Posição Jurídica do Contribuinte e do Agente de Retenção Após essas considerações preliminares chegamos, finalmente, ao ponto mais importante deste breve estudo, referente aos efeitos da posição jurídica do contribuinte e do agente de retenção no caso do IRRF. Começaremos esta análise pela questão mais polêmica quanto ao tema: a legitimidade ativa para repetição de indébito no caso de pagamento indevido ou a maior.

3.1. Legitimidade Ativa para a Repetição de Indébito de IRRF Ao analisarmos a legitimidade ativa para a repetição de indébito de IRRF incidente sobre pagamentos, créditos, empregos, entregas ou remessas de rendimentos ou proventos de qualquer natureza para não residentes, devemos considerar, em primeiro lugar, o caso base onde o agente de retenção no Brasil efetivamente retém o valor do imposto do pagamento feito ao não residente, recolhendo o tributo aos cofres públicos. Para Alberto Xavier, mesmo nesse tipo de situação “caso o imposto de renda na fonte tenha sido, por erro, recolhido a maior, o contribuinte não tem legitimidade para solicitar a respectiva restituição por via administrativa ou judicial. Esta legitimidade compete ao sujeito passivo (art. 165 do Código Tributário Nacional), que é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo (art. 121), no caso, a fonte pagadora responsável”762. Portanto, em sua opinião, a legitimidade ativa para a repetição do indébito seria do agente de retenção no Brasil. Não nos parece, contudo, que esta seja a melhor interpretação dos dispositivos antes analisados. Imaginemos uma situação simples de uma remessa de R$ 1.000,00 com um IRRF de 15%. Neste caso, a fonte brasileira remeteria para o exterior o valor de R$ 850,00 e reteria e recolheria para a União Federal o valor de R$ 150,00. Digamos, agora, que posteriormente verifique-se, por exemplo, que a alíquota aplicada estava errada, que em razão de regra prevista em tratado internacional a alíquota correta seria 10% e não 15%. Neste caso, teria havido um recolhimento a maior de R$ 50,00. Ora, uma vez que a fonte brasileira (a) não é o contribuinte do IRRF; e (b) não suportou o encargo financeiro correspondente ao tributo destacado no pagamento ao não residente, parece claro que lhe falta legitimidade para pleitear a repetição do indébito, sob pena de enriquecimento sem causa. 762 AVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 455.

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Lembramos aqui da lição de Ricardo Lobo Torres, que destaca que “legitimado ativamente para repetir o indébito é aquele que suportou o ônus da cobrança, isto é, aquele que, sem apoio na lei, sofreu a redução em sua capacidade contributiva”763. Assim sendo, não sofrendo o agente de retenção qualquer redução em sua capacidade contributiva não lhe caberia legitimidade para repetir o indébito. Uma outra situação que deve ser examinada é aquela onde há, no contrato celebrado entre as partes, cláusula estabelecendo que a fonte pagadora suportará o ônus financeiro do IRRF brasileiro. Usando o mesmo exemplo numérico simples antes apresentado, neste caso, teríamos R$ 1.000,00 a serem remetidos. Em razão da transferência do encargo financeiro, a fonte brasileira remeteria integralmente os R$ 1.000,00 para o exterior e reajustaria a base de cálculo do IRRF, conforme previsto no artigo 725 do RIR764, de modo que a mesma seria 1.176,00. O valor de R$ 176,00 seria recolhido aos cofres públicos. Aqui, de uma perspectiva estritamente financeira, a fonte brasileira terá arcado com o ônus do tributo. A questão que segue, porém, é se de uma perspectiva jurídica também seria possível afirmar que a fonte brasileira teria suportado o encargo financeiro do tributo. Esta análise tem que ser feita no contexto do artigo 123 do Código Tributário Nacional, segundo o qual “salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”. Neste caso, há autores que entendem que a transferência contratual do custo financeiro do tributo seria suficiente para legitimar o direito à repetição de indébito. Para esses autores, o fundamento para tal legitimação poderia ser encontrado no artigo 166 do CTN, segundo o qual “a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”. Posição nesse sentido é defendida por Renato Nunes, para quem “quando restar demonstrado que o ônus do imposto sobre a renda foi arcado pelo substituto

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- fonte pagadora -, este terá legitimidade para requerer sua restituição administrativa ou judicialmente, nos termos do Código Tributário Nacional, artigo 166, caso reste demonstrado que o imposto em causa foi pago indevidamente ou a maior”765. No mesmo sentido é a opinião de Julia de Menezes Nogueira, que sustenta que “o ‘substituto’ - fonte pagadora - só pode pleitear a restituição do indébito em duas situações: (i) se provar que o respectivo montante não foi retido do beneficiário dos rendimentos - ou, nos termos do artigo 166 do CTN, que assumiu o referido encargo - ou, (ii) se, tendo efetuado a retenção, estiver expressamente autorizado, pelo terceiro que suportou a transferência do encargo, a receber a restituição”766. Note-se que esta autora, além de reconhecer o direito à repetição no caso de transferência do encargo financeiro para a fonte, também o faz nas situações em que, tendo havido a retenção, há autorização do não residente para que a fonte brasileira postule a repetição do indébito. Quer-nos parecer, contudo, que a aplicação do artigo 166 do CTN, no caso em tela, mostra-se equivocada. Com efeito, o aludido dispositivo cuida da “restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro” (destaque nosso). Ora, este não é o caso do IRRF. Este imposto não é um tributo juridicamente indireto, que por sua própria natureza implica na transferência do seu encargo financeiro do contribuinte para o agente de retenção. O que se passa aqui, em verdade, é a existência de uma convenção particular por intermédio da qual o ônus financeiro do IRRF é transferido. Esta transferência nada mais é do que um ajuste de preço767, pelo qual a fonte assume a obrigação de, além de pagar o preço pactuado pelo serviço si, arcar com o ônus do tributo que inicialmente deveria ser quitado mediante retenção sobre o mesmo preço.

765 NUNES, Renato. Imposto sobre a Renda Devido por Não Residentes no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 216. 766 NOGUEIRA, Julia de Menezes. Imposto Sobre a Renda na Fonte. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 215-216.

763 TORRES, Ricardo Lobo. Restituição dos Tributos. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 16. 764 “ Art. 725. Quando a fonte pagadora assumir o ônus do imposto devido pelo beneficiário, a importância paga, creditada, empregada, remetida ou entregue, será considerada líquida, cabendo o reajustamento do respectivo rendimento bruto, sobre o qual recairá o imposto, ressalvadas as hipóteses a que se referem os arts. 677 e 703, parágrafo único”.

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767 Como noticia Ricardo Mariz de Oliveira: “O reajuste do rendimento bruto está regido pela Lei n. 4154, de 28.11.1962, art. 5º, mas nasceu de construção da jurisprudência administrativa segundo a qual a fonte que paga o imposto com seus próprios recursos, quando deveria fazê-lo com recursos do contribuinte, isto é, com recursos descontados do pagamento devido ao contribuinte, na essência está adicionando ao valor da renda ou do provento um ‘plus’, que também passa a ser objeto de tributação” (OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 456).

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Dessa forma, parece-nos que mesmo no caso em que há a transferência do custo financeiro do IRRF para a fonte brasileira, a legitimidade ativa para pleitear a repetição de eventual indébito será do não residente, e não da fonte de pagamento. Uma última situação, que merece ser examinada de forma separada, é aquela em que, ao invés de haver uma convenção particular entre as partes transferindo o encargo financeiro do IRRF, a fonte deixa de reter o imposto. Nesses casos, a Receita Federal, ao autuar a fonte brasileira, presume que esta assumiu o encargo financeiro do tributo, aplicando o artigo 725 do RIR e reajustando a base de cálculo do IRRF. Realmente, em um cenário de autuação fiscal, parece não haver alternativa às autoridades fiscais. Contudo, cremos que a presunção de assunção do ônus pela fonte brasileira, nesses casos, deve ser relativa. Com efeito, de uma perspectiva cível parece-nos que, neste caso, a fonte que suportou o encargo financeiro do tributo sem que tal transferência estivesse contratualmente prevista poderá postular pelo reembolso do valor do IRRF junto ao contribuinte não residente, que deveria ter suportado tal ônus econômico. Assim sendo, caso o beneficiário não residente devolvesse o valor equivalente ao IRRF para a fonte no Brasil, para que então esta fizesse o pagamento do imposto devido, estaria afastada a aplicação do artigo 725 do RIR, vez que demonstrado que não havia pacto entre as partes de assunção do custo financeiro do imposto pela fonte pagadora. Em resumo, somos da opinião de que, em qualquer caso, mesmo naqueles em que a fonte brasileira assumiu contratualmente o encargo financeiro referente ao IRRF, a legitimidade para postular uma eventual restituição será do contribuinte, ou seja, da pessoa física ou jurídica não residente.

3.2. Legitimidade Passiva para a Exigência Fiscal Para Alberto Xavier, outra consequência da sistemática de substituição tributária adotada pela legislação brasileira seria que “o Fisco não pode promover contra o contribuinte ação executiva, ainda que em caso de insolvência ou falência do substituto, pelo que, na inexistência de disposição legal que preveja sua responsabilidade cumulativa (solidária ou subsidiária), sempre poderá invocar sua ilegitimidade processual”768. 768 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 455.

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Analisamos esta questão de passagem ao comentarmos o artigo 842 do RIR, que efetivamente estabelece que, no caso de falta de pagamento do IRRF, eventual lançamento será lavrado contra a fonte, responsável tributária pelo pagamento do tributo. Entendemos, contudo, que a legitimidade passiva exclusiva da fonte, neste caso, não é uma consequência ontológica do regime de tributação do IRRF, sendo mais uma opção legislativa compreensível levando-se em conta que os diplomas legais que dão base ao aludido artigo 842 são da década de 50 do Século passado (Lei n º 2.862, de 1956, artigo 28, e Lei n º 3.470, de 1958, artigo 19). A racionalidade desta regra é encontrada na ainda presente limitação para o exercício da cobrança tributária fora dos limites territoriais de um dado país. Contudo, esta realidade está mudando rápido. Provavelmente o tema mais debatido em tributação internacional atualmente é a transparência e cooperação administrativa entre os Estados. Não será de admirar se, no tempo de uma década, as limitações territoriais que hoje limitam a atuação dos Fiscos venham a desaparecer. No cenário que se desenha no horizonte, perderia qualquer sentido uma regra como a prevista no artigo 842 do RIR e o Fisco brasileiro passaria a poder cobrar eventuais créditos tributários de IRRF seja da fonte brasileira, seja do contribuinte não residente, neste último caso contando com a assistência administrativa do Fisco do país de residência da pessoa física ou jurídica que tenha auferido renda ou proventos de qualquer natureza no Brasil. Assim sendo, em resumo, parece-nos que a restrição da legitimidade passiva ao responsável tributário, conforme prevista no ordenamento jurídico brasileiro atualmente, é acidental e não ontológica, de modo que, em um futuro não muito distante, é possível que se repense a legislação brasileira para se prever a possibilidade de autuação fiscal tanto do responsável quanto do contribuinte. Os comentários acima se relacionam com a terceira consequência apontada pelo professor Alberto Xavier nos casos de substituição tributária. Segundo o patrono do Direito Tributário Internacional no Brasil “a lei não prevê qualquer mecanismo que permita ao contribuinte o pagamento direto e espontâneo do imposto que eventualmente não tenha sido retido pela fonte pagadora ou que este reteve mas não recolheu. Caso, porém, esse pagamento se viesse a realizar, seria considerado por lei pagamento por terceiro, cujo valor poderia ser havido como rendimento tributável da fonte pagadora”769.

769 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 455.

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Concordamos com o professor Xavier que, do modo que a legislação tributária se encontra hoje, não há a possibilidade de o não residente fazer o pagamento direto do IRRF. Na hipótese de não retenção ou retenção a menor, o não residente teria que remeter o montante equivalente ao imposto devido para que a fonte brasileira fizesse o pagamento do IRRF no Brasil, ou o encargo financeiro seria transferido para a fonte. Nada obstante, da mesma maneira que afirmado acima, esta parece também uma consequência acidental da legislação em vigor, e não uma exigência da ontologia da sujeição passiva do IRRF. Dessa forma, como já mencionado, não é demasiado se vislumbrar um cenário onde, em breve, seja possível ao não residente quitar o tributo no Brasil, sem que isso implique qualquer alteração no desenho das relações jurídicas que nascem uma vez ocorrido o fato gerador do IRRF.

3.3. Legitimidade Ativa para Formular Consulta à Receita Federal do Brasil Se nas situações acima apenas um dos sujeitos passivos do IRRF possui legitimidade processual, ativa ou passiva, há uma situação onde tanto o contribuinte quanto o responsável são legitimados para agir: trata-se do processo de consulta. De fato, de acordo com o artigo 2º da Instrução Normativa nº 1.396/2013, “a consulta poderá ser formulada por: I - sujeito passivo de obrigação tributária principal ou acessória; [...]”. Considerando todas as regras de sujeição passiva do IRRF analisadas no item 2 acima, não resta dúvidas quanto ao fato de que, tanto o contribuinte (não residente), quanto a fonte pagadora (pessoa residente no Brasil), possuem legitimidade ativa para apresentar consulta fiscal à Receita Federal do Brasil, e a medida não poderia ser mais acertada. Como visto, tanto a fonte quanto o contribuinte tem sua situação jurídica impactada pelos deveres impostos pela legislação tributária, de modo que a ambos deve ser garantido o acesso ao processo de consulta fiscal.

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ção no sentido de que a atribuição da responsabilidade tributária para a fonte no Brasil em nenhum momento faz com que esta substitua o contribuinte da relação jurídico-tributária, de modo que o não residente que auferiu a renda ou proventos de qualquer natureza no segue sujeito passivo do IRRF, sendo quem, juridicamente, suporta seu ônus financeiro. A posição adotada nesse estudo tem uma série de consequências práticas, como as seguintes: • No caso de pagamento indevido ou a maior do IRRF apenas o contribuinte, pessoa física ou jurídica não residente, terá legitimidade ativa para postular a repetição do indébito tributário. • Tal afirmação será verdadeira inclusive nos casos em que tenha havido a transferência contratual do encargo financeiro do tributo, ou o não residente tenha autorizado a fonte brasileira a postular em nome próprio a repetição do indébito. • Por disposição expressa da legislação do IRRF, no caso de não retenção ou retenção a menor apenas a fonte brasileira poderá ser demandada pelas autoridades fiscais da Receita Federal, que não têm mecanismos para autuar diretamente o não residente. • De igual maneira, o não residente, embora contribuinte do IRRF, não tem mecanismos para pagar diretamente o IRRF, uma vez que a legislação apenas prevê a obrigação da fonte de retenção. • Por fim, no que se refere ao processo de consulta, temos que, neste caso, ambos os sujeitos passivos, contribuinte e responsável, possuem legitimidade ativa, uma vez que a legislação tributária faz referência, de forma abrangente, a sujeito passivo, como legitimado para a apresentação da consulta fiscal.

4. Conclusão Procuramos, neste breve texto, analisar a sujeição passiva no IRRF incidente sobre pagamentos, créditos, entregas, empregos ou remessas de renda ou proventos de qualquer natureza para não residentes. Iniciamos tomando posi358

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