Ética e contemporaneidade: um convite...

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Nilo Henrique Neves dos Reis

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ÉTICA E CONTEMPORANEIDADE: UM CONVITE... Nilo Henrique Neves dos Reis Professor de História e Filosofia da Ciência - UEFS Membro do Núcleo de Bioética - UEFS

Resumo: Encontramo-nos na hora de despertar para uma nova época, tendo a preocupação de pensar em uma Ética sem o apelo à violência e a normatividade como imposição. Enfrentamos um dilema às portas do novo milênio: como edificar um Ethos Universal diante da diversidade cultural? Palavras-chaves: Ética. Diversidade Cultural. Malestar. Abstract: We find ourselves at the dawn of a new era, having to consider a form of Ethics that avoids the imposition of violence and normative rules. At the opening of a new millennium, we are confronting a dilemma: how to build a Universal Ethos in the face of cultural diversity. Key – Words: Ethics. Cultural Diversity.Uneaseness Criticaram-nos de forma equivocada em nossa comunicação 1 . Queremos, hoje, iniciar uma discussão que possa clarividenciar algumas questões que ficaram abertas. De início, cabe ressaltar que o discurso filosófico, assim como o científico, possuem a similitude de partirem de uma criticidade e, fundamentalmente, de uma perspectiva de mundo. Contudo, tais formas de conhecimento diferem substancialmente pela falta de anuência coletiva, na medida

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em que o cientista necessita do reconhecimento de sua comunidade, enquanto o filósofo possui pares, porém não uma comunhão de idéias. Segundo FREUD Sigmund, A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis 2 , envolvendo-nos numa rede de complexidades, na qual o elemento fundamental para a compreensão da existência humana é a cultura nacional que nos é transferida pela tradição, isto é, através das experiências históricas, pela educação formal e informal, pela língua e pelo ódio. A identidade nacional molda os homens do presente na 3 argila dos homens nobres do passado na medida em que os valores desses decidiram fundamentalmente, nos caracteres de uma nação e estimula algum tipo de xenofobismo, pois acredita que o ingrediente que os torna participáveis de uma história comum sofrera alguma dispersão. O indivíduo, dessa maneira, para manutenção da ordem existente, dificulta uma perspectiva, um olhar diferente sobre o outro, principalmente para culturas que divergem com a sua. A cultura orienta um conjunto de regras que facilitam a identificação da própria cultura ou das etnias minoritárias que, porventura, são parte integrante de uma. Confrontam-se duas questões humanamente complexas: a fundação de um ethos universal e as particularidades das múltiplas culturas. As circunstâncias levam-nos a pensar de uma outra forma, uma maneira que permita contemplar o outro sem nivelar, ou mesmo, consagrá-lo pelo relativismo exagerado da nova ciência. Afinal, as comunidades precisam estabelecer valores que proporcionem um sentimento de pertença comum. O valor imaginário de uma cultura é fundamental e tem que ser respeitado pelas outras, pois não existe uma forma de compreender o próximo sem enquadrá-lo, e, ao mesmo tempo, limitá-lo, em um

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sistema referencial de nossa cultura. Edificar um ethos universal para indivíduos ímpares, que foram educados em sociedades antagônicas ou mesmo rivais, é demais desconsiderar a pluralidade e a irredutibilidade das diversas culturas. Todavia acreditamos que a inversão do título possa funcionar como um intróito a discussão - um convite: ética e contemporaneidade - seja o caminho de indivíduos diferentes que comecem, realmente, a discutir suas dissimilitudes, principalmente admitindo a dessemelhança de suas histórias e do presente. BORNHEIM Gerd 4 , em Filosofia e realidade nacional, trabalhando a possibilidade de se construir uma filosofia vernácula, discute os elementos que estariam presente neste desiderato. A nossa problemática perpassa na mesma idéia, pois as divergências de interesses entre os diversos países e culturas apresentariam, mesmo que sejam intencionalmente benévolos, distorções valorativas entre as culturas. Os novos antropólogos nos pedem um olhar relativista, de certa forma, um ato misericordioso com o outro, mas insuficiente para captar o diferente no outro: Acontece, entretanto, que a pluralidade das culturas realmente coloca problemas seríssimos, de uma relevância que já não pode ser ignorada, visto que cada cultura apresenta certa originalidade, certa irredutibilidade, e reconhecimento desse fato tornou-se como que ‘constitutivo’ da consciência ocidental. A vantagem que levam os diferencialistas sobre os seus opositores generalistas decorre justamente de que, se é verdade que a distinção do homem em face do animal reside na sua capacidade de construir estruturas novas, é a exploração desse elemento novo através da variedade de formas que ele assume que vai instituir o modo de ser de cada cultura; toda possível originalidade arrimase à inventividade dos modos peculiares da

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elaboração daquele elemento novo. Assim, o conceito diferencial mostra cada cultura enquanto ela ostenta 5

No ano de 1997, em Feira de Santana, foi realizado um 6 seminário nacional sobre O Mal-estar no fim do Século , partindo de uma referência a Sigmund Freud. Os organizadores sairam de uma premissa: seria o mal-estar um déjà-vu. Em primeiro lugar, foi estabelecido um consenso naquele encontro: a idéia de um Mal-Estar na contemporaneidade. Naquela oportunidade, afirmávamos que este fenômeno é resultante da incapacidade em compreender a estrutura da realidade que nos cerca. Discordamos hoje, em parte, da nossa assertiva. Acreditamos, porém, que a compreensão da realidade exerce um papel relevante para a formação do mal-estar. Ninguém pode afirmar ou negar, nessa época, o elemento embrionário do mal-estar, visto que a complexidade da vida humana é polissêmica; o mundo humano envolve diversidades culturais imersas numa perspectiva histórica e também diversa. Com efeito, o nosso século se apresenta inédito. Se por um lado, temos o progresso da ciência -fruto do desenvolvimento do conhecimento - que nos proporciona um verdadeiro bem-estar, por outro lado, temos a falta de democratização dessa ciência. FREUD Sigmund, em O mal-estar na civilização, chegou a conclusão que a sociedade tecnológica, com sua estrutura, configura-se em mera problemática existencial para o ser humano, na medida em que esse possui impulsos naturais que são, na maioria das vezes, impróprios às regras sociais. Nessa bipolaridade entre a lei e o desejo, encontra-se o homem hodierno, dividido, partido e sem referencial de procedimentos morais. Todavia encontramo-nos em uma época que se apresenta como pós-moderna, principalmente depois de O pós-moderno, em que Jean-François LYOTARD, discutiu que as novas sociedades apresentam-se como

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aquelas que denotam um valor substancial ao estatuto do saber. A sociedade contemporânea terminou seus dias quando os estudantes, em maio de 68 na França, lançaram coquetéis molotoves sobre os policias e trouxeram a público questionamentos de inúmeras problemáticas 2 . A 7necessidade humana, em fornecer uma explicatio mundi , tem engendrado um mal-estar em todos aqueles que participam de um projeto científico ou filosófico. Não obstante, o mal-estar parece ser alimentado na própria contradição da tecnologia, na medida em que a busca por leis universais, válidas para todos, são substituídas pela própria dinâmica da técnica, pois é nela que a refutação encontra sua corroboração. Uma nova fase da humanidade começa a ser contemplada, isto é, uma realidade diferente, a partir de 68... Mergulhados, defrontamo-nos no novo, começamos a coser uma justificativa para nossa colcha vivencial. Nesse sentido, o termo malestar 10 extrapola seu sentido original e começa a ganhar uma interpretação de melancolia existencial. Talvez, aqui, não possamos contribuir para a elevação do espírito humano, mas acreditamos que toda tentativa de refletir sobre um Ethos universal, que não repousa numa normatividade, possa encontrar alguma compreensão. Parece-nos que a preocupação com o descobrir nos trouxe a esta peculiaridade; talvez se não nos detivéssemos na busca do conhecer, estaríamos mais aptos. Parecenos ainda que, quanto menos ficamos preocupados com o mundo que nos cerca, mais estabilizados estaremos para sobrevivermos, visto que as crises fazem parte da nossa existência. Por outro lado, essa ingenuidade é conseqüência da angústia gerada pela substituição das velhas teorias por novas teorias. Ora, na medida em que

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a pesquisa científica se apresenta como dinâmica, e revolucionária, perdemos a possibilidade de contemplar o mesmo processo de criação e substituição do conhecimento. Dessa forma, é comum uma recusa ao novo conhecimento ou a atitude cética do indivíduo perante essas atividades... Contudo, a necessidade de explicar o mundo circunvizinho parece intrínseca à natureza humana. Estabelecendo relações com os outros e envolvendo-nos em projetos, fixados ou não pelo indivíduo, somos levados à alteridade, ao mercado, à escola, ao amor, à falência dos projetos, enquanto busca constante de felicidade. Outra problemática seria a desorganização da referência do indivíduo em um sistema que o considera, pelo tratamento dispensado, como um agente de transformação, porém nega a fantasia de reconhecêlo, enquanto homem, datado em um espaço e insubstituível. Recordando sobre o conjunto das comunicações e palestras apresentadas no seminário, optamos por uma filiação cética quanto ao elemento embrionário da crise, isto é, fomos incapazes de concordar com as justificativas. Talvez, deva-se, não propriamente às respostas, mas sim à incredulidade que nos acompanha, ou talvez ainda, porque as proposições que buscam explicar a situação tenham uma leitura unilateral, ou seja, a partir da tríade explicativa do século: sociedade, meio e economia. Preferimos uma recusa diante a tentativa de estabelecer uma verdade, optamos substituir a concepção implícita dos especialistas, visto que suas propostas teóricas repousam unicamente na compatibilidade de suas áreas. Nesse sentido, acreditamos que o poeta português, Fernando PESSOA , nos ensina a melhor postura diante do problema: NADA ME PRENDE a nada. Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo. Anseio com uma angústia de fome de carne

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O que não sei que seja Definidamente pelo indefinido... Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto De quem dorme irrequieto, metade a sonhar11 .

A sociedade ocidental atravessa um momento singular em sua história e, dessa forma, tal como o poeta, encontram-se os homens irrequietos a sonhar. Apesar de buscar-se a universalidade, não conseguiu descobrir uma fundamentação ética que fosse válida para todos sem o recurso à normatividade; não conseguiu, não obstante, o sucesso da ciência em explicar o mundo que nos cerca. Vivemos em um tempo que foi marcado profundamente pela complexidade e pelo avanço tecnológico. Aliado ao fracasso de uma edificação para uma conduta universal e à impossibilidade de conhecermos as leis que regem o universo, reúnem-se problemas de ordens distintas e, ao mesmo tempo, relacionados, quais sejam econômicos, políticos, sociais e, enfim, reconhecidos os psicológicos. Todavia, a singularidade dessa época deve ser entendida como uma evolução do problema e jamais como ineditismo. Afinal, o mal-estar é conatural ao homem, isto é, diacrônico à sua existência e da demasiada fé moderna que consagrou a razão como o estandarte da libertação humana. A modernidade instalou o reinado de imperativos categóricos, através do Esclarecimento francês que imaginou e difundiu uma essência humana mesmo depois de excluir, de alguma forma, o Deus Cristão13 . Essa assertiva de pouca relevância, mas bússola imposta aos filhos da revolução tem causado uma espécie de mal-estar. Somos os herdeiros dos sonhos da modernidade, assim como de sua razão. Procuramos expressar conjecturas universais e nos afastamos da irredutibilidade das culturas. O fracasso do Ethos encontra seu Ideação,Feira de Santana, n.4, p.193-208 , jul./dez. 1999.

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obstáculo naquilo que ele s e propõe salvar, isto é, na extrapolação da singularidade. A preocupação com o conhecer, enquanto necessidade de compreender a natureza e o próprio homem, fez da ética e da luta pelo conhecimento, assuntos cruciais para a contemporaneidade. Explicar o mundo que nos cerca se tornou de fundamental importância para o homem hodierno, ainda mais quando perdemos a inocência dos pensadores do século XIX. Depois que ficou constatado a impossibilidade humana de não valorizar seu meio e suas ações14, o homem volta-se para ser estudado, enquanto Ser axiológico. A necessidade de superar a crise fez e faz de nosso século um palco para discussão ética. É preciso articular a reflexão e o conhecimento, ética e comunidade e, mais do que isso, é preciso desenvolvê-la para superar o neo-niilismo do milênio que se aproxima. Talvez substituindo a conduta individual pela construção comunitária possa, diante do antagonismo dos valores, iniciar uma discussão exaustiva que permita escolhas comuns as diferentes nações. Mas estamos sempre a esquecer a coletividade global pela nossas deficiências pessoais. Dessa forma, as problemáticas sempre se revelam em campos isolados, fragmentados. No campo da economia, as grandes promessas se perderam. Por um lado, as idéias socialistas de uma economia estatal concretizada desembocaram em ditadura de esquerdas e, de outro, pelas novas reformulações do capitalismo liberal de Adam Smith que nega, mas desaguarão em uma economia apocalíptica. Indiferente às vitórias capitalistas do fim do século XX, a miséria social se estende e se alastra, dos guetos e favelas às mansões estadunidenses. A guerra não poupa ninguém. Sem teto, desempregados, mendigos, crianças de rua, ou seja, os

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desalistados, pois não compõem as listas governamentais; o número dos Sem mostra-se superior aos discursos solucionadores dos mestres da economia global. A realidade revela que os sistemas são seletivos e que escolhem seus pares, os incluídos. Na política, guerras étnicas pelo planeta, pelas américas a subversão das ordens constitucionais, pelo oriente massacres religiosos e aqui o desrespeito pela coisa pública. A crise deixa transparecer que a luta democrática pela retirada do primeiro presidente eleito democraticamente, após o golpe de 64, não possuía, nem de longe, a essência divulgada pela mídia; tratavase de uma questão ética, pensávamos. Entretanto, revelava-se um golpe muito bem elaborado pelas elites, para substituir um arcabouço ideológico por outro. Os diversos escândalos, que os jornais divulgavam e informavam-nos com sua costumeira neutralidade, são, na verdade, um reflexo da máscara social e da parcialidade da consciência pública aliadas à falta de escrúpulos de jornalistas filiados aos interesses neo-liberais e de um povo que não tem a oportunidade de ter uma educação, no sentido stricto da palavra. Como conseqüência, o século XX, realmente, trouxe uma onda de reflexão sobre a ética; prova disso são as publicações e os diversos estudos sobre o assunto. Talvez caiba perguntar: Por que a ética se tornou um assunto tão importante na contemporaneidade? Uma coisa é certa: é uma peculiaridade do homem a não indiferença. Segundo, a possibilidade do discurso ético se mostra como uma possível realidade de fuga, na medida que procuramos escapar às ilusões da modernidade que não se concretizaram na praxes social. O Iluminismo (Esclarecimento) nos deixou, como maldição, uma crença exagerada no sucesso da razão. Passamos a

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acreditar que somente a fé na racionalidade humana poderia nos libertar das superstições e das crendices e, desenfeitiçados, promoveríamos a legítima condição humana. Contudo, a razão não conseguiu realizar o seu projeto de desalienar o homem, e, neste sentido, a ética, mais do que nunca, revela-se como um instrumento de libertação, quando refletida e comungada por todos que participam da sociedade. Caso contrário, o discurso ético se torna messiânico. Nesse contexto, surge uma contradição lógica: se todas as tentativas de se fundamentar uma Ética universal falharam, assim como todas as explicações sobre a natureza e o homem, como esperar a superação da crise em nossa época (onde os paradigmas e as pesquisas, geralmente, não passam de meros jogos lingüísticos)? Não seria, a priori, uma pretensão fracassada!? E no mundo da ciência, como estão seus modelos e pesquisas? Diariamente constatamos o abandono da crítica filosófica por parte da ciência para revelar sua verdade, veritas, pseudocientífica. A Ciência não consegue, ou não quer, dar-se conta que a descoberta de novos conhecimentos acontece dentro de um processo de descobertas de verdades fragmentadas e que uma construção ética não pode ser desvinculada de uma tradição e, ao mesmo tempo, de um amadurecimento dos membros que aceitarão suas normas após uma exaustiva discussão. Realmente não podemos negar o progresso e o benefício da ciência para a raça humana. Contudo é verdade que a ciência favoreceu para a formação de uma ideologia conformista e retrógrada, na qual o poder encontra sua legitimação. Cabe ainda ressaltar o papel das invenções tecnológicas destrutivas e a responsabilidade do cientista em sua concepção. Não pode, como quer o cientista, culpar exclusivamente o político pelo uso

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da sua genialidade, ou seja, o conhecimento também se apresenta como uma arma perigosa para a destruição. Todas essas digressões nos faz perguntar: qual o fim teleológico do homem? Haveria valores e normas, universais, para os homens? Existiria uma verdade absoluta no universo? Existe de fato o problema da liberdade: bem e mal? É dado ao homem o direito de conhecer, de fato, o mundo em que habita? Acreditamos que o homem seja um ser relativo, mas que a verdade existe, e, com ela, valores que sejam válidos para todos os homens. Afinal, o projeto filosófico (enquanto projeto) pesponta na busca da universalidade. Contudo, seria relevante entender que a conscientização do mal-estar pode proporcionar a sua própria superação. Embora, ultrapassamento no sentido de adequação, na medida em que ele não tem um fim e segue paralelo a nossa condição de Ser, exposto ao mundo, isto é, sendo a vida dialética, a melancolia faz parte da essência humana. Os projetos, enquanto processo de realização do homem, tendem naturalmente à ruína, ou seja, faltam-lhes sentido. A história do homem se constitui de um esforço conjunto e conatural de conhecer e modificar o mundo que o cerca. Nessa medida, a razão se torna sua grande aliada. O Século das Luzes trouxe uma visão messiânica e apologética da razão; a razão se tornou uma deusa e um instrumento de transformação revolucionário. Entretanto, essa própria razão não conseguiu estabelecer suas utopias e seus propósitos metafísicos; existem diversos pronunciamentos a favor da falência da razão. Em linhas gerais, a razão se mostra falida enquanto agente transformador da realidade humana. Em nosso entendimento, malogrou em

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sua tentativa de libertar o homem da superstição e da magia, na medida em que se pensou, pragmaticamente superior à dialeticidade da própria vida. A ciência, procurando abandonar as explicações míticas e religiosas, relegou outras formas de pensar, visto que o pensamento analítico e o dialético hegeliano ou marxiano não possuem a dimensão hermenêutica necessária para o desvelamento da existência humana conatural ao homem e importante para justificá-lo em seu ambiente. Embora o mundo coevo insista em denunciar que a hegemonia da razão se encontra na modernidade, mesmo assim, de nossa perspectiva filosófica, assistimos ao florescimento da razão. A evolução da razão, dentro da história, refletindo o conjunto das condições e do fazer humano, promoveu o conhecimento e o desenvolvimento da humanidade. A ciência demarca sua presença tecnológica nas sociedades, porém diferente dos objetivos delineados pelos políticos e filósofos da idade moderna. Duzentos anos depois do Esclarecimento (aufklärung) e do nascimento da ciência, contemplamos o sucesso tecnológico indiferente aos óbitos e aos gritos dos excluídos. Todavia, devemos admitir atitudes isoladas dessa mesma tecnologia que por vezes se mostra solidária aos excluídos, resgatando-lhes, por um momento, a condição humana. Encontramo-nos na hora de despertar para uma nova época, tendo a preocupação de pensar em uma Ética sem o recurso à violência e a normatividade como imposição. Em nosso entendimento, mais do que nunca, na história, a razão se destaca e se mostra presente em nossas relações com a vida prática. Todavia, ainda assim, mesmo depois de tê-la apoiado, preferimos desconfiar dessa razão. Afinal como o poeta português: NÃO: NÃO quero nada. Já disse que não quero nada

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Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falam em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me enfileiram conquistas Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-na!15

Trata-se seguramente de uma questão problemática, principalmente pela verdade dos deuses. É preciso, entretanto, palmilhar por um ethos universal. Enfim, as vésperas do novo século e com a economia globalizada, a história requer uma Ética, mas através de uma edificação dialógica, pautada numa comunicação que nasça das contradições, das diferenças e que possibilite os sonhos se transformarem em topias e ...

Notas 1. Comunicação apresentada na UEFS. O Mal-Estar no fim do Século. 2. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização,1978, p. 140. 3. Ver JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995 4. BORNHEIM, Gerd. A filosofia e realidade nacional, 1998.

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5. Idem, p. 170-171. 6. Esse seminário resultou na confecção do livro O mal-estar no fim do século XX. 1997 8. Ver BARBOSA, Elyana. A crise da razão no fim do século XX, Sagra, 1997. 9. Explicação do mundo. 10. O termo mal-estar anime diversas discussões acadêmicas; observa-se pelas temáticas recentes e publicações do KAPLAN, E. Ann, O mal-estar no pós-modernismo: teorias, práticas; O trabalho organizado pela CARDOSO, Irene, Utopia e mal-estar na cultura: perspectivas psicanalísticas; TAMEN, Miguel. Hermêneutica e mal-estar. A crise do projeto moderno parece ser o élan das derivações do termo freudiano. 11. PESSOA, Fernando. Lisbon Revisited. Obras completas, 1992. 12. Idem, p. 354 13. Ver SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo, 1973 14. Ver MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de Filosofia, 1980. 15. PESSOA, Fernando. p. 359.

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Bibliografia Consultada

BARBOSA, Elyana. A crise da razão no fim do século. In. O mal- estar no fim do século XX. Feira de Santana: Sagra, 1997. BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo:Martins Fontes, 1990. BONRHEIN, Gerd A. A presença da razão. In. Razões Porto Alegre: Uapê, 1994 _____, Filosofia e realidade nacional. In. O idiota e o espírito objetivo. Rio de Janeiro: Uapê,1998. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1973. ( Os pensadores) ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva,1989. FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise. São Paulo: Abril Cultural, 1974. _____, Esboço de psicanálise. São Paulo: Abril Cultural, 1974. _____, O mal-estar na civilização. São Paulo: Abril Cultural,1974. GARCIA MORENTE, Manuel. Fundamentos de filosofia HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? In:Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: AbrilCultural, 1979. _____, Que é metafísica JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1988.

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NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Cia das Letras, 1992. _____, Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Cia das Letras, 1993. _____, O livro do filósofo. SãoPaulo:Moraes,1987. PESSOA, Fernando . Lisbon Revisited. Obras completas. Rio deJaneiro: Aguilar, 1992. PLATÃO. A república. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

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