Ética e Gestão Cultural: uma reflexão necessária

June 4, 2017 | Autor: A. Monteiro | Categoria: Ética, Gestão Cultural, Ética Profissional
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Ética e Gestão Cultural Uma reflexão necessária *

António Jorge Monteiro Porto, Abril 2004

“devemos esforçar-nos, tanto quanto nos for possível, para nos tornarmos dignos da imortalidade, fazendo tudo para adequar a nossa vida àquilo que há em nós de sublime.” Aristóteles, “Ética a Nicómano”

A ética é, actualmente, uma disciplina da maior importância para as actividades profissionais e, em particular, no âmbito da Gestão Cultural. Como sabemos foi Aristóteles (384-322 a.C.) quem, pela primeira vez, organizou e sistematizou todo o pensamento da sua época, sobre a complexa questão da ética, e nos legou as bases para uma actual e indispensável reflexão sobre este tema. Para este filósofo a ética assenta, sobretudo, na capacidade que cada indivíduo tem de olhar para além de si mesmo, sem excluir o outro, e preterindo um comportamento, sempre mais fácil, de condenação ou marginalização do outro. A justiça, a harmonia social e o auto-domínio não são factos nem realidades mas sim desejos e ideais que cada um deve procurar continuamente. A ética grega, de que somos herdeiros, é uma ética social assente na democracia e na educação criativa, a paideia, onde o indivíduo deverá ter consciência de que não existe ética desligada da sociedade e onde a sua realização pessoal só acontecerá se assumir a sua situação de cidadão, sempre consciente de que não existe bem-estar individual sem bem-estar colectivo, e que essa realização pessoal exige, para além do chamado “bem-estar”, o que poderemos chamar de “bemser”. Esta condição humana determina um empenhado relacionamento, de uns com os outros, baseado numa negociação permanente, de forma a irmos desenvolvendo um projecto de sociedade cada vez mais livre, mais justa, mais democrática e mais solidária onde, permanentemente, deveremos estar atentos a todos aqueles que, por qualquer razão, não se querem ajustar a esse projecto. De cada um de nós se espera que, caminhemos pela vida assumindo o nosso compromisso individual com este projecto comum e, estejamos permanentemente atentos aos nossos, sempre possíveis, desvios. Depois de Aristóteles e até Adam Smith, primeiro com a publicação da sua “Teoria dos Sentimentos Morais” e depois com “A Riqueza das Nações” (Londres, 1776), ética e economia faziam parte da filosofia da moral e é a partir de então que o estudo da economia e da ética se autonomizam como ciências. É com esta separação que se começa, então, a considerar a ética como ciência moderna produtora de pensamento sobre o como passar do “ser” para o “dever ser”, isto é, como passar do indivíduo tal como ele “é” ao indivíduo tal como “deveria ser”. Entretanto, durante mais de dois séculos, as relações entre estas duas ciências foram praticamente inexistentes, nomeadamente, porque os economistas, de uma forma geral, não reconheciam qualquer importância da ética para a economia. Só nos finais dos anos setenta, primeiro nos Estados Unidos da América do Norte e depois na Europa, começaram a surgir trabalhos de pesquisa que sustentam a sua complementaridade, sendo de referir Thomas J. Peters e Robert H. Waterman, Jr, com a publicação de “In Search of Excellence”, em português “Na Senda da Excelência” (Nova Iorque, 1982), onde os valores éticos são colocados em destaque como base do sucesso das organizações. Um pouco por todo o mundo da gestão começa, então, a ser introduzida a reflexão sobre o comportamento ético no âmbito das organizações e das profissões que as suportam, tendo em

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consideração que os comportamentos pessoais e profissionais não são dissociáveis e nas sociedades modernas, cada vez mais assentes nas organizações, os comportamentos pessoais dos seus actores se manifestam, também, cada vez mais, no âmbito da sua actividade profissional. Já na idade média podemos encontrar alguns instrumentos sociais de intervenção ética, como os códigos das corporações de ofícios medievais, estes principalmente voltados para dentro das profissões, mas foi a partir do século XIX, com o aparecimento das profissões liberais, que se assistiu ao desenvolvimento da ética no âmbito das profissões com uma forte componente social. No século XX, com o permanente aparecimento de novas profissões qualificadas, os seus titulares, no exercício das suas actividades, começam a estar condicionados, positivamente, pelos seus vários códigos de ética como, por exemplo, foi e é o caso dos médicos, dos advogados e dos engenheiros. Com a cada vez maior afirmação das organizações, como entidades nucleares do moderno sistema social, a questão do seu compromisso ético para com a sociedade, depois de um período em que a sua ética foi identificada, exclusivamente, com o do seu líder, passou ser entendido como fundamental ao desenvolvimento estratégico dos seus objectivos sociais. Actualmente, e de uma forma geral, como responsabilidades sociais comuns a todas as organizações, poderemos considerar: • • • •

criar riqueza social através da disponibilização de bens e serviços de qualidade por forma a satisfazer as necessidades da sociedade. produzir com eficácia optimizando recursos e não produzindo desperdícios. garantir o desenvolvimento pessoal dos seus membros, no entendimento de que as organizações são constituídas por pessoas e para pessoas. procurar a sua permanente continuidade em conformidade com o socialmente estabelecido.

Na sociedade contemporânea, constituída por organizações que compõem os vários sectores de actividade, nomeadamente, políticos, económicos, sociais, tecnológicos e culturais, directamente relacionados com o estado, a sociedade civil e o mercado, onde se congregam múltiplas profissões, uma reflexão sobre os comportamentos éticos, bem como sobre a criação dos seus códigos, reveste-se da maior importância. Sendo a gestão a disciplina sobre a qual recaem grandes responsabilidades pelos destinos e comportamentos das organizações, tendo a gestão cultural particulares responsabilidades no âmbito do sector cultural, foi desde o início nossa preocupação a criação de condições para a reflexão e o desenvolvimento de um pensamento ético orientador das aplicações particulares nas organizações e aos agentes culturais com responsabilidades de gestão neste sector. Neste sentido, e considerando duas das possibilidades de abordagem ética de uma organização, pensamos ser importante começar por reflectir sobre se pretendemos desenvolver organizações orientadas por uma ética do imediato, preocupada em fazer o mínimo necessário para estar dentro da legalidade estabelecida, ou por uma ética sustentável, através de uma procura permanente da excelência organizacional e do benefício social. Esta questão coloca-nos muitas outras como, a título de exemplo: •

Será que uma actuação dentro da legalidade coincide, sempre, com uma actuação socialmente ética?

António Jorge Monteiro | Abril 2004

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Qual será a ética de um Estado, organização estruturante duma sociedade moderna, que depois de produzir legislação para combater os malefícios sociais do tabaco negoceia, com a indústria tabaqueira, um apoio mecenático para apoiar financeiramente o seu sector cultural? Sendo, do ponto de vista teórico, relativamente fácil falar sobre o que “deve ser” feito será que chegado o momento de decidir, os gestores culturais, estão preparados para o concretizar?

Estas e outras perguntas remetem-nos para a questão de saber se, sem uma prática quotidiana e interiorizada, orientada por um conjunto de normas de natureza ética, livremente aceites, não só aplicáveis no domínio do pessoal como do organizacional, seremos capazes de, nos momentos da tomada de decisões complexas, no âmbito da actividade de Gestão Cultural, não nos desviaremos do projecto de sociedade em que acreditamos e, em conjunto, com os outros sectores de actividade, queremos ajudar a desenvolver. Neste sentido, temos estado envolvidos na preparação de um primeiro documento, sobre este tema, que oportunamente apresentaremos para discussão com todos interessados.

__________________________________________________________________________________________________ * Este texto foi publicado num artigo da Revista CultDigest nº 7, Abril/Maio 2004.

António Jorge Monteiro | Abril 2004

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