Ética naturalizada e evolução: um ensaio sobre a «naturalização» do Direito (Parte 1)

Share Embed


Descrição do Produto

Ética naturalizada e evolução: um ensaio sobre a «naturalização» do
Direito (Parte 1)


Atahualpa Fernandez(
Marly Fernandez(




"La visión idealista de la ciencia es que
hay ciencias sociales y naturales, sin
solapamiento entre las dos... Es una cuestión de
ignorancia nada más". Mario Bunge






Naturalismo moral
A origem da ética evolucionista se remonta ao próprio criador da
teoria da evolução por seleção natural, Charles Darwin. Em seu livro de
1871, The Descent of Man, Darwin ofereceu um explicação sobre a evolução
dos sentimentos morais que ainda hoje tem uma enorme atualidade,
especialmente desde que se valora com seriedade no âmbito da filosofia da
biologia a plausibilidade da seleção de grupo para explicar o altruísmo.
Este modo de entender a gênese da moralidade humana (do mesmo modo que a
gênese do direito), sem necessidade de desmarcar-se da perspectiva
evolucionista, pode constituir uma interessante contribuição para a
discussão filosófica sobre a relação entre ética, direito e natureza.[1]
Tradicionalmente, a ética e o direito sempre estiveram vinculadas ao
âmbito do humano, enquanto que os fenômenos da natureza nada têm que ver
com eles: nem são suscetíveis de valoração moral, nem neles cabe encontrar
fundamento algum para uma ética normativa ou para a juridicidade. Mas hoje
dispomos já de suficientes conhecimentos sobre nossa origem hominídea,
nossa natureza primata e o comportamento dos grandes símios como para pôr
seriamente em questão a descontinuidade teórica entre uma natureza animal
isenta de moralidade e um espírito humano dotado de moralidade.
Essa descontinuidade, sobra dizer, foi quebrada por obra de Darwin[2].
De fato, dito seja incidentalmente e de passagem, a moralidade parece
haver evolucionado a partir de nossos cooperativos e altruístas "instintos
sociais" (ou estratégias de tomada de decisão) que permitiram aos humanos
primitivos maximizar seus benefícios decorrentes dos vínculos sociais e
resolver seus conflitos de interesse de modo adaptáveis. Juízos morais e
normas morais (ou jurídicas) originadas de interações estratégicas entre
membros dos grupos que experimentaram as confluências e os inevitáveis
conflitos de interesses decorrentes da crescente complexidade dos
intercâmbios sociais.
A argumentação moral reforçada pelo razoamento ou juízo moral está
equipada para gerar standards morais e jurídicos universais e imparciais.
Crenças morais e normas de conduta são produtos de nossos mecanismos de
tomada de decisão e de nossas intuições (que, a sua vez, refletem o
resultado de milhões de anos nos quais nossos antepassados viveram como
mamíferos sociais) e formam parte de nosso patrimônio comum - daí porque,
segundo Dennis Krebs, para entender como o ser humano toma decisões morais
e jurídicas devemos entender como os mecanismos desenvolvidos no cérebro
são ativados e como eles atuam reciprocamente.
Nada obstante, Darwin não colocou em questão que a moral é uma
característica exclusivamente humana, uma qualidade que não caberia
inventariar no mundo animal. Darwin tampouco buscou critérios de
fundamentação da ética, não investigou onde basear uns princípios morais
universais, senão que unicamente se propôs a questão de como foi possível
originar a moral humana. Foi mais bem um contemporâneo de Darwin, Herbert
Spencer, quem tentou derivar a ética da evolução.
O que fez Spencer é uma espécie de combinação explosiva entre a
idealização rousseauniana da natureza e a visão menos amável do darwinismo:
a boa e sábia natureza nos ensina tantas coisas que não podemos deixar de
considerar o que devemos fazer a partir do que ela, em seu complicado
processo evolutivo, dita. O curso da evolução nos mostra o que é "bom" e
por isso nossa obrigação moral é seguir seu exemplo. Como a evolução é
percebida por Spencer como uma progressão desde formas inferiores às mais
elevadas, devemos preservar na sociedade essa luta pela existência que vai
deixando fora os mais débeis, aos menos aptos, para que a espécie humana e
a sociedade que forma se aperfeiçoe. A solução para isso é um sistema
radicalmente liberal que não preste nenhum tipo de assistência aos mais
desfavorecidos.
Esta errônea derivação do que deve ser a partir do que é foi
denunciada em seu dia por David Hume e reformulada por G. E. Moore como
falácia naturalista. Comete-se este tipo de falácia, segundo Moore, quando
se identifica uma propriedade natural (a felicidade, por exemplo) com uma
propriedade não natural (o bem, por exemplo): a felicidade é algo que
sentimos, como podemos sentir o calor ou a cor azul; o bem, pelo contrário,
é algo que intuímos ou desejamos. Por isso, se dizemos «a felicidade é o
bem supremo», estamos confundindo uma propriedade natural com outra que não
o é. No caso de Spencer, passar de «os seres humanos evolucionaram através
da seleção natural» a «devemos deixar que a seleção natural continue sem
impedimentos», é algo que se faz através da falácia naturalista. A falácia
consiste aqui em considerar que «a evolução por seleção natural é boa»
(voltaremos de imediato sobre este ponto).
Na verdade, o problema reside na seguinte questão: É possível deduzir
um enunciado prescritivo de um enunciado descritivo, eventualmente através
de um enunciado avaliativo, sem cometer o "paralogismo naturalista"?
Uma dificuldade no momento de argumentar sobre a suposta falsidade dos
fundamentos articulados pela concepção tradicional e comum da psicologia e
da natureza humana reside na pergunta sobre até que ponto o que diga a
ciência cognitiva, as neurociências, a genética do comportamento, a
psicologia evolucionista, a primatologia e um longo etcétera, pode
certamente pôr em dúvida, por exemplo, o que afirme a "ciência" do direito.
O primeiro a fazer é observar que, no caso equivalente de nos encontrarmos
no universo das ciências naturais, esta seria, pelo menos, uma pergunta
insólita, posto que as ciências naturais aspiram a ser mutuamente
consistentes, quer dizer, a não sustentar coisas logicamente
contraditórias.
A nenhum químico em seu sano juízo poderia ocorrer defender teorias
que violassem o princípio elementar da conservação de energia; mas, ao
contrário, partiria desse princípio elementar para a inferência de qualquer
processo químico. Deste modo, não parece cientificamente muito prudente a
atitude de se posicionar a favor da defesa de teorias em qualquer âmbito do
conhecimento que sejam incompatíveis com os resultados e as teorias de
outros campos cientificamente relevantes.
Surpreendentemente, algo que parece tão óbvio não sucede nas ciências
sociais e especialmente no âmbito do direito. Aliás, um dos "fetiches
jurídicos" mais comuns é o de assegurar – principalmente para os alunos dos
cursos jurídicos – uma concepção ontológico substancial de direito que
reside, em última instância, em "algo" predeterminado (ou vinculado de
forma absoluta) por uma indefinida e indecifrável "natureza" considerada
sempre igual, por um sistema universal e imutável de princípios e valores
ou, com mais atualidade, pela expressão da juridicidade ("exclusiva")
oferecida por um corpo de normas (o ordenamento jurídico) postas pelo
legislador, isto é, como um sistema autônomo de leis ( im-) postas (com
anterioridade) pelo poder (seja este de que natureza for: religiosa,
econômica, militar, política, etc.).
O que nas ciências naturais seria considerado inadmissível ignorância
dos princípios fundamentais de cada uma das ciências, nas ciências sociais,
e nomeadamente nas jurídicas, é o normal. Parece que os cientistas sociais
e os agentes do direito ainda não se deram conta de que pressupor uma
natureza humana ou um modelo psicológico que seja incompatível com os
descobrimentos procedentes das ciências dedicadas ao estudo científico
condição da humana e dos esforços por compreendê-la baseados em estudos
empíricos é tão problemático e duvidoso como propor uma reação química que
viole as leis da física ou uma teoria neurofisiológica que se fundamente em
uma bioquímica impossível.
É um fato que as teorias construídas no âmbito do direito (e também da
ética) raramente são avaliadas a partir de um enfoque ou diálogo
interdisciplinar. Em razão da ciência e do estudo do direito ainda viverem
em grave e brutal isolamento, algumas explicações ou construções jurídicas
estão baseadas em uma realidade, psicologia ou natureza humana impossível.
Um tipo de postura que restringe o anelo de interdisciplinaridade ao âmbito
das ciências sociais normativas (ou influenciada por uma larga lista de
explicações e «ciências vudus» em voga no momento) e que acabou
transformando-se em um "mainstream" do pensamento jurídico atual. E o que
verdadeiramente surpreende é que ainda tenhamos de insistir nisso.
A defesa tradicional da separação entre o cultural e o natural
(antes de chegar a afirmar que tudo está socialmente construído e que,
portanto, não existe nenhuma realidade independente de causas sociais ou de
necessidades cognitivas) tomou força em decorrência da natureza distinta de
ambas realidades, a saber, em razão da concepção de que o mundo das
ideias, do simbólico, do cultural, do social, do ético e do jurídico está
governado por leis irredutivelmente distintas das leis próprias das
ciências naturais.
Claro que, neste aspecto, as ciências sociais se encontram
entorpecidas pelo resíduo de forte precedente histórico. A intencional
ignorância das ciências naturais foi uma estratégia que modelaram alguns de
seus fundadores (por exemplo, Emile Durkheim, Karl Marx, Franz Boas,
Sigmund Freud, Hans Kelsen,etc...etc.) e seus seguidores imediatos.
Pretendiam, frustrando o "sonho ilustrado", isolar suas disciplinas
nascentes das ciências fundacionais da biologia e da psicologia, que na
origem das ciências sociais eram em qualquer caso demasiado primitivas para
serem de relevância evidente. Essa postura deu seus frutos ao princípio:
permitiu que os estudiosos buscassem pautas por toda a cultura e a
organização social, livres dos grilhões do apadrinhamento das ciências
naturais, e que compusessem as leis da ação social, tal como exigiam as
provas suficientes à primeira vista.
Mas, uma vez concluída a era dos pioneiros, os teóricos se
equivocaram ao não incluir as demais ciências da vida e da mente. Já não
era (como já não é) uma virtude evitar as raízes da natureza humana. Os
seres humanos são animais e, como tal, foram conformados pelas mesmas
forças da seleção natural que construíram a todos os demais animais. De
fato, a maior parte da gente não duvida em aceitar que nossa locomoção
ereta, o grande cérebro e os dedos oponíveis são produtos da seleção
natural, assim como as diferenças de comportamento entre, por exemplo, os
lobos e os chimpanzés.
Mais controvertido, contudo, é a proposta de que as mesmas forças que
produziram a "natureza do chimpanzé" produziram também uma "natureza
humana". No entanto, os mecanismos que conformam o comportamento dos seres
humanos, não menos que os que conformam a fisiologia e a anatomia humana,
são produtos das mesmas leis fundamentais da evolução por seleção natural.
E essa crucial objeção é perfeitamente digerível se admitimos como correta
e irrefutável a suposição de que os valores, os princípios, as regras e os
acontecimentos do social, da ética e do jurídico descansam no e são
constringidos pelo natural.
-----------------------
( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent
Researcher.
( Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes
Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la
moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana-
UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de
les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/
Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les
Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] De fato, na gesta por entender o fenômeno jurídico, a divisão entre
direito, moral e natureza é uma mera declaração de castas. E a ruptura
dessa relação gerada pelas barreiras artificiais do conhecimento não é
própria da natureza, senão de nossa maneira canonicamente obtusa para
entender que todo pensamento humano tem uma fundamentação biológica. Por
outro lado, parece iniludível a relação entre direito, natureza e moral,
pelo simples fato de que a moral (própria da condição humana) é um aspecto
intrínseco à atividade jurídica, dado que esta se desenha (tanto no que se
refere ao processo interpretativo-decisório como à elaboração de normas)
com o propósito de alcançar um bem ou justiça para alguns ou para todos,
para poucos ou para muitos. Mas a muralha da negação levantada por uma
"cultura da pureza", mais ideológica que científica, fomenta um tipo de
pensamento ou ritual mágico em que a incredulidade recalcitrante resulta
imune à evidência.
[2] A teoria de Charles Darwin sobre a origem das espécies (publicada em
1859) integrou ao homem no mundo animal e transformou para sempre o modo
de pensar de todas as pessoas ilustradas do planeta. Uma admirável,
arrebatadora e "perigosa ideia"; "quiçá uma das ideias mais poderosas de
toda a história da humanidade" (R. Dawkins). A herança que recebemos de
Darwin pode ser mensurada, facilmente, considerando-se a influência atual
da teoria da evolução. Que o homem é um animal, uma parte indistinguível da
natureza orgânica, edificado de acordo com os mesmos princípios genéticos
que qualquer outro ser vivo, não é somente uma evidência científica
indiscutível, senão também um lugar comum na literatura científica
(natural, social e humanística). Mas Darwin não nos ensinou somente o
caminho da compreensão da evolução dos seres vivos. Sua teoria da evolução
através da seleção natural serve também para compreender «por que» nos
comportamos de forma moral e o que é a ética. Por certo que o caminho para
este descobrimento não é fácil. Como é sabido, para a teoria da evolução
através da seleção natural a existência da moral é um paradoxo. Como é
possível que um comportamento que favorece a outro, às minhas custas, seja
selecionado? A teoria darwiniana prevê exatamente o contrário: que somente
os comportamentos que tendem a maximizar os recursos individuais serão
adaptativos. Até o momento em que surgiram as teorias sociobiológicas da
seleção de grupo, a seleção de parentesco e o altruísmo recíproco não houve
resposta a este paradoxo. Trataremos dessas teorias mais adiante.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.