Ética naturalizada e evolução: um ensaio sobre a «naturalização» do Direito (Parte 6)

May 23, 2017 | Autor: Atahualpa Fernandez | Categoria: Law, Philosophy Of Law, Direito, Filosofia do Direito, Evolucionismo, Pensamiento evolucionista
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Ética naturalizada e evolução: um ensaio sobre a «naturalização» do Direito
(Parte 6)


Atahualpa Fernandez(
Marly Fernandez(


"Genes egoístas levam animais, ocasionalmente, a
serem egoístas enquanto indivíduos, mas podem levar animais
a serem altruístas. Em particular, podem levá-los a serem
altruístas em relação a parentes próximos e também a outros
indivíduos que tenham a capacidade de devolver o favor.
Essa é a base evolutiva dos humanos." R. Dawkins


Egoísmo e altruísmo animal: normas de conduta
Os primatólogos de campo já detectaram, principalmente em chimpanzés,
bonobos e gorilas, que estes animais altamente sociais aprendem a regular
suas condutas pondo em jogo as habilidades cognitivas subjacentes na
moralidade humana. Entre estas capacidades se encontram as seguintes (F. de
Waal):
-apego, socorro e contágio emocional;
-ajuste aprendido e trato especial para os incapacitados e
feridos;
-capacidade de colocar-se em lugar do outro (empatia);
-aprendizado de regras sociais prescritivas (os jovens aprendem
o que podem e o que não podem fazer com as crias, vigiadas estritamente por
suas mães);
-concepção da reciprocidade[1]: dar esperando receber,
intercambiar e vingar-se;
-reconciliação e prevenção de conflitos;
-preocupação pela comunidade e intento de conservar as boas
relações;
-acomodação aos interesses opostos mediante a negociação.


No caso de nossos congêneres, acrescentamos a estes recursos básicos
de nossa natureza conjuntos de prescrições culturalmente sancionadas às que
chamamos normas morais ou jurídicas. E já advertimos que a tradição do
pensamento ocidental é e segue partidária da descontinuidade entre a
amoralidade da natureza e a moralidade humana. Tal descontinuidade está
baseada na resistência a reconhecer que os humanos são primatas, um tipo de
primata muito próximo, ademais, aos do gênero Pan (chimpanzés e bonobos –
sendo estes últimos, quiçá, a raça de símios que guarda maior semelhança
com os humanos). Assim que parece exagerado, e provavelmente equivocado,
dizer que as habilidades cognitivas dos símios são naturais enquanto que
nossas normas morais e jurídicas são exclusivamente culturais.
Centremo-nos agora nas normas morais e jurídicas. As normas morais (e
jurídicas) são regras de conduta que surgem diante de conflitos de
interesses. Não há necessidade de justiça ou de regras morais ali onde não
há conflitos de interesses. De fato, não parece despropositado dizer que
criamos um sistema complexo de justiça e de normas de conduta para
canalizar nossa tendência à "agressão" decorrente da falta de
reciprocidade e dos defeitos que emergem dos vínculos sociais relacionais
que estabelecemos ao longo de nossa secular existência. Tais normas, por
resolverem determinados problemas socioadaptativos práticos, modelam e
separam os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das
reações do outro, podem ser social e legitimamente exercidos, isto é,
plasmam publicamente não somente nossa (também) inata capacidade (e
necessidade) de predizer e controlar o comportamento dos demais, senão
também o de justificar e coordenar recíproca e mutuamente, em um
determinado entorno sociocultural, nossas ações e interações sociais.
As normas e os valores produzidos e assumidos pelos seres humanos
aparecem dentro de um processo de adaptação (darwiniana) de grande
complexidade à dinâmica fluida do mundo cotidiano. Nossas regras de conduta
destinadas a controlar e predizer o comportamento humano não se deram à
humanidade desde cima. Evolucionaram ao longo de muitos anos porque
resolviam problemas adaptativos recorrentes relativos à vida comunitária.
As leis (morais e jurídicas) não são simplesmente um conjunto de regras
faladas, escritas ou formalizadas que as pessoas seguem. Representam a
formalização de regras comportamentais sobre as quais uma alta percentagem
de pessoas concorda.
Para o bem ou para o mal, constituem o melhor mecanismo de organização
social em grande escala que nossa espécie descobriu até o presente e que
podem ser adaptadas às peculiares características da psicologia humana.
Refletem as inclinações do comportamento, regulam os vínculos sociais e
oferecem benefícios potenciais àqueles que as seguem. Quando as pessoas não
reconhecem ou não acreditam nesses benefícios potenciais ou nos castigos
eficazes, as normas são, com frequência, não somente ignoradas ou
desobedecidas (pois carecem de legitimidade e de contornos culturalmente
aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepção de
justiça), senão que seu cumprimento fica condicionado a um critério de
autoridade que se lhes impõem de forma desagradável, brutal e
arbitrária.[2]
Com efeito, dispomos de normas de conduta (morais e jurídicas) bem
afinadas porque nos permitem predizer, controlar e modelar o comportamento
social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. Estes
artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuições e emoções morais,
não são construções caprichosas, arbitrárias ou produtos de uma
racionalidade pura, senão que servem ao importante propósito de, por meio
de juízos de valor, tornar a ação coletiva possível – e parece razoável
admitir que os seres humanos encontram satisfação no fato de que as normas
sejam compartidas e cumpridas pelos membros da comunidade[3]. E dado que a
sociedade usa leis para encorajar as pessoas a se comportar diferentemente
do que elas se comportariam na falta de normas, esse propósito fundamental
não somente torna o direito altamente dependente da compreensão das
múltiplas causas do comportamento humano, como, e na mesma medida, faz com
que quanto melhor seja esse entendimento da natureza humana, melhor o
direito (e a ética) poderá atingir seus propósitos (opinamos que o que está
ocorrendo com o direito tem que ver em boa medida com a natureza humana e
que enquanto não entendamos como é a natureza humana nos vamos a seguir
equivocando).
Pois bem, que uma fenomenologia dos conflitos de interesses é o objeto
da ética descritiva e do direito é um fato quase que incontroverso. Nada
obstante, não há ainda respostas claras às perguntas sobre como, por que,
quando e onde se produzem os conflitos de interesses entre os humanos, nem
tampouco sobre como, por que, quando e onde costumam estes atuar para
resolvê-los (seja em nome da justiça, da segurança, da liberdade, da
igualdade....). Mas os estudiosos do comportamento dos chimpanzés sim que
já elaboraram essa fenomenologia, e não temos mais que recorrer a ela para
dar-nos conta de quanto, apesar de nossa proverbial capacidade de linguagem
e reflexão, nos parecemos neste tema aos paninos.
Neste particular, um modo recorrente de abordar a conduta humana em
comparação com a de outras espécies animais é analisar as ações nos termos
do debate egoísmo-altruísmo. Os cientistas já o fizeram, e o fizeram sem
cair na anteriormente apontada inconveniência das categorias dicotômicas do
tipo natureza/cultura. Em seus enfoques propõem substituir a pergunta - que
poderia gostar aos freudianos, mas não à ciência contemporânea - de «como é
que sendo egoístas por natureza construímos culturalmente normas morais de
signo altruísta?», por outra menos equívoca e que assinala muito bem como
os dois lados do dilema se encontram, não cada um em um dos supostos campos
contrários, senão ambos no mesmo continuum natureza-cultura: «Por que (por
natureza) aprendemos a atuar de maneira cooperativa ou altruísta se estamos
dotados de regras epigenéticas da mente que promovem a preservação egoísta
de nossos genes?»
Poderíamos esquematizar este ponto da seguinte forma:


FALSO DILEMA: por um lado: natureza---------------
egoísmo
por outro lado: cultura----------------
altruísmo


DILEMA REAL: por um lado: natureza-cultura-----
-egoísmo
por outro lado: natureza-cultura----altruísmo



O problema está em que não é certo que as regras epigenéticas da mente
nos disponham simultânea e contraditoriamente para o egoísmo e o altruísmo,
senão que nos dispõem sempre para a sobrevivência e a reprodução, e isso
pode obter-se tanto através de condutas egoístas como altruístas. Esta é a
interpretação que do altruísmo realizam alguns biólogos evolutivos (ou
evolucionistas): quando nos comportamos moralmente, no sentido de olvidar-
nos de nossos interesses imediatos e atuar em benefício de outras pessoas,
estamos também atuando, ainda que seja de um modo muito indireto, em
benefício de nossas possibilidades de sobrevivência e reprodução, pelo que
se pode concluir que o sentido moral é, pelo menos no que ao altruísmo se
refere (como quase tudo na cultura humana), adaptativo.
Dito de uma maneira mais simples, o sentido moral é útil para
satisfazer os interesses individuais de sobrevivência e reprodução. Ou,
como outros preferem, o altruísmo é um egoísmo inclusivo do bem estar
alheio.

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent
Researcher.
( Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes
Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la
moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana-
UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de
les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/
Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les
Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] A estratégia de pagar na mesma moeda parece fazer parte da natureza
humana como um conjunto de emoções morais que nos faz querer retribuir um
favor com outro favor, um insulto com outro insulto – olho por olho, dente
por dente. Vários teóricos recentes chegam a falar em um "órgão de troca"
no cérebro humano, como se houvera parte do cérebro dedicada a monitorar a
justiça, as dívidas de gratidão e as contas a receber no intercâmbio
social. O "órgão" é uma metáfora – ninguém espera encontrar parte de tecido
cerebral isolada cuja única função seja garantir a reciprocidade. No
entanto, indícios recentes sugerem que poderia haver de fato um órgão de
troca no cérebro se ampliássemos o sentido de "órgão" e permitíssemos que
os sistemas funcionais do cérebro fossem compostos de partes separadas de
uma rede neuronal que trabalham em conjunto para executar tarefas
específicas. (J. Haidt)
[2] Para citar Noam Chomsky: "Creio que há certo tipo de fundamento
absoluto [...] que em última instância reside nas qualidades humanas
fundamentais, sobre as que se baseia um conceito "real" de justiça. Creio
que é muito apressado qualificar nossos sistemas de justiça atuais como
meros sistemas de opressão de classe; não creio que seja assim. Penso que
expressam sistemas de opressão de classe e elementos de outros tipos de
opressão, mas também uma busca óbvia e constante de conceitos
verdadeiramente humanos e valiosos de justiça, decência, amor, bondade e
compaixão, que creio que são reais". Com efeito, em uma sociedade
tendencialmente integrada a consciência jurídica dessa comunidade propende
a confundir-se com a concreta objetivação histórico-social que a
juridicidade obteve no sistema do direito vigente. Os princípios e normas
positivas da sua juridicidade são em boa parte o resultado da assimilação
jurídica de intenções éticas, políticas e sociais dominantes no ethos
social histórico da concreta comunidade. Pode assim dizer-se que nessa
medida os princípios e normas informadoras de juridicidade vigente são
expressões de nossas intuições e emoções morais (vigorando socialmente como
ideologia em sentido positivo e global) assumidas pelo direito. Pensemos –
e só nos referimos a alguns exemplos mais evidentes – nos princípios sem os
quais hoje, onde quer que seja, se não pode admitir como válida a
individual responsabilidade criminal (a definição dessa responsabilidade
nos termos objetivos que apenas um princípio de nullum crimen sine lege
pode assegurar, e segundo uma imputação subjetiva que exige o respeito pelo
princípio da culpa (não obstante a sua atual problemática). Consideremos o
princípio da autonomia ou a irredutível subjetividade de uma esfera
jurídica pessoal, a manifestar-se nos problemas dos direitos de
personalidade, dos direitos subjetivos, da negocial autonomia privada
(autonomia decerto hoje profundamente correlativa, e a conexionar-se, com
um princípio de responsabilidade ou vinculação social, nos seus limites e
no seu exercício). O princípio da igualdade jurídica – a entender já hoje
para além da mera igualdade perante a lei e verdadeiramente como "igualdade
perante o direito"; e um longo etecétera. Por certo que se poderá objetar
que a existência jurídica de alguns destes princípios se deve em parte ao
seu caráter formal, desde logo os que mais diretamente exprimem uma
exigência de legalidade, e que os demais carecem, na sua indeterminação
intencional, de uma causa específica e, como tal, necessitam de
concretização destinada a obter, com fundamento, os critérios materiais que
(eles) não definem. Com o que se toca o problema, último e decisivo, da
sede e natureza dos fatores ou critérios que são chamados, já a dar uma
intenção material aos princípios e normas jurídicas formais, já a impor um
sentido materialmente determinado aos princípios e normas jurídicas
intencionalmente indeterminados (A. Castanheira Neves). E a resposta comum
é pronta: o determinante material ou de conteúdo de tais princípios e
normas oferece unicamente nossas intuições e emoções morais que constituem
em termos dominantes a espécie humana – ou, o que é o mesmo, a intenção
ideológica, ética e política da comunidade em causa. Seria este, afinal, o
decisivo critério material do jurídico. E seria assim de novo ilusória a
pretensão de desvincular nature-nurture: que o direito compete à natureza
humana, que ele, tanto no seu sentido como no conteúdo da sua
normatividade, é uma resposta/estratégia culturalmente humana ao problema
também e essencialmente humano da convivência no mesmo mundo e em um
determinado tempo e espaço histórico social. Como bem expressado por N.
Humphrey: os historiadores podem descrever as forças impessoais como
queiram, mas a realidade é que não há forças impessoais na sociedade
humana; não há um só acontecimento significativo que não tenha sido
modelado por mentes humanas em interação com outras mentes humanas. A
história da sociedade humana nos últimos milhares de anos é a história do
que as pessoas disseram umas às outras, do que pensaram umas das outras, de
rivalidades, de amizades, de ambições pessoais e nacionais.
[3] Da mesma forma, formulamos juízos de valor sobre o justo e o injusto
não somente por motivos racionais, como expressam a teoria dos jogos e as
teorias jurídicas, senão porque também estamos dotados de certas intuições
morais inatas e de determinados estímulos emocionais que caracterizam a
sensibilidade humana e que permitem que nos conectemos potencialmente com
todos os demais seres humanos. As virtudes da tolerância, da compaixão e da
justiça não são tampouco fórmulas jurídicas que nos esforçamos para
alcançar de forma puramente racional, sabendo das dificuldades do caminho,
mas compromissos que assumimos e esperamos que outros assumam. O direito,
se o entendemos mais além da expressão formal dos códigos de conduta, não é
um simples constructo intelectual: apareceu e evoluiu como parte de nossa
natureza a partir de um largo e tortuoso processo coevolutivo. Daí que para
compreendê-lo adequadamente devemos entender a forma como o conjunto mente-
cérebro processa os instintos e as predisposições que permitem criar e
explorar nossos vínculos sociais relacionais, assim como as normas que
estabelecemos para controlar nossa conduta em sociedade.
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