Etnicidade, resenha de Martiniello

September 19, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Etnicidade, Estudos étnicos e raciais, Antropologia
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Publicado em: Pedro Paulo A. Funari, Resenha de "L'éthnicité dans les scìences sociales", Boletim do CPA, 6, 11, 2001, 163-168.

Marco Martiniello, L’éthnicité dans les sciences sociales contemporaines. Paris, Presses Universitaires de France, 1995, 128 pp.

Resenhado por Pedro Paulo A. Funari (Departamento de História, IFCH, UNICAMP)

O cientista social belga Marco Martiniello publicou, há algum tempo, uma obra que procura dar conta das principais discussões acadêmicas contemporâneas sobre a “etnicidade”, neologismo proveniente do inglês e que talvez pudesse ser traduzido, nas línguas vernáculas de origem latina, por “identidade 1 étnica”. Essa temática tem sido particularmente importante para os estudiosos da Antigüidade, assim como para todos os que estudam a sociedade por meio da cultura material. O uso do termo generalizou-se nos estudos acadêmicos anglo-saxônicos a partir da década de 1970 e, com o ocaso da Guerra Fria e a respectiva eclosão de conflitos étnicos, a questão étnica chegou à mídia e induziu uma crescente reflexão científica a seu respeito. Neste sentido, o pequeno volume de Martiniello cumpre, com grande propriedade, a tarefa básica de apresentar um sumário dos principais temas em debate. Talvez o mais espinhoso, tratado, naturalmente, logo ao início, refira-se à definição mesma do conceito. Ao constatar que a academia francófona rejeita o seu uso, seja por identificá-lo com o racismo, seja por lhe parecer uma invenção forânea, norte-americana, inadequada para a compreensão de sociedades com longa trajetória histórica, como a Européia. O autor prefere considerar que o conceito, desenvolvido pela ciência anglo-saxônica, revela-se útil e deve ser conhecido, razão última de sua própria obra. Também os cientistas brasileiros terão muito a ganhar com o conhecimento desses debates.

Martiniello fornece uma definição básica de etnicidade: “define-se pela construção social e política dessas substâncias e dessas diferenças biológicas e culturais, na medida em que permite a criação de

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2 grupos distintos” (p.18) e “uma das tarefas das ciências sociais será, precisamente, analisar como esses diferentes modos de classificação e de separação sociais interagem e evoluem no tempo e no espaço” (p.20). O autor discorre sobre a etnicidade a nível individual e microssocial, grupal ou mesossocial e macrossocial, para aprofundar-se nas principais abordagens teóricas: modelos naturalistas (sociobiologia, primordialista), sociais (substancialistas, como os paradigmas assimilacionistas ou do pluralismo cultural, ou a partir da teoria das fronteiras étnicas de Barth), ou outras não substancialistas (como o novo pluralismo cultural, a escolha racional, e a etnicidade simbólica), culminando com as teorias de inspiração marxista. Em seguida, discorre sobre os conceitos próximos e relacionados à etnicidade: cultura, religião, nacionalismo, “raça”. Três capítulos procuram relacionar etnicidade e classe social, gênero e a política e seus conflitos. A conclusão procura mostrar a importância da etnicidade na vida social e, conseqüentemente, sua necessária utilização por parte do estudioso da sociedade.

Alguns pontos merecem reflexão, a começar pela constatação de que a dimensão étnica das relações sociais, seja ela chamada de etnicidade ou de identidade étnica, tem desempenhado, ao longo da História e em diferentes sociedades, um papel importante e, por isso mesmo, o estudioso da sociedade não pode prescindir de refletir a esse respeito. A História acadêmica do conceito, necessariamente fundada na moderna tradição2 que assimila, de forma abusiva, língua, cultura e etnicidade, se não for bem conhecida, acaba por turvar a visão de muitos estudiosos dos chamados grupos étnicos 3 . No caso do Brasil, nos longos primeiros séculos de colonização e trabalho escravo, “negros” eram as peças, fossem elas africanas,

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Para uma crítica do conceito de “identidade”, consulte-se Kanavillil Rajagopalan, The Concept of Identity in Linguistics: is the time ripe for a radical rethinking?, Campinas, manuscrito inédito, 1996, p. 12 et passim. 2 Consulte-se o erudito estudo historiográfico sobre a construção do conceito de raça, língua e cultura arianas, de Martin Bernal, The Black Athena, The Afroasiatic roots of classical civilization, Nova Iorque, Vintage, 1987. 3 Esta é uma confusão muito comum, e particularmente deletéria, no campo da Arqueologia, como lembraram, recentemente, Philip L. Kohl, Ethnic strife: a necessary amendment to a consideration of class struggle in Antiquity, in Christine Ward Gailey (ed.), Civilization in Crisis, Anthropological Perspectives, Gainesville, University of Florida Press, 1992, p. 171: the perpetual confusion of merging race, language, and culture simply never dies, despite a hoary, now classic anthropological literature devoted to keeping these variables separate and independent; e, ainda, Sîan Jones & Paul Graves-Brown, Introduction, Archaeology and Cultural Identity in Europe, in Paul Graves-Brown, Sîan Jones & Clive Gamble (eds), Cultura Identity and Archaeology, Londres, Routledge, 1995, p.7: there is no one-to-one correlation between language, culture and ethnicity, and group identity is historically contingent. Para uma discussão aprofundada a respeito, com um estudo de caso específico, relativo à Bretanha em época romana, vejam-se Sîan Jones, The Archaeology of Ethnicity, Constructing identities in the past and in the present, Londres, Routledge, 1997 e

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ameríndias, crioulas, mestiças ou mouras

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e a identidade étnica era antes uma forja de explorados, por

oposição a exploradores 5, do que uma busca de preservação de costumes desta ou daquela origem 6. Essas identidades, mais do que voltadas para tribos originárias ou submetidas à europeização forçada, eram o resultado de uma transculturação radical, na feliz expressão de Octávio Ianni 7.

A identidade nacional

brasileira, tal como formulada pelos nossos pensadores, teve sempre que dar conta de uma multiplicidade de grupos étnicos que aqui aportaram e construíram novas relações 8. Martiniello alude às teorias “pós-étnicas”, de origem norte-americana, e que enfatizam que, na moderna sociedade dos Estados Unidos, as classes médias, emergentes de antigas minorias marginalizadas (italianos, irlandeses, croatas inter alios), podem optar por uma nova identidade étnica que lhes serve como elemento de distinção social. Assim, os antigos carcamanos ou judeus, que queriam, antes, ser simples americanos, agora preferem a hifenização dos termos ítalo-americano ou judeu-americano, com evidente ganho de status, por oposição seja aos negros e aos hispânicos, desvalorizados, seja frente aos WASPs (anglo-saxões de estirpe, os “quatrocentões”). Em que medida seriam estas formulações úteis para entendermos os processos étnicos no Brasil contemporâneo?

Há evidentes analogias, mas notáveis diferenças, também. Aqui não temos negros, mas pobres, não há hispânicos, mas migrantes, nem as comunidades de origem européia mantém a endogenia necessária para a invenção de uma identidade original, pois os casamentos de indivíduos de diferentes comunidades, ao menos nos grandes centros, não constitui exceção. Por outro lado, há comunidades que mantém, se não por escolha, pela pouca oportunidade de contato, um caráter étnico marcado. Não poucas vezes, como ressalta Martiniello (p.116), os conflitos de classe assumem a forma, na atualidade, de conflitos étnicos e, embora de forma mitigada, o Brasil tem, também, testemunhado, por vezes, situações perigosas. Por outro lado, Martiniello recorda que, desde Aristóteles, até os politólogos contemporâneos, passando por Montesquieu, Rousseau, Machiavel e Mill, a democracia desconfiou do impacto negativo da diversidade

César Carreras & Pedro Paulo A. Funari, El comercio de aceite en Britannia, Barcelona, Universidad de Barcelona, 1997. 4 Cf. Mário Maestri, A Servidão Negra, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988, p.38. 5 Cf. Peter Ucko, Foreword, in Stephen Shennan (ed.), Archaeological Approaches to Cultural Identity, Londres, Unwin Hyman, 1989, p. xix. 6 Cf. Charles E. Orser, Jr., A Historical Archaeology of the Modern World, Nova Iorque, Plenum, 1996, pp. 41-56 et passim. 7 Tansculturação, manuscrito inédito, 1996, p.24 et passim. 8 Cf. Renato Ortiz, Cultura Brasileira e Identidade Nacional, São Paulo, Brasiliense, 1985.

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4 étnica na estabilidade das democracias. Nessa tradição, a democracia pressupõe uma unidade cultural 9 que pode levar à supressão das diversidade étnicas e culturais, em uma contradição insustentável entre regime democrático e liberdade de expressão. Talvez este seja um ponto para especial reflexão, pois em um mundo assolado pelos conflitos que assumem a forma de lutas étnicas, cabe ao estudioso da sociedade estar atento a essa dimensão da vida social. A contribuição mais importante do livro de Martiniello consiste, justamente, em mostrar que a compreensão da sociedade, no passado e no presente, não pode deixar de dar conta da dimensão étnica, sob pena de, ao ignorar conceitos de uso quotidiano e, por vezes, violento, abandoná-la ao senso comum. Cabe à ciência, ao contrário, refletir, de maneira crítica, sobre as práticas e as ideologias, para que não sejamos, todos, vítimas de nossa própria falta de reflexão. O livro de Martiniello contitui uma boa introdução à complexa discussão sobre a identidade étnica10.

Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari Livre-Docente, Departamento de História, IFCH-UNICAMP C. Postal 6110, Campinas, 13081-970, SP Fax: 019-2393327 E-Mail: [email protected]

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Cf. Margarita Díaz-Andreu, Constructing identities through culture, in Paul Graves-Brown, Sîan Jones & Clive Gamble (eds), Cultural Identity and Archaeology, Londres, Routledge, 1995, p. 52 et passim. A passagem, no caso italiano, da identidade do paese (região) ao paese come nazione (país) é tardia; a famosa Mostra Storica, L’Unità d’Italia, no Palácio Carignano, em Turim, publicada por Amilcare Pezzi Editore, mostra bem a longa forja de um conceito de nação. 10 Agradeço aos seguintes colegas, que forneceram textos, alguns inéditos, e trocaram idéias: César Carreras, Margarita Díaz-Andreu, Octávio Ianni, Sîan Jones, Philip Kohl, Mário Maestri, Lawrence Okamura, Charles E. Orser, Jr., Renato Ortiz, Kanavillil Rajagopalan e Peter Ucko. A responsabilidade pelas idéias, contudo, restringe-se ao autor.

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