Etnógrafa, nativa, leitora ou missionária do desenvolvimento? Uma antropóloga na elaboração de estudos para o Licenciamento Ambiental no Brasil

May 31, 2017 | Autor: Natália Gaspar | Categoria: Etnografia, Licenciamento Ambiental, Trabalho De Campo
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Etnógrafa, nativa, leitora ou missionária do desenvolvimento? Uma antropóloga na elaboração de estudos para o Licenciamento Ambiental no Brasil1 Natália Morais Gaspar Doutora em Antropologia – PPGSA/IFCS/UFRJ Palavras-chave: Grandes Empreendimentos – Licenciamento Ambiental – Trabalho de Campo Introdução Neste trabalho, procuro colocar em discussão um aspecto bastante específico a respeito da atuação de antropólogos e cientistas sociais em processos licenciamento ambiental no Brasil2, mas que coloca questões para a antropologia em diferentes níveis. Meu ponto de partida são os “diagnósticos do meio socioeconômico”, que constituem uma parte de Estudos de Impacto Ambiental (EIA)3, um dos principais requisitos para a obtenção de licenças ambientais, indispensáveis à implantação de grandes empreendimentos no Brasil. A partir da observação das condições nas quais são realizados os trabalhos do campo nos quais são parcialmente baseados os diagnósticos, procuro analisar as relações estabelecidas entre o pesquisador/consultor e a população considerada afetada por um grande empreendimento, e a natureza conhecimento que é produzido a respeito desta população no âmbito da elaboração de estudos para o licenciamento ambiental. Procuro demonstrar que a atuação de antropólogos na elaboração dos diagnósticos, nas condições de realização próprias ao contexto de elaboração de estudos

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Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 No Brasil, o licenciamento ambiental e a avaliação de impacto ambiental situam-se entre os instrumentos preventivos desenvolvidos com vistas à implantação dos objetivos da Política Nacional de Meio Ambiente, institucionalizada em 31 de agosto de 1981. Para ser licenciado por um órgão ambiental governamental, condição indispensável para a sua implantação, um empreendimento deve possuir, a rigor, três licenças: Licença Prévia (LP); Licença de Instalação (LI), que autoriza a realização das obras; e Licença de Operação (LO), que autoriza a entrada em funcionamento. 3 A realização de um EIA depende das seguintes atividades: “ (1) diagnóstico ambiental que caracteriza a situação da área de influência do projeto antes de sua implantação, considerados os meios físico, biológico e socioeconômico; (2) análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes; (3) definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, avaliada a eficiência de cada uma destas; (4) elaboração do programa de e monitoramento dos impactos” (Bronz 2011: 37). É na atividade de número 1, o “diagnóstico ambiental”, que a maior parte dos profissionais de ciências sociais envolvidos na realização de EIAs costuma atuar.

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para o licenciamento ambiental, apresenta um problema específico, que não ocorre com outros profissionais, devido à ambiguidade do termo “trabalho de campo”: quando é realizado por um profissional da antropologia, fica subentendida uma associação com o trabalho de campo etnográfico. Trato, então, de um dos principais aspectos pelos quais os diagnósticos para licenciamento não podem ser considerados trabalho de campo etnográfico, embora requeiram algumas das habilidades dos etnógrafos: o tempo.

Ambiguidade do “trabalho de campo” Os estudos da chamada “socioeconomia” de regiões a serem “impactadas” por grandes empreendimentos têm cada vez mais compreendido informações primárias e secundárias sistematizadas por profissionais da área de ciências humanas e sociais. A demanda específica por antropólogos ocorre somente no caso de empreendimentos que afetam Terras Indígenas (TI), quando são demandados estudos em separado sobre estas populações, a serem avaliados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que encaminha seu parecer ao órgão ambiental licenciador. Contudo, há também antropólogos que se dedicam aos diagnósticos socioeconômicos dos EIA. Mesmo sem atender a uma exigência legal específica pela expertise antropológica, a presença destes profissionais, pós-graduados, valoriza a composição das equipes técnicas que elaboram os estudos. Argumento que, além do título universitário, a valorização dos estudos ambientais onde estão envolvidos antropólogos ocorre em parte devido a uma confusão, vantajosa para as empresas de consultoria, relacionada ao termo “trabalho de campo”. É sabido que diferentes profissionais realizam trabalho de campo, e não só no contexto de estudos para licenciamento ambiental – geógrafos, sociólogos, oceanógrafos, biólogos, etc. No entanto, quando é um antropólogo está “em campo”, fica subentendida uma associação com o trabalho de campo etnográfico. Assim, ao entrar em contato com populações afetadas por grandes empreendimentos, muitas delas classificadas como “populações tradicionais”4 – aquelas classicamente consideradas como objeto do

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A definição jurídica de população tradicional, embora não tenha sido incorporada à versão final da Lei do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação) aprovada em 10 de junho de 1999, vigora nos discursos e pleitos daqueles que se reconhecem sob esta categoria. No projeto de lei nº 2.892, a definição é a seguinte: “Grupos humanos culturalmente diferenciados vivendo há no mínimo três gerações em um

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conhecimento antropológico -, é tacitamente atribuída ao antropólogo alguma espécie de acesso privilegiado às mesmas, pela sua formação. Esta característica também contribui para corroborar a contratação de antropólogos freelancers, exclusivamente para a realização de um trabalho de campo e elaboração de um relatório a respeito do mesmo5. Isto coloca problemas de diferentes ordens, inclusive éticos, concernentes às relações travadas entre pesquisadores/consultores e as populações a serem afetadas pelos empreendimentos em processo de licenciamento ambiental e ao conhecimento que é produzido a respeito destas populações pelos primeiros. Há trabalhos de cientistas sociais sobre o licenciamento que tratam da sua relação com outros profissionais, dentro de relações hierarquizadas nas empresas de consultoria ou no contato com representantes tanto do empreendedor quanto de órgãos públicos. Estes trabalhos lançam seu olhar etnográfico sobre as relações de poder nesses processos, desnaturalizando os ambientes corporativos onde são construídos os discursos e estratégias que legitimam os grandes empreendimentos e o próprio licenciamento ambiental. E, a partir do posicionamento do etnógrafo como trabalhador do processo de licenciamento, revelam aspectos deste processo que não poderiam ser acessados de outro modo, por alguém “de fora”. Além disto, estas etnografias têm o mérito de ter sido realizadas sob um ponto de vista subalterno nas relações hierárquicas das empresas, dirigindo o olhar do antropólogo para as elites e, por conseguinte, colocando questões sobre a assimetria de poder entre pesquisador e pesquisado em outras situações etnográficas mais comuns no exercício da antropologia6. Há dissertações de mestrado de cientistas sociais/consultores que tomam como objeto as populações afetadas pelos grandes empreendimentos em cujo licenciamento estiveram envolvidos como profissionais da consultoria, especialmente pescadores artesanais 7, alguns analisando a relação destas populações com as instituições e procedimentos do

determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para a sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável”. 5 Os trabalhos de campo para “diagnóstico do meio socioeconômico” de diferentes empreendimentos constituem um importante “bico” para estudantes de graduação e pós-graduação em ciências sociais, e não apenas antropólogos, em meio às incertezas de processos seletivos, acesso a bolsas de pesquisa e outros percalços da vida acadêmica. Trata-se de um perfil diferente daqueles profissionais de ciências sociais que se tornam funcionários efetivos das empresas de consultoria, geralmente marcados por trajetórias menos privilegiadas e pela necessidade de se fixar no “mercado de trabalho”. Entre estes, são frequentes as aspirações de retomar seus estudos, embora nem sempre concretizadas. 6 Ver, por exemplo, Bronz (2016) e Pitanga (2015). 7 Ver, por exemplo, Sampaio (2006).

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licenciamento ambiental de atividades petrolíferas e contendo reflexões a respeito do posicionamento do pesquisador também como ator no processo de licenciamento ambiental8. No entanto, há poucas análises sobre a relação estabelecida entre os cientistas sociais enquanto atuam como consultores no licenciamento ambiental e as populações atingidas pelos grandes empreendimentos e alvo de medidas compensatórias e mitigadoras, e sobre o conhecimento que é produzido a respeito destas populações neste contexto. Em parte, isto se deve ao fato de que o contato com estas populações é fugaz e constitui apenas uma parte de todo o trabalho realizado por estes profissionais no âmbito do licenciamento. Todavia, é por alguma forma de suposto acesso privilegiado a essas populações que os cientistas sociais são contratados e sua presença na equipe técnica dos estudos elaborados é alardeada por empresas de consultoria como sinal da atenção a impactos sociais dos empreendimentos. Em trabalhos anteriores, procurei lançar luz sobre o tratamento que recebem informações sistematizadas por cientistas sociais/consultores a partir de seus trabalhos de campo para diagnóstico do meio socioeconômico de áreas a serem afetadas por grandes empreendimentos na composição de um EIA. Ou seja, a maneira peculiar como um relatório de campo rico em informações qualitativas é apropriado de forma a subsidiar a quantificação dos “impactos” no capítulo do EIA denominado Avaliação de Impacto Ambiental

(AIA), que reúne informações

provenientes

não só do “meio

socioeconômico”, mas também dos “meios” “físico” e “biótico” que compõem a etapa de diagnóstico do estudo9. Foi possível traçar uma homologia entre o lugar do diagnóstico socioeconômico dentro de um EIA com o lugar das questões ditas sociais no processo de licenciamento (Gaspar 2015a e 2015b). Estas reflexões foram fruto da análise das relações entre os antropólogos e cientistas sociais e os demais profissionais envolvidos no

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Por exemplo, Silva (2004) e Bronz (2009). A AIA é elaborada geralmente por um profissional, com formação em gestão ou formação específica em “análise de impactos”, a partir dos “diagnósticos” dos três “meios”, elaborados por diferentes equipes. 9

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licenciamento. E apoiou-se na análise de partes de EIA10 e na comparação com notas etnográficas a respeito da maneira pela qual são elaboradas11. A análise das relações travadas entre os pesquisadores e indivíduos identificados ao longo do trabalho de campo como impactados coloca outras questões a respeito do conhecimento que é produzido sobre as populações impactadas e sua apropriação no processo de licenciamento. Argumento que a apropriação da expertise antropológica pelo mercado da consultoria para licenciamento ambiental está relacionada à suposição de uma capacidade de acesso privilegiado dos cientistas sociais a estas populações, através de uma associação entre o trabalho de campo para “diagnóstico do meio socioeconômico” e o trabalho de campo etnográfico, entendido como especialidade de profissionais como antropólogos e alguns sociólogos. É mais comum que esta associação permaneça subentendida em capítulos de “metodologia” dos “diagnósticos socioeconômicos” dos EIA, mas a ambiguidade do significado da expressão “trabalho de campo”, quando realizado por antropólogos, chega a ludibriar cientistas sociais/consultores ao produzir seus trabalhos acadêmicos com reflexões sobre sua atuação profissional no licenciamento12. Partindo de reflexões sobre a utilização da antropologia para fins pragmáticos, como, por exemplo, as pesquisas de mercado, Magnani chama a atenção para ocorrência de alguns mal-entendidos, com destaque para a banalização da etnografia como metodologia, estratégia de pesquisa e postura intelectual (Geertz 1978 apud Magnani

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As reflexões de antropólogos a partir de suas (nem tão) novas possibilidades de inserção profissional para além da universidade – em órgãos governamentais, organizações não governamentais e em empresas - contribuem para pensar o fazer etnográfico em contextos de forte polarização ou assimetria, pautando-se criticamente não apenas na observação participante, mas também no tratamento de documentos, tão importantes para a pesquisa antropológica em sociedades em que a escrita é instrumento de poder e segregação (Castilho; Souza Lima; Teixeira, 2014, p. 11) . 11 Estes trabalhos têm sido um esforço no sentido de sistematizar e analisar parte das minhas próprias experiências em empresas de consultoria ambiental no Brasil, sob diferentes vínculos de trabalho, entre 2006 e 2014. Estive envolvida na realização de estudos e atividades do licenciamento ambiental de empreendimentos como rodovias, linhas de transmissão e subestações de energia elétrica, portos e atividades petrolíferas – ora como “consultora externa” de diferentes empresas, geralmente contratada para uma tarefa específica dentro de um estudo maior; ora como funcionária “técnica em socioeconomia”, atuando em diferentes “projetos” simultaneamente, nas suas variadas etapas, tanto em empresas grandes quanto em pequenas empresas. 12 Por exemplo, Mazurec em sua dissertação de mestrado refere-se aos trabalhos de campo para diagnóstico socioeconômico de um EIA como “etnográfico”, como no seguinte trecho: “Para atendimento do Termo de Referência do estudo, o trabalho de campo foi estruturado da seguinte maneira: pesquisa etnográfica foi distribuída por seis duplas de consultores, que tinham a função de percorrer o “corredor” definido como áreas de influência direta dos empreendimentos.” (Mazurec 2012: 183).

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2009: 132). E apresenta, então, alguns traços distintivos que marcam a especificidade da etnografia: trata-se de uma metodologia inseparável das escolhas teóricas no interior da disciplina e das particularidades dos objetos de estudo; e engloba estratégias para inserção no campo, condições para prática continuada e experiência, e escrita final. Nesta direção, a análise da atuação de antropólogos na elaboração de estudos para licenciamento ambiental contribui de forma particular para pensar a banalização do método etnográfico. Pois estabelece uma confusão útil para empresas que têm interesses na transformação de territórios, muitas vezes contrários aos interesses das populações afetadas, em uma relação de poder totalmente assimétrica, na qual estudos são elaborados para comprovar a viabilidade de empreendimentos cuja realização está associada a decisões políticas previamente tomadas e que são tratados como inexoráveis. Não se trata, aqui, de deslegitimar a ocupação destes espaços do mercado de trabalho por antropólogos ou cientistas sociais, mas de refletir sobre o uso que é feito de suas habilidades - tanto as requeridas para a realização dos estudos ambientais, quanto aquelas presumidas pela sua formação profissional – para a legitimação dos grandes empreendimentos e, em última análise, de um modelo de desenvolvimento. Para tanto, cabe escrutinar os motivos pelos quais os trabalhos de campo para diagnósticos socioeconômicos dos EIA não podem ser considerados trabalho de campo etnográfico. Cabe ainda compreender melhor as habilidades postas em uso pelos profissionais que realizam os trabalhos de campo para diagnósticos na consultoria ambiental e o tipo de conhecimento que é construído nestas condições, com finalidades distintas da produção de conhecimento pela antropologia acadêmica/universitária. Trabalho de campo e diagnóstico do meio socioeconômico Cabe elucidar as condições nas quais são realizados os trabalhos de campo para diagnósticos socioeconômicos dos EIA e o uso que é feito das informações que resultam desses trabalhos de campo dentro do estudo. Primeiramente, o assim chamado “diagnóstico do meio socioeconômico” ou “meio antrópico” de um EIA era construído com base somente em dados secundários, obtidos em órgãos governamentais, tais como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), etc. Organizava-se

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em itens com denominações como “Aspectos demográficos”, “Aspectos econômicos”, “Educação”, “Saúde”, etc13. Como a maior parte destes dados se encontram na escala municipal, e com o crescimento da pressão da organização das populações atingidas pelos grandes empreendimentos, foi-se consolidando a necessidade de profissionais que fossem a campo colher informações mais refinadas sobre as populações das regiões onde são implantados. Soma-se a este fator a pressão das instituições multilaterais financiadoras pelo envolvimento “participativo” das populações atingidas, geralmente posto em andamento, oficialmente, na etapa da Audiência Pública, posterior à elaboração do EIA no processo de licenciamento, mas para a qual podem contribuir as informações colhidas no estudo a respeito destes segmentos populacionais. Ou as informações reunidas no EIA podem ainda contribuir para a construção de uma estratégia de “diálogo social” para promover a aceitação do empreendimento pela sociedade – o processo de obtenção da “licença social”, como é chamado por Bronz (2011 e 2016). A seleção das localidades a serem visitadas em um trabalho de campo que subsidia o “diagnóstico do meio socioeconômico” está relacionada à definição da “área de influência” do empreendimento a ser licenciado. Bronz observa que a “delimitação da área de influência é condição para realização dos estudos, na medida em que indica as áreas sujeitas à avaliação dos técnicos, visitação, experimentação e coleta de dados. Ao mesmo tempo, é anunciada como resultado das análises, pois, do ponto de vista metodológico, só após a realização do estudo seria possível compreender como os impactos se distribuem sobre os territórios e suas populações” (Bronz 2016: 56). Arrisco afirmar que um dos motivos desta inversão – a definição da área de influência acontece antes das avaliações e visitas técnicas – é o fato de que as empresas de consultoria precisam estimar um valor competitivo para a realização dos estudos ao enviar propostas técnicas14 a possíveis clientes com vistas a firmar contratos. Assim, precisam estimar os

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Por exemplo, no Estudo de Impacto Ambiental da Usina Siderúrgica CSA – Companhia Siderúrgica do Atlântico, de 2005, houve coleta de dados primários somente a respeito dos pescadores, considerados um dos grupos a ser mais afetado pelo empreendimento. Estes dados foram apresentados sob a forma de um relatório em anexo ao EIA, enquanto algumas informações sumárias foram reunidas a dados secundários sobre a pesca a nível nacional, estadual e na Baía de Sepetiba (estado do Rio de Janeiro), constituindo um dos subitens do item denominado “Meio Socioeconômico”, composto ao todo por 13 subitens. (ERM 2005: VII-488-496) 14 “A proposta técnica-comercial é uma espécie de projeto no qual a empresa deve apresentar como pretende realizar aquele serviço e os custos para isso. (...) A parte técnica da proposta deve a presentar a

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custos das campanhas de campo e isto varia, entre outras coisas, segundo o tamanho da área a ser visitada e avaliada. A quantidade de localidades a ser visitada e a duração dos trabalhos de campo também é influenciada pela divisão da área a ser “impactada” entre “Área de Influência Direta (AID)” e “Área de Influência Indireta (AII)” dos empreendimentos. Esta divisão está relacionada à divisão entre beneficiários ou não de certos recursos, pois “as áreas consideradas diretamente afetadas e as populações nelas residentes estarão sujeitas ao desenvolvimento de ações e projetos de mitigação e compensação, enquanto as áreas indiretamente afetadas estarão sujeitas apenas aos planos de monitoramento de impactos” (Bronz 2016, 56). Geralmente, os trabalhos de campo para diagnóstico do meio socioeconômico de um EIA se concentram na AID. Os relatórios resultantes destes períodos em campo costumam condensar informações utilizadas em diferentes partes de um EIA mas, em sua quase totalidade, vão compor um capítulo comumente denominado “Uso do solo da AID”, ou ainda capítulos específicos sobre a pesca artesanal quando é o caso. Para Bronz, ocorre uma hierarquização dos saberes envolvidos na elaboração de um EIA, onde os “impactos sociais costumam ser subsidiários dos impactos naturais, ou seja, as transformações na sociedade são avaliadas como uma consequência das transformações nos ambientes físicos”. Assim, as “áreas de visitação dos consultores do meio socioeconômico costumam ser determinadas a partir dos resultados preliminares das experimentações, análises e modelagens matemáticas que indicam a extensão das áreas sujeitas aos impactos naturais e aos riscos de acidentes” (idem). Diante disso, que tipo de informações são requeridas quando os profissionais responsáveis pelo “meio socioeconômico” vão a campo? De que condições eles dispõem para realizar este levantamento? O tipo de informação que a empresa de consultoria espera que o profissional traga de campo varia segundo o tipo de empreendimento a ser licenciado. Em todos os casos, é preciso registrar “evidências” da presença dos profissionais nos locais percorridos – o mínimo é que sejam feitas fotografias dos lugares e pessoas visitados; cada lugar fotografado e descrito também costuma ser registrado com uma marcação no aparelho de

metodologia a ser utilizada, a estratégia de ação para realização do estudo ou projeto, cronograma e equipe com currículo compatível com o serviço”(Pitanga 2015: 53).

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GPS (Global Positioning System). Estas “evidências” poderão ser usadas posteriormente para provar a realização de estudos in loco, em caso, por exemplo, de questionamento do EIA em uma situação de Audiência Pública. De uma maneira geral, trata-se de colher informações que ajudem a fazer inferências sobre as transformações pelas quais passarão as vidas das pessoas e os lugares afetados pela instalação e pela operação de um empreendimento. No caso do licenciamento de atividades petrolíferas no mar (offshore), por exemplo, interessa saber, principalmente, se há pescadores que exercem suas atividades dentro da área de exclusão do empreendimento (geralmente, um raio de 500m ao redor das plataformas e das embarcações de apoio, que se deslocam entre a plataforma e o porto). Esses empreendimentos costumam comportar como “área de influência” vários municípios costeiros contíguos, por vezes em mais de uma unidade da federação. O trabalho de campo consiste, então, em percorrer todos esses municípios, visitando colônias e associações de pesca, nas quais geralmente tem-se uma conversa que não ultrapassa trinta minutos com o presidente ou alguma liderança da colônia ou associação. Além disso, procuram-se os locais de desembarque pesqueiro, e tem-se uma conversa com pescadores que estejam eventualmente no local naquele momento. No caso das colônias ou associações, estas visitas são antecedidas por contatos telefônicos, após um levantamento destes contatos em estudos anteriores ou mesmo na internet. Este contato telefônico pode ser feito pela equipe que irá a campo, mas frequentemente é realizado por outros profissionais, da área de comunicação, que trabalham no escritório da empresa de consultoria. A equipe que vai a campo – geralmente composta por dois ou três profissionais, pelo menos um dos quais da área de ciências humanas – costuma preparar dois instrumentos de coleta – um questionário a ser aplicado na colônia ou associação e outro questionário para o desembarque pesqueiro. No primeiro, as questões giram em torno da quantidade de pescadores, distribuídos pelas artes de pesca que praticam, recebimento de benefícios sociais, artes de pesca e pesqueiros, e situação da pesca em geral. Nos locais de desembarque, além de algumas das questões anteriores, procura-se obter informações sobre a organização da pesca, a divisão do trabalho, o tamanho das equipes, o tempo de permanência no mar, a partilha do pescado, a venda, as despesas com os custos da pescaria, etc.

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Em geral, as equipes passam mais tempo na estrada, entre um município e outro, do que efetivamente conversando com pescadores. Não permanecem mais que uma noite em cada localidade visitada. Para redução de custos, as equipes são compostas de profissionais com objetivos distintos, que também se revezam na direção do automóvel alugado pela empresa de consultoria para sua locomoção. Quando da chegada em uma nova localidade, estes profissionais se distribuem – um vai para a colônia ou associação de pesca, um vai realizar entrevistas institucionais na prefeitura ou talvez em mais alguma secretaria municipal, outro acompanha um desembarque pesqueiro. Os trabalhos de campo podem durar de duas semanas a mais de um mês – uma noite em cada localidade e muitas horas de estrada. Ou seja, é um processo extremamente cansativo para os profissionais envolvidos, especialmente nos últimos dias de campo, quando as equipes começam a apresentar claros sinais de esgotamento. Pitanga, antropóloga e consultora, narra um trabalho de campo para diagnóstico socioeconômico da área a ser impactada por exploração de petróleo offshore no litoral norte do Brasil:

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“O planejamento existe, mas ele é subvertido todo o tempo pelo que acontece em campo. Além das visitas institucionais, deveríamos visitar os portos de desembarque de pesca. Chegávamos aos portos pelas indicações obtidas nas colônias visitadas ou circulando pela cidade e, como não havia possibilidade de pré-agendamentos, a abordagem era feita com quem estivesse ali no momento. De certa forma, a este tipo de abordagem se misturam alguns fatores como o acaso, a empatia, o convencimento, a capacidade de improviso e o senso de oportunidade. O intuito era observar a movimentação do porto, o embarque, o desembarque, a comercialização, conversar com pescadores, conhecer os tipos de embarcação, instrumentos de pesca, os tipos de pescado comercializados e realizar uma dinâmica participativa de uso de carta náutica com os pescadores que se disponibilizassem.(...) Quando pedíamos para os presidentes de colônia elencarem as localidades em que havia pescadores de mar, muitas vezes a lista chegava à casa das dezenas, reiterando para nós o fato de não haver qualquer possibilidade de visitarmos todas essas “comunidades”. Outra realidade que se impunha era a de que não necessariamente as embarcações e tripulações presentes nos portos de desembarque residiam no município aonde o porto se localiza, não havendo exatamente um critério de pertencimento, a embarcação poderia ser registrada em um município, desembarcar em outro e sua tripulação ser de pescadores de diversos municípios diferentes.” (Pitanga 2015, p. 50)

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Ou seja, entre outras coisas, o trabalho de campo permite ao pesquisador apenas vislumbrar a complexidade da organização da pesca em uma área enorme, prestes a ser transformada em uma região petrolífera, onde, além do empreendimento a ser licenciado pelo estudo em questão, foram licitados em 2013 mais de duas dezenas de blocos para exploração de petróleo15. Nos diagnósticos para empreendimentos como linhas de transmissão de energia (LT), para a equipe de trabalho de campo, trata-se de percorrer o “corredor” que constitui a “área de influência” do empreendimento – 2,5 km de distância do eixo da linha de transmissão, para ambos os lados, perfazendo uma largura de 5km. Como o “corredor” é extenso, atravessa diversos municípios, a equipe não permanece mais de uma noite em uma mesma cidade. Os trabalhos de campo são, portanto, extenuantes. Quanto menos tempo as equipes passarem em campo, percorrendo todos os municípios prédeterminados, menores serão os custos para a empresa de consultoria. Outra justificativa são os estreitos prazos para apresentação dos estudos – o que incorre também na pressa dos técnicos-pesquisadores, quando chegam de campo já cansados, para produzir e entregar seus relatórios. O principal objetivo deste tipo de trabalho de campo é observar a ocupação nos locais onde será instalado o empreendimento, para avaliar se as atividades ali desenvolvidas interferem com a presença da LT – por exemplo, os cultivos na chamada “faixa de servidão” podem ser apenas forrageiros, ou seja, plantas rasteiras; se houver uma roça de mandioca (muito comum, aliás, no meio rural brasileiro), o produtor será “orientado” a modificar seu cultivo. Na etapa do diagnóstico, são apenas constatados os usos da área de influência. Em áreas rurais, por exemplo, as equipes (geralmente duplas) percorrem o “corredor”, entrando em algumas estadas vicinais e aplicando um breve questionário aberto aos moradores e produtores. O tempo que o pesquisador passa com o entrevistado não costuma ultrapassar uma hora, mas geralmente é bem menor que isso. É presumida a semelhança entre o perfil dos moradores e produtores entrevistados, e todos

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Em maio de 2013, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) promoveu a 11ª Rodada de Licitações de Blocos para Exploração e Produção. Na Bacia de Barreirinhas, no litoral maranhense, foram licitados 19 blocos, divididos em 3 setores. Próxima à Bacia de Barreirinhas, na Bacia do Pará-Maranhão, encontram-se em fase de exploração pelo menos mais 5 blocos.

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os demais da mesma região, em uma espécie de amostragem aleatória não calculada, com apoio também das imagens de satélite. Etnografia, trabalho de campo e o tempo Para esclarecer as diferenças entre o trabalho de campo para diagnóstico socioeconômico e o trabalho de campo etnográfico, a principal questão é o tempo, sob dois aspectos principais. O pouco tempo de permanência em campo para diagnóstico socioeconômico não permite que se faça etnografia. E a relação assimétrica de poder entre o pesquisador/consultor e as populações a serem afetadas por um empreendimento passa pelo total domínio do tempo por parte do pesquisador, que consolidará os resultados de seu encontro, durante o trabalho de campo, em um relatório escrito que situa as populações afetadas dentro de um tempo específico, aquele anterior à implantação do empreendimento, abordado na etapa de diagnóstico. Em grande parte das contribuições aos debates atuais sobre a etnografia e o trabalho de campo, nas suas diferentes ênfases e matizes, há um elemento que figura como indispensável para que seja feita uma etnografia: o tempo. Entre as principais condições para a ocorrência tanto da prática quanto da experiência etnográficas, a longa permanência do pesquisador em campo, ou um envolvimento de longo prazo com os pesquisados, parece essencial. As indecisões e impasses diante das investigações atuais parecem derivar das dificuldades em preservar a riqueza da pesquisa empírica antropológica tradicional, integrando-a a novos esquemas interpretativos não-positivistas. Um dos maiores expoentes da crítica ao modelo etnográfico surgida nos Estados Unidos nos anos 80, James Clifford procura salientar que etnografias são elaboradas a partir de relações históricas específicas de dominação e diálogo, com base no estudo da “formação e desintegração da autoridade etnográfica na antropologia social no século XX”.

Clifford localiza

historicamente

a

autoridade

etnográfica

dentro

do

desenvolvimento de uma ciência da observação participante. Sobre o trabalho de campo, destaca que a observação participante obriga seus praticantes a experimentar, tanto em termos físicos, quanto intelectuais, as vicissitudes da tradução, para produzir conhecimento a partir de um intenso envolvimento intersubjetivo e de intensas experiências de pesquisa. Ao atribuir a Malinowski, com a publicação dos Argonautas do Pacífico Ocidental, em 1922, a consolidação da persona do novo teórico-pesquisador de campo 13

legitimada pública e profissionalmente e de um novo gênero científico e literário - a etnografia, Clifford ressalta que a história da pesquisa construída em Os argonautas passa a constituir uma narrativa implícita subjacente a todos os relatos profissionais sobre mundo exóticos realizados a partir de então. Assim sendo, grosso modo, as condições de realização do trabalho etnográfico – o tempo de permanência em campo, o domínio do idioma nativo, etc. – passam a estar pressupostas e subentendidas, o que nem sempre (ou raramente) corresponde completamente às condições dos trabalhos de campo efetivamente realizados. Para Johannes Fabian, pioneiro da antropologia crítica que alterou e reformulou a disciplina a partir do final dos anos 1970, a grande contradição e ao mesmo tempo a grande virtude da antropologia do século XX é que a pesquisa de campo foi estabelecida como base prática do discurso teórico. Assim, apesar de situarem os nativos em outro tempo que não a contemporaneidade no discurso e na teorização antropológicos, os etnógrafos, ao relacionar-se com seus objetos de estudo, vivem experiências de coetaneidade16, pois é condição fundamental para que a comunicação ocorra. “O trabalho de campo, que demanda presença pessoal e envolve vários processos de aprendizado, mantém uma certa economia do tempo. A regra de ouro antropológica – um ciclo completo de estações – pode não ser a sua medida exata, mas ela reconhece, ao menos, que uma certa passagem do tempo é um pré-requisito necessário, não somente um custo inoportuno.” (Fabian 2013, 116) Ou seja, enquanto boa parte das reflexões críticas sobre a etnografia gira em torno das relações de poder e assimetrias implícitas na relação pesquisador/pesquisado, e com os limites do envolvimento intersubjetivo, gerando diferentes estratégias para lidar com estas questões, parece consensual a valorização do trabalho de campo etnográfico como meio de acesso empírico ao outro e, por conseguinte, a si mesmo. Para que este acesso aconteça, é necessário um envolvimento de longo prazo por parte do pesquisador. Assim sendo, as condições de realização dos trabalhos de campo para diagnóstico socioeconômico no contexto do licenciamento ambiental, acima descritas, especialmente

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“O termo coetaneidade foi escolhido para assinalar um pressuposto central, ou seja, o de que todas as relações temporais e, portanto, a contemporaneidade, estão embutidas na práxis culturalmente organizada.” (Fabian 2013: 69)

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o exíguo tempo de permanência em campo, não permitem o desenvolvimento de qualquer envolvimento intersubjetivo que não seja superficial e fugaz. Correndo o risco de beirar o óbvio, cabe exemplificar que não será possível perceber entre a população afetada pertencimentos para além daqueles formalizados em instituições (como colônias ou associações de pesca, associações de agricultores, de moradores, etc.), rivalidades e disputas sutis ou quiçá as mais explícitas, problemas ou alcance da representação e da legitimidade das lideranças. Tampouco é possível observar diferentes formas de relação com os recursos naturais ou dimensionar a importância da relação com a natureza entre a população afetada e de como transformações desta relação podem ter repercussões em diferentes esferas da vida social. Não se trata, aqui, de confundir trabalhos com finalidades diferentes – aqueles que pretendem servir de base para e elaboração de inferências sobre as transformações na vida das populações sujeitas aos efeitos da implantação de grandes empreendimentos versus trabalhos que visam a produção de dados etnográficos destinado à reflexão antropológica ou sociológica, cuja interferência na vida social é muito mais difusa. Trata-se, sim, de procurar desfazer esta confusão, esclarecendo que os profissionais envolvidos na elaboração de diagnósticos para licenciamento ambiental utilizarão as habilidades provenientes de sua formação para construir outro tipo de conhecimento, que não pode ser chamado de etnografia. Desse modo, de que forma são utilizadas as competências do antropólogo/consultor na elaboração de estudos para licenciamento ambiental? E que tipo de conhecimento é este que é produzido nestas condições? Pitanga explica que, diferente “do trabalho de campo do antropólogo, o campo do consultor é panorâmico, superficial, corrido, mas não deixa de ser uma experiência de pesquisa social, não deixa de ser um trabalho, um exercício de descentramento e enriquecimento pessoal e profissional” (Pitanga 2015: 80). Salienta a necessária ocorrência de um tipo de “imersão”, mais superficial do que aquela que ocorre na “antropologia acadêmica”, porque mais rápida. E destaca, para além das entrevistas com a população afetada, os acontecimentos inesperados e informais, que podem acontecer a qualquer momento quando se está em campo (durante as refeições, em momentos de folga, etc.), aos quais o pesquisador/consultor deve estar sempre atento, o que denomina como um “eterno estado de vigília etnográfica” (idem: 83). Ou seja, há algo do fazer do

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etnógrafo nas habilidades do consultor em extrair dados de situações informais, não planejadas, mas, principalmente, do “encontro”. “O campo é o lugar do encontro entre consultor e “impactado”, que pode ocorrer também no contexto da audiência pública. Mesmo com condições precárias, ou seja, com pouco tempo e de forma improvisada, esse encontro em campo é visto como uma oportunidade única que dificilmente se repetirá. A incerteza do retorno é uma das poucas certezas do consultor, ou deveria ser. (...) O trabalho do consultor só existe quando ele viabiliza esses encontros” (Pitanga 2015: 73). O pouco tempo para o encontro com a população afetada e a impossibilidade de desenvolvimento de uma relação continuada e da criação de vínculos devido à incerteza do retorno são condições que impedem a realização de uma pesquisa etnográfica nos diagnósticos socioeconômicos para licenciamento ambiental. No entanto, o encontro permanece como uma oportunidade única, pois sua ocorrência depende de recursos para viabilizar a presença do pesquisador em campo e da coincidência de uma série de fatores um tanto quanto imprevisíveis, e desta oportunidade deverão ser extraídas informações suficientes para realizar algumas inferências previstas no EIA. Outro fator que inevitavelmente influencia o conhecimento produzido sobre a população

impactada

é

a

inequívoca

relação

assimétrica

de

poder

entre

consultor/pesquisador e seu objeto. Esta assimetria se manifesta de forma inequívoca no domínio do consultor sobre o tempo futuro, pois, na relação com a população a ser afetada durante a etapa que antecede a instalação do empreendimento, ele é em última instância o representante de um grande empreendimento que fatalmente transformará, em maior ou menor medida, a vida das pessoas com quem ele se relaciona em campo. Um dos aspectos no qual se manifesta este domínio do tempo futuro por parte da figura do consultor é o conhecimento sobre todas as etapas planejadas para a implantação do empreendimento. Este domínio é claramente perceptível no uso de instrumentos como os mapas que apoiam o trabalho de campo. Na medida em que cada “encontro” é marcado com um ponto no GPS, que permitirá a inserção espacial daquelas informações, e sua comparação com informações associadas a outros pontos, onde ocorreram outros “encontros”, o consultor tem acesso a uma visão de toda a área percorrida com seu conjunto de “encontros”. Além disso, o consultor frequentemente utiliza um mapa onde se encontra desenhado o empreendimento e, eventualmente, estruturas de apoio para sua 16

instalação, como canteiros de obras ou estradas de acesso, ou seja, uma série de elementos que não existem naquele espaço no momento de realização do trabalho de campo e dos “encontros”. Desse modo, o mapa é um instrumento que permite uma visão do conjunto da área a ser supostamente afetada pelo empreendimento em um tempo futuro. Entre as habilidades requeridas a um consultor, Pitanga enfatiza a necessidade de “um olhar panorâmico”, devido à “espacialização” do trabalho realizado, sempre orientado pela marcação de pontos no GPS e cruzamento das informações qualitativas com pontos marcados no mapa elaborado com imagens de satélite. Para Fabian, o tempo é utilizado para criar distância na antropologia. A teoria antropológica assim o faz por meio de alguns instrumentos de distanciamento, que acabam por produzir um resultado global, que Fabian chama de “negação da coetaneidade” – a persistente e sistemática tendência em identificar o referente da antropologia (seu “objeto”) em um tempo que não o presente do produtor do discurso antropológico17. No entanto, esta tendência frequentemente enfrenta a contradição com a literatura etnográfica, que é fruto de eventos de comunicação entre pesquisador e pesquisado, eventos estes que só podem ocorrem quando ambos compartilham o mesmo tempo, são contemporâneos. Argumento aqui que a “negação da coetaneidade” é ainda mais radical quando o praticante da antropologia ocupa a posição de consultor, representante de um grande empreendimento que terá efeitos inexoráveis sobre os afetados. No caso do diagnóstico para o licenciamento, trata-se da passagem de uma população - que pode ser urbana ou rural, tradicional ou não, mas geralmente das classes populares - das suas condições de vida atuais à condição de afetada pela implantação de um grande empreendimento. No caso de empreendimentos implantados nos últimos anos no Brasil, geralmente associados a políticas acompanhadas de uma retórica de promoção do desenvolvimento18. O pesquisador/consultor, que pode ou não ser um antropólogo, deve

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Fabian identifica três usos do tempo na antropologia: o Tempo Físico, parâmetro ou vetor na descrição do processo sociocultural, que não está sujeito a variações culturais, é um tempo natural, objetivo, não cultural; o Tempo Tipológico, medido em eventos significativos sob o ponto de vista sociocultural, e que fundamenta qualificações como anterior à escrita X letrado, tradicional X moderno, camponês X industrial; e o Tempo Intersubjetivo, que enfatiza a natureza comunicativa da ação e interação humana (Fabian 2013). 18 A “reemergência de grandes projetos de desenvolvimento, originados ainda durante a ditadura militar e que ameaçam o meio ambiente e o modo de vida das populações locais, constitui uma reedição da era da “modernização” e da ênfase no “progresso” em detrimento do meio ambiente e da tradição” (Zhouri 2012: 9).

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reunir dados sobre populações potencialmente afetadas para transmiti-los aos agentes do desenvolvimento – Estados e corporações – para que estes obtenham legitimidade para, frequentemente, expropria-las do acesso a recursos naturais e de seu modo de vida anterior à chegada do empreendimento. Tanto no caso do trabalho de campo para o licenciamento quanto no caso da pesquisa científica, o pesquisador não realiza a viagem com recursos próprios, o que seria inviável, mas é financiado por uma instituição. Como contratado por um empresa de consultoria ambiental, “o consultor é um viajante enquadrado na lógica do mercado empresarial, que trabalha sob fiscalização de um órgão público e que tem o compromisso de produzir um documento escrito que servirá de base para o licenciamento de um grande empreendimento que pode afetar milhares de pessoas” (Pitanga 2015: 75). Mas ao contrário do pesquisador universitário, cuja vinculação a objetivos e instituições científicos pode proporcionar um esforço teórico e prático para a superação da negação da coetaneidade através da construção de um conhecimento dialógico que toma o outro como um sujeito seu contemporâneo, o pesquisador/consultor está imerso na inexorabilidade da implantação do empreendimento, sob a qual o Outro será fatalmente situado em outro tempo, como população afetada. Acrescenta-se, ainda, que o “encontro” que acontece no campo do licenciamento apresenta limitações estruturais ligadas não somente às condições precárias de trabalho do consultor e ao objetivo final de obtenção das licenças ambientais. Pois o consultor desempenha também o papel de falar sobre o empreendimento para a população afetada, uma vez que a viabilização do “encontro” envolve a explicitação dos seus objetivos, vinculados à implantação de um determinado empreendimento, o que suscita a demanda por explicações sobre o mesmo por parte dos afetados. Assim, uma parte do já escasso tempo do “encontro” deve ser despendida em explicações sobre o empreendimento, dada a legítima curiosidade dos afetados a respeito de algo que provavelmente terá efeito sobre suas vidas. Mais do que isso, todo diálogo que venha a ocorrer é totalmente condicionado pelos papéis de representante do empreendimento/população afetada. A respeito deste papel desempenhado pelos consultores, Pitanga chega a qualifica-los em sua dissertação como “mensageiros do apocalipse”, pois, de certo modo, encarnam para a população afetada a potencial chegada do empreendimento.

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Considerações finais A finalidade de analisar criticamente a atuação de antropólogos e cientistas sociais na elaboração de diagnósticos de populações afetadas por grandes empreendimentos em fase de licenciamento ambiental é, antes de tudo, assegurar que o conhecimento produzido a respeito destas populações no âmbito do licenciamento seja devidamente dimensionado e que lhe sejam arrogadas somente as qualidades que lhe cabem, evitando que se produza uma impressão de que as análises de impacto se baseiam em diagnósticos socioeconômicos que extraiam informações de estudos etnográficos. Trata-se de uma postura de honestidade intelectual e política para com estas populações. E consequentemente da defesa de uma postura ética por parte dos profissionais que realizam estes estudos. Oportunamente, a análise também coloca questões para o exercício da antropologia dita acadêmica. Assim como Pitanga descreve o trabalho de campo da consultoria como a viabilização e a realização de uma série de “encontros” entre o consultor e o “impactado”, e o quanto estas experiências contribuem para o crescimento pessoal e profissional do consultor, Fabian demonstra que, direta ou indiretamente, o discurso antropológico formula o conhecimento que se encontra enraizado na autobiografia de um autor. O Outro como objeto ou conteúdo do conhecimento antropológico é necessariamente parte do passado do sujeito cognoscente. O antropólogo faz a alegação peculiar de que certas experiências ou eventos de seu passado constituem fatos, e não ficção. Com isso, o tempo não é apenas instrumento, mas uma condição necessária para que esse processo ocorra. Ao mesmo tempo, ao projetar a classificação do seu objeto de estudo em um tempo futuro planejado e controlado como populações afetadas, os estudos ambientais para licenciamento oferecem elementos para pensar sobre o domínio do tempo por parte do etnógrafo em situações clássicas de pesquisa, e sobre as perspectivas de superar estas assimetrias no fazer etnográfico e na antropologia.

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“Temporalizações representadas como uma passagem da selvageria à civilização, do campesinato à sociedade industrial, serviram por muito tempo a uma ideologia cujo propósito final foi justificar a aquisição de commodities para os nossos mercados. (...) Se as analogias (ou homologias) entre a iniciativa colonial e a antropologia se sustentam, teríamos que admitir que a etnografia,

também,

pode

se

tornar

mercadoria.

Sua

mercantilização exigiria uma semelhante passagem temporal de dados (os bens), de seu contexto histórico nas sociedades consideradas primitivas ao presente da ciência ocidental. No idioma de nossas filosofias econômicas, a antropologia é uma “indústria” com a característica peculiar de que os antropólogos são tanto trabalhadores que produzem mercadorias como empresários que as comercializam, embora na maioria dos casos com base no modesto lucro de seus salários acadêmicos.” (Fabian 2013: 121-122)

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