ETNOGRAFIAS EM ESCOLAS INDÍGENAS: AS KYRINGUÉ DA AMAZÔNIA E OS XIKRIN DO BACAJÁ (Cohn & Marqui)

May 26, 2017 | Autor: Clarice Cohn | Categoria: Guarani, Etnologia, Educação Escolar Indígena, Mebengokre, Xikrin, Conhecimento Indígena
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CRIANÇAS - INFANCIAS, CULTURAS E PRÁTICAS EDUCATIVAS

CAPÍTULO II ETNOGRAFIAS EM ESCOLAS INDÍGENAS: AS KYRINGUÉ DA AMAZÔNIA E OS XIKRIN DO BACAJÁ Clarice Cohn Amanda Rodrigues Marqui

As escolas são há muito realidade nas aldeias e comunidades indígenas. Regulamentadas pelo Estado, respeitando o direito à eduFDomR ELOtQJXH HVSHFtÀFD H GLIHUHQFLDGD HODV JDQKDP IRUPDV H FRQtornos diferentes em cada lugar em que são implantadas. Sabemos que essas diferenças não se dão apenas pelas diferenças nos povos indígenas atendidos – que são muito diversos entre si, em línguas, culturas, experiências históricas com a sociedade nacional envolvente, participação na política nacional e internacional, mobilização social, etc. – mas também pelos desejos e pelas demandas das comunidades. O que cada povo indígena espera de sua escola? O que cada comunidade ou aldeia espera de sua escola? Essas são questões com P~OWLSODV LQÀQGDV UHVSRVWDV Acreditamos que um modo de começar a entender isso é acompanhar as comunidades indígenas em suas práticas e em seus cotidianos escolares. Como antropólogas, fazemos isso por meio GD SHVTXLVD HWQRJUiÀFD $VVLP QRV XQLPRV D XP FRQMXQWR GH SHVquisadores que buscam compor um cenário da educação escolar no país, tais como pedagogos e educadores de diversas formações. Nossas pesquisas se dão no cotidiano das comunidades indígenas e de suas escolas, e os acompanhando acreditamos que podemos entender o que essas comunidades desenham como uma experiência escolar desejável, e como avaliam a que têm tido. Acreditamos, também, que esta é uma das modalidades possíveis de pesquisa das escolas. Ela pode e deve ser combinada com - 47 -

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análises pedagógicas das práticas escolares, assim como deve ser complementada pela análise da formação de professores e da gestão das escolas nos municípios e estados, de modo a se poder, enÀP FRPSRU XP TXDGUR PDLV FRPSOHWR3. Isso porque o modo como os gestores entendem a escola indígena e a participação indígena HP VXD GHÀQLomR GHÀQH HP JUDQGH SDUWH D SRVVLELOLGDGH PHVPR GH FRQVWUXomR GH HVFRODV HVSHFtÀFDV H GLIHUHQFLDGDV QD UHJLmR GH VXD MXULVGLomR H SRUTXH p D IRUPDomR GH SURIHVVRUHV HVSHFtÀFD H GLIHrenciada que permite também, ou não, seu exercício de uma prática pedagógica que responda aos desígnios de uma educação escolar esSHFtÀFD H GLIHUHQFLDGD É sempre bom ressaltar que o quadro jurídico e institucional que se desenvolveu no país desde a Constituição de 1988, que JDUDQWLX R GLUHLWR GH XPD HVFROD HVSHFtÀFD H GLIHUHQFLDGD TXH respeite as línguas, as manifestações culturais, as organizações sociais e políticas e as práticas de ensino e aprendizagem de cada comunidade indígena, é tal que permite uma combinação TXDVH LQÀQLWD GH H[SHULrQFLDV HVFRODUHV TXH SRVVDP UHVSRQGHU jV espacialidades, às temporalidades, ao modo de conceber as crianças e a infância, às práticas, aos processos e às relações de aprendizagem, às concepções e aos regimes de conhecimento. Porém, o que se vê é, mais comum do que não, a implantação da “forma escolar” nas diversas comunidades indígenas4. Em geral, se vê não só uma grande demanda por educação escolar, como a instituição de experiências escolares muito próximas do padrão que se criou para o Ocidente – prédios escolares fechados, horários de aula, divisão das turmas por séries e faixas etárias, controle de frequência, etc. Mas cada comunidade escolar pode inventar sua escola, que pode extrapolar as salas de aula, considerar as situações de aprendizagem dadas pelos rituais, pela participação das crianças no cotidiano de 3 Esta e a proposta de pesquisa em equipe que desenvolvemos no Observatório da Educação Escolar Indígena – Núcleo UFSCar. 4 COHN (2005c), GOMES (2000), TASSINARI (2009). - 48 -

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suas famílias e nos seus grupos de pares, como parte das atividades escolares, etc. Essa é uma realidade que deve ser mais detidamente debatida e analisada. Neste texto, discutimos duas experiências escolares muito diversas entre si, mas que têm em comum o fato de que não são expeULrQFLDV GH HVFRODV HVSHFtÀFDV H GLIHUHQFLDGDV $PEDV VmR HWQRJUDÀDV GH PRPHQWRV LQLFLDLV GD H[SHULrQFLD GH LPSODQWDomR GDV HVFRODV nas aldeias e acompanham os professores que buscam implantar as escolas, as crianças que buscam entender seu papel neste espaço, e o envolvimento da comunidade nesta experiência. Em comum, o IDWR GH DPEDV HVWDUHP QR 3DUi HVWDGR EUDVLOHLUR FRP JUDQGH GHÀFLrQFLD QD LPSODQWDomR GD HVFROD LQGtJHQD HVSHFtÀFD H GLIHUHQFLDGD Diferentes, além das pesquisadoras, os povos – os Guarani Mbya de Nova Jacundá e os Xikrin do Bacajá, um povo de língua Jê – e o momento da pesquisa –, trataremos da experiência da escolarização em Nova Jacundá em 2010, e da formação de uma escola xikrin em meados da década de 1990. $VVLP DSURYHLWDPRV HVVDV FRQÁXrQFLDV H GLIHUHQoDV SDUD SURSRU XPD UHÁH[mR PHWRGROyJLFD 'HVHQYROYHPRV QRVVDV DQiOLses tendo como referência algumas questões: como pesquisar escolas indígenas? Como incorporar, em nossas pesquisas, as práticas escolares e as práticas de ensino e aprendizagem dos povos atendidos por esta escola? Como incorporar na análise as concepções de infância que se formam nestes contextos, tendo a escola como um DVSHFWR IXQGDPHQWDO GD GHÀQLomR H FRQVWLWXLomR GH XPD LQIkQFLD LQdígena escolarizada? A ESCOLA INDÍGENA KARIWASSU GUARANI: ENSINO E APRENDIZAGEM DAS KYRINGUÉ DA AMAZÔNIA

Tendo como objetivo a compreensão da perspectiva infantil sobre seu processo de escolarização, tomo como ponto de partida a noção de tornar-se proposta por Toren (“become”, “becoming”; 2004). A questão proposta por Toren é como nos tornamos o que somos - 49 -

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(1999), de modo que a ênfase na análise antropológica será apreenGHU FRPR DV FULDQoDV VLJQLÀFDP H FRQVWURHP VXD VLWXDomR QR PXQdo. Sendo assim, o processo de tornar-se demonstrado por Toren (2004) é uma das práticas de autopoiseses (“autopoietic”), em que a SHVVRD SRU PHLR GH VXDV UHODo}HV FRP DV RXWUDV SURGX] VLJQLÀFDdos e, consequentemente, constrói sua história (“makinghistory”). Esta perspectiva do tornar-se permite considerar que as crianças *XDUDQL 0E\D QR FRQWH[WR HVFRODU SURGX]HP VLJQLÀFDGRV VREUH esta condição. Os estudantes desta pesquisa são as crianças Guarani Mbya de Nova Jacundá e serão tratados como atores sociais ativos inseridos no seu contexto sócio-histórico (ARIÈS, 1988), e, sobretudo, são produtores de cultura (SILVA, 2002, JAMES e PROUT, 1990). O trabalho de campo, realizado entre os Guarani Mbya de Nova Jacundá, foi possível a partir do projeto do Observatório da Educação Indígena (CAPES nº 001/2009), que informava que no Etnoterritório da Amazônia Oriental onde parte das pesquisas do projeto estão sendo realizadas havia um grupo Guarani Mbya residente no município de Jacundá, sudeste do Pará. O contato inicial com o campo foi realizado a partir da Secretaria de Educação de Jacundá pelo telefone, que me informou sobre as condições da escola da aldeia Nova Jacundá: havia aproximadamente trinta alunos, entre 4 e 14 anos, distribuídos entre a pré-escola e os primeiros anos do Ensino Fundamental. Na escola havia duas professoras: Maria Regina, indígena da própria comunidade que era responsável pelas aulas de Língua e Cultura, e Simone, não indígena que ministrava as demais disciplinas. O material didático e o currículo eram semelhantes aos das escolas do município, ou seja, a escola não era diferenciada. Minha entrada em campo foi autorizada pelos Guarani enquanto pesquisadora da escola, tanto que na primeira conversa com a comunidade fui questionada sobre a contribuição do meu trabalho à escola5. Isto me colocava um problema com o qual tive que lidar 5 No primeiro momento este questionamento me deixou preocupada, pois a comunidade - 50 -

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no início do acompanhamento das atividades escolares: não ser associada como uma monitora ou assistente da professora, pois minha intenção era ser vista como uma pessoa que estivesse ali para observar e aprender, assim como as crianças. O que fui notando no decorrer do tempo era que minha permanência na escola tinha um papel de destaque para as professoras, para os adultos e para as crianças. As expectativas dos adultos sobre minha permanência na escola eram de que eu pudesse ajudar a tornar a escola Kariwassu Guarani diferente da atual. Assim, me tornei uma articuladora das necessidades escolares, de modo que me vi diante de uma situação que não tinha previsto para o campo6. Durante o tempo em que permaneci na aldeia foi realizada uma reunião sobre a escola com a SEMED (Secretaria Municipal de Educação) e com a FUNAI de Marabá. Para esta reunião, eu e as professoras Maria Regina (guarani) e Simone (não indígena) elaboramos um documento apresentando as demandas escolares da comunidade; a primeira reivindicação era de que a escola Kariwassu Guarani fosse regulamentada como escola indígena7, em seguida, a formação diferenciada para as professoras, a elaboração de um projeto político-pedagógico, a manutenção do prédio escolar e a implantação da segunda fase do Ensino Fundamental. De outro lado, minha expectativa com as crianças era ser asrelatou que a escola precisava de melhorias na alfabetização das crianças, no ensino de matemática, de algumas atividades pedagógicas, etc. Todavia a minha intenção enquanto pesquisadora era observar, também, os problemas e os modos como as professoras e os HVWXGDQWHV OLGDYDP FRP HVVDV GLÀFXOGDGHV QR FRWLGLDQR HVFRODU $SyV UHWRUQDU GR WUDEDOKR HWQRJUiÀFR H UHSHQVDU PLQKD SRVLomR HQTXDQWR SHVTXLVDGRUD me julguei um pouco ingênua, suponho que esteja relacionada à minha inexperiência de campo, de pensar que seria apenas uma “estranha” na escola, e que não poderia servir como articuladora das demandas dos Guarani Mbya de Nova Jacundá. Pois sabemos da importância do antropólogo nas questões de reivindicações territoriais, da escola, da saúde, entre outras. 7 Esta foi uma sugestão minha de que aquela escola precisava ser denominada de maneira diferente. Contudo, no Pará as escolas indígenas não são diferenciadas, sendo apenas FODVVLÀFDGDV FRPR HVFRODV UXUDLV - 51 -

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sociada mais como uma aluna8 e não com uma ajudante da professora, o que seria fundamental para que eu pudesse estar em pé de igualdade com meus interlocutores dentro do espaço escolar; em outras palavras, construir uma relação horizontalizada com elas. A partir do acompanhamento das aulas, notei que o comportamento das crianças Guarani Mbya era diferente do que havia vivenciado em minhas experiências escolares. Então, para conseguir ser entendida como uma aluna daquela escola era preciso que fosse reescolarizada9. Nos primeiros dias procurei prestar bastante atenção à movimentação e interação das crianças na sala de aula. Aos meus olhos tudo aquilo era estranho e por isso me lembrava do meu comportamento quando estava na mesma idade escolar daquelas crianças. A circulação intensa dos alunos dentro da sala sem a chamada de atenção da professora era, no meu ponto de vista, muito curiosa, pois TXDQGR HUD HVWXGDQWH QmR SRGLD ÀFDU OHYDQWDQGR H DQGDQGR SHOD sala. Com o tempo fui percebendo os detalhes do comportamento das crianças (kyringué), a maneira como seus corpos assentavam nas FDUWHLUDV HUD PDLV ´UHOD[DGRµ XPD SHUQD SRGLD ÀFDU GREUDGD VREUH D RXWUD RX DV SHUQDV FUX]DGDV $OJXPDV FULDQoDV ÀFDYDP FRP RV pés balançando porque não alcançavam o chão. Todas elas mostravam que a corporalidade guarani também estava presente na escola. AS CRIANÇAS E A ESCOLA

Nas aulas de linguagem e cultura, as crianças e a professora Maria Regina, indígena da comunidade, gostavam bastante de me ensinar algumas palavras em guarani, e também me ajudavam na

8 É imprescindível considerar aqui que, no limite, nunca poderia ser uma aluna dentro daquela escola, mas o que quero destacar é a importância de meu comportamento se assemelhar mais as condições dos estudantes do que de uma auxiliar da professora. 6HULD IXQGDPHQWDO SDUD R DQGDPHQWR GH PHX WUDEDOKR HWQRJUiÀFR GHQWUR GD HVFROD TXH eu tivesse um comportamento semelhante das crianças para que eu estivesse nas mesmas condições que elas para conseguir compreender sua perspectiva sobre a escola. - 52 -

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pronúncia10 GDV SDODYUDV TXH HX WLQKD PDLRU GLÀFXOGDGH $V DXODV aconteciam num clima bem mais descontraído do que as da manhã (aulas do currículo regular), e cada palavra errada que eu pronunciava era motivo para todos rirem e se alegrarem do meu esforço, reconhecido por todas as crianças e por Maria Regina. Algumas dessas aulas ocorriam na casa de reza, a opy’i DV FULDQoDV VHPSUH ÀFDYDP alegres em cantar e dançar no coral da comunidade11 1R ÀQDO GR dia, todos da aldeia se reuniam na frente da casa da xejary (avó) para verem e ouvirem as crianças cantar no coral. A partir do acompanhamento das aulas de linguagem e cultura, foi possível visualizar um panorama do que os Guarani consideram importante para ensinar a suas crianças na escola. O clima mais descontraído das aulas de Maria Regina parecia respeitar os diferentes tempos de aprendizagem das crianças. Um dado interessante que percebi logo nos primeiros dias acompanhando as aulas, e também no cotidiano da aldeia, era que as crianças compreendem bem a língua, mas não falam muito12. O esforço de Maria, dos adultos e dos mais velhos era fazer FRP TXH DV FULDQoDV IRVVHP ÁXHQWHV HP JXDUDQL Quando chegava para as aulas, ocupava as carteiras que ainda 10 A fonética guarani, muito estudada por diversos linguistas e antropólogos, tem uma rQIDVH HP VRQV DQDVDODGRV 3DUD XPD GHVFULomR PDLV DSURIXQGDGD GDV FRQYHQo}HV GD JUDÀD e da fonética guarani indico a consulta de Nimuendaju (1987:17-25), do Léxico Guaraní, 'LDOHWR 0E\i YHUVmR SDUD ÀQV DFDGrPLFRV '22/(< H GD WHVH GH 3LVVRODWR (2007:21-23). 11 Em 2004 a comunidade organizou o coral de suas crianças, chamado MitãMbaraete. Eventualmente, o coral realiza algumas apresentações. Em 2010, apresentou-se nas comemorações do Dia do Índio em Belém. Estavam presentes autoridades políticas locais como a ex-governadora Ana Júlia e o ex-presidente Lula. As crianças lembram, bastante entusiasmadas, deste dia. 12 Com o passar do tempo na aldeia, eu também conseguia compreender as expressões PDLV XVDGDV H DOJXPDV FRQYHUVDV PDV WLQKD JUDQGH GLÀFXOGDGH GH IDODU 6XSRQKR TXH WHQKD VLGR UHODFLRQDGR DR IDWR GH HX ÀFDU PDLV WHPSR FRP DV FULDQoDV SRLV RV DGXOWRV conversavam entre si na língua materna. É importante ressaltar que as crianças, durante as cerimônias na opy e na cidade, conversam mais em guarani. - 53 -

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estavam vazias; geralmente sentava numa carteira maior, mas tamEpP SLRU SRUTXH HVWDYD PHLR EDPED (X HQWmR ÀFDYD EDODQoDQGR durante as aulas, enquanto anotava as coisas que a professora passava na lousa e também quando queria me distrair da aula. Comecei a ter o mesmo comportamento das crianças: levantava para pedir lápis ou canetas emprestados e depois retornava ao meu lugar. Algumas crianças saíam da sala quando estavam entediadas e eu, eventualmente, as acompanhava. Pedia explicação para alguma criança do meu lado quando não entendia o conteúdo. E quando realizávamos atividades em grupo procurava me inserir com os colegas que estavam ao lado. Algumas vezes, quando as crianças não compreendiam a explicação da professora, pediam que eu as auxiliasse. Eu ajudava, sem ressalvas, mas várias vezes as crianças continuavam sem entender, depois elas conversavam entre si e acabavam tirando suas dúvidas. A SEMANA DE PROVAS

Esta semana foi especialmente interessante para pensar minha posição e condição na sala de aula, por isso comentarei sobre as provas bimestrais ocorridas em agosto e setembro de 2010 na escola Kariwassu Guarani. Era segunda-feira e me atrasei para chegar à escola. Quando entrei na sala, já estavam todos sentados copiando da lousa as questões de matemática. Como a escola é multisseriada, havia duas lousas, a da esquerda para os primeiros anos e a da direita para as VpULHV ÀQDLV 6HQWHL QD PLQKD FDGHLUD H À] FRPR WRGRV FRSLHL R FRQteúdo da lousa. Minha intenção naquela aula era só observar a interação das crianças durante a prova para posteriormente fazer uma análise. No que estou observando as crianças, Branco (menino de doze anos) se aproxima de mim e pergunta: “Você não sabe nada, Amanda?”. Eu respondo: “Acho que sei, só estou olhando”. “Mas - 54 -

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você tem que responder, se não vai tirar zero13”. Acabei entregando a prova em branco e as crianças vieram perguntar se eu não lembrava do conteúdo, se não tinha estudado. Achei melhor responder que tinha esquecido que era matemática naquele dia e que não tinha estudado. No outro dia seria a prova de português. Nos arrumamos nas carteiras e a professora Simone distribuiu as provas mimeografadas para a gente. Até ela me perguntou: “Vai fazer prova, Amanda?”. Respondi que iria, pois tinha estudado. As crianças menores que não ID]LDP D SURYD WDPEpP HVWDYDP QD HVFROD HODV ÀFDYDP DQGDQGR HQtre as carteiras falando alguma coisa com as outras crianças. Numdju (menino de seis anos) chegou a minha carteira e perguntou o coletiYR GH ÁRUHV UHVSRQGL H HOH VH IRL OHYDQGR D UHVSRVWD SDUD VHX LUPmR Branco. Depois percebi que o que acontecia era uma intensa movimentação das kyringué de coleta e entrega de cola para quem não sabia responder as questões. Esta movimentação aparentemente não preocupava a professora que estava presente na situação, ela pedia para as crianças sentarem novamente, mas logo em seguida recomeçava a movimentação. As crianças iam terminando a prova e a entregavam à Simone para serem dispensadas. No dia seguinte era avaliação de ciências sobre as medidas do tempo. A professora colocou os meses do ano na lousa e as datas comemorativas e pediu para as crianças relacionarem. Quando terminamos de copiar as questões, começou a movimentação dos menores atrás de cola novamente. A situação, no meu ponto de vista, era até um pouco cômica: os alunos menores circulavam entre as carteiras para descobrir as respostas e depois levavam para quem tinha perguntado. Então Numdju veio perguntar para mim: “Em que mês do ano é o carnaval?”. Respondi: “Fevereiro”. Ele disse: “Tu 13 Esta situação foi inicialmente estranha para mim, já que eu tinha planejado apenas observar a dinâmica e os comportamentos das crianças durante a prova. Através da fala de Branco eu estava, no ponto de vista das crianças, em igualdade com elas porque era mais uma aluna realizando a prova. - 55 -

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tem alguma dúvida?”. Vi que era o momento de solicitar uma cola para participar da troca na rede de colas, pedi então para que ele visse o que acontecia de importante em março. Ele foi andando pelas carteiras para ver quem tinha respondido esta questão, depois veio em minha direção e falou bem baixinho: “É o começo do outono”. 0LQKD H[SHULrQFLD HWQRJUiÀFD GXUDQWH D VHPDQD GH SURYD IRL importante para compreender um dos modos como as crianças guaranis interagem dentro do espaço escolar. A agência das crianças realizada por meio da troca de cola durante as provas é um exemplo interessante para pensarmos a maneira como elas estão produzindo e transmitindo os conhecimentos escolares. A semana de provas SURSRUFLRQRX WDPEpP RXWUD UHÁH[mR GH FRPR RV FRQWH~GRV IRUDP compreendidos pelas crianças e repassados entre elas durante a cola. Pelo que pude notar, as crianças estavam reproduzindo o que estava em seus cadernos ou copiando as respostas dos outros colegas com a ajuda da cola. O que sugiro pensar em relação a este evento foi que as crianças queriam se ajudar, assim como fazem durante D DXOD SDUD TXH QLQJXpP ÀFDVVH FRP QRWD UXLP 'XUDQWH D VLWXDomR da cola, as crianças não pareciam ver aquilo como inadequado: enquanto passavam a cola a professora estava na sala, mas não interveio em nenhum momento, e sabia que os alunos menores iam para a escola nesta semana para justamente transmitir a cola, já que eles ainda não realizavam as provas. *** A convivência com as crianças em suas atividades cotidianas me mostrava as concepções guaranis de produção e transmissão de conhecimento que seriam fundamentais para adentrar a perspectivas das crianças sobre sua escolarização, algumas habilidades valorizadas na educação guarani como o ver (-oexa), o ouvir (-endu) e o fazer (-japo), (BENITES, 2009), além do aprendizado de maneira coletiva e o bem-estar do corpo que eram indicativos dos processos próprios de ensino e aprendizagem deveriam ser levados em consideração também na escola. - 56 -

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A ESCOLA DOS XIKRIN DO BACAJÁ NOS ANOS DE 1990

Retomamos aqui uma experiência que já foi discutida em outros trabalhos (COHN, 2000, COHN, 2005c, COHN e TASSINARI, 2009), propondo aqui uma abordagem que elucide um pouco PDLV D SUiWLFD HWQRJUiÀFD GH SHVTXLVD HP HVFRODV LQGtJHQDV ,VVR SRUTXH HVVD HWQRJUDÀD IRL IHLWD HP PHLR D XPD SHVTXLVD PDLV DPSOD que tinha por objeto não a escola em si, mas a concepção de infância e de aprendizagem dos Xikrin (COHN, 2000). A pesquisa havia sido iniciada em 1992, com algumas etapas de pesquisa. Em 1995, um casal de professores é contratado para retomar a escola na aldeia. De fato, até então a pesquisa havia sido feita sem que a escola estivesse presente – ou contando apenas com o prédio escolar, que se impuQKD DLQGD FRPR XPD GDV HGLÀFDo}HV FRQVWUXtGDV QR FRPSOH[R GR então Posto Indígena da FUNAI do Bacajá, que contava com a casa GR &KHIH GH 3RVWR XPD HQIHUPDULD FRP D FDVD GRV SURÀVVLRQDLV GH saúde, uma casa de rádio, uma casa de motor para o gerador de enerJLD H D HVFROD (VWH FRPSOH[R GH SUpGLRV GH DOYHQDULD ÀFDYD HQWUH D aldeia circular dos Xikrin, com suas casas de pau a pique e telhados de palha, e o rio. Assim sendo, praticamente todo mundo da aldeia SDVVDYD GLYHUVDV YH]HV SRU Oi SDUD VH EDQKDU QR ULR D ÀP GH SDUWLU com suas embarcações para pescar, caçar, sair em expedições de coleta ou ir às roças. Todo dia, de manhã cedo e no entardecer, ainda KRMH DV IDPtOLDV VH GLULJHP SDUD Oi D ÀP GH UHFHEHU D PHGLFDomR TXH é ministrada na farmácia. O complexo conta ainda com uma linda arborização, tendo aproveitado o local de uma antiga residência de coletores de caucho, e mangueiras e abacateiros que sombreiam o local. De 1992 a 1995, nas visitas que foram feitas para a pesquisa, o único prédio fechado, janelas quebradas e telhados de amianto se desfazendo. O casal de professores se alojou na casa construída para os SURÀVVLRQDLV GH VD~GH H FRPHoRX D ID]HU UHXQL}HV FRP D FRPXQLdade para dar início a um novo projeto escolar. Assim, construíram, FRP D DMXGD GD FRPXQLGDGH XP QRYR SUpGLR IHLWR FRP SDXV ÀQFD- 57 -

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dos no chão, telhado de palha e bancos e cadeiras feitas de madeira pelos professores e com os homens da aldeia, que substituíram as antigas carteiras escolares sucateadas. Retiraram a lousa da escola antiga e começaram a dar aulas neste novo espaço, entre o antigo prédio e o rio. A adesão à escola foi grande e instantânea. A cada manhã, as crianças chegavam, separadas por gênero, como havia sido decidido pela comunidade. Os meninos chegavam se expressando de modos característicos de momentos de reunião: soltavam gritos e assobios iguais aos que os adultos fazem para reunir os homens quando vão sair em expedição ou fazer uma reunião no centro da aldeia. As meninas chegavam mais quietinhas, rindo e se entreolhando. Reunidos ao redor da escola, esperavam a aula aproveitando os galhos das árvores para brincar. No entanto, as coisas eram mais difíceis dentro da sala de aula: as crianças sentavam quietas e cheias de expectativa nos bancos escolares, esperando para ver o que ia acontecer, com seus cadernos e lápis à mão. Essas crianças não haviam tido experiência anterior de HVFRODUL]DomR WHQGR HP YLVWD TXH D HVFROD ÀFDUD IHFKDGD SRU WDQWR tempo. Os professores, por sua vez, não conheciam os modos de ensino e aprendizagem dessas crianças, e não falavam sua língua. Assim, a situação, que poderia ser insustentável, só não o foi exatamente pela enorme vontade das crianças de estar lá, e de aprender tudo aquilo que se aprende na escola – principalmente ler, escrever e fazer contas. O grande investimento de todos era visível: a professora se perguntava como ia ensinar e alfabetizar na língua não a conhecendo; os alunos mantinham a frequência escolar; e todos contribuíam para que elas permanecessem na escola. Os professores começaram a fazer atividades escolares com textos em português, desenhos e contas de matemática. Ia tudo bem, mas para meu olhar, acostumado a ver as crianças nas suas interações não escolares, algumas coisas se impunham, que revelavam os desencontros dos modos escolares com os modos com que as crianças estavam acostumadas. Vamos ver um pouco da - 58 -

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concepção e das práticas de ensino e aprendizagem xikrin para entender melhor isso. RELAÇÕES E SITUAÇÕES DE APRENDIZAGEM XIKRIN

Para os Xikrin, as pessoas aprendem a partir de duas capacidades: ver e ouvir. Essas capacidades se complementam e se completam, e seria errôneo tentar fazer uma conexão imediata entre o que é “visto” e “visível” com o que eles chamam de ver, e o que é “ouvido” e sonoro com o que eles chamam de ouvir. Vejamos. A capacidade de ver e ouvir é algo que se desenvolve e é desenvolvido com o tempo, a partir de diversas práticas. Assim, logo após o nascimento, meninos e meninos têm o lóbulo da orelha perfurado, onde será colocada uma linha de algodão, a ser substituída por um adorno feito de uma madeira leve pelo pai da criança e pintado com a tinta vermelha de urucum. Este adorno, utilizado cotidianamente pela criança, vai aumentando com o tempo, alongando R IXUR GD RUHOKD H p UHWLUDGR GHÀQLWLYDPHQWH TXDQGR HOD FRPHoD a andar. Os meninos têm também os lábios perfurados e ornados com uma linha de algodão a ser substituída, atualmente, por cordões de miçangas e sementes, o que se liga à oratória masculina e ao desenvolvimento de sua capacidade de falar. Esses adornos são parte de um complexo de pintura e ornamentação corporal que diz respeito à situação e às condições das pessoas, e que é o modo correto de se apresentar, em uma ética e estética xikrin; veja para isso Vidal (1992), Cohn (2000), Turner (1995), Seeger (1985). Eles são também parte do desenvolvimento e da formação da pessoa, em se tratando de um povo para o qual o modo de se apresentar é fundamental e que, como os demais ameríndios, tem no corpo e na corporalidade um meio de construção da humanidade e pessoalidade14. Além de ornamentos, cuidados alimentares são necessários para o 14 Veja Seeger et al. (1979), Seeger (1985), Lima (1996), Viveiros de Castro (2002) e Coelho de Souza (2001). - 59 -

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desenvolvimento adequado desses sentidos – crianças devem comer certas coisas e devem evitar outras, para não ter seus olhos e ouvidos estragados. Algumas práticas devem ser realizadas pelos pais e avós para fortalecer tanto olhos quanto ouvidos, como a administração de ervas e até mesmo, para os meninos, a saliva dos mais velhos que são bons oradores. Olhos e ouvidos são o meio pelo qual se pode aprender com o mundo e no mundo, e o conhecimento assim adquirido é armazenado no coração. Mas não devemos, como se dizia acima, tomar ver e ouvir como duas faculdades e atividades ligadas direta e exclusivamente ao que o Ocidente atribui a essas atividades e ao que é visível e audível15. Assim, para se aprender, se deve observar e ouvir. Um jovem que queira aprender a fazer um cocar, por exemplo, pede a quem o está fazendo que lhe permita permanecer junto a ele para observar. Aquele que quiser conhecer os remédios do mato pede para acompanhar alguém que seja especialista em uma expedição pela mata, para ir aprendendo. As crianças acompanham outras crianças, de sua idade ou mais velhas, seus pais, seus avós, nas atividades domésticas e na aldeia, nas roças, no mato, pelo rio, e vão observando e comentando tudo o que veem e o que é feito. Mas isso não é simplesmente, como tanto se fala, aprender pela observação ou por imitação. É um modo ativo de se engajar na aprendizagem, e a combinação entre o ver e o ouvir é o modo xikrin de apontar isso. Pois, como eles dizem, não basta ver, tem que ouvir também: ou seja, há GH VH WHU XPD DWLWXGH UHÁH[LYD GH PRGR D FRPSUHHQGHU R TXH VH Yr Para aprender, a pessoa tem que ser capaz de ver e ouvir – ou seja, UHÁHWLU HQWHQGHU FRPSUHHQGHU Além disso, a aprendizagem não é coletiva nem é pautada por relações previamente determinadas. Ela depende do interesse e das capacidades e vontades de cada um. A pessoa que queira aprender algo – ou se aprimorar em algum aprendizado – deve pedir àquele ou àquela que sabe que lhe ensine. Assim, o modo de transmitir co15 Isso tem sido debatido na antropologia contemporânea; veja-se Ingold (2000). - 60 -

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nhecimentos não é automático e coletivo, mas variável a cada pessoa de acordo com suas vontades e inclinações e também com suas relao}HV D VHUHP DWLYDGDV SDUD DSUHQGL]DGRV HVSHFtÀFRV 3DUD RV ;LNULQ em vez de uma totalidade de conhecimentos que formam um repertório coletivo, cada pessoa, ao longo da vida, torna-se depositária de alguns conhecimentos, e é reconhecida como tal. É verdade que quanto mais velha a pessoa mais se espera que ela detenha conhecimentos. Mais do que isso: ela será cada vez mais capaz de expressar e efetivar esses conhecimentos, porque os Xikrin, mais do que regular o momento do aprendizado ou do acesso ao conhecimento, regulam o momento de colocá-lo em prática e exercê-lo. Assim, quando se pergunta a um jovem ou a uma jovem se sabem algo e eles negam, será sempre arriscado concluir que eles não sabem – frequentemente, eles não podem expressar este conhecimento e terão de esperar o momento adequado para tal. Isso pode ser observado inúmeras vezes e em inúmeros casos nessas duas décadas que separam o início da pesquisa e os dias de hoje – muitos jovens que negavam serem capazes de fazer algo repentinamente, ao VH WRUQDUHP SRU H[HPSOR SDLV R À]HUDP FRP GHVWUH]D Mi TXH VHU pai era a condição de fazer algo que, até então, negavam saber fazer, já que não se o podia fazer... 3RU ÀP jV FULDQoDV TXDVH QDGD VH QHJD YHU H RXYLU ² DSHQDV momentos de especial risco para elas, como sessões de xamanismo e outros momentos em que os mortos estão muito próximos, como a dança noturna durante os rituais funerários. Assim, elas mantêm contínuo acesso às informações e, com sua grande mobilidade espacial, se aproximam sempre, e frequentemente em grupos, daquilo que se apresenta como mais interessante no momento. Seus parentes estão sempre atentos a todos os sinais de seu desenvolvimento PRWRU GH PRELOLGDGH H DXWRQRPLD H GH ÁXrQFLD OLQJXtVWLFD H GRPtnio técnicos, tecendo sempre comentários e comparando suas crianças16. 16 Como o fazem também as mulheres kaingang. (MANTOVANELLI, 2011) - 61 -

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Assim, temos um cenário em que as crianças têm grande e franco acesso à informação, sendo continuamente estimuladas a demonstrar seu interesse e os conhecimentos adquiridos na ocasião e que sejam adequados para sua faixa etária. Com isso, podemos entender melhor a estranheza das crianças com os modos escolares. Em primeiro lugar, a escola as obrigava a produzir e expressar sua produção individual e oralmente. Isso tudo condiz pouco com o que elas aprenderam como adequado às crianças: não se responde a adultos, e em especial uma criança não encara ou olha olho no olho um adulto, não se demonstram os conhecimentos deste modo e, principalmente, não se levanta e demonstra capacidade oratória até ser um homem maduro. As crianças, quando chamadas a responder perguntas que visavam dar andamento às aulas e mantê-las concentradas, sentiam-se grandemente constrangidas. Por outro lado, o conhecimento adquirido na escola é coletivo: adquirido em grupo e coletivamente, não responde aos tempos e às aptidões de cada criança, e as obriga a agir ao mesmo tempo. Mas sua expressão e produção devem ser individualizadas e silenciosas. Assim, as crianças devem escrever seu próprio texto, fazer sua própria lição, desenhar seu próprio desenho, sozinhas, sem partilhar com ninguém. Isso contradiz com o tipo de atividade em grupo a que estão acostumadas, e a comparação com sua produção de desenhos em grupo dentro da escola – em que não podem comentar o desenho umas das outras – e fora da escola – em que decidem coletivamente temas, cores, momentos de desenhar e com quem desenhar – é um exemplo claro disso (COHN, 2005a). Algumas outras coisas causavam constrangimento às crianças na escola, como o hábito de ser chamadas pelo nome para responder a algo ou quando têm sua atenção chamada. Ao serem perguntadas acerca de seus nomes, as crianças sorriam embaraçadas, olhando-se umas às outras – porque não se pronuncia o próprio nome, o que é interditado. Isso fez com que, com o tempo, as crianças passassem a ser cada vez mais conhecidas por apelidos, que se tornaram a referência vocativa franca na escola. - 62 -

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Não se deve esquecer que a escola restringe a mobilidade das crianças, retirando-as daquilo que era a fonte de suas aprendizagens: o YHU H RXYLU R HVWDU DWHQWR H UHÁHWLU VREUH WXGR R TXH WHVWHPXQKDP )Lcar sentado, em silêncio, é algo muito distante do que costumam fazer ao longo dos dias, embora possa acontecer em alguns contextos, como os descritos anteriormente – em funerais, rituais, luto... Principalmente, ter sua atenção chamada em público como um ator individual é algo a que as crianças não estão acostumadas, e que seus pais não permitem QD PDLRU SDUWH GDV VLWXDo}HV ² GH IDWR FKDPDU D DWHQomR GR ÀOKR ² GD criança – dos outros é inadmissível entre os Xikrin, e pode ter graves consequências políticas. No entanto, isso é admissível nas escolas... Neste momento aqui descrito, foram as crianças mais velhas, que já haviam passado por uma experiência de escolarização, que introduziram esses meninos e essas meninas nessas práticas escolares, ensinando-lhes, ao traduzir, por entre as ripas de troncos que faziam as paredes, as ordens e os pedidos dos professores, instando aos alunos a sentarem direito, cada qual em seu lugar, a fazer silêncio, a olhar para o professor, a fazer cada qual sua atividade, a não olhar para o lado, a não conversar... Foram eles que permitiram que essa escola pudesse de fato acontecer, em sua forma escolar, e tornaram, ou ajudaram, a transformar essas crianças em alunos. 3RU ÀP LVVR WXGR Vy DFRQWHFHX SHOD HQRUPH LPSRUWkQFLD TXH os Xikrin deram à escola, e à sua instituição em sua forma escolar. Isso vale para a comunidade que demandou a escola, às famílias que encaminhavam suas crianças para a escola, e principalmente para as próprias crianças, que não faltavam às aulas e chegavam com os animados gritos chamando para a reunião. Este engajamento permanece até hoje, quando, embora a escola mantenha muitas dessas características acima descritas – professores não indígenas e com pouca formação esSHFtÀFD PLQLVWUDQGR DXODV HP SRUWXJXrV H FRQWH~GRV QmR HVSHFtÀFRV em prédios que encerram as crianças por parte importante de cada dia – as famílias, as comunidades e as crianças continuam empreendendo todos os esforços para manter a escola funcionando (BELTRAME, 2012). - 63 -

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No caso dos Xikrin, parece-nos que eles valorizam a escola a partir de como a percebem: como algo eminentemente externo, o que permite que conhecimentos exógenos e por eles não dominados possam ser aprendidos pelos alunos (TASSINARI e COHN, 2009). Só isso explica que as crianças se engajem tanto nessas atividades e que as famílias deleguem parte importante da formação das suas crianças a estas pessoas – professores e gestores não indígenas – e a esta instituição – a escola, com suas aulas, sua disciplina, seu tempo e seu espaço17. Isso tem que ser visto caso a caso, e é isso que SURSRPRV FRP DV HWQRJUDÀDV GDV HVFRODV ETNOGRAFIAS DAS ESCOLAS – BACAJÁ E NOVA JACUNDÁ

Vimos dois tipos de pesquisa em escola, ambas com etnoJUDÀD $ GLIHUHQoD p TXH D SHVTXLVD IHLWD FRP RV ;LNULQ GR %DFDjá acompanhou a escola depois de um esforço de compreender os PRGRV GH DSUHQGHU H FUHVFHU GRV ;LNULQ TXH VH EHQHÀFLRX H[DWDmente com o fato de que a pesquisa se iniciou quando a escola não estava atuando na aldeia, o que é, cada vez mais, um fato raro. Assim, a pesquisadora pôde se surpreender com a diferença do que se via fora da escola e quando as crianças começaram a frequentar os bancos escolares. Se isso mostrou tal diferença, mostrou também o tamanho do engajamento da população, cujas crianças frequentavam assiduamente a escola e cujas famílias delegavam a esta instituição parte da formação das suas crianças, coisa de que cuidam tanto. Porém, a pesquisadora foi sempre uma observadora externa neste caso, ao contrário da pesquisa em Nova Jacundá, que já tinha como objeto a escola, e que a levou a pensar em métodos, instrumentos e estratégias para dar conta do objetivo de sua pes17 Atualmente, Camila Beltrame tem desenvolvido pesquisas nesta área no âmbito do projeto do Observatório, e poderá atualizar estes dados e as impressões que os Xikrin têm da escola. - 64 -

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quisa; compreender a perspectiva das crianças sobre seus processos de aprendizagem. Neste sentido, o esforço da pesquisa em Nova Jacundá seria a LQVHUomR QD GLQkPLFD FRPR DOXQD D ÀP GH HVWDEHOHFHU XPD UHODomR horizontal com as crianças. Diariamente acompanhava as aulas da escola, e com o passar do tempo fui percebendo que (também) estava sendo reescolarizada, pois a maneira guarani de ser aluno era bem diferente do que eu esperava18. Este processo de reescolarização era fundamental para que eu pudesse, dentro de minhas possibilidades, interagir de maneira que as crianças me vissem como mais uma aluna da escola Kariwassu Guarani que estava ali para aprender e não para ensinar, papel delegado às professoras. Além deste processo de reescolarização, a convivência com os Guarani em Nova Jacundá mostrou diferentes expectativas a respeito da pesquisa; de um lado, a minha intenção era conseguir estabelecer uma relação horizontalizada com as crianças Guarani Mbya dentro da escola. Este seria o primeiro passo para realizar a pesquisa com as kyringué FULDQoDV GHL[DU GH VHU XP DGXOWR WtSLFR D ÀP GH FRQVHJXLU HVWDEHOHFHU XPD UHODomR GH FRQÀDQoD19 com elas, aspecto fundamental para quem deseja ser um etnógrafo das crianças (CORSARO, 2005). Do outro lado, tive de lidar com as expectativas dos pais, dos adultos e das professoras, que desejavam que eu ajudasse a melhorar sua escola20. Sabendo da minha condição enquanto antropóloga, vejo que minha ida para a aldeia também foi uma possibilidade dos Guarani Mbya de Nova Jacundá (re)pensar sua escola. 18 Digo isto porque estou considerando minha experiência escolar e o que conhecia sobre as escolas não-indígenas. 3RU PDLV TXH D SULRULGDGH GD SHVTXLVD IRVVH HVWDEHOHFHU XPD UHODomR GH FRQÀDQoD FRP DV FULDQoDV VDELD GD LPSRUWkQFLD GH FRQTXLVWDU WDPEpP D FRQÀDQoD GRV DGXOWRV GD DOGHLD D ÀP GH TXH HOHV VH VHQWLVVHP D YRQWDGH SDUD GHL[DU VXDV FULDQoDV FRPLJR &RPR GLVVH DQWHULRUPHQWH HVWH SHGLGR PH GHL[RX SUHRFXSDGD Mi TXH SRGHULD GLÀFXOWDU minha proposta de participar da escola como aluna, não como monitora ou auxiliar da professora. - 65 -

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Neste sentido, ao longo da minha permanência em campo, fui ganhando espaço como uma articuladora das demandas e reivindicações escolares, sob o ponto de vista dos adultos. Do ponto de vista das crianças eu era uma companhia agradável, elas passavam grande parte do dia comigo. Compreendo que a relação construída com meus pequenos interlocutores me mostrou que, de fato, eu tinha um comportamento diferente21 dos outros adultos da aldeia. ( p LVWR TXH FRQVLGHUR LQRYDomR PHWRGROyJLFD GD HWQRJUDÀD da escola e dos processos de ensino-aprendizagem Guarani Mbya de Nova Jacundá: ter conseguido, dentro do espaço escolar, participar e apreender a produção e transmissão de conhecimento sob o ponto de vista das crianças. Ao longo de meu acompanhamento das atividades escolares, fui conseguindo interagir de maneira horizontal FRP DV FULDQoDV 3RVVR H[HPSOLÀFDU PLQKD SRVLomR D SDUWLU GH VLWXDções que passei; a “disputa” das carteiras (que na maioria das vezes me saía mal), a circulação dentro da sala de aula, meu aprendizado da língua, e o que foi mais importante e contundente para que me revelasse que, de fato, eu estava ali para aprender: minha participação na rede de colas durante a semana de provas. Desta maneira, posso dizer que meu esforço antropológico de compreender o ponto de vista das crianças sobre seu processo de tornar-se aluno(a) indígena foi bem-sucedido. A partir da convivência e da relação que estabeleci com as crianças Guarani Mbya de Nova Jacundá, consegui perceber seus interesses e vontades de aprendizagem escolares e não escolares. Esses interesses estão relacionados às sensibilidades valorizadas pela educação guarani; o ver (-oexa), o ouvir (-endu) e o fazer (-japo). Devemos, também, levar em conta a importância de o corpo estar bem e saudável para que se possa aprender e, sobretudo, respeitar o tempo-ritmo que en21 Minha condição durante o campo sempre teve como prioridade conseguir estabelecer uma relação horizontalizada com as crianças. Por isso, eu as acompanhava e participava de suas atividades cotidianas como as brincadeiras, o coral, as expedições pela mata, e as atividades escolares. - 66 -

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volve interesse e desejo/vontade de cada criança para sua aprendizagem. *** 3RU ÀP SDUD SHQVDU QD DWXDO LQIkQFLD *XDUDQL 0E\D GH 1RYD Jacundá e Xikrin do Bacajá, devemos considerar um fator: a escola. Temos diferentes infâncias indígenas, Guarani Mbya e Xikrin, que crescem escolarizadas. Portanto, entendemos que essas identidades Guarani Mbya e Xikrin também estão sendo produzidas na escola. Neste sentido, destacamos a importância da produção de pesquisas HWQRJUiÀFDV QDV HVFRODV LQGtJHQDV SRLV SRU PHLR GHODV SRGHPRV apresentar um cenário das diversas experiências de escolas diferenciadas ou não, e contribuirmos no debate sobre a educação escolar indígena no Brasil. REFERÊNCIAS ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. BELTRAME, C. B. O envolvimento das crianças Xikrin com a escola. II CIAEE – Congresso Iberoamericano de Arqueologia, Etnologia e Etno-História. Sociedades Tradicionais e Patrimônio Cultural em Iberoamérica. Dourados, MS: UFGD, 2012. BENITES, T. A escola na ótica dos Avakaiowá: impactos e interpretações indígenas. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PPGAS/URFJ-MN, 2009. SOUZA, M. C. de. Nós, os vivos: “construção de pessoa e construção de parentesco” entre alguns grupos jê. Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), v. 16, n. 46, junho 2001. COHN, C. A criança indígena: a concepção Xikrin de infância e aprendizado. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PPGAS/USP, 2000. __________. Desenhos das crianças Mebengokré-Xikrin: produção e comunicação de sentidos sobre o mundo. VI Reunión de Antropologia Del Mercosur. VI RAM, Montevideo, 2005. _________. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005. ________. Educação escolar indígena: para uma discussão de cultura, criança e cidadania ativa. Perspectiva - v. 1, n. 1, p. 485-515. Florianópolis, 2005. CORSARO, W. A. Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos estudos HWQRJUiÀFRV FRP FULDQoDV SHTXHQDV Educ. Soc., v. 26, p. 443-464. Campinas, mai./ago. 2005. - 67 -

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