EtnoSIGs: ferramentas para gestão territorial e ambiental de terras indígenas

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Descrição do Produto

EtnoSIGs: ferramentas para gestão territorial e ambiental de terras indígenas Ralph Trancoso, Robert Pritchard Miller, Alexandre Goulart, Henyo Trindade e Cloude de Souza Correia Trancoso, R. – [email protected] FUNAI - Fundação Nacional do Índio, Coordenação Geral de Monitoramento Territorial SEPS Quadra 702/902, Ed. Lex CEP 70390-025 Brasília, DF Miller, R. P.– [email protected] PNUD – Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Projeto Gestão Ambiental e Territorial Indígena (BRA 09/G32) EQSW 103/104 Lote 1 Bloco D CEP: 70670-350 Brasília, DF Goulart, A.– [email protected] IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil SHIS QI, Bloco F, sala 1 CEP 71615-560 Brasília, DF Trindade, H.– [email protected] IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil SHIS QI, Bloco F, sala 1 CEP 71615-560 Brasília, DF Correia, C. S.– [email protected] IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil SHIS QI, Bloco F, sala 1 CEP 71615-560 Brasília, DF

CITAÇÃO Trancoso, R., Miller, R.P., Goulart, A., Trindade, H., Correia, C.S. EtnoSIGs: Ferramentas para a gestão territorial e ambiental de terras indígenas. In: Paese, A., Uezu, A., Lorini, M.L., Cunha, A., eds. Conservação da biodiversidade com SIG, São Paulo: Oficina de Textos, 2012. cap.7, p.107-124.

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Introdução Em 1911, o etnólogo Theodor Koch-Grunberg fez as seguintes observações sobre a confecção de mapas por indígenas em uma aldeia Taurepang, ao sopé do Monte Roraima, extremo norte do Brasil. Também peço aos índios daqui que façam desenhos a lápis...Uma folha mostra todas as montanhas e cumes ao redor do Roraima com sua forma característica. Dois desenhos são especialmente interessantes e comprovam um excelente talento e uma visão notavelmente perspicaz para as condições topográficas de uma grande região. São dois mapas detalhados dos sistemas fluviais do Kukenáng e do Yuruaní com as serras a eles pertencentes. Dois ou três amigos ficam constantemente sentados à volta do desenhista e o ajudam por meio de indicações explicativas, ou, às vezes, eles próprios também desenham em seu lugar com o lápis. Diferenças de opinião são decididas por meio de longa deliberação antes de o desenhista traçar com firmeza a próxima linha (KochGrunberg, 1924). Cem anos depois, o “etnomapeamento” continua sendo ferramenta importante de diálogo intercultural, não somente sobre o conhecimento étnico das paisagens, mas também sobre o uso cultural, distribuição dos recursos naturais, impactos ambientais, entre outras informações. A representação espacial de um ecossistema do ponto de vista humano, como no caso do etnomapeamento, é o ponto de partida para examinar os processos complexos que os seres humanos, via a cultura, aplicam ao substrato natural (Rindfuss e Stern, 1998). Recentemente, com o avanço das tecnologias de computação, Sistemas de Informações Geográficas (SIG) e sensoriamento remoto, o etnomapeamento ganhou maior precisão, permitindo uma melhor interpretação e separação das unidades de paisagem e possibilitando, cada vez mais, o diálogo entre o conhecimento étnico e as diversas fontes de informações georreferenciadas (Robbins, 2003). A conjugação do conhecimento étnico com as ferramentas de análise espacial e sensoriamento remoto abre um leque de possibilidades para a gestão de terras indígenas (ESRI/Intertribal GIS Council, 2001; Chambers et al., 2004).

Essa integração entre o conhecimento

tradicional e as ferramentas de SIG é um fenômeno relativamente recente, e os primeiros registros foram realizados no Canadá e Alasca na década de 60, sendo difundido para outras regiões do mundo a partir de meados da década seguinte sob a 2

alcunha “Traditional Knowledge GIS” (Chapin et al., 2005), aqui chamado de Sistema Etnográfico de Informações Geográficas (EtnoSIG). O arcabouço de ferramentas disponibilizadas pelos EtnoSIGs vem sendo utilizado em diferentes regiões do mundo para a conciliação da preservação cultural, mediação de conflitos, manejo e gestão dos recursos naturais e desenvolvimento econômico em áreas habitadas por populações tradicionais (ESRI/Intertribal GIS Council, 2001). Atualmente, enquanto os laboratórios de SIG de comunidades indígenas dos Estados Unidos e Canadá crescem rapidamente, devido a disponibilidade de suporte técnico e financeiro, as populações indígenas da América Latina, Ásia e África permanecem com acesso limitado a estes recursos. Mesmo assim, na América do Sul, etnomapeamentos têm sido empregados na gestão, manejo e mediação de conflitos sobre o uso dos recursos naturais (Herlihy e Knapp, 2003; Cronkleton, et al., 2010). No Brasil, particularmente na última década, diversas entidades têm desenvolvido mapeamentos com a participação de populações tradicionais. Porém, ao contrário dos povos indígenas da América do Norte, é ainda incipiente a utilização de SIG para o mapeamento do conhecimento tradicional, bem como seus desdobramentos para elaboração de políticas públicas de uso da terra, criação e gestão de Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs). É objetivo deste capítulo explorar este potencial do etnomapeamento e sua interface com o SIG como ferramenta de gestão territorial e ambiental de TIs dentro da perspectiva das suas demandas e necessidades atuais, as quais vêm sendo discutidas no âmbito da construção de uma nova política governamental, que é a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas. Adicionalmente, como contribuição ao centenário do etnomapeamento no Brasil, uma metodologia simplificada de integração dos etnomapas aos SIGs é proposta e aplicada por meio de três estudos de caso. O texto está organizado em quatro seções. A primeira faz um apanhado e discussão do atual estado da arte de etnomapeamento junto a povos indígenas, indicando as experiências realizadas na Amazônia brasileira e fazendo uma reflexão sobre os resultados obtidos e suas limitações. A segunda descreve uma metodologia para integração do etnomapeamento com SIG e indica novas direções que precisam ser trilhadas para que essas ferramentas se efetivem como instrumentos de gestão de TIs. A terceira seção aplica a metodologia em três estudos de caso, selecionados a partir da 3

experiência dos autores com sete TIs em Roraima, onde o etnomapeamento foi utilizado como ferramenta em um levantamento etnoambiental (Miller et al., 2008). Na seção final,

comentamos

a

contribuição

das

ferramentas

de

SIG

integradas

ao

etnomapeamento, dentro das demandas da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas em construção.

Breve histórico do etnomapeamento, entidades envolvidas e seu uso nas terras indígenas no Brasil O etnomapeamento, também conhecido como mapeamento participativo, tem sido bastante utilizado como ferramenta do Diagnóstico Rápido Participativo (DRP), que é um conjunto de métodos que visa a aquisição rápida de informações, em contraste com os métodos etnográficos tradicionais. Resumidamente, o etnomapeamento consiste na confecção de mapas por parte de membros de uma ou mais comunidades, nos quais podem ser lançadas uma série de classes de informação, tais como localização de moradias e roças, acidentes geográficos, locais de ocorrência e uso de recursos naturais e de impactos ambientais (BRASIL, 2010). Os métodos utilizados para confecção dos mapas podem variar: desde mapas livremente desenhados, até aqueles feitos em folhas transparentes de acetato ou papel vegetal, sobre mapas previamente produzidos a partir de imagens de satélite e outras informações vetoriais relevantes, como limites territoriais, rios, estradas, curvas de nível, entre outras. O etnomapeamento não faz parte, exlusivamente, da metodologia do DRP. Como a citação de Koch-Grunberg no início do capítulo indica, no contexto indígena brasileiro, mapas desenhados de forma livre tem sido utilizados para explorar conceitos de geografia na formação de professores indígenas e estimular a produção de materiais didáticos que reconhecem os valores culturais (Parque Indígena do Xingu/Instituto Socioambiental, 1996). No Acre, onde a Comissão Pró-Índio (CPI/AC) realiza cursos de formação de professores indígenas desde 1983, os mapas também são usados na formação dos agentes agroflorestais indígenas (Vivan, et al., 2002). Hoje, no entanto, o etnomapeamento vem sendo considerado importante ferramenta coadjuvante nos diagnósticos relativos às TIs e povos indígenas. Listamos as principais abaixo: 1. Estudos de identificação de terras indígenas: embora o etnomapeamento não esteja indicado no Manual do Ambientalista (FUNAI, 2002) - documento que orienta as análises ambientais que devem ser abordadas em um relatório de 4

identificação, junto com informações históricas, etnológicas e antropológicas na prática, esta metolodologia tem sido utilizada para identificar as áreas e recursos naturais tradicionalmente utilizados pelos povos indígenas. O etnomapeamento busca localizar e registra as áreas de coleta de produtos extrativistas, de caça, de pesca e outros, bem como sítios sagrados, cemitérios e locais de antigas aldeias. A partir dessas informações é construída a argumentação do relatório de identificação, que apontará uma proposta de limites geográficos para a demarcação de uma terra indígena. 2. Componente indígena dos Estudos de Impacto Ambiental (Relatório EIA/RIMA) de obras e empreendimentos que incidem ou são vizinhos a terras indígenas: como no caso de identificação de TIs, não há normas que determinam o uso de etnomapeamento por parte dos técnicos responsáveis pelos estudos de impactos ambientais. Mesmo assim, o etnomapeamento vem sendo utilizado de forma crescente para fornecer informações básicas sobre o uso do território e recursos naturais pelos povos indígenas. Tais informações são analisadas em conjunto com informações sobre os impactos ambientais do empreendimento. A análise pode apontar a inviabilidade social do empreendimento, ou a necessidade de ajustes no projeto, como, por exemplo, a mudança no traçado de uma estrada, ou o desenvolvimento de programas de mitigação e/ou compensação de impactos. 3. Levantamento de Recursos Naturais: o etnomapeamento pode também estar voltado exclusivamente ao mapeamento de recursos naturais. São exemplos desta aplicação os levantamentos etnoambientais realizados após a identificação das terras indígenas os diagnósticos realizados para a elaboração de projetos de uso sustentável de recursos naturais pelos indígenas. São vários os exemplos de aplicações em que além de registrar informações sobre o uso da terra e recursos naturais, o etnomapeamento é o ponto de partida de diálogos e processos formais de tomadas de decisão com a participação e apoio de parceiros externos. Nas comunidades podem também existir divisões internas como clãs ou grupos de parentesco que representam diferentes grupos e interesses. Nesse contexto, o etnomapeamento pode consolidar informações e apontar caminhos para consensos sobre formas de uso de recursos naturais. Entretanto, ele é somente parte de um processo maior de discussão necessário para a gestão territorial/ambiental, que depende também da organização social e das micropolíticas inerentes a qualquer comunidade. Nos últimos anos experiências significativas de mapeamentos participativos com povos e em terras indígenas vêm ocorrendo no território brasileiro. Em 2005, na cidade de Rio Branco, AC, a Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) e a Secretaria 5

Extraordinária dos Povos Indígenas do Acre (SEPI) organizaram, sob a coordenação da gerência do Programa de Zoneamento Ecológico-Econômico daquele estado e com recursos oriundos do Projeto de Gestão Ambiental do Acre (PGAI), subprograma do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), um seminário para promover a troca de experiências em levantamentos participativos em territórios indígenas. O seminário contou com a participação de mais de 30 pessoas representando organizações governamentais, não-governamentais e lideranças indígenas da Amazônia Legal e teve como proposta “apresentar e debater diferentes metodologias, desenvolvidas em trabalhos de etnomapeamento em TIs de várias partes da Amazônia, que possam contribuir para construir uma ferramenta efetiva de gestão territorial nestas áreas” (Cf.: em http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2148). Na ocasião, seis experiências em curso na Amazônia brasileira foram apresentadas: (i) o etnozoneamento da TI Mamoadate (2004 e 2005) com os povos Manchineri e Jaminawa, envolvendo a SEMA e a SEPI, sendo esta experiência parte de um conjunto de etnozoneamentos de mais cinco TIs (Rio Gregório, Igarapé do Caucho, Colônia 27, Katukina/Kaxinawá de Feijó e Jaminawa do Caeté) concluído em 2006; (ii) o projeto Mapeamento Participativo das TIs Uaçá, Juminã e Galibi (2001 a 2003), desenvolvido no Amapá pela Associação dos Povos Indígenas do Oiapoque (APIO) em parceria com a ONG The Nature Conservancy (TNC); (iii) os trabalhos de Gestão Territorial dos Agentes Ambientais Timbiras do Maranhão e Tocantins, desenvolvidos pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e pela Associação Wyty-Catë das comunidades Timbira do Maranhão e Tocantins; (iv) os etnomapeamentos em oito TIs do Acre (2004 a 2006) situadas na fronteira do Brasil com o Peru (Kampa do rio Amônia, Kaxinawá/Ashaninka do rio Breu, Kaxinawá do rio Humaitá, Kaxinawá do rio Jordão, Kaxinawá do baixo rio Jordão, Kaxinawá do Seringal Independência, Poyanawa e Nukini) que fazem parte do Projeto Conservação Transfronteiriça do Brasil/Peru, realizado pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC) e pela Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC) com recursos da Fundação Gordon e Betty Moore, via TNC; (v) os Mapeamentos Culturais Colaborativos promovidos pela Equipe de Conservação da Amazônia (ACT Brasil) em quatro TIs: Parque Indígena do Xingu

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(2001); Parque Indígena do Tumucumaque e rio Paru D’Este (2002) - estas duas em conjunto com a Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque (APITU); e Sete de Setembro (2007), juntamente com a Associação Metareilá do clã Gameb do Povo Suruí; (vi) a experiência do Macrozoneamento Participativo das TIs do Alto Rio Negro (2002), realizado por meio de uma parceria entre a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e o Instituto Socioambiental (ISA), que compreendeu seis TIs do Alto Rio Negro (Rio Téa, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II, Alto Rio Negro, Rio Apapóris e Balaio) e foi desenvolvido para fornecer subsídios à formulação de um Programa Regional de Desenvolvimento Indígena Sustentável (PRDIS) naquela região. Em 2006, a SEMA e a SEPI, com apoio do PGAI, promoveram o seminário “Gestão Territorial em Terras Indígenas” no qual foi discutido a gestão territorial na Amazônia brasileira e dos etnozoneamentos das TIs Rio Gregório, Igarapé do Caucho, Colônia 27, Katukina/Kaxinawá e Jaminawa do Caeté. Por meio de uma abordagem abrangente, as diversas experiências em curso na Amazônia brasileira - PDPI, PPTAL, CTI, ACT, TNC, ISA, CPI/Acre e Governo do Estado do Acre - foram consideradas dentro do amplo processo de gestão territorial em TIs, entendido a partir da combinação entre a dimensão política do controle territorial das TIs e a dimensão ambiental voltada para sua sustentabilidade. Em Roraima, a TNC, com apoio do pesquisador Vicenzo Lauriola, do Núcleo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-INPA em Roraima, desenvolveu iniciativa de etnomapeamento das TIs Raposa Serra do Sol e São Marcos, em parceria com o Conselho Indígena de Roraima (CIR) e Associação dos Povos Indígenas do Estado de Roraima (APIRR), respectivamente. Outra iniciativa também foi realizada junto aos indígenas da etnia Yekuana na Terra Indígena Yanomami. No caso das TIs Raposa Serra do Sol e São Marcos, o etnomapeamento objetivou abranger todo o território demarcado, com sua divisão em regiões, sendo que cada região teve uma equipe treinada para realizar a tradução dos conhecimentos locais para sua fixação numa base cartográfica, a partir da interpretação de imagens de satélite. Em agosto de 2009, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará (SEMA/PA), por meio da Diretoria de Áreas Protegidas (DIAP), da Coordenadoria de Ecossistemas (CEC), da Gerência de Proteção do Meio Socioeconômico e Cultural (GEMEC) e da Assessoria de Povos Indígenas, realizou a Oficina de Trabalho para 7

Etnozoneamento e Etnomapeamento em Terras Indígenas do Pará: Ferramentas de Gestão Ambiental, em que se discutiu a definição do conceito de etnozoneamento, os objetivos e a metodologia que será implementada pela SEMA no Etnozoneamento das TIs da região do Trombetas-Mapuera, a fim de atrair parcerias com instituições e organizações para execução dos trabalhos. Na ocasião, o etnozoneamento foi definido “como uma ferramenta de diagnóstico e planejamento para gestão de terras indígenas, elaborado de forma participativa tendo como objetivo a preservação, conservação, uso e manejo

dos

recursos

naturais

das

TIs

do

Pará”

(Cf.:

em

http://www.sectam.pa.gov.br/noticias_detalhes.php?idnoticia=614). Recentemente, em 2010, foi realizado em Rio Branco-AC o Seminário Internacional de Mapeamentos Participativos e Gestão de Territórios Indígenas na Amazônia . O evento foi uma iniciativa do Instituto Internacional de Educação do Brasil – IIEB, da Comissão Pró-Índio do Acre – CPI/AC e do Governo do Estado do Acre, através de sua Secretaria de Meio Ambiente (SEMA/AC) e Assessoria Especial para os Povos Indígenas (AEPI/AC). O evento contou com a participação de cerca de 150 participantes entre indígenas e não-indígenas dos nove países da Bacia Amazônica (Brasil, Peru, Equador, Bolívia, Venezuela, Colômbia, Suriname, Guiana Francesa e Guiana Inglesa). Durante o evento discutiu-se o estado da arte e aprendizados das iniciativas, bem como abordagens, conceitos e metodologias empregadas avaliando suas repercussões para a garantia do bem estar dos povos indígenas. Um dos pontos altos da programação foi a Feira de Exposição de Experiências, momento reservado para que os participantes trocassem informações, materiais e produtos relacionados aos conhecimentos acumulados de cada país. O evento buscou refletir sobre a temática de etnomapeamento no âmbito das políticas públicas, educação, questões transfronteriças, manejo e conservação de paisagens, preservação e ameaças as terras indígenas, conhecimentos tradicionais

e

direitos

indígenas

ao

território

(Cf.:

em

http://amazoniaindigena2010.blogspot.com/). Entre os resultados do seminário, destaca-se a afirmação da importância do etnomapeamento para os múltiplos processos de garantia do controle das terras e territórios indígenas, bem como à reafirmação das identidades étnico-culturais. Isto foi visto a partir das 22 apresentações orais de experiências e das reflexões dos Grupos de

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Trabalho que trataram de temáticas relacionadas aos conteúdos abordados durante o seminário. Estes temas e outros abordados no seminário evidenciaram a importância da ferramentas do mapeamento participativo no que diz respeito à: (i) sua incorporação em Políticas Públicas orientadas por demandas locais; (ii) ao entendimento de que sua elaboração engendra nexos positivos com a (re)produção de conhecimentos indígenas em diferentes ambientais (formais e informais); (iii) seu uso, que pode auxiliar na gestão integrada e compartilhada de territórios indígenas trans-fronteiriços; (iv) potencial para o manejo da paisagem nos territórios; (v) sua incorporação por parte do Estado como instrumento de diálogo e planejamento conjunto.

Integrando conhecimento étnico e informação geográfica: uma metodologia para consolidação em SIG das iniciativas de etnomapeamento As primeiras iniciativas de etnomapeamento não dialogavam com SIG e mapas eram construídos livremente, explorando a percepção dos indígenas sobre a paisagem, recursos naturais e usos tradicionais no seu território, sem preocupação com a precisão na localização espacial da informação. Estas iniciativas podem ser consideradas eficazes sob o ponto de vista de diagnóstico e enquanto representação simbólica de relações culturais com a paisagem, mas apresentavam certa dificuldade para a conversão para uma base georreferenciada. Essa descontinuidade, no entanto, vem sendo contornada pelo uso de cartas-imagem e mapas como base para o etnomapeamento. Mesmo assim, a interação entre SIG e etnomapeamento na maioria das experiências vem ocorrendo em apenas uma via, onde parte-se de um produto base elaborado a partir de um SIG para subsidiar a elaboração do etnomapa. Esta seção apresenta uma seqüência de procedimentos para consolidação em SIG das iniciativas de etnomapeamento (Figura 1). Para fins didáticos, os procedimentos estão divididos em três fases que se integram na forma de um ciclo. Fase 1: Sistema de Informação Geográfica - SIG: Planejamento do etnomapeamento. Aquisição de informações para dar suporte ao processo de mapeamento participativo (imagens de satélite, limites da TI, rios, altimetria), com a produção de cartas-imagem ou mapas temáticos.

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Fase 2: Mapeamento participativo - Etnomapeamento: A partir de um produto da Fase 1, sobre o qual os membros da comunidade registram suas informações em papel vegetal/acetato ou diretamente na carta. Tem como produto final um ou mais “etnomapas”, conforme as categorias de informações trabalhadas. O direcionamento para as informações de interesse é conduzido pelo técnico indigenista. Fase 3: Sistema Etnográfico de Informação Geográfica - EtnoSIG: Retorna ao SIG as informações étnicas do mapeamento participativo usando ferramentas de geoprocessamento. Possibilita a interação das camadas de informações oriundas do conhecimento tradicional com as informações ambientais, subsidiando a gestão de TIs. A aplicação de técnicas de análise espacial sob as informações do conhecimento tradicional exemplificam a compatibilização com as demais informações contidas no banco de dados do SIG. A maioria dos trabalhos se restringem às Fases 1 e 2 descritas acima, e o principal método que vem sendo empregado para realização de etnomapeamento em comunidades indígenas usa mapas-base simplificados feitos em papel vegetal, com sobreposição e consulta a imagens de satélite e mapas temáticos. Na Figura 1, as Fases 1 e 2 são representadas pelas etapas de 1 a 4, cujo produto final é o etnomapa em papel. Em uma minoria de iniciativas há a integração dos etnomapas com dados e ferramentas de SIG aqui representada pela Fase 3 (etapas 5 a 10). Nessa fase, os etnomapas retornam aos SIG como dados de entrada, sendo convertidos do formato analógico para o formato digital por meio de um scanner ou por intermédio de fotografias digitais tiradas em alta resolução (etapa 5). A escolha das fotografias digitais de alta resolução para esta metodologia se baseia nas seguintes considerações: (i) Magnitude da imprecisão do posicionamento geográfico indicado pelo indígena maior que a diferença dos erros (Erro Médio Quadrático) obtidos no georreferenciamento das imagens oriundas de fotografia digital em alta resolução e scanner; (ii) Dificuldade para aquisição de scanners com dimensões apropriadas em contraponto à disponibilidade de câmeras fotográficas digitais;

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(iii) Simplificação da metodologia tornando-a viável para ser replicada e difundida entre indígenas e sociedade civil, garantindo o retorno do conhecimento tradicional ao SIG. A partir destas considerações é possível concluir que a conversão do formato analógico para o digital com o uso de scanners, apesar de demandar maior esforço, não garante maior precisão. Outro agravante é a possibilidade de não implementação da rotina devido a indisponibilidade e/ou alto custo do equipamento.

Figura 1. Fluxo de procedimentos para consolidação em SIG das iniciativas de etnomapeamento. Uma vez no formato digital, o etnomapa é georreferenciado. Para o georreferenciamento ou correção geométrica do etnomapa, recomenda-se que os pontos de controle sejam baseados em feições como os limites da terra indígena, hidrografia e estradas. Georreferênciados, os etnomapas já podem ser considerados integrados ao SIG no formato matricial (etapa 6). A etapa seguinte é a vetorização das informações que representam o conhecimento tradicional (etapa 7) que foram desenhadas pelos indígenas no mapeamento participativo (etapa 4). Em seguida, as informações extraídas são separadas em camadas de informações etnográficas (etapa 8), possibilitando a integração com as demais camadas de informações previamente disponíveis no SIG (etapa 9). O cruzamento das informações do EtnoSIG (roças, caça, pesca, extrativismo, criações de animais, áreas sagradas, entre outras) com as informações do SIG (altimetria, vegetação, solos, rios, bacias hidrográficas, estradas, fazendas, imagens de satélite, etc) possibilita o diálogo do conhecimento etnográfico com o ambiente habitado pelos indígenas, subsidiando o planejamento e gestão ambiental de terras indígenas (etapa 10).

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Cabe ressaltar que a metodologia aqui proposta é direcionada somente a interface do etnomapeamento com o SIG. Os métodos etnográficos intrínsecos ao processo de etnomapeamento não são abordados neste capítulo. Finalmente, se houver domínio das ferramentas de SIG e participação dos indígenas nas etapas técnicas, a etapa 9 liga-se a etapa 1, tornando o fluxograma cíclico e independente da participação de entes externos. Para tanto faz-se necessária a capacitação de jovens indígenas nas ferramentas de SIG, proporcionando, dessa forma, autonomia para a gestão das terras pelas organizações indígenas. Podemos ainda aventar a possibilidade do EtnoSIG se transformar em ferramenta efetiva de gestão territorial e ambiental de uma terra indígena, a partir do retorno cíclico de novas informações e a elaboração de novos produtos para discussão, uso e aprimoramento por parte das comunidades. Este nível de amadurecimento vem sendo experimentado por diversos povos indígenas norte-americanos (ESRI/Intertribal GIS Council, 2001; ESRI, 2009), mas ainda é um grande desafio para as TIs do Brasil.

Estudos de caso: Levantamento Etnoambiental do Complexo Macuxi-Wapixana, Roraima O Levantamento Etnoambiental do Complexo Macuxi-Wapixana, Roraima, foi o último de uma série de levantamentos etno-ecológicos realizados no âmbito do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL/FUNAI). No caso de Roraima, o levantamento focou em nove TIs da região do Lavrado (savanas) do estado, onde há 27 TIs (Miller et al., 2008). O etnomapeamento se mostrou um método muito útil durante o Levantamento Etnoambiental, na medida em que permitiu obter, em um tempo curto, informações espaciais sobre o uso dos recursos naturais, sua distribuição e restrições causadas por limitações de território. A Tabela 1 exemplifica informações sobre impactos ambientais levantadas nos mapeamentos participativos do Levantamento Etnoambiental do Complexo MacuxiWapixana.

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Tabela 1. Matriz de impactos ambientais em terras indígenas elaborada apartir de informações extraídas de mapeamentos participativos (etnomapeamentos) no Complexo Macuxi – Wapixana de terras indígenas. TERRA IMPACTO Descarte de lixo por transeuntes ou vilas

Anaro

Barata/ Livramento

Boqueirão

Jacamim

Moskow

Muriru

Raimun dão

Raposa Serra do Sol

Tabalas cada

Entrada de caçadores Entrada de pescadores Entrada de turistas Fazendas / invasões Fogo (incêndios florestais) Gado de fazendas vizinhas Garimpo Monocultura de Acacia mangium Monocultura de arroz Poluição hídrica Retirada de madeira Retirada de pedras/cascalho

Além da aquisição de informações espaciais relevantes, as reuniões de etnomapeamento foram momentos para registrar detalhes sobre alguns temas específicos, na medida em que os participantes passavam noções de espaço, território e recursos naturais para o papel. Para os técnicos que acompanham este processo, surge a possibilidade de fazer perguntas mais específicas sobre padrões de uso de recursos naturais, suas mudanças históricas e percepções sobre a sustentabilidade deste uso, entre outras. O processo de confecção do etnomapa com a participação de membros da comunidade de várias gerações trocando e confirmando informações é um momento muito rico de difusão do conhecimento tradicional entre os indígenas (Figura 2).

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Figura 2. Etnomapeamento no Levantamento Etnoambiental das Terras Indígenas do Complexo Macuxi-Wapixana - RR. Dentre as sete terras indígenas em que o etnomapeamento foi realizado, foram selecionadas três como estudo de caso: TI Boqueirão, TI Moskow e TI Barata Livramento. A seleção destas terras foi baseada nas reflexões que os etnomapas geraram e no seu potencial para contribuir na gestão territorial e ambiental. Para estas terras são apresentadas aplicações práticas da metodologia proposta na seção anterior, através do cruzamento de informações geográficas disponíveis (limites de TIs, hidrografia e estradas, classificação da vegetação, curvas de nível e bacias hidrográficas) com o conhecimento étnico extraído de etnomapas (uso e distribuição de recursos naturais e impactos ambientais). Como exemplo da integração de dados e análises em SIG, é apresentado o cálculo de superfícies com as densidades dos diferentes usos tradicionais pelas comunidades indígenas. Mapas de densidade de uso tradicional foram obtidos por meio da aplicação da função quadrática de Kernel (Silverman, 1986; Mitchell, 1999), que resulta em superfícies em que os valores mais altos são atribuídos aos locais com maior frequência de pontos dentro de um raio de busca. Os valores diminuem com o aumento da distância das áreas de uso. Os raios de busca foram ajustados de acordo com a natureza da atividade tradicional, sendo escolhido 3 km para agricultura, 2 km 14

para pesca e criações e 5 km para caça A escolha destes valores para representar as diferentes atividades de subsistência foi baseada em observações e informações qualitativas, de forma que os círculos concêntricos gerados não são medidas exatas mas indicadores de padrões. Por exemplo, o raio de 5 km para a atividade de caça é consistente com a distância dos deslocamentos feitos por caçadores à pé. No entanto, não representa um limite máximo para a área abrangida pelos caçadores, pois na região de Lavrado pode ocorrer deslocamento de caçadores em bicicletas ou motocicletas. No caso da atividade agrícola, o raio de 3km, reflete as observações feitas em campo quanto a viabilidade de deslocamento de homens e mulheres para suas roças e o retorno com os produtos. Obviamente, o acesso a outros meios de transporte poderá ampliar esse raio de deslocamento para as atividades agrícolas. No caso da atividade de pesca, que do ponto de vista cartográfico é essencialmente linear, seguindo o curso do rio, foi feita a opção de representar a atividade com círculos de raio de 2km, visando indicar os deslocamentos ao longo do curso do rio, seja em canoa ou na escolha de determinados pontos de pesca nas margens. Os valores foram atribuídos considerando entrevistas realizadas durante o processo de etnomapeamento e em outras ocasiões nas nove TIs do Levantamento Etnoambiental do Complexo Macuxi-Wapixana e em outras experiências dos autores em TIs habitadas por estas etnias. As principais vantagens da construção de superfícies de densidade de uso tradicional são: (i) relativização do erro de posicionamento geográfico indicado pelo indígena no mapeamento participativo; (ii) controle dos raios de busca do interpolador de acordo com a natureza da atividade tradicional; (iii) compatibilização das informações de conhecimento tradicional com outras informações em formato matricial para utilização em análises muticritério e modelagens. Nas três TIs, as análises resultantes de informações sobre o conhecimento tradicional sugerem desdobramento relevantes para a gestão ambiental e territorial de TIs, representando a etapa 10 da Figura 1.

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TI Boqueirão: uso de recursos naturais externos Homologada em 06/06/2003, a TI Boqueirão está situada no município de Alto Alegre - RR, a margem direita do rio Uraricoera, com uma área de 16251 ha. É habitada por aproximadamente 300 indivíduos das etnias Macuxi e Wapixana. No mapeamento participativo foi destacado um tema que é recorrente no contexto das TIs que foram demarcadas como áreas descontínuas ou “ilhas” em Roraima, que é o uso de recursos naturais fora dos limites da TI. Embora a pesca seja uma atividade rotineira entre os indígenas da TI Boqueirão, o principal curso d’água utilizado para esse fim não foi incluso no limite territorial da terra na demarcação. Importantes áreas usadas tradicionalmente para caça e até mesmo para agricultura também ficaram de fora dos limites da TI. Atualmente, o acesso a estas áreas de uso tradicional pelos indígenas é negociado com os fazendeiros que detêm a posse da terra no entorno da TI Boqueirão, que está cercada por fazendas ao longo de todo o seu perímetro. Apesar de as áreas de uso tradicional mapeadas estarem situadas principalmente ao norte do polígono da terra, importantes áreas de cabeceiras de drenagem também foram deixadas de fora ao sul da mesma, estando ocupadas por fazendas na atualidade (Figura 3).

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Figura 3. Mapa de saída do Sistema Etnográfico de Informação Geográfica – ETNOSIG, demonstrando a distribuição e uso dos recursos naturais, impactos ambientais e outras informações relevantes da Terra Indígena Boqueirão. A análise da densidade das áreas de uso (Figura 4) poderia ter sido utilizada como um dos critérios para a definição dos limites da terra. A aplicação de técnicas de análise espacial sob os dados extraídos dos etnomapas é um exemplo da integração da informação étnica em um SIG (etapa 9 da metodologia). Os etnomapas são fontes de entrada de dados no EtnoSIG (etapa 5 da metodologia) e as análises de densidade de uso tradicional e suas reflexões são produtos de saída do EtnoSIG (etapa 10 da metodologia).

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Figura 4. Superfícies de densidade do uso tradicional dos recursos naturais (caça, pesca e agricultura) na TI Boqueirão e região de entorno, construídas com uso da função Kernel com raios de busca de 5 km para caça, 2 km para pesca e 3 km para agricultura. A Tabela 2 apresenta os resultados da quantificação das superfícies de densidade de uso tradicional (pesca, caça e agricultura) pelos habitantes da TI Boqueirão dentro e fora dos limites desta. Os dados levam crer que com exceção da agricultura, os índios dependem dos recursos naturais do exterior de seu território para sua subsistência.

Tabela 2. Percentuais de uso do interior e exterior da TI Boqueirão nas atividades tradicionais de pesca caça e agricultura obtidos a partir da aplicação de análises espaciais (estatísticas zonais das superfícies de densidades de uso tradicional). Uso Tradicional Pesca Caça Agricultura

interior da TI (%) exterior da TI (%) 9,4 90,6 13,0 87,0 79,4 20,6

A análise demonstrou claramente que os índios necessitam de áreas que estão fora dos limites da TI para sua subsistência e proteção dos recursos naturais. Caso a ferramenta de análise espacial fosse utilizada no estudo que subsidiou a demarcação da terra, as áreas de uso tradicional poderiam ter sido incluídas sem um aumento significativo da área total da TI. Atualmente, a forma para contemplar estas áreas seria através da ampliação da terra, entretanto a área de entorno usada para a subsistência das populações indígenas encontra-se ocupada por fazendas, sendo necessária, a

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desapropriação das mesmas e indenização das benfeitorias as quais podem acarretar disputas jurídicas.

TI Moskow: pressões ambientais no entorno A TI Moskow foi homologada em 26/09/2005, estando situada no município de Bonfim - RR, região da Serra da Lua, com uma área de 14014 ha e aproximadamente 300 habitantes da etnia Wapixana. A maior parte da área da TI Moskow abrange uma grande mancha de floresta. Entretanto, a preferência indígena é a de estabelecer moradias no ambiente aberto do Lavrado. As áreas florestais e seus recursos naturais são utilizadas pelas comunidades para a agricultura (implantação de roças), caça, coleta e retirada de madeiras e outros materiais para construção de casas, cercas, etc. As áreas de Lavrado são usadas para a criação de gado (Figura 5). Ao contrário do relatado na TI Boqueirão, grande parte das áreas de uso tradicional dos recursos naturais pelos indígenas foram inseridas nos limites da terra. Apesar disso, a TI Moskow vem sofrendo com os impactos ambientais oriundos de atividades econômicas no entorno da terra. Ao norte da terra a Vila São Francisco corta a grande mancha de mata em que a TI Moskow está inserida. Ao sul, monoculturas de Acácia (Acacia mangium) modificaram o ambiente, promovendo alterações na vegetação e fauna do entorno da terra e os costumes dos indígenas, uma vez que os vigilantes da empresa responsável pelo florestamento do Lavrado impedem o transito dos indígenas para suas áreas tradicionais de pesca.

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Figura 5. Mapa de saída do Sistema Etnográfico de Informação Geográfica – ETNOSIG, demonstrando a distribuição e uso dos recursos naturais, impactos ambientais e outras informações relevantes da Terra Indígena Moskow. De acordo com os indígenas, o monocultivo de Acácia provocou aumento nas populações de abelhas africanizadas, as quais se instalam nos buritizeiros, oferecendo riscos quando os indígenas retiram palha para cobrir suas casas. Há também uma preocupação pelo possível efeito a redução da disponibilidade de água no lençol freático devido ao aumento da evapotranspiração dos plantios. Neste exemplo da TI Moskow, o sensoriamento remoto foi usado para o mapeamento das áreas de plantios de Acácia no Lavrado, permitindo a comparação dessas informações com os relatos dos indígenas sobre a localização das regiões com maior incidência de cobras e abelhas africanizadas. A Figura 6 demonstra o cruzamento das superfícies de densidade de uso (agricultura e caça) calculadas com base nos etnomapas com a cobertura da terra obtida por sensoriamento remoto. É possível verificar a importância das áreas com cobertura florestal nativa para a manutenção das práticas tradicionais do povo Wapixana. A grande mancha de mata nativa, onde a TI Moskow está situada, é utilizada para caça e 20

agricultura. Observa-se também a divisão espacial das práticas tradicionais, onde a região central da mancha de floresta é utilizada para caça enquanto as periferias são usadas para agricultura. A prática tradicional de estabelecer roças nas bordas das manchas de floresta nativa se deve a possibilidade de compatibilizar o uso dos solos florestais (mais produtivos) com a menor distância possível das casas estabelecidas no Lavrado.

Figura 6. Superfícies de densidade do uso tradicional dos recursos naturais (agricultura e caça) na TI Moskow, construídas com uso da função Kernel com raios de busca de 3 km para agricultura e 5 km para caça. Entre outros resultados, a análise demonstra a necessidade de estabelecer diretrizes para que disciplinem o uso e manejo dos recursos naturais no entorno das terras indígenas, criando regras de restrições para empreendimentos que promovam impactos indiretos as comunidades indígenas.

TI Barata Livramento: zoneamento interno de uso dos recursos Situada no município de Bonfim – RR, a TI Barata/Livramento foi homologada em 10/12/2001 com uma área de 12234 há, sendo habitada por cerca de 600 indígenas das etnias Macuxi e Wapixana. Banhada por tributários da margem direita do rio Uraricoera, a TI Barata/Livramento apresenta a maior parte de sua área coberta por Lavrado com pequenas ilhas de florestas e matas de galeria ao longo de seus cursos d’água. Na sua porção sul encerra uma parte de um maciço florestal associado a

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afloramentos de basalto. Na TI há duas comunidades, sendo a maior a Barata e a menor, Livramento, ambas próximas à Vila do Taiano. Durante a reunião de etnomapeamento na Comunidade Barata, foi observado que a comunidade instituiu um zoneamento interno do seu território, definindo uma zona como local para criação de animais (gado e suínos) e outra zona para roças, com o objetivo de evitar que essas criações causem danos aos cultivos. A solução para este problema de incompatibilidade entre criações de animais e roças foi estabelecida em reunião da comunidade, onde esta optou por definir como áreas para criação de animais as partes de Lavrado, com misto de savana e manchas de floresta aberta semidecídua, ao norte e leste da terra, reservando para a agricultura a porção com solos mais férteis, sob áreas de florestas, no sudoeste da TI (Figura 7).

Figura 7. Mapa de saída do Sistema Etnográfico de Informação Geográfica – ETNOSIG, demonstrando a distribuição e uso dos recursos naturais, impactos ambientais e outras informações relevantes da Terra Indígena Barata/Livramento.

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A análise da densidade das áreas de uso (Figura 8) pode ser utilizada para integrar as práticas que vem sendo executadas pelos indígenas para o zoneamento de seu território com outras ferramentas, consolidando o conhecimento tradicional empregado para a gestão de conflitos da destinação das áreas de uso como uma efetiva ferramenta de zoneamento territorial e gestão ambiental.

Figura 8. Superfícies de densidade do uso tradicional dos recursos naturais (criações e agricultura) na TI Barata Livramento com ênfase nas regiões Nordeste (NE) e Sudoeste (SW) da TI construídas a partir do uso da função Kernel com raios de busca de 2 km para criação e 3 km para agricultura. A Tabela 3 apresenta os resultados da quantificação dos percentuais de uso da face Nordeste (NE) e Sudoeste (SW) da TI Barata-Livramento nas atividades tradicionais (criação e agricultura). Os dados demonstram que os indígenas concentram suas atividade de criação (prinipalmente suínocultura) na região Nordeste (NE) da TI, enquanto as atividades de agricultura foram estabelecidas na região Sudoeste (SW) da TI. A iniciativa de separação no espaço destas atividades se deve a incompatibilidade entre elas, tendo em vista a predação das plantações pelos animais.

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Tabela 3. Percentuais de uso da região Nordeste (NE) e Sudoeste (SW) da TI BarataLivramento nas atividades tradicionais de criação e agricultura obtidos a partir da aplicação de análises espaciais (estatísticas zonais das superfícies de densidades de uso tradicional). Uso Tradicional região NE da TI (%) Criação 79,7 Agricultura 0,9

região SW da TI (%) 20,3 99,1

Embora a comunidade Livramento não tenha indicado este mesmo tipo de zoneamento de seu território, ela apresentou outra iniciativa de gestão ambiental, que é a aglomeração das roças individuais em um só trecho de floresta, para facilitar o manejo do fogo e evitar o risco de incêndios florestais a partir da queimada das roças na estação seca. Essa ação foi acordada entre os membros da comunidade, em vista da dificuldade de evitar o alastramento do fogo na mata quando as roças eram iniciativas individuais e dispersas. Uma experiência análoga com a ilustração de um zoneamento interno foi presenciada por um dos autores (Miller), em data posterior ao Levantamento Etnoambiental, durante o etnomapeamento de “ilhas” de mata na TI Araçá (Pinho et al., 2010), em projeto do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA. O mapeamento das ilhas de mata por membros da Comunidade Guariba desta TI revelou que há um zoneamento dessas ilhas, sendo algumas consideradas de “produção”, onde podem ser instaladas roças, e outras, de “preservação”, onde não podem ser feitas roças, visando preservar/conservar os recursos florestais. Esses exemplos demonstram que práticas de gestão territorial e ambiental estão em curso em várias comunidades indígenas. Embora os membros dessas comunidades talvez não tenham conceituado suas práticas dentro desse rótulo, o exercício de etnomapeamento indicou a importância dessa gestão e forneceu informações sobre sua história, contexto, e atores envolvidos. A proposta de aliar o etnomapeamento às ferramentas de SIG poderá fornecer um ponto de partida para embasar e aprofundar as discussões internas das comunidades sobre a gestão territorial/ambiental, bem como facilitar os diálogos com agentes institucionais externos, na medida em que esses possam fornecer apoio técnico, financeiro e político para essa gestão.

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Etnomapeamento e sua interface com políticas públicas para gestão territorial e ambiental de terras indígenas

Ao longo de 2009 e 2010, um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), composto por representantes do movimento indígena e de governo, foi encarregado de elaborar a proposta de uma Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI)1. Essa proposta, na forma de minuta de decreto, foi entregue no final de 2010 e aguarda aprovação final da Casa Civil da Presidência da República. Na concepção do GTI, responsável pela elaboração da PNGATI, a gestão territorial e ambiental de uma terra indígena é o conjunto de domínio político e simbólico do espaço que constitui o território de um povo indígena, englobando os seus saberes tradicionais e suas práticas quanto ao uso dos recursos naturais e da biodiversidade. Este conceito considera ainda a dimensão dos mecanismos, dos processos e das instâncias culturais de decisão relacionados aos acordos de uso e os consensos internos próprios de cada povo, e que são necessários para a busca da sustentabilidade ambiental das terras indígenas. A execução dessa política receberá apoio do Projeto BRA09/G32 - Gestão Ambiental e Territorial Indígena, que combina recursos da Funai, Ministério do Meio Ambiente e TNC, com doação do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF) e apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Este projeto, fruto de longa negociação das organizações indígenas junto ao Governo, tem os seguintes objetivos principais: 

consolidar a contribuição das TIs como áreas essenciais para conservação da diversidade biológica e cultural nos biomas florestais brasileiros



fortalecer as formas étnicas de manejo, uso sustentável e conservação dos recursos naturais nas terras indígenas e a inclusão social desses povos, fomentando assim uma política nacional de gestão ambiental em territórios indígenas. A inserção de etnomapeamento como ferramenta de SIG no Projeto Gestão

Ambiental e Territorial Indígena poderá se dar de várias formas. Entre as possibilidades está o apoio a iniciativas de reflorestamento e recuperação de paisagens e funções

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Grupo de Trabalho Interministerial para Elaboração da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas - Portaria Interministerial nº 276/2008.

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ambientais em Terras Indígenas e áreas de entorno. Iniciativas para o reflorestamento em TIs tem a possibilidade de agregar vários objetivos, tais como geração de renda a partir de sistemas agroflorestais, recuperação de áreas degradadas, proteção de recursos hídricos e re-estabelecimento de corredores de fauna, entre outros. Um número significativo de TIs representam áreas do território tradicional que foram reconquistadas, mas que foram entregues aos índios em estágio avançado de desmatamento e degradação ambiental. Nessas situações o etnomapeamento poderá ser a ferramenta básica para identificar locais prioritários para recuperação ambiental, cruzando informações geográficas oriundas de diversas fontes com os conhecimentos indígenas. Poderá, eventualmente, constituir uma base sólida para a remuneração por serviços ambientais prestados pelas comunidades indígenas. Conclusões e recomendações O etnomapeamento permite visualizar vários temas relevantes à intersecção do meio ambiente e as comunidades indígenas. Os principais temas são: -

Localização dos principais recursos naturais e padrões culturais do seu uso;

-

Limitação do uso tradicional de recursos pelos vizinhos não-índios e invasores;

-

Localização de conflitos e invasões das TIs;

-

Mudanças temporais no uso de recursos e territórios entre gerações;

-

Ocupação espacial das TIs;

-

Localização de áreas prioritárias para recuperação ambiental. As experiências relatadas indicam que o etnomapeamento é uma ferramenta promissora para iniciativas de gestão ambiental e poderá ter um papel importante no diálogo envolvendo comunidades e TIs sobre a gestão de recursos de acesso comum e prevenção e mitigação de impactos ambientais. A integração da geoinformação étnica com outras fontes previamente disponíveis é, portanto, um subsídio importante para efetivar a sustentabilidade ambiental e social das TIs. Atualmente, a criação e o zoneamento das áreas protegidas vêm sendo apoiadas por técnicas complexas de modelagem e análise espacial, considerando diversos fatores, representativos dos meios biológico, físico, econômico e social, cada qual com seu respectivo peso. Para a integração das variáveis uma série de ferramentas vem sendo utilizadas ao longo do mundo, tais como o Marxan, C-Plan, ConsNet, entre outros (Moilanen et al., 2009). A abordagem aqui proposta possibilita a integração do conhecimento tradicional às técnicas de modelagem referidas. Assim como os 26

levantamentos biológicos são prioritários na delimitação de áreas protegidas, os etnomapeamentos (áreas de uso tradicional – caça, pesca, agricultura, extrativismo, recreação, entre outras) devem ser preconizados na delimitação de novas TIs, demandas de ampliação de limites e zoneamento para a gestão ambiental. Para a garantia do diálogo das informações obtidas em mapeamentos participativos com as disponíveis no banco de dados SIG por meio de técnicas de modelagem espacial é preciso que o órgão indigenista reconheça a utilidade, se aproprie da ferramenta e a incorpore em suas rotinas operacionais. É necessário que as demandas que envolvam análise espacial e modelagem em relação às questões indígenas (como criação, ampliação, levantamentos e zoneamentos) sejam formalizadas nos Termos de Referências para contratação destes serviços. Esta estratégia proporcionará um salto de qualidade ao planejamento e gestão de terras indígenas e na valorização do conhecimento tradicional, culminando em uma efetiva contribuição a gestão ambiental e territorial de TIs. Este uso do etnomapeamento insere-se dentro da busca de uma maior autonomia e protagonismo dos povos indígenas nos processos e políticas que os afetam. Ao mesmo tempo, no entanto, reconhecemos que as propostas necessitam de uma capacidade técnica significativa, capacidade esta que poucas organizações indígenas possuem. Isto indica a necessidade de estabelecer parcerias institucionais, mas com objetivos claros, para que as comunidades indígenas não sejam meros fornecedores de informações, mas participantes em igualdade e protagonistas no desenvolvimento de novos arranjos, metodologias e diálogos para a melhoria na gestão das suas terras.

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CITAÇÃO Trancoso, R., Miller, R.P., Goulart, A., Trindade, H., Correia, C.S. EtnoSIGs: Ferramentas para a gestão territorial e ambiental de terras indígenas. In: Paese, A., Uezu, A., Lorini, M.L., Cunha, A., eds. Conservação da biodiversidade com SIG, São Paulo: Oficina de Textos, 2012. cap.7, p.107-124.

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