Etologia da depressão. Contribuição para uma perspectiva evolutiva das emoções sociais e da depressão

November 22, 2017 | Autor: M. Lencastre | Categoria: N/A
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1 [Ethology of depression. Developing an evolutionary perspective on social emotions and depression]", Revista de Saúde Mental , VolXI, nº4: 11 - 24.

ETOLOGIA DA DEPRESSÃO CONTRIBUIÇÃO PARA UMA PERSPECTIVA EVOLUTIVA DAS EMOÇÕES SOCIAIS E DA DEPRESSÃO

ETHOLOGY OF DEPRESSION EVOLUTIONARY PERSPECTIVES ON SOCIAL EMOTIONS AND DEPRESSION

Marina Prieto Afonso Lencastre (Professora Catedrática da UP e contratada na UFP)

Resumo: A etologia da depressão refere a falência de comportamentos hierárquicos e a persistência de sub-rotinas de derrota que se correlacionam com o humor típico da depressão. O presente artigo desenvolve a perspectiva evolutiva aplicada à depressão, ilustrando-a através da análise de aspectos da biologia comparada do comportamento e da apresentação de cinco casos clínicos. Palavras-chave: etologia, depressão, evolução, hierarquias, perda.

Summary: ethology of depression refers to unsuccessful hierarchical behaviour and the persistence of yielding sub-routines which correlate with the typical mood of depression. The paper develops an evolutionary perspective on depression, analysing some aspects of the biology of behaviour and illustrating it by five clinical cases. Key-words: ethology, depression, evolution, hierarchy, loss.

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I. Introdução O interesse da psicologia clínica pela perspectiva evolucionista [1,2,3,4,5] assim como as crescentes evidências de que os primatas e outros animais não humanos possuem uma vida emocional em muitos aspectos semelhante à humana [6,7,8,9,10,11] reforçam a ideia de que aspectos importantes das emoções sociais humanas poderão ser melhor compreendidas à luz da sua história selectiva e da sua função. Assim, aos estudos proximais sobre a causalidade biopsicológica das emoções [12,13,14] acresce o estudo sobre as suas causas distais, i. e., aquelas que permitem uma apreensão ecológica e etológica das emoções. Por outro lado, a aceitação de que uma parte da linguagem humana se apoia em experiências emocionais cinestésicas (ligadas à forma do movimento) e sinestésicas (experiências sensoriais plurimodais) conotativas, i. e., susceptíveis de serem referidas à experiência subjectiva do corpo próprio, converge com a perspectiva hermenêutica da clínica e contribui para uma abordagem etológica do comportamento verbal na psicoterapia. A articulação entre ciências biológicas e humanas permite evitar as derivas funcionalistas do corpo [15] e também limitar o excesso interpretativo da subjectividade. Nesse sentido, a perspectiva evolutiva sobre as emoções e os comportamentos sociais permite utilizar as observações de aspectos homológicos dos comportamentos animais e humanos e alargar a nossa compreensão das patologias deles derivadas. Por sua vez, a psicologia clínica de tipo interpretativo poderá ganhar em objectividade e estrutura porque, associada à etologia do comportamento expressivo, poderá tornar verificáveis algumas hipóteses sobre o comportamento e a dinâmica mental relacionada. A percepção, as atitudes expressivas, a execução de movimentos funcionais e os processos fisiológicos subjacentes podem ser encarados como actos intencionais actuais, e não só como acontecimentos darwinianos de natureza causal. A selecção darwiniana opera depois dos movimentos expressivos serem agidos, e mesmo quando nos encontramos face a padrões comportamentais estabilizados pela evolução, é o seu significado actual que decide sobre a sua vantagem selectiva, na vida do sujeito. A

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intencionalidade é uma modalidade etológica e existencial, e a linguagem serve para codificar essa experiência a um nível social abstracto, onde a narrativa aparece como caracterizando o seu carácter dinâmico e sintético. Uma vez que o eu dos narradores emerge à medida que as histórias vão sendo contadas [13] e que estas se inscrevem em contextos sémio-pragmáticos [16,17] próprios às culturas, é de esperar que estas últimas apresentem graus de adequação selectiva diversos às questões que são narradas. É de esperar também que a psicoterapia actue a partir delas, tendo como objectivo uma adaptação da intencionalidade etológica aos contextos de vida actual, à mobilidade e carácter artificial das ecologias contemporâneas, assim como à diversidade cultural e social crescentes. A etologia da depressão refere consistentemente a falência de comportamentos hierárquicos e a persistência de sub-rotinas de derrota que se correlacionam com o humor típico da depressão. A vinculação, a territorialidade, o estatuto e a sexualidade, que são elementos fulcrais da vida individual, tanto em animais humanos como em animais não humanos, parecem ligar-se a estratégias involuntárias de derrota (EID) destes aspectos, apontando para a sua centralidade nos estados depressivos [18]. Estes comportamentos são reconhecíveis através da dinâmica comportamental e mental nos diferentes contextos culturais concretos em que se actualizam, e a linguagem codifica-os e comunica-os de forma expressiva. A perspectiva evolutiva sobre os comportamentos e as emoções dos animais sociais ajuda a melhor compreender a função e o significado adaptativo dos comportamentos depressivos, ajudando também a melhor agir sobre a sua modificação. A abordagem etológica da depressão apoia-se sobre a articulação das causas próximas e das razões distantes; as causas próximas são relativas às alterações neurobiológicas e neuropsicológicas subjacentes aos estados de humor, cognição e acção, que tenderão a ser percebidos como dolorosos pela pessoa, no seu contexto de vida. Alguns poderão ser activamente modificados pela psicoterapia. As razões distantes são relativas às condições e modos como esses comportamentos se fixaram no reportório fisiomotor humano: quais os contextos selectivos em que adquiriram significado? Esses significados ainda permanecem válidos? Em que contextos será possível reverter ou reorientar uma função que, como a depressão, implica grande sofrimento? A submissão e o apaziguamento são comportamentos sociais vitais sem os quais a vida em comum seria impossível. Manifestam uma estratégia de de-escalada

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[19] em que as possibilidades de ganhar se reduzem, mas em que o perigo de perder e de ser magoado se reduz também. Compreender que a esta adaptação pode igualmente corresponder uma disfunção, dependendo dos contextos internos e externos, e da intensidade com que a mesma se actualiza, poderá ser uma grande ajuda para a terapia. Esta é a perspectiva da eco-etologia dos comportamentos cujo conhecimento apresenta, como veremos, uma importância crescente para a correlação entre os modos de vida e a psicopatologia. Os parágrafos seguintes tratarão de algumas das razões distantes e também de algumas causas próximas da etologia das emoções sociais, e da depressão. Constituirão uma biogramática sobre a qual será entendido o comportamento verbal no contexto da psicoterapia

II. A psicopatologia evolutiva e o significado de uma perspectiva etológica das emoções sociais para a compreensão da depressão

1. Psicopatologia evolutiva A primeira tentativa de radicar a psicopatologia humana numa perspectiva biológica e filogenética foi efectuada por Freud no fim do século XIX [4], que partiu da convicção de que psicanálise deveria ser mais uma entre as ciências da natureza. Sem abandonar inteiramente esta ideia, Freud converteu-se progressivamente a uma concepção psicológica do funcionamento mental e para isso contribuíram as ideias demasiado organicistas da biologia da época, assim como as suas próprias teorias derivadas da evolução e que Freud traduziu nas fases de desenvolvimento psicossexual [20]1. A inexistência de dados etológicos, e a identificação genérica que Freud fez de 3 grandes pulsões organizadoras da vida mental e social, afastaram-no de uma concepção verdadeiramente selectiva da evolução, que viria a ser desenvolvida mais tarde. Permanece, no entanto, a importância que atribuiu à actividade mental enquanto trabalho sobre as pulsões como forças somato-psíquicas tendendo para um objecto; as suas intuições sobre o parentesco entre o sonho, o pensamento, a sublimação criativa e a psicopatologia permanecem uma das grandes descobertas da metapsicologia. 1

Freud baseou-se na teoria da recapitulação de Haeckel que Fliess aplicou à sexualidade infantil, considerando que esta constituiria a reprodução ontogenética das fases filogenéticas da evolução humana.

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A ideia que Freud apresentou mas não desenvolveu sobre a filogénese do psiquismo viria a ser ampliada por C. G. Jung, um dos discípulos dissidentes, que propôs uma ideia de memória críptica inconsciente, designando-a de inconsciente colectivo, onde radicariam as grandes estruturas motivacionais do comportamento humano. A principal contribuição de Jung consiste na transformação da pulsão somato-psíquica individual de Freud, num tipo de força motivacional estruturada por emoções associadas a códigos imagéticos universais inatos, que orientariam a experiência individual. Assim, as experiências individuais seriam marcadas por uma memória biocultural que organizaria a experiência emocional e cognitiva precoce e tardia. A herança filogenética não seria portanto unicamente etológica, no sentido em que aparece geralmente tratada na etologia humana e também em alguma psicologia evolucionista, mas a herança seria biopsicológica, i. e., conteria formas mentais estruturando a personalidade e também o sistema intencional. Esta organização críptica da mente foi reconhecida por outros autores: Lumsden e Wilson falam de regras epigenéticas orientando as vias de desenvolvimento da mente, Gilbert chama-lhes padrões de respostas biopsicológicas, Gardner refere-se a programas, Buss fala em mecanismos psicológicos evoluídos, Nesse refere-se a tendências preparadas, Stevens fala de estruturas arquetípicas … [4]. Para estes autores, a mente nasce já organizada por padrões psicobiológicos que intencionalizam a acção e o pensamento, articulando-os epigeneticamente com a experiência. Acrescentam à orientação formal da pulsão (a sua cinestesia, o seu movimento numa dada direcção) um conteúdo imagético que será marcado pela cultura (ver adiante). Um exemplo deste tipo de organização críptica da mente é já reconhecível nos primatas: experiências feitas com macacos em laboratório mostraram que estes animais discriminam o medo de cobras de outros medos apresentados artificialmente por congéneres, como por exemplo medo de flores, e que fixam este medo para sempre. O medo de cobras precisa de ser visto antes de se tornar um estímulo negativo; permanecerá para sempre um estímulo negativo e não será susceptível de condicionamento positivo. Um tipo de hereditariedade da experiência aparece actualmente como possibilidade nos trabalhos sobre epigenética familiar humana. Estes trabalhos sobre hereditariedade apontam para a possibilidade de que a experiência dos nossos antepassados possa ter ficado gravada no lote genético que é transmitido, através de mecanismos de activação/silenciamento de genes [21]. Assim, sem abandonar a visão darwiniana da

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selecção, a epigenética actual parece permitir que as experiências de vida afectem os genes através de sistemas de controle que causam efeitos herdáveis. Estas unidades neuropsicológicas – ou engramas - permitem compreender a actividade mental não só a partir da actividade fisio-motora (a sua cinestesia) mas também dos esquemas sinestésicos da experiência mental (entradas plurissensoriais traduzidos em imagens) que lhe estão associadas. Estes esquemas correspondem à experiência que o corpo, vivendo numa dada ecologia e cultura, inscreve na mente. Será a partir dessa esquematização original que a mente constrói as imagens simbólicas, baseando-se na percepção e no movimento. Tendo em conta a hereditariedade actualmente consensual dos padrões comportamentais amplamente descritos pela etologia humana, não é de espantar que a eles se associem padrões emocionais e talvez conjuntos de esquemas imagéticos –os engramas - derivados da, e em, actividade neuropsicológica. Assim, estas unidades neuropsicológicas evoluíram através da selecção natural e sexual do corpo e da mente, e apresentam uma dinâmica sensitiva, motora e mental associada. Na história da arte humana, eles são reconhecíveis nas primeiras actividades expressivas inteiramente humanas, como as pinturas rupestres mais antigas (cerca de 35 000 anos b.p.). Segundo Jean Clottes (1998) essas figuras são já prefigurações mitológicas, porque derivam da actividade em que o imaginário, a arte e o sagrado (xamânico) se encontram unidos numa narrativa arcaica. Não é portanto de espantar que as diversas culturas humanas, e a nossa em particular, estruture uma boa parte da sua vida social e das suas ideias em símbolos cujo valor narrativo e emocional é óbvio.

Eles

contribuem

reconhecivelmente

para

a

organização

dos

nossos

comportamentos e significados colectivos. As ideias de feminino e masculino, de procriação e parentesco, de estatuto e valor, são disso exemplo2. Para Stevens (2000), as unidades neuropsicológicas não se limitam a estabelecer padrões de correlação entre a actividade motora, neuronal e mental; elas são dinâmicas e estão na origem de traços motivacionais humanos que procuram actualizar-se através das

experiências de

vida

específicas,

corporal

e mentalmente:

vinculação,

desenvolvimento, reprodução, estatuto…3 A psicopatologia surge quando os recursos do meio não permitem essa actualização (ausência de figura de vinculação, de segurança, de parceiros, de valor social …). Assim, a ontogénese desenrola-se segundo percursos 2

Estas unidades neuropsicológicas estão sujeitas em permanência a processos de desenvolvimento epigenético e de selecção cultural e natural. Estes processos são particularmente visíveis na nossa cultura cosmopolita e aberta, ao contrário do que se passa com as culturas tradicionais. 3 Consultar Eibl Eibesfeld, 1989.

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epigenéticos estabelecidos pela selecção natural e sexual que regulam os limites da experiência. Segundo as hipóteses da psicopatologia evolutiva, a doença ocorre quando esses limites são ultrapassados (por exemplo na síndrome paranóide ou síndrome bipolar) quando o meio não responde às necessidades (por exemplo na obsessãocompulsão), quando há efeitos laterais de genes adaptativos no estado heterozigótico (por exemplo na esquizofrenia), quando existem diferenças na composição do cariótipo (por exemplo na depressão)4.

2. Depressão e etologia das emoções sociais Compreender a depressão à luz da evolução das emoções sociais significa inseri-la num contexto selectivo e adaptativo em que adquiriu uma funcionalidade específica. Para tanto, teremos que recordar alguns aspectos homólogos da etologia social dos primatas e outros animais não humanos, nas suas componentes evolutiva, genética, ecológica e expressiva. É nesse contexto que os variados aspectos do comportamento depressivo poderão ser articulados, e entendido o significado que apresentam para a pessoa deprimida. A primatologia mais recente [22,8] mostra como é intrincada a manifestação de comportamentos diferentes num indivíduo, e como é complexa a teia de relações sociais entre os primatas, particularmente entre os chimpanzés (Pan troglodytes, Pan paniscus), que são os animais mais estudados porque constituem a espécie mais próxima do ser humano (partilhamos com eles cerca de 99% dos genes, mais do que chimpanzés ou humanos partilham com outros primatas). É interessante observar o modo como convivem, no seio de sociedades simultaneamente conservadoras e inovadoras, comportamentos de agressão e comportamentos de reconciliação, comportamentos de dominância e comportamentos de protecção, alianças e rivalidades, compaixão e indiferença, medo e ousadia, amizades e inimizades, monogamia temporária e poligamia, estilos de dominância feminina e estilos de dominância masculina. 4

A síndrome paranóide corresponderia a um excesso do comportamento de vigilância típico das espécies sociais. A componente motora e mental do comportamento obsessivo-complusivo poderia derivar do mecanismo de ritualização de sinais sociais, mágicos e rituais, que são adaptativos nos grupos individualizados. O tipo esquizóide parece apresentar características carismáticas que são adaptativas em alturas de divisão do grupo. A depressão poderia estar ligada às variações polimórficas do cromossoma responsável pela quantidade de serotonina no cérebro [4].

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Já F. de Waal (1992, 1996) tinha observado certos aspectos da vida social do chimpanzé comum e do chimpanzé pigmeu que o levou até à conclusão de que estas espécies animais apresentavam padrões sociais muito próximos dos nossos, nomeadamente a capacidade de estabelecer alianças com o objectivo de aumentar o poder e a influência junto de grupo, até à existência de verdadeiras amizades, por vezes durante toda a vida dos animais. Um dos aspectos notórios dos animais deprimidos, assim como da depressão humana, consiste na retirada da vida social e na incapacidade de estabelecer alianças produtivas em termos das vantagens individuais que delas decorreriam. Além deste aspecto, os primatas não humanos apresentam graus de empatia social reconhecíveis a partir de comportamentos instrumentalizando o social, e que pressupõem o reconhecimento das intenções cognitivas dos outros. Comportamentos de entreajuda em situações de aflição, de tratamento especial aos animais feridos ou deficientes, comportamentos agressivos entre familiares na sequência de acções prejudicando outros familiares, são exemplos conjugados de empatia e de simpatia que apresentam um reconhecido valor social ao nível humano. Estes animais possuiriam aquilo a que os autores chamam a possibilidade de elaborar uma teoria da mente (theory of mind) dos congéneres [23]. Este aspecto, que é claramente um traço do comportamento humano, aparece como um benefício secundário para a pessoa ou o animal deprimido: reconhecido como incapaz de levar a cabo as tarefas necessárias à integração grupal, e mostrando níveis baixos de agressividade, poderão ser mais prontamente ajudados pelos outros membros do grupo (familiares, amigos …). Por outro lado, mantêm a ordem do grupo social e diminuem as possibilidades de serem ostracizados. Esta poderá ser a razão pela qual a expressão deprimida parece apresentarse sob forma ritualizada, i.e., facilmente reconhecível e consistindo num estímulo-sinal poderoso para a motivação de ajuda (ver adiante). De facto, o comportamento de consolo é muito comum entre os primatas humanos e não humanos. Depois de uma luta envolvendo um número apreciável de animais, que se organizam em função das afinidades familiares, sociais e políticas, os chimpanzés comuns (Pan troglodytes) por exemplo, manifestam uma irresistível atracção

para

a

reconciliação,

abraçando-se,

tocando-se

e

espiolhando-se

demoradamente. A sua procura de contacto e de segurança acompanha-se de uma série de expressões típicas, fortemente homológicas com expressões humanas nas mesmas

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circunstâncias e que parecem contribuir para a integração grupal e evitar o isolamento e a depressão social. A ausência destes tipos de comportamentos sociais nas nossas sociedades anónimas de milhões pode contribuir para um aumento significativo da depressão, o que parece estar demonstrado pelos estudos epidemiológicos em meio urbano [24]. Sabemos também que o comportamento territorial e a definição de hierarquias corresponde a um traço filogenético comum aos primatas sociais e que a falência destes sistemas sociais, associada a um deficiente sentido de vinculação aos outros, na definição do estatuto (exterior ou interior), pode ter efeitos negativos sobre a autopercepção e sobre o humor. A depressão pode expressar-se através da postura, ritmo, linguagem e implicar um afastamento importante da vida social, gerando uma crescente diminuição dos actos motores, mentais e de linguagem. A hipótese evolutiva sobre a depressão aceita que estes comportamentos e as emoções a eles associadas poderão corresponder a uma adaptação a uma vida social dificultada pelo diminuição do sentimento de vinculação, do estatuto e do prestígio social (real ou sentido). A hipótese evolutiva obre as emoções sociais permite-nos compreender também que estas são válidas e confirmadas na sua realidade social no seio dos pequenos grupos individualizados em que evoluíram. A vergonha, o embaraço, o receio do ridículo e da humilhação são sentimentos sociais adaptados a contextos em que o indivíduo e a sua acção são reconhecidos enquanto tais, estimados, rejeitados ou até eventualmente temidos. A rejeição social gera os sentimentos típicos da depressão. No ser humano, estes comportamentos complexificam-se e elaboram-se socialmente, adquirindo um estatuto próprio a partir dos registos da linguagem simbólica na origem dos códigos sociais sujeitos, por sua vez, à permanente intencionalidade e reflexividade da linguagem. Neste contexto, será bom notar que não é possível passar, de modo linear, da descrição biológica do comportamento, para uma intervenção eficaz, seja na psicoterapia ou em qualquer outra modalidade médica e/ou psicológica. A relação entre comportamento, percepção subjectiva (consciente) e expressão pela linguagem não é de modo nenhum uma relação linear (ver adiante). .

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III.Elementos para uma etologia da depressão

1. Sistemas filogenéticos de organização social e da depressão A etologia associada à psicologia comparada clarificou um número importante de questões relativas aos comportamentos animais, e tem também ajudado a interpretar alguns comportamentos humanos em contextos específicos como a psiquiatria [25,26,1,19,3,5]. A hipótese central de que o comportamento partilha elementos comuns em diferentes espécies aparentadas, e de que a ele estão associados padrões emocionais semelhantes, permite ligar a compreensão que temos sobre os comportamentos sociais em animais não humanos próximos de nós, à interpretação e codificação cultural que geralmente aprendemos a fazer dos nossos comportamentos e dos comportamentos dos nossos semelhantes. Esta abordagem ajuda também a compreender como diferentes culturas codificam e lidam com o comportamento normal e desviante, fundando biologicamente a etnopsiquiatria, que se interessa pelos modelos culturais de interpretação e de intervenção na patologia mental. O estudo comparado dos animais sociais mostra que viver em grupos traz vantagens como a defesa conjunta contra predadores, a cooperação nos cuidados com a prole, a alimentação conjunta e o acesso organizado aos recursos territoriais e reprodutivos. Quando os animais vivem em grupo, estabelecem entre si algum tipo de hierarquia. A hierarquia consiste, entre outros factores, numa estruturação das relações de competição entre os indivíduos permitindo a definição dos papéis e estatutos através do sistema de dominância. Este último resulta dos encontros agonísticos entre os membros; a hierarquia hedonista consiste na definição da dominância através das relações de cooperação. A dominância implica, a par dos privilégios, algumas obrigações reguladoras e defensoras como a condução do grupo, a sua vigilância e protecção, e a prioridade nos comportamentos de ataque defensivo ou ofensivo. Este último caso é particularmente importante na predação ou defesa contra os predadores, em que os indivíduos mais fortes terão um papel mais activo. O carácter fundamental da agressão como regulador eco-social, nomeadamente no que respeita à distribuição dos recursos e controle populacional [27], tornou-a num traço de comportamento próprio à espécie e transmissível geneticamente. Do mesmo modo, os mecanismos tendentes à redução da motivação agressiva inscreveram-se igualmente como traços genéticos que estão presentes em todos os indivíduos da espécie. Assim, os mal-entendidos resultantes

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de uma informação ambígua não aparecem no seio da situação de agressão, evitando deste

modo

estragos

importantes

resultando

da

activação

desordenada

de

comportamentos sem valor funcional. A observação de um grupo de primatas organizado segundo o esquema da dominância revela que os congéneres subalternos apresentam vantagens reprodutivas directamente ligadas ao facto de os animais estarem isentos das lutas pelo poder. Com efeito, menos ocupados em defenderem uma posição hierárquica disputada, terão mais oportunidades de copular, procriar e contribuir desse modo para o equilíbrio polimórfico da população. Os indivíduos mais agressivos, que são os que regulam as actividades sociais através dos efeitos de dominância, são também aqueles que estão mais frequentemente expostos, apresentando alto risco de ferimento e de morte. Assim, os animais mais dotados do ponto de vista biológico terão uma elevada probabilidade de procriar, facilitando também a procriação dos animais estabilizados a um nível inferior. Para Sloman [18] a estratégia involuntária de derrota (EID)5 apresentada pelos animais não humanos e humanos evoluiu como forma de estabilização das hierarquias nas sociedades de primatas, permitindo a diminuição dos níveis de agressão. Esta estratégia é automática e provocada pelo medo de perder um combate; apresenta, na sua forma evoluída, muitos dos sinais neurofisiológicos adaptados à situação social em que evoluiu6, nomeadamente os seus correlatos serotoninérgicos. De facto, há um conjunto importante de trabalhos que mostram que a serotonina tem um papel importante em vários níveis do processo social de estabelecimento da hierarquia. A relação dominantedominado acompanha-se, nos animais dominantes, de um aumento significativo da reacção à serotonina pelos neurónios implicados no comportamento agressivo. Este circuito neuroetológico é bastante antigo: a estrutura química do sistema nervoso da lagosta, por exemplo, modifica-se em função da sua posição social, com aumento dos receptores à serotonina no animal dominante. Modificações no estatuto social pode afectar os níveis de serotonina; no macaco rhesus, os machos dominantes que foram experimentalmente privados dos gestos submissivos dos animais subalternos exibiram uma redução marcada dos níveis de serotonina no sangue e baixaram de estatuto social. [28]. De facto, sabemos que os níveis de serotonina são afectados pela dominância [29]. 5

IDS Involuntary Defeat Strategy no original Estes sinais correspondem genericamente ao que na literatura é descrito como o sistema luta-fuga mas que na descrição EID aparecem inseridos na situação etológica mais completa. Ver Sloman, 2000 para uma descrição desta reacção. 6

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Numa experiência com macacos vervet, estes autores mostraram que os receptores 5 HT são mais numerosos nos macacos dominantes do que nos subordinados. Se se removerem os machos dominantes do grupo, muda a hierarquia e os novos dominantes aumentarão a quantidade de 5-HT. A reintrodução dos antigos dominantes provoca o restauro dos níveis originais de 5-HT e também o restauro da hierarquia original. O mesmo resultado parece aplicar-se aos humanos sob stress. A associação de níveis elevados de serotonina ao humor positivo e à dominância social reforça a ideia de que a depressão corresponde a uma adaptação à derrota e à perda de estatuto, que se acompanha dos correlatos neurofisiológicos, como a diminuição da serotonina, típica dos estados depressivos. A serotonina parece ter um papel importante na afiliação social e na redução da agressão ao controlar os impulsos e ao promover um comportamento social mais competente [30]. O tratamento farmacológico que aumenta a serotonina cerebral pode aumentar a frequência de interacções sociais positivas e ter um efeito positivo sobre o estatuto social, e o inverso é verdade se se reduzirem os níveis cerebrais de serotonina (Ibidem). Estudos recentes apontam para a ideia de que a quantidade de serotonina corresponde a um traço polimórfico nas populações humanas e, portanto, que a reactividade social às adversidades e a procura de sucesso serão diversas e tenderão a correlacionar-se com estilos de personalidade social. Nielsen et al [31] por exemplo mostraram que um polimorfismo particular do gene triptofano hidroxilase pode associar-se a baixos níveis de serotonina e a depressão nos humanos. Estes resultados apontam para a importância dos trabalhos sobre polimorfismo e epidemiologia evolutiva [32], mostrando como traços evoluídos do comportamento podem afectar o funcionamento dos indivíduos sociais em ecologias modificadas.

2. Polimorfismo genético e depressão Sabe-se hoje que a eliminação dos genes desvantajosos e a fixação dos genes vantajosos, resultando em fenótipos adaptados, deve ser abandonada e ceder lugar à ideia de equilíbrio polimórfico mais ou menos estável. É sobretudo a Th.Dobzhansky [33] e à sua escola que se deve o conhecimento da relação entre as variações espaciais e temporais do meio e as deslocações concomitantes dos equilíbrios polimórficos do pool genético da população. A medicina darwiniana reconheceu, por sua vez, a importância

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da mutações fundadoras que, apesar de apresentarem efeitos deletérios na sua forma monozigótica, apresentam vantagens selectivas apreciáveis na sua forma heterozigótica. É o caso da mutação do gene HFE que codifica simultaneamente para um excesso de ferro no organismo, mas também para uma resistência acrescida à anemia. Esta mutação permitiu uma migração bem sucedida do norte para o sul da Europa. Outro exemplo é a mutação do gene CFTR que codifica para a fibrose cística mas também para a protecção contra a diarreia. Um outro exemplo ainda consiste na mutação do gene LCT que está na

origem

da

tolerância

à lactose e portanto ao consumo de leite de animais domésticos. Conhecemos bem os benefícios nutricionais desta mutação e como contribuiu para a diminuição da malnutrição infantil. Por fim, um ultimo exemplo de mutação fundadora é a mutação do gene ABCC11 que codifica para a secura da cera do ouvido mas também para uma menor transpiração, que é benéfica nos países quentes e secos [34]. Os vertebrados heterozigóticos apresentam uma plasticidade adaptativa superior aos que resultam de linhagens consanguíneas, e este vigor poligénico desaparece quando os mesmos animais se cruzam sucessivamente com gerações de parentes. Sendo o polimorfismo um factor prioritário na plasticidade adaptativa das populações, o comportamento sexual surge como factor de orientação polimórfica, ao mesmo tempo que situa os variantes no interior dos limites necessários à sobrevivência7. Isto significa que os indivíduos das populações sujeitas a variações do meio apresentarão, em função das necessidades externas, variantes com valor adaptativo mais elevado. Assim, o polimorfismo individual ou populacional contribui para uma maior adaptabilidade e esta característica genética contribui para que os indivíduos de uma população sejam todos diferentes e portanto apresentem padrões de comportamento e perfis emocionais diversos. Esta diversidade está na origem da ideia de personalidade-base animal e humana. Será portanto de esperar que os indivíduos apresentem diversas reacções aos desafios sociais e a depressão poderá ser uma dessas reacções: face a situações sociais demasiado exigentes, o indivíduo tenderá a retirar-se delas para um local seguro mas, no caso de ficar preso entre duas situações igualmente desvalorizantes (entrapment [2]), tenderá a desenvolver o conjunto de padrões expressivos da depressão. De facto, apesar 7

Trabalhos realizados por C. Petit sobre a Drosophila na década de 1970 mostraram que as fêmeas apresentam uma preferência sexual pelos machos geneticamente de tipo raro, contribuindo deste modo para o equilíbrio polimórfico da população.

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da depressão constituir uma capacidade humana universal, certos indivíduos parecem mais vulneráveis aos episódios depressivos do que outros [35]. À genética acresce a história familiar, as experiências precoces de vinculação, o desenvolvimento da personalidade, os acontecimentos de vida, que tornam a vulnerabilidade à depressão uma condição de grande complexidade causal, próxima e distante. Segundo os resultados de Caspi e de outros autores, a depressão torna-se mais provável se à genética forem acrescentados os maus tratos na infância; na ausência destes últimos, a genética só, não é preditora de depressão. No entanto, o seu carácter universal e adaptativo aponta para componentes genéticos polimórficos (Ibidem) que definirão a maior ou menor susceptibilidade individual aos acontecimentos de vida. A depressão tende a ser adaptativa no caso da situação social ser realmente difícil de suportar: a pessoa deprimida fica incapaz de responder às exigências sociais e geralmente provoca nos outros a necessidade de a ajudar. De facto, alguns dos sinais emitidos pelas pessoas deprimidas correspondem a infantilismos de carácter etológico precoce, como a dependência alimentar, a necessidade de protecção e a provocação de estimulação fisiológica e comportamental. É provável que estes sinais tenham evoluído no contexto social da depressão como movimentos re-semantizados do comportamento de dependência infantil (ver adiante). Como o polimorfismo genético tende a ser fomentado através do comportamento, nomeadamente através do comportamento sexual que se encontra directamente ligado à função de reprodução, é de esperar que a depressividade tenha uma componente genética que se exprime polimorficamente. De facto, este traço comportamental poderá ser transmitido pelo próprio ou por colaterais à pessoa deprimida. Esta característica aparentemente contra-selectiva do comportamento deixa entrever a complexidade e a persistência dos factores intervindo no fenómeno da diversificação genética e da adaptação populacional. Levanta igualmente a questão da terapia genética no contexto da relação entre polimorfismo e ecologia.

3. Ecologia, comportamento territorial e depressão A escolha activa das condições ecológicas (microclimas, regime alimentar, etc.) mais adequadas a um ou outro tipo de variante no interior de uma espécie, parece igualmente ser suportada por trabalhos realizados sobre os animais, mostrando que a

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taxa de heterozigotia difere nas populações segundo as condições ecológicas. Um meio heterogéneo tende a favorecer a variedade genética, um meio homogéneo tende a seleccionar tipos médios, um meio condicionado tende a deslocar a população para os tipos dominantes. A ligação entre polimorfismo populacional e ecologia pode ser compreendida do ponto de vista do comportamento social e da partilha do espaço. Os trabalhos de Christen na década de 70 sobre pequenos roedores da América do Norte mostraram que estes animais vivem em grupos organizados sob o modo das relações hierárquicas de dominância; num grupo com menor sofisticação social do que o grupo de primatas e, portanto, com menos estratégias sociais para aceder aos recursos, este facto poderia levar à estabilização genética da espécie: seriam os animais dominantes quem beneficiaria das vantagens oferecidas pelo espaço vital. Por conseguinte, os dominantes tornar-se-iam nos reprodutores mais eficazes e aumentariam a sua contribuição para o pool genético. Este ficaria mais homogéneo, porque se veria caracterizado pelos genes da linhagem dominante e o polimorfismo seria drasticamente reduzido por razões ecológicas. No entanto, nos roedores, esta influência conservadora da dominância social parece ser mais do que neutralizada pelas consequências que arrasta para os indivíduos subordinados: sendo expulsos para as regiões periféricas do espaço ocupado, serão obrigados a emigrar para outras zonas da área de repartição da espécie. Poderão colonizar novos nichos, e formar o ponto de partida para um novo processo de diversificação. Assim, a organização social fundada na dominância, poderá originar um novo grupo funcional através do processo de marginalização. Este mesmo processo é válido para os primatas, nomeadamente os chimpanzés, que apresentam um conjunto de dinâmicas sociais homólogas com os dados exogâmicos da antropologia. A dinâmica sócio-sexual dos chimpanzés comuns e dos chimpanzés pigmeu leva à emigração das fêmeas para outros grupos reprodutivos [36], evitando deste modo a endogamia e promovendo a diversidade. Nos chimpanzés, o processo de marginalização e de fundação de um novo grupo acontece quando o grupo original atinge um tamanho acima do normal para essa espécie. De facto, o tamanho do grupo social é constante e parece relacionar-se com a capacidade de organização social fundada na dominância e no reconhecimento individual da hierarquia. A percepção das relações sociais é muito clara nestes animais que conhecem as redes de parentesco assim como o lugar ocupado por cada animal na hierarquia social. F. de Waal [7,8] observou que muitos aspectos da vida social do chimpanzé comum e do chimpanzé

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pigmeu correspondem a padrões sociais muito próximos dos nossos, nomeadamente a capacidade de estabelecer alianças com o objectivo de aumentar o poder e a influência junto de grupo, até à existência de amizades. Este facto poderá explicar a razão pela qual a perda de figuras de vinculação principais, assim como a perda de estatuto, consiste num acontecimento tão dramático, tanto para chimpanzés como para humanos. Uma das evidências mais unânimes na literatura de inspiração etológica na explicação da depressão consiste na incapacidade que o indivíduo deprimido demonstra de se afirmar face a uma ordem social onde perdeu estatuto (real ou percebido), não consegue fazer valer a sua influência e/ou vê o seu prestígio ameaçado – e, portanto, diminuída ou eliminada a sua capacidade para aceder a recursos. Esta observação é válida para os animais humanos e não humanos. Outra das observações consiste em mostrar que a depressão ocorre com grande probabilidade quando o indivíduo não consegue escapar da situação que o põe em perigo, quando ele se encontra «encarcerado» [2], preso entre duas ou mais possibilidades onde, de qualquer modo, sairá perdedor. Nos humanos, esta perda e esta prisão poderão ser reais ou percebidas, serem actuais ou uma reminiscência de perda reactualizada. Uma das características da pessoa deprimida é a ausência de territorialidade (a pessoa tende a encerrar-se e a ocupar o espaço mais pequeno possível) e também a baixa ou cessação da actividade sexual. Sexualidade e território, que se encontram intimamente ligados nos animais parentais, são a condição indispensável à reprodução. Numa situação social em que o indivíduo está privado de recursos e de probabilidade de os vir a possuir, é desejável que cesse a actividade procriadora; numa situação em que o indivíduo percebe essa privação como uma diminuição de estatuto face ao grupo social, tenderá a ficar deprimido. Este é particularmente o caso dos humanos, mas não é de excluir que a «vergonha social» ocorra em todos os animais susceptíveis de empatia social e de algum tipo de percepção sobre a dinâmica inter-individual [8,11]. Nos animais sociais o baixo estatuto pode acompanhar-se de ansiedade social [37], sobretudo se o animal pretender aceder à reprodução. Uma das observações interessantes da depressão nos humanos é que ela se faz acompanhar frequentemente de forte ansiedade e também de uma incapacidade de abandonar o desejo de alcançar o objectivo perdido (a ambivalência típica da depressão e que foi amplamente demonstrada pelos trabalhos em psicodinâmica). Esta perseveração das pessoas deprimidas, que muitas vezes espanta os terapeutas e que poderá dar origem a inesperados episódios agressivos, poderá ser

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tornada clara na psicoterapia e conduzida à razão evolutiva da depressão: uma percepção da perda que não é aceite8 e, também, o reconhecimento de que a «colonização» de novos territórios familiares, profissionais ou mentais valorizados, minimizarão o impacto da perda. Uma perspectiva ecológica sobre a depressão permite assim compreender que a pessoa se encontra numa situação espacial, interna ou externa, que é constritora e que ele não aceita.

6. Semantização e neurofisiologia: a semântica evolutiva da depressão Um dos aspectos mais interessantes descobertos pela etologia consiste na identificação de movimentos expressivos que indicam os estados motivacionais do animal e são preditivos relativamente aos padrões mais complexos de comportamento que a eles se associam. Outro aspecto interessante desta descoberta reside no facto dos movimentos expressivos dependerem do estado orgânico e se terem estabilizado no seio da comunicação intra-específica e, para certos aspectos mais gerais, na comunicação inter-específica, através da selecção sexual e social. Por outras palavras, é o significado atribuído pelo receptor que estabiliza como sinal social o estímulo enviado pelo emissor que, por sua vez, depende do estado orgânico, i. e., da sua neurofisiologia. Podemos portanto dizer que os estados neurofisiológicos portadores de efeitos à distância, sejam eles visuais, olfactivos, auditivos ou outros, se transformaram em sinais através da actividade de semantização operada pela reacção selectiva do receptor e pelo sucesso da comunicação. Assim, quando o peixe Gasterosteus aculeatus (esgana gata de 3 espinhos) apresenta o ventre vermelho na altura da dança nupcial, ele está simultaneamente a viver um determinado estado hormonal que tem como efeito a coloração vermelha do ventre, a atrair a fêmea e a afastar os rivais. Assim, um estado neurofisiológico sem valor de sinal à partida, semantiza-se pelo significado que adquire numa situação social determinada pela intencionalidade reprodutiva dos animais. É possível

que,

neste

caso,

sinais

olfactivos

e

auditivos

sejam

enviados

concomitantemente ao sinal visual; este ultimo foi particularmente bem estudado por Tinbergen [38]. A riqueza dos movimentos expressivos é diversa de espécie para espécie, e está em relação directa com a intensidade da cooperação social. Comparando espécies

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Freud indicou este aspecto da depressão no seu texto Luto e Melancolia.

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aparentadas, é possivel retraçar a evolução genética dos movimentos expressivos, sendo claro que derivam na maior parte das vezes de outros tipos de comportamento prévio que se transformaram em sinais, reconhecidos pelos congéneres ou por outras espécies. Os comportamentos sociais de limpeza, por exemplo, representam sempre a expressão da necessidade de contacto social derivada dos cuidados parentais. Nas paradas de muitas aves e mamíferos, os cuidados com a limpeza participam no apaziguamento da agressividade do parceiro, e até um assaltante pode acalmar os assaltos através da apresentação da cabeça para ser tocada. Eibl-Eiblesfeldt [39] indica o caso de dois ratos que brincavam juntos; um deles mordeu mais fortemente o outro, que chiou, provocando imediatamente o comportamento de limpeza como apaziguamento. Como vimos, a semantização ocorre sempre que o emissor e o receptor se ajustam ao padrão de estimulação, conferindo-lhe um carácter informativo que, à partida, este não continha. Assim, através da estilização de certos elementos comportamentais, estes emancipam-se do bloco motor de que originariamente faziam parte, e passam a exercer-se de modo autónomo como um símbolo antecipatório da acção consumatória associada. Intimamente ligado à situação sexual temos o comportamento agressivo e territorial. Estes comportamentos dotam o animal da posse de objectos biologicamente significativos, surgindo portanto no seio de situações eto-ecológicas funcionais. O comportamento agressivo evoluiu de modo a permitir que a ameaça ritualizada (comportamento agonístico) substituísse a agressão efectiva. A depressão, enquanto estratégia involuntária de derrota e de perda, apresenta sinais comportamentais universais como humor persistentemente rebaixado, tristeza, angústia ou sensação de vazio e diminuição do interesse e prazer em actividades anteriormente procuradas. Outros sintomas são a ansiedade, o afastamento de amigos ou pessoas, cansaço e perda de energia, dificuldade de concentração e de tomar decisões, alterações do sono e do apetite etc. Esta ocorrência universal concorre para a hipótese de que a depressão constitui uma semantização adaptativa a certos acontecimentos sociais desafiadores [4]. O humor disfórico, a perda de energia, os problemas de sono, a perda de apetite, os movimentos lentos e a perda de confiança e de sentido de valor social apontam para um decréscimo massivo da noção de si, e da agressividade, que implica para o sujeito um afastamento do grupo social e dos seus desafios. Estes comportamentos, que parecem evocar comportamentos de dependência e deficiente vinculação infantil, indicam um

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estado de desânimo generalizado e constituem um acúmulo de disfuncionamento de um conjunto de funções que constituem a vida social; nesse sentido, constitui uma semântica facilmente reconhecível pelos outros e que, no grupo individualizado onde evoluiu, concorre para um processo intensivo de animação e de protecção da pessoa deprimida, pela família, pelos amigos, pelos pares9. De facto, estes comportamentos e emoções associadas provocam nos outros a necessidade de ajudar a pessoa deprimida, o que poderá constituir uma vantagem selectiva dos sinais etológicos, tendendo a ritualizá-los. Segundo os autores acima citados, este conjunto de comportamentos e a dor a eles associados, serve de catalisador para a adaptação a circunstâncias sociais alteradas; o sofrimento só passará quando a pessoa desistir das suas aspirações e vínculos iniciais e a família, os amigos e pares poderão ter um papel relevante nesse processo. Fazer o luto de uma situação de perda afectiva e de sentido pessoal de valor, implica o desinvestimento na situação que justamente provoca esse sofrimento.

6. Movimentos expressivos e ritualização: a recorrência da depressão Os detalhes comportamentais que se diferenciaram em sinais são geralmente chamados movimentos expressivos, na medida em que comunicam uma informação intencional coordenada socialmente. Estes movimentos podem ser inatos ou aprendidos, e podem apresentar-se como um comportamento simples ou como atitudes elaboradas, muitas vezes encadeadas num conjunto de padrões expressivos por vezes opostos. A depressão é facilmente reconhecível nos animais não humanos: o corpo rebaixado, o tonus muscular baixo, a apatia, o isolamento da vida social e até a prega na pálpebra inferior típica da depressão major e que se encontra também no ganso macho deprimido [1] (Mota Cardoso, 2006, comunicação oral) são sinais inequívocos para o diagnóstico. Da mesmo forma que algumas transformações fisiológicas que acompanham a expressão emocional do indivíduo como corar, empalidecer, secreções glandulares, tremuras, etc., evoluíram e se fixaram no seio de sequências motoras até se transformarem em sinais ritualizados, também podemos colocar a hipótese de que a ocorrência universal dos sinais depressivos corresponde a uma ritualização eficaz da

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A sua morbilidade actual corresponde provavelmente a um efeito acrescido da sociedade anónima composta por milhões de cidadãos.

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baixa do humor. Sloman [3] chama-lhe ciclo desadaptativo que é evocado mais que uma vez, pela perda e pelo insucesso. De facto, todas estas transformações que acompanham a ritualização da depressão tendem a aumentar a eficácia da sinalização. A manifestação opera ao nível do transmissor, e a selecção ao nível do receptor que reage de forma orientada à apresentação do sinal. O comportamento torna-se deste modo independente da motivação original e desenvolve os seus próprios mecanismos motivacionais. O exagero da sua frequência e amplitude tem como corolário a simplificação pela eliminação de componentes secundárias às sequências ritualizadas. O sentimento depressivo pode, deste modo, invadir a vida mental sem que o indivíduo compreenda a razão para tal, e sem que haja relação evidente com a situação vivida. Afecta ao mesmo tempo o limiar de excitabilidade do receptor, que se torna bastante mais reduzido. A estereotipia é conseguida através da fixação da intensidade postural numa intensidade típica que elimina qualquer ambiguidade derivada de motivações diversas. Assim, o conceito de ritualização apoia-se sobre a noção de eficácia do sinal a partir do desenvolvimento dos sinais desencadeadores [39]. Por outro lado, sabe-se que estes parentescos entre os movimentos expressivos, que são adquiridos individualmente, e o processo filogenético da ritualização, deriva da orientação selectiva exercida pelo meio social; esta torna bastante provável a convergência adaptativa entre os indivíduos de uma mesma população. Deste modo, a EID – estratégia involuntária de derrota [3,4] – estabiliza-se como uma estratégia ritualizada cujos sinais são facilmente reconhecidos pelo próprio e pelos outros, e também transculturalmente.

IV. Linguagem, imaginação e constituição de si na depressão

1. Movimentos expressivos e linguagem da depressão Os movimentos expressivos mais complexos e abstractos são evidentemente os que são aprendidos e executados pela linguagem humana, ao contrário da linguagem animal que se mantém em limites expressivos bastante elementares. O aparelho fonatório animal é, em geral, demasiado simples para a produção diferenciada de fonemas que sustêm a linguagem articulada.

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A semântica cognitiva contemporânea reconhece, na origem da cadeia associativa e criativa que sustenta a comunicação falada, experiências sinestésicas conotativas, susceptíveis de serem referidas à corporeidade, i.e., à experiência subjectiva do corpo próprio [40]. Nesta ordem de ideias, trabalhos recentes em psicolinguística apontam para a ideia de que certos esquemas perceptivos (cinestésicos e sinestésicos) podem apoiar a expressão conceptual de forma bastante eficaz [41,42]. Também a melodia e o ritmo da fala contêm informações auditivas/emocionais que permitem o seu reconhecimento transcultural [39]. A mesma vocalização pode apresentar diferentes significados em função do estado emocional do locutor. Outros indicadores como o grau de compressão da voz, o volume, a colocação toráxica ou craniana da voz induzem percepções diferenciadas que orientam a comunicação verbal. Fenómenos análogos de amplitude tonal, frequência e ritmo podem ser reconhecidos na produção musical que mimetiza e elabora metaforicamente desse modo as emoções humanas (para um desenvolvimento deste tema consultar [43]). As figuras de estilo, como as metáforas e as metonímias, parecem ocorrer em todas as línguas transpondo graficamente e/ou descritivamente um conteúdo não visual ou mais abstracto que se torna desse modo ‘visível’ [44]. Os Eipo (Nova Guiné) exprimem a tristeza dizendo que “uma ponte quebrou debaixo dos pés”; a alegria é dita como “o sol brilhando no meu peito”. Uma comparação, que exprime uma sensação perceptiva semelhante, foi criada por uma criança que descreveu um líquido gasoso que bebia pela primeira vez como “sabendo como o pé adormecido” [45]. Estas associações estão baseadas em experiências corporais individuais que, sendo comuns às pessoas, se tornam rapidamente compreensíveis e generalizáveis. A inventividade da criação linguística é individual, mas o seu sentido pode generalizar-se à comunidade e fixar-se como um significado cultural durável. Estes significados não são estáticos e tendem a associar-se criativamente a outros, dando origem a redes culturais significantes nas quais somos socializados. Além disso, conceitos que são muito descritivos de certos estados emocionais (como o conceito de ‘calor’ para uma excitação elevada ou de ‘frio’ para um estado de ânimo deprimido) podem surgir independentemente em diversas culturas, indicando o valor expressivo da linguagem. Diferentes culturas utilizam palavras para objectos ou experiências diversas, mas que se encontram associados em grandes grupos de significado que são próprios a essas culturas. Estes últimos estão na origem de teorias sociais partilhadas que, com o tempo, se transformam em crenças

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tenazes. As palavras passam a funcionar como ‘objectos’ mentais que podem ser trabalhados cognitivamente e estar na origem da fabricação de objectos, ou conjuntos de objectos, materiais afectando a vida eco-social [42]. Deacon [46] mostra a importância que a linguagem colectiva apresenta para as possibilidades de expressão simbólica e comportamental do indivíduo. Embora cada um de nós interprete os termos linguísticos aprendidos na comunidade falante de forma adequada à comunicação intencional de estados intersubjectivos, “as injunções e constrangimentos da linguagem são importados da sociedade de utentes, e o referente simbólico resultante só é fiável se cada interpretação corresponder às que são realizadas pelos outros … a experiência simbólica da consciência é de algum modo dependente da sociedade (society-dependent)” [46 p. 452]. De facto, e segundo M. Johnson (1993), o significado dos conceitos depende da experiência cultural, da sua evolução, das interacções sociais, e é a estabilidade dessas interacções que sustenta a estabilidade do conceito (por exemplo, conceitos como prestígio social ou vergonha, sucesso e insucesso, valor e falta de valor)10. Segundo V. Despret [47], a relação entre a percepção somática da emoção e aquilo que a sociedade ou o indivíduo podem dizer dela é complexa e por vezes indirecta. De facto, a semantização das emoções ocorre no seio de estruturas sociais que tendem a hipercognitivizar aquelas que, de algum modo, concorrem para a continuação da ordem social, a adesão aos valores dominantes assim como ao seu prolongamento nas diferentes esferas psicossociais. Assim, emoções como a indignação, o nojo, o orgulho, a vergonha e a cólera serão emoções valorizadas na medida em que mantêm os valores e a estrutura social. Certas culturas encorajarão sentimentos como o ciúme e o amor, porque estes contribuem para a estabilidade dos laços conjugais. Outras culturas encorajarão valores como a vida em comunidade, o parentesco, a solidariedade, porque estes impedem a tentação da autonomia e da posse face a uma natureza escassa. Por outro lado, as mesmas sociedades tenderão a hipocognitivizar as emoções desestabilizadoras da ordem social, sancionando-as ou inibindo-as e reprimindo-as. O amor romântico ou a solidariedade aparecerão então como ridículos ou até perigosos para certas culturas, ou determinadas épocas históricas da mesma cultura. O mesmo fenómeno encontra-se nas famílias, o que poderá concorrer para a transmissão cultural e

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Em África, o prestígio do indivíduo e medido pela quantidade de bens pessoais que destrua no fogo (Eibl-Eibesfeldt, 1986). Nos Deni da Amazónia, o estatuto de chefe é concedido àquele que melhor souber organizar festas (Lencastre, 2004).

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epigenética de padrões de pensamento e de sentimentos susceptíveis de influenciarem a vida mental e a linguagem. Nenhuma destas posições elimina as emoções subjacentes enquanto realidades psico-corporais; elas enfatizam a inscrição mental e social do seu significado simbólico, assim como os efeitos retroactivos sobre a própria percepção subjectiva do estado emocional, que essa significação gera. Assim, o que a pessoa deprimida poderá dizer sobre as razões da sua depressão dependerá em grande parte do contexto social e cultural onde aprendeu a usar a linguagem e a orientar a percepção. Esses serão os elementos trazidos para a situação psicoterapêutica e serão também os factores com os quais trabalhará o psicoterapeuta. No entanto, sob a diversidade dos sistemas de significação, encontramos as regularidades etológicas que são visíveis nos comportamentos depressivos a partir de indícios comportamentais, emocionais e verbais. Alguns desses indícios apontam para a falência de sistemas de vinculação (perda), hierárquicos, territoriais, sexuais, mas também para certos aspectos adaptativos do estado deprimido: será de esperar que estejam presentes nos discursos pelos quais as pessoas significarão o seu estado emocional. De facto, a pessoa deprimida tenderá a trazer uma situação literalizada pela sua dificuldade em elaborar mentalmente – em sair do sítio. Mas será de esperar igualmente que, dada a criatividade do sistema corpomente, esses indícios possam vir a aparecer transfigurados metaforicamente e metonimicamente através do trabalho pessoal e psicoterapêutico. De facto, o trabalho do cliente e do psicoterapeuta consistirá, numa primeira fase, em colaborar na recondução dos significados das emoções sociais para o seu fundamento motivacional e, numa segunda fase, em colaborar na sua reorientação criativa e amplificada pela linguagem, pela imaginação e pelo comportamento.

2. A mente e a função da imaginação No ser humano, a mente, que é modelada pelo corpo e pelos seus estados fisioperceptivo-motores, constitui em permanência o sentido intencional e finalizado de si. O cérebro processa de forma inconsciente o estado do organismo, e o estado da mente emerge dele através da permanente e vulnerável construção de operações – entre as quais as operações da(s) linguagem(s) – efectuadas com o objectivo de criar uma contínua representação mental de si como um ser individual e único. As emoções

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tomam, neste processo, um papel fundamental que ajuda a especificar o tipo de acção e de reacção do organismo humano face às situações do meio ambiente. As emoções evoluíram associadas a dispositivos motivacionais ligados a certos padrões imaginais e motores inconscientes na origem das imagens conscientes, que correspondem ao manancial de experiências da história filogenética e cultural. A questão do inconsciente coloca-se actualmente no âmbito das neurociências, associando-se aos trabalhos sobre o papel das emoções e da imagética mental. O conceito de ‘marcador somático’ [12] aparece neste contexto como a evocação de estados do corpo, associados a percepções internas e externas que envolvem diferentes circuitos cerebrais. A amígdala, situada na face interna do córtice temporal, e a ínsula, localizada no córtice somato-sensorial parietal, estão implicadas nas modificações e detecções emocionais dos estados do corpo. Como estão por sua vez conectadas com o córtice pré-frontal e outras regiões corticais implicadas na memória, activam-se a partir das lembranças do sujeito, i.e., do seu sistema imagético. São provavelmente estes os mecanismos que são postos em marcha pelas unidades neuropsicológicas, que associam estados

emocionais

a

sinais

ou

a

associações

de

sinais,

reconfigurados

fantasmaticamente [48]. É preciso não esquecer que o inconsciente não é um sistema de memória: a linguagem e a imaginação inscrevem a experiência corporal numa permanente produção de significados mentais e não regressa à experiência primordial do corpo [16,17]. O próprio Freud detectou esta aparente inconsistência da experiência: estar, por um lado, intimamente ligada às percepções e impedir, por outro, a descoberta da conexão da percepção-representação original. As formulações linguísticas inspiram-se portanto na ordem imaginária, variando depois em torno de temas imaginativos centrais, como na linguagem de ficção. As metáforas correspondem a experiências corporais e imaginárias que se vinculam a um «como se» expressivo que faz variar a experiência significativa num campo de extensões simbólicas que a liberta dos cenários exclusivos em que essa experiência nasceu. A metáfora corresponde assim a uma produção do sentido expressivo que se torna comunicável, ao nível da frase, e permite transformar a experiência do corpo numa predicação e numa enunciação [49]. As metáforas estão abertas à interpretação e ao diálogo isto é, ao choque entre diferentes campos semânticos (intra ou intersubjectivos) e à descoberta de associações, de parentescos, de novas pertinências significativas e comunicáveis. Deste modo, os ser-como das coisas criados pela

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expressão metafórica apontam para uma ontologia hermenêutica emergente nas narrativas que configuram e refiguram a realidade humana através de ‘figuras de pensamento’, que mostram o esquematismo da imaginação a trabalhar. Sob a noção de figuras de pensamento podemos colocar muitos dos recursos tradicionais da figuração, as chamadas figuras de conteúdo como a metonímia e a sinédoque, a hipálage e a personificação ou até a anáfora. Mas a unidade do eu não é dada a priori, ela é um processo turbulento, emergente das condições internas (biológicas e psicodinâmicas) e externas (ecológicas, psicossociais e culturais) em que o sujeito se encontra. A constituição de si corresponde a uma exigência de unidade psicológica, nesse contexto. Isto significa que é do contexto condicionado e emergente do eu que se impõe a noção de si e do outro. Este processo aparece claramente nas narrativas sobre depressão. São algumas dessas histórias de constituição de si e do outro que iremos analisar em seguida, tendo em conta os aspectos evolutivos, eco-etológicos e linguísticos da depressão implicados nelas.

3. Histórias de depressão A cultura ocidental é marcada pela palavra. Um dos seus aspectos notórios – bem sublinhado por Freud quando referia os processos secundários – é a tradução, na linguagem, de vivências corporais e imagéticas associadas à etologia específica. Foi partindo desta hipótese que decidimos realizar um estudo exploratório com indivíduos que tinham apresentado episódios de depressão diagnosticada no passado e que passaram por algum tipo de processo terapêutico. O nosso objectivo é tentar descobrir se ocorre: 1. A presença de elementos de EID no discurso 2. A existência de aspectos adaptativos na depressão 3. Referências territoriais e ecológicas, nomeadamente mudanças espaciais internas e/ou externas 4. Processos de semantização depressiva e de ressemantização dos sintomas 5. Recorrência da depressão 6. A ontologia emergente do processo narrativo

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Analisaremos 5 casos clínicos, 3 mulheres e 2 homens, de faixa etária entre os 36 e os 51 anos, que se apresentaram como voluntários no centro clínico em que foi feita a apresentação do projecto. Todos os indivíduos tinham passado por algum tipo de processo psicoterapêutico e a todos tinham sido receitados anti-depressivos de tipo SSRI. O nível de escolaridade é maioritariamente universitário, só um caso é de escolaridade média. A história da depressão foi recolhida numa sessão clínica face a face, que foi gravada em vídeo e em áudio e posteriormente passada para texto. A relevância clínica dos diversos pontos referidos anteriormente foi testada através de análise de conteúdo com construção de grelha. O presente estudo pretende ter um alcance exploratório; consiste numa abordagem multifacetada da etologia da depressão que lhe confere alguma originalidade. Os resultados obtidos poderão constituir uma indicação para a futura modelização e a investigação quantitativa.

Ana Ana é uma mulher de 51 anos, divorciada e mãe de um filho que vive com ela. Trabalha como administradora numa empresa familiar importante, em que assumiu recentemente o lugar do seu pai, falecido há cerca de 20 anos. Ana é uma mulher interessante, que expõe fluentemente as razões dos episódios depressivos que a levaram a fazer uma psicanálise de 7 anos de duração e, mais tarde, a tomar anti-depressivos de tipo SSRI. Tem uma vida social rica com contactos variados que o seu lugar de administradora implica. Ana conta que a origem do seu primeiro episódio depressivo se relaciona com a vida familiar e com um pai dominante face a quem ela sempre tentou afirmar-se («ocupar o lugar que devia ocupar») e receber a aprovação, mas face a quem sempre se sentiu inferiorizada e não reconhecida. O pai era uma forte personalidade, fundador da empresa onde Ana agora trabalha, e que na sua adolescência criava conflitos vários com os filhos (Ana tem mais um irmão e uma irmã, bastante mais velhos) e com a mulher. Este facto levou até vários confrontos agressivos entre pai e filha, em que a filha sentia que saía perdedora, activando inconscientemente uma EID (estratégia involuntária de derrota) que ela reconheceu mais tarde como sendo a sua tonalidade depressiva. Ana decide sair de casa (mudança ecológica) para evitar o seu confronto com o pai e uma

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família conflituosa, e parte para um país estrangeiro onde se inscreve no curso de psicologia. Utiliza expressões como «luta com a família; fuga para a frente, não fui em busca de um projecto» para falar da sua saída de casa. A sua estadia nesse país foi marcada por

sucessos escolares mas também por um insucesso que a marcou negativamente, estando na origem da sua depressão diagnosticada (insucesso e sentimento de derrota). Inscrevese noutro curso e passado um ano regressa a Portugal, casa, muda de cidade e inscrevese na mesma licenciatura (mudança ecológica). Um pouco mais tarde inicia uma psicanálise que lhe permite reconhecer a origem conflitual da sua depressão e também o modo como persistia em procurar o reconhecimento paterno e também o cariz reactivo do seu casamento, que consistiu em grande parte numa afronta aos valores paternos. A depressão permitiu-lhe elaborar uma relação conflitual e divorciar-se (adaptação) e reconhecer a parte que lhe cabia no conflito com o pai e na rivalidade com a mãe (ressemantização). Para Ana, ao aceitar a sua depressão «pude finalmente descansar; gostar do pai sem me sentir malévola; o sentimento de falhar obriga a rever a autoimagem; a desmotivação para a acção acompanha-se de uma reflexividade acrescida» (adaptação, ressemantização). Alguns anos mais tarde, Ana deprime novamente por exaustão (recorrência da depressão) e considera que «o sentimento de incapacidade despoleta a depressão» (EID). Recorre então a anti-depressivos e nessa altura considera que «a minha casa é o meu refúgio; procuro pequeno casulo onde esteja protegida; casa – ninho» (ecologia). Recorre a pequenos gestos de auto-grooming como banhos de espuma, cremes para o corpo, música, leitura … A ontologia emergente em Ana tem um forte cariz analítico em que ela própria confessa que «a referência ao “Édipo” funciona como uma instância contra-fóbica» confessando ao mesmo tempo que este conceito pode consistir num saco sem fundo onde cabe tudo. Informada sobre a EID e os outros aspectos etológicos da depressão, Ana confirmou a sua experiência e interessou-se por estabelecer o paralelo entre a psicanálise e a etologia da depressão.

Maria Maria é uma mulher de 44 anos, casada com 3 filhos biológicos e um filho do primeiro casamento do marido. Trabalhou no jornalismo e na associação de jovens empresários, tendo interrompido por causa de um episódio depressivo. É empresária há pouco tempo no ramo da informática e da comunicação e imagem. É uma mulher bonita e bem

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arranjada, falando com alguma fluência e que introduz o tema da depressão associandoo claramente com uma vivência familiar conflituosa entre os pais e entre a mãe e ela própria. Maria é filha única e descreve a sua família com estando permanentemente em conflito agressivo pelo mais pequeno detalhe e depois aparentando uma harmonia para o exterior que os pais esperavam que Maria também representasse. Desde muito pequena Maria tentou agradar a uma mãe controladora e possessiva sem nunca o conseguir, desenvolvendo com alguma precocidade uma EID que a tornava ansiosa e fragilizada face aos desafios externos. Foi boa aluna mas parecia nunca conseguir corresponder às exigências maternas. A sua mãe vivera na província sem nunca se ter adaptado e arrastava uma insatisfação e competitividade permanentes que projectava sobre o pai e sobre Maria. O pai era um homem culto e presente mas que nunca conseguiu proteger a filha das invectivas maternas, que considerava a filha como a sua «almofada» privada. Maria parte para a universidade numa outra cidade (ecologia) e conhece pela primeira vez relações francas e verdadeiras: «começo a perceber que há pessoas que, com experiências diferentes, se conectam, que de facto há uma conexão». Essa foi a sua grande abertura para o mundo e Maria passa a viver entre os dias da semana e os fins de semana que «eram um inferno, demorava dois ou três dias a recuperar do inferno e depois voltava para o inferno». Continuando a sentir-se muito só, Maria não consegue verdadeiramente integrar o seu lado emocional e o seu lado racional, e é neste estado que tem mais um dos seus encontros sexuais, num congresso que se encontrava a organizar. Este encontro fortuito marcou-a profundamente, estando na origem da sua primeira depressão séria: «eu senti-me mesmo mal porque não queria aquilo assim e tive um episódio de choro e de depressão mesmo». Estava sozinha no quarto de hotel onde se sentiu à beira da ruptura emocional; deixou de dormir e sentia «uma imensa tristeza, uma imensa apatia, estava dentro de um túnel e não havia nenhuma luz, nenhuma esperança, estava presa» (ecologia). A mãe interveio novamente e indicou-lhe um psiquiatra que procedeu a exames neurológicos porque Maria se encontrava num estado de grande agitação ansiosa paralelamente a uma grande inanição (EID), com a permanente sensação de que lhe podia acontecer qualquer coisa. «Não conseguia sair dali, aquilo era físico mesmo» e Maria considera que a sua mãe perpetuou inconscientemente a sua situação porque isso lhe permitia estar no controle e o pai não pôde ajudar, porque se encontrava deprimido também. Maria foi internada 2 dias para poder dormir e sair da influência materna (adaptação) que não lhe dava o «consolo» que nessa altura Maria procurava com tanta necessidade. Mais tarde tem uma recaída

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(recorrência) e recorre a outro psiquiatra que a medica com SSRI; Maria inicia então uma psicanálise que dura 5 anos e mais tarde começa a fazer psicoterapia individual e de grupo. A sua ontologia emergente relaciona-se em grande parte com a linguagem da psicoterapia e a ressemantização que esta lhe permitiu fazer da depressão, mas também com a linguagem empresarial onde se constitui agora como um elemento activo.

João João é um homem de 43 anos, sem filhos e solteiro, com uma actividade profissional liberal. Soube há uns anos que estava infectado pelo HIV e associa o estado da sua saúde à vida de risco assumido que levava, para resolver um estado depressivo resistente, antigo desde a sua adolescência. João é brasileiro e filho de um homem caucasiano e de uma mulher negra; considera que a sua cor foi sempre um motivo para o seu pai não gostar dele e ser tão exigente consigo. João tem mais uma irmã que recebe tratamento psiquiátrico e atribui esse facto ao ambiente familiar dificultado por um pai dominador e agressivo, que não acompanhou os filhos como deveria. A mãe de João é muito religiosa e João tem com ela uma relação afectuosa e cuidadosa; o pai de João morreu há uns anos. João relata a sua depressão apontando para uma adolescência solitária e desejosa de agradar a um pai que sempre foi exigente e distante com o seu filho. O pai gostava de caçar e de outras actividades másculas, mas o seu filho não conseguia acompanhá-lo, desenvolvendo no pai uma atitude de desprezo e no filho uma atitude de revolta e de medo que se traduziu numa EID. O pai ameaçava João e este rivalizava com o pai, entrando mesmo no seu quarto e mexendo nas coisas que estava proibido de tocar. Aos 14 anos sai de casa para estudar noutra cidade e «para me tornar homem» (ecologia) mas é mais uma vez um fracasso. João sentia muito a ausência de seu pai e quando regressou «vivia trancado no meu quarto e tentei o suicídio 3 vezes sozinho, com cerca de 14, 15 anos, por aí .. nessa altura pintei o quarto todo de preto, mas ninguém me aborrecia, desde que eu não saísse do quarto estava tudo bem … tentei o suicídio tomando muitos comprimidos e dormi 4 dias mas ninguém disse nada, fez nada». «Eu não acreditava em mim porque ele próprio dizia você não vai ser nada, você não vai conseguir nada…cresci ouvindo que você não presta portanto era assim uma dor muito grande, um vazio imenso, a minha vida não servia». João viveu revoltado e submetido ao pai (EID) e mais tarde relata que viveu em conflito consigo mesmo e com

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o seu «pai interno» ao qual não conseguia nunca agradar (interiorização da EID). Por um lado João foi-se anulando nas suas funções sociais, por outro foi assumindo cada vez mais comportamentos de risco «atravessava a rua sem olhar, estava num prédio alto e tinha vontade de pular... não achei normal e pedi ajuda». Nessa altura João começa uma psicoterapia no Brasil, cerca de um ano antes de vir para Portugal (ecologia). Ainda no Brasil, João trabalhou numa empresa onde o seu chefe o congratulou mais do que uma vez pelo seu trabalho, mas João parecia não acreditar verdadeiramente na veracidade das suas palavras e saiu dessa empresa. Já em Portugal e mantendo o medo de não conseguir atingir os objectivos do «pai interno», João desenvolveu uma actividade profissional errante, assim como uma vida sexual intensa com encontros hétero e homosexuais de risco, sem tomar precauções. João considera que provocava a morte, desejando morrer «passei uma vida inteira me suicidando» para ver o modo como o pai reagiria. A depressão é associada ao permanente medo do insucesso assim como à culpa pela sua sexualidade. Em Portugal João tem uma outra séria crise depressiva (recorrência) que o fecha em casa às escuras durante 2 semanas (ecologia) e atribui em parte a sua depressão às exigências da sociedade «a sociedade hoje em dia nos consome imenso» (adaptação e ressemantização). Recorre em Portugal a psicoterapia de grupo e aos poucos vai-se recompondo da sua exigência interna. Desde que soube que era seropositivo, João abrandou o seu ritmo de vida e suspendeu a sua actividade sexual «para não infectar outros». A sua ontologia emergente inclui o uso da internet e hoje tem um blog em que conta a sua experiência e consegue ajudar outras pessoas em situação idêntica à sua. Publicou um livro sobre a sua vida e tem adquirido um lugar importante junto dos seus pares na psicoterapia de grupo, ajudando elementos do grupo a manifestar-se.

Nuno Nuno é assistente na universidade, pai solteiro de uma filha de 23 anos, tendo ele próprio 45 anos. É filho de um casal que não se entendia e que confrontava os filhos com cenas de uma grande violência psicológica e emocional. Tem 1 irmão e 2 irmãs, uma das quais se suicidou com 18 anos, 5 anos antes da depressão de Nuno. Teve 2 episódios depressivos, o primeiro com início 2 anos depois de se ter separado da mãe da sua filha. O trabalho de investigador numa área que ele considerava árida e o falhanço

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da sua relação originaram durante os dois anos seguintes à separação um sentimento de responsabilidade e de culpa pelo não cumprimento de ideais, que na altura Nuno não soube interpretar como uma depressão. «Cada dia que passava eu não cumpria com as obrigações …foi um processo de perda de energia, de auto-castração … tenderia a fugir do conflito e da discussão (EID) … eventualmente contaminado por experiências anteriores (recorrência) … uma penalização moral» (semantização). Foi a indicação de um amigo, que já tinha passado por um estado de desânimo generalizado e de retirada da vida social, do mesmo género, que levaram Nuno a consultar um clínico geral por motivo de depressão. Para Nuno a depressão significou o sentimento de não ter realizado o projecto familiar, universitário e também o projecto ambientalista em que se tinha envolvido de corpo e alma, foi «um colapso… entrar num mundo de quem precisa de ajuda, num mundo de quem não consegue viver sozinho» (adaptação) Foi nessa altura medicado. Sente necessidade de mudar profissionalmente, abandona a sua profissão na investigação e gradualmente recuperado, volta a apaixonar-se 2 anos depois e abre-se novamente à vida. Regressa à sua cidade de origem onde sai da área em que estava e começa a trabalhar como designer, uma área mais expressiva, mais artística (mudança ecológica). Faz um mestrado e lá encontra a sua próxima companheira amorosa com quem se envolve durante vários anos. É o fim dessa relação muito intensa que despoleta o seu segundo episódio depressivo (recorrência) num processo de desgaste, de erosão com conflitos e rupturas. A saída compulsiva do local onde se encontrava a trabalhar associada à ruptura sentimental e ao trabalho solitário de tese originaram sentimentos de desânimo e falta de energia que Nuno reconheceu como sendo depressivos e nessa altura consulta um psiquiatra que o medica com SSRI. Nuno recuperou rapidamente apesar deste episódio ter sido mais duro do que o primeiro, «fui a pique, foi mais violento, às vezes é preciso tocar o fundo, não nos debatermos no processo, pelo contrário» (ressemantização). Muda de trabalho novamente e alguns anos depois inicia um processo psicoterapêutico de tipo regressivo. Nessa altura, com maior estabilidade financeira, compra uma casa para si, um carro e uma mota que funciona simbolicamente como o veículo do cavaleiro, imagem que para Nuno tem um valor libertador muito forte (ressemantização). A sua ontologia emergente inclui referências arquetípicas e um interesse crescente pelos novos tipos de espiritualidade, que lhe abrem portas para um mundo com mais sentido existencial (ecologia). Nuno encontra-se a realizar a sua tese de doutoramento nesta área e abriu-se à possibilidade de uma profissão ligada a estes temas.

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Joana Joana é uma jovem mulher de 36 anos, gestora e professora universitária, mãe de 3 filhas e recentemente separada do marido. Segundo as suas palavras «a minha depressão foi reactiva à separação … foi um acumular, houve várias causas para a depressão … estava à espera de bebé e depois houve a perda». Joana sentiu nessa altura muito sono, uma grande vontade de chorar, custava-lhe levantar-se, começar o dia, «não podia fazer o que simplesmente me apetecia que era desligar». Paralelamente a estes sentimentos sentia uma grande revolta porque desejava entregar-se a esse estado (adaptação) e não podia porque tinha ficado encarregada das 3 filhas. Para Joana, o seu casamento correspondeu a um grande esforço de adaptação, protegendo o marido de críticas e completando por ele o que ele não conseguia fazer direito. A depressão surge em Outubro, após um verão atribulado em que o marido entra e sai de casa e na altura em que perde o seu bebé de 4 meses de gestação, perda essa que, devido à separação, não conseguiu processar senão já em Janeiro. Sente que não conseguiu proteger a sua gravidez, e ao sentimento de impotência junta-se um sentimento de culpa e de revolta pelo facto do marido não ter ligado à sua gravidez. O sono que Joana sentia coincidiu com o início do outono e inverno (ecologia), acompanhado de sentimentos de grande frustração e revolta; lutara por uma família «presépio» abdicando de si e tinha o sentimento de falhar, de que o seu esforço fora em vão (EID). O modo como foi educada e as expectativas da família tornaram a sua separação mais dolorosa. «O sentimento era de angústia, de desespero, de incapacidade pessoal … chamava tudo à minha responsabilidade (semantização)». Joana reconhece-se perfeccionista e houve mesmo um período em que se punha à prova com o objectivo de suplantar as expectativas elevadas que punha a si mesma. No dia em que rompeu a chorar em frente aos alunos percebeu que não estava bem e que precisava de ajuda. Mesmo assim recusou ser medicada e só depois de uma viagem intempestiva para Londres para se encontrar com o irmão (ecologia) é que reconhece a necessidade de ser ajudada. Nessa altura já tinha perdido muito peso, não conseguia comer, sentia aversão por todo o tipo de alimentos incluindo líquidos e consultou uma psiquiatra que lhe prescreveu antidepressivos de tipo SSRI. Fez nessa altura algumas sessões de psicoterapia. A família cortou com o marido de Joana e incentivava-a a esquecer, o que não a ajudou; Joana agarrava-se à possibilidade de refazer a sua família «fiz tudo aquilo que jamais faria ...» (clinging) mas o sentimento de impotência era total. Depois de um breve reencontro

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com o marido em Janeiro, decidiu cortar de vez com essa relação e esse facto deu-lhe um sentimento de controle renovado da sua vida que a ajudou a recuperar da crise em que se encontrava (ressemantização). A sua ontologia emergente inclui a noção de que a depressão é um estado possível, de que há sinais de alerta e com ela ficou «algum receio porque há sentimentos que eu já conheci e que eu não quero, fica-se condicionado». Joana é hoje uma gestora bem sucedida, doutorou-se e refez a sua vida amorosa com uma nova maturidade.

V. Conclusão Foi possível encontrar elementos da estratégia involuntária de derrota (EID) e de outros aspectos derivados de uma perspectiva etológica da depressão nas histórias recolhidas. A EID ocorre quando a agressão não consegue ser terminada pelos processos rituais agonísticos e continua durante algum tempo, contribuindo para o humor depressivo. Os aspectos ecológicos, internos e externos, foram referidos, da mesma forma que alguns elementos adaptativos da depressão que, em certos casos, permitiram descansar de um processo continuado de conflito e de agressão não resolvidos em «ganhar ou perder». A probabilidade disto acontecer parece estar ligada a indivíduos com vinculação precoce fragilizada. Estes indivíduos tenderão a recorrer ao sistema de vinculação para diminuir a tensão derivada de um comportamento dominante ineficaz [50]. Um dos objectivos da psicoterapia de inspiração evolutiva consiste em tornar este processo claro e em ajudar a avaliar realisticamente a situação e as suas possibilidades. Associada aos métodos psicodinâmicos e cognitivos, a psicoterapia de inspiração evolutiva oferece um contexto mais amplo e menos patologisante para a compreensão dos processos intrapsíquicos e das relações interpessoais. Mostra o seu carácter selectivo na evolução e o modo como se actualizam nas vidas individuais.

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