“Eu, já defunto, deixo para meus herdeiros...” Estudo das hierarquias sociais, hábitos e costumes de Sergipe D’El Rey nos Testamentos Judiciais setecentistas

June 7, 2017 | Autor: Janaina Mello | Categoria: History, Cultural History, Social History, Historia, História Do Brasil Colonial
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“EU, JÁ DEFUNTO, DEIXO PARA MEUS HERDEIROS...” Estudo das hierarquias sociais, hábitos e costumes de Sergipe D’El Rey nos Testamentos Judiciais setecentistas∗. "I, ALREADY DEAD, I LEAVE TO MY HEIRS…" Study of social hierarchies, habits and customs of Sergipe D'el Rey in eighteenth-century Legal Wills. Janaina Cardoso de Mello

RESUMO: O artigo utiliza testamentos e inventários setecentistas acondicionados no Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe, para demonstrar como se configuravam as hierarquias sociais em São Cristóvão, alcunhada por Sergipe D’El Rey, evidenciando seus personagens, os bens financeiros entre suas vontades e destinações, bem como ressaltando as contendas que orbitavam essa documentação. Desse modo, busca-se uma reconstituição parcial de trajetórias que permitam compreender um aspecto mais intimista da história local. Palavras-chave: Testamento; Inventário; Hierarquias Sociais; Sergipe. ABSTRACT: The article uses wills and inventories of eighteenth century put up in the General Archive of the Judiciary of Sergipe, to demonstrate how if social hierarchies formed São Cristóvão, nicknamed by Sergipe D'El Rey, showing his characters, the financial assets between their will and destinations, as well as emphasizing the contentions that orbit this documentation. Thus, a partial reconstruction of trajectories that allows to understand a more intimate aspect of local history. Keywords: Testament; Inventory; Social Hierarchies; Sergipe.

Introdução

Artigo recebido em 01 de fevereiro de 2016 e aprovado em 20 de fevereiro de 2016. Esse artigo é tributário de um elogioso agradecimento à pesquisadora Dra. Eugênia Andrade Vieira da Silva, ex-diretora do Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe, e cujo o trabalho incansável durante muitos anos promoveu a difusão da história sergipana através da conservação, digitalização, catalogação e acesso à documentação acondicionada naquela instituição. ∗

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Fundada em 1590, a Capitania de Sergipe D’El Rey surgiu da necessidade de expansão dos mercados das capitanias da Bahia e Pernambuco, tendo na vertente hidrográfica dos rios Sergipe e Poxim seus eixos de navegação. A Justiça em Sergipe estava subordinada ao Tribunal da Relação do Brasil, com sede na Bahia, conforme o alvará de 7 de março de 1609. Mas dada a dificuldade de transporte e comunicação entre as espacialidades, com várias comunidades no sertão, nas margens do rio São Francisco e na Capitania de Sergipe D’El Rey incide a necessidade de um controle maior por parte da administração1. Situação que só se alterou, quase um século depois, com a instalação da Ouvidoria Geral de Sergipe, em 1696, pela metrópole portuguesa, em São Cristóvão – a 4ª cidade mais antiga do Brasil – tornando esta uma Comarca equipada em sua burocracia administrativa2. A evolução demográfica da Capitania de Sergipe D’El Rey pode ser mensurada em 1707 com a população perfazendo 17.169 habitantes e em 1780 quando esse quantitativo já se avolumou para 54.0053 evidenciando a necessidade do controle administrativo situado em São Cristóvão. Já a capital possuia 390 famílias, 1.557 pessoas e 11 engenhos em sua população urbana4. Ainda por volta do século XVIII, São Cristóvão e Sergipe D’El Rey eram palavras usadas como sinônimo5, somente perdendo sua proeminência sobre as demais localidades a partir do século XIX, quando há o desmembramento da Comarca em três: São Cristóvão, Estância e Santo Amaro. Ainda assim, em 1832, São Cristóvão abarcava além da cidade, as vilas de Santo Antonio e Almas de Itabaiana e do Coração de Jesus de Laranjeiras6.

1

SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. O Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p.208. 2 Em 16 de fevereiro de 1696, por odem régia de Portugal, criou-se o cargo de Ouvidor e Provedor de Sergipe, sendo empossado Diogo Pacheco de Carvalho em 5 de junho de 1696, responsável pela criação das vilas de Itabaiana, Lagarto, Santo Amaro e Santa Luzia. Ver mais informações em: BIBLIOTECA NACIONAL. Anais da Biblioteca Nacional. Vol. 93, 1973. Rio de Janeiro: BN, 1974, p.43 (Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes na Biblioteca Nacional de Lisboa) e nos Documentos relativos a Capitania de Sergipe do Arquivo Histórico Ultramarino, Cx. 1 – documentos: 67, 69, 71, 73,74, 75. 3 MOTT, Luiz Roberto de Barros. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fudesc, 1986, p.86. 4 SILVA, Eugênia Andrade Vieira da. A elite setecentista instruída em Sergipe Del Rey (1725-1800). Tese de Doutorado em Educação. São Cristóvão: NPGED/ UFS, 2013, p.42. 5 NUNES, Maria Thetis. Sergipe Colonial I. São Cristóvão: EDUFS/Fundação Oviêdo Teixeira, 2006, p.35. 6 SILVA, Eugênia Andrade Vieira da (Coord.). Catálogo dos documentos judiciais do século XVIII de Sergipe: inventários judiciais da Comarca de São Cristóvão. Aracaju: TJ/Sercore Artes Gráficas, 2005, p.11.

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Tratar do post-mortem através de testamentos e inventários pode ser a melhor maneira de identificar as formas e condições de vida material (social, econômica e cultural) ao longo do século XVIII, já que: A vida social pode ser inferida a partir dos dados fornecidos por essas duas fontes. As relações familiares, o parentesco, compadrismo, protecionismo, e amizade podem ser buscados nas disposições testamentárias relativas aos inventariantes, testamenteiros, devedores, disposições relativas a doações da terça, legados especiais, inquirição de testemunhas.7

Como salientou Nunes8, as Ordenações Filipinas foram a base da estrutura políticoadministrativa da Capitania de Sergipe D’El Rey, sendo a documentação testamentária também regida pelos mesmos princípios, uma vez que: Os testamentos no Brasil eram legislados pelo código Philipino, elaborado por Philipe III em 1601. Ele permaneceu com algumas alterações até 1917 quando deu lugar ao código civil brasileiro. O código Philipino, assim como a igreja, assegurava a “faculdade de livremente testar” e de deliberar livremente sobre os seus bens a quase todos os cidadãos9.

Todavia, deve-se fazer um adendo à pesquisa testamentária, uma vez que “a fortuna registrada nos testamentos representa apenas uma terça parte da metade dos bens do testador quando este era casado e com filhos poderia dispor livremente, portanto era o sistema de meação, mesmo assim nos dá uma visão parcial da mesma”10. A historiadora Sheila de Castro Faria discorreu sobre os inventários coloniais em seu preciosismo no detalhamento das peças que compunham as fortunas. Para a autora, a análise de um conjunto de inventários permite apreender o movimento da colônia, divisando trajetórias de vida similares, padrões de comportamento social e produção11.

7

FLEXOR, Maria Helena Ochi. Inventários e Testamentos como fontes de pesquisa. Unicamp, 2005, p.2. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Maria_Helena_Flexor2_artigo.pdf, acesso em: 10/02/2016. 8 NUNES, Maria Thetis. Op. cit, p.34. 9 ALMEIDA, Joseph Cesar ferreira de. O Testamento no Âmbito da Herança: uma análise demográfica. Anais do XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Ouro Preto/MG: ABEP, 2002, p.5. Disponível em: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2002/GT_His_PO17_Almeida_texto.pdf, acesso em: 10/02/2016. 10 SILVA, Eugênia Andrade Vieira da. Letramento dos portugueses setecentistas em Sergipe Del Rey: primeiras aproximações. Anais do VI Congresso Brasileiro de História da Educação. Vitória/ES: SBHE, 2011. Disponível em: http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe6/anais_vi_cbhe/conteudo/file/767.pdf, acesso em: 10/02/2016, p.3. 11 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.224-228.

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O estudo das hierarquias sociais na América portuguesa, com foco nos testamentos e inventários de Sergipe D’El Rey no século XVIII, busca evidenciar as vontades dos testadores na transmissão de suas riquezas. Posto que, debruçando-se na partilha dos bens e do direito das sucessões nos testamentos é possível verificar seus personagens (testadores, testamenteiros e inventariantes), os bens financeiros entre suas destinações, bem como ressaltam-se as contendas que orbitavam essa documentação. Desse modo, idealiza-se uma reconstituição parcial de trajetórias que permitam compreender um aspecto mais intimista da história local em seus hábitos e costumes. O corte cronológico adotado nessa pesquisa compreende o período de 1780 a 1795 na Comarca de São Cristóvão, a partir de seis testamentos e nove inventários acondicionados no Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe. Também foram consultados documentos do Arquivo Histórico Ultramarino, referentes à Ouvidoria na Capitania de Sergipe D’El Rey. Dos bens que deixo aos meus herdeiros, escrevo minha história No Livro de Testamento nº 1, delimitado entre 1780 e 1795, seis registros abordam diretamente a cidade de São Cristóvão. O primeiro, datado de 07 de março de 1780, apresentou a contestação dos herdeiros à assinatura do testador, denunciando ainda a ausência de folhas. Não foi possível recuperar as identidades do testador e do testamenteiro no documento12. Mas essa não era uma reação extremada ou pouco usual, pois conforme os estudos do pesquisador Rafael Ribeiro, subsistia em Sergipe D’El Rey uma grande preocupação relacionada às contendas provocadas por herdeiros reclamando seus bens, muitos portando armas e usando-se de violência física contra os testamenteiros, em razão da discordância na partilha do patrimônio13. O segundo testamento possui Escolástica de Almeyda de Mendonça como testadora e o Capitão Serafim Mendes de Souza como testamenteiro. Com data de 04 de outubro de 1790, trouxe em seu conteúdo a religiosidade da testadora expressa na destinação da fazenda de gado vacum denominada Bom Jardim, cavalos e bestas, entre outros bens, alforria escravos e dinheiro

12 Testamento

07.03.1780, São Cristóvão, Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 01 - pp. 01-13. RIBEIRO, Rafael. Aspectos das relações econômicas existentes entre as Capitanias de Sergipe Del Rey e a da Baía de Todos os Santos. Anais Eletrônicos do XXVII Simpósio Nacional de História. Natal/RN: ANPUH, 2013. Disponível http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371349885_ARQUIVO_textodeRafael[1]_1__1_.pdf, em: acesso em: 12/02/2016, p.8. 13

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a afilhados e à Igreja de Nossa Senhora do Socorro, além de esmolas para a Ordem Terceira de São Francisco14. No terceiro documento, produzido de 14 de fevereiro de 1793, cuja testadora é Archangela Pereira de Almeida e o testamenteiro Francisco da Mota Rabello, foram declaradas vontades religiosas e garfos de prata, botões de ouro, escravos, entre outros bens, e deixou dinheiro à família15. Em 17 de junho de 1794, Francisco Jozé de Santa Rita (testador) incubiu o Alferes Joze de Seixas Correya como seu testamenteiro. No testamento, Francisco Jozé declarou vontades de caráter religioso, dívidas, e afirmou querer ser enterrado no Convento de Nossa Senhora do Carmo, onde era irmão terceiro. Ordenou aos testamenteiros que fizessem uma festa para Nossa Senhora da Conceição na sua fazenda, deixou dinheiro a afilhados, deixou uma quantia de açúcar branco correspondente ao peso de dois escravos para o Senhor do Bom Jesus do Bomfim da Capela de Nossa Senhora da Glória, declarou engenho na Jacarecica, duas fazendas de canas em terras arrendadas, casas de vivendas de telha, escravos, fazenda de gado, cavalos, entre outros bens16. O testamento do Alferes Francisco Jozé de Souza, foi redigido pelo testamenteiro Capitão Florencio Rodrigues dos Anjos em 01 de setembro de 1794. Nele, o Alferes reconheceu filhos ilegítimos, um deles escravo, declarou cavalos, morada de terras, escravos, sítio, fazenda de canas, canoa, fivelas de sapato, trastes de uso, entre outros bens, além de dívidas (inclusive ao preto Pedro) e vontades de caráter religioso17. No ano de 1795, Maria Francisca da Silveira firmou seu testamento, no dia 01 de abril, tendo como testamenteiro Jozé Pedro de Bastos. A testadora declarou brincos de ouro, roupas e escravos, entre outros bens, além de dívidas, esmolas a afilhados e vontades de caráter religioso. Contém o Codicílio18 da mesma testadora (pp. 22-25), escrito em 21 de abril de 1795, no qual ela complementou as suas disposições testamentárias19.

14

Testamento 04.10.1790, São Cristóvão, Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 01 - pp. 3343. 15 Testamento 14.02.1793, São Cristóvão, Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 01 - pp. 2533. 16Testamento 17.06.1794, São Cristóvão, Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 01 - pp. 49-58. 17Testamento 01.09.1794, São Cristóvão, Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 01- pp. 43-49. 18 Escrito particular de última vontade, redigido com as disposições sobre o enterro, doação de esmolas e legado de móveis, roupas ou joias de uso particular. 19Testamento 01.04.1795, São Cristóvão, Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 01 - pp. 13-25.

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Dos seis testamentos pesquisados, cinco determinavam doações de patrimônio e esmolas às Ordens religiosas, configurados várias vezes como “vontades religiosas” e formalizando assim uma praxe que corrobora a ideia de que A tentativa de obter uma boa morte, levava as pessoas a seguirem à risca inúmeras normas para garantir uma boa passagem ao “outro lado da vida”. Dessa maneira os ritos de morte acabaram por criar ao seu redor um universo místico de fé, poder e comércio.20

Também, buscava-se um acerto de contas terreno através do reconhecimento de filhos ilegítimos, mesmo da paternidade de escravos, da assunção de dívidas (incluindo ao “preto Pedro”), além da definição do local onde o “já defunto” desejava ser enterrado – no cemitério de alguma irmandade a qual integrara – e/ou da realização de festas homenageando uma determinada santa, mormente cultuada na capela de sua fazenda, enfatizando sua devoção religiosa. Dentre a relação de inventários compreendidos na Comarca de São Cristóvão, entre 1780 e 1795, não foi possível correlacionar alguma convergência do rol de testadores e testamenteiros, vistos anteriormente, aos inventariados e inventariantes desse mesmo período. Ressalta-se ainda que dos nove inventários selecionados, nenhum deles possui testamento anexo. Na documentação pesquisada não há um inventário referente ao ano de 1780, e o primeiro que se insere no corte cronológico desse artigo data de 26 de agosto de 1781, tendo como inventariada Genoveva Maria das Flores e seu inventariante Alexandre Lopes do Valle. Constavam entre os bens arrolados: três escravos, morada de casa de sobrado de taipa com pilares de tijolos na beirada do rio São Gonçalo, terras na vila, mesa redonda, tamboretes, mesa de pau branco, catre, sítio de terras, caixas de açúcar mascavo, canas, mandiocas, portas, janelas, torneiras, oratórios, dotes, telhas e dívidas21. Em 24 de outubro de 1783, os bens de Antonio de Souza Benavides foram inventariados por Francisco de Souza Campos. O documento apresentou, entre outros bens, colheres de prata, tacho de cobre, roda de ralar mandioca, enxadas, machado, seis escravos e dotes22.

20

ALMEIDA, Joseph Cesar ferreira de. O Testamento no Âmbito da Herança: uma análise demográfica. Anais do XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Ouro Preto/MG: ABEP, 2002. Disponível em: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2002/GT_His_PO17_Almeida_texto.pdf, acesso em: 10/02/2016, p.1. 21 Inventário 26.08.1781, São Cristóvão, Ref. Arq. SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 01-14, 72p. 22 Inventário 24.10.1783, São Cristóvão, Ref. Arq. SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 01-14, 54p.

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O inventário dos bens de Joze Cardozo de Santa Anna e Cardula Maria de Sam Joze foi feito por Luiz Pinto de Rezendes em 02 de janeiro de 1788, relacionou fivelas de ouro, fivelas de liga de ouro, fivela de pescoço de ouro, brinco de ouro, breve de ouro, botões de punho de ouro, laços de ouro, anel de ouro com pedras, alamares de ouro, boceta de prata, cabos de faca de prata, garfos de prata, argolas de prata, colheres de prata, caixa de prata, florete de prata, saias de cetim, saias de veludo, toalhas (renda, pano, algodão), retalho de chita, alfinetes de prata, meias de algodão, chapéus, capote, frasqueiras, chambre, jarro e bacia de estanho, rede, copo de vidro, sopeira, camisas, catre, caixa de despejo, casaca, garrafa, cama da Índia, cabeleira, candeeiros, mesa de pau branco, hábito de São Francisco, cadeira de encosto de couro, enxadas, vinte e dois escravos, bois, garrotes, novilhos, cavalos, selas, estribos, Engenho de fazer açúcar denominado Gameleira (com todos os acessórios de formas, uma cadeira de cobre, tachos de ferro e de cobre, duas pombas, um reminol, uma repartideira, duas escomadeiras, tudo de cobre com todas as terras de matas massapê, com uma balança com o braço de ferro, com o peso de duas arrobas, outra de arrobas, outra de meia libra e outra de quatro libras e outra de duas libras, tudo de bronze, um martelo da caxaria, um escapelo grande, um pilão, uma rompeteira quebrada, caxador de casa de purgar, um coxo de caldo frio, dois de aparar mel, outros dois coxos de mel, bacia de resfriar de cobre), pasto, senzalas de escravos, casa de vivenda de sobrado com uma Capela da Invocação de Nossa Senhora da Guia com as imagens e mais alfaias, pães de açúcar, sítio e casa de morar23. Em 14 de maio de 1788, Joze de Freitas Brandão teve como sua inventariante Anacleta Rufina de Santa Anna. Dos bens relacionados contavam: brincos de ouro, voltas de contas de ouro, laços de ouro, botões de ouro, fivelas de prata, espadim, sete escravos, sítio de terras com pés de coqueiros, oratório com suas imagens, banco, caixa, catres, baú, mesa, tear com seus acessórios, machados, foices, enxadas, cangalhas, bolandeira, roda de ralar mandioca, morada de casas, caixa de jacarandá, mesa com gavetas, mala, cavadores, tamboretes, dote, gado cavalar, sítio de terras, tachos de cobre, dívidas. Contendo a Provisão de tutoria concendida a inventariante por D. Maria, rainha de Portugal24. Do inventário dos bens de Francisco Rodrigues Ferreira realizado em 28 de março de 1789 pela inventariante Maria Pereira de Jesus, foram listados: cinco escravos, gado, novilho, garrote, bezerras, pés de coqueiros, carro, enxadas, machados, cavadores, espingarda, serras, foices, imagem do Senhor Crucificado de marfim, imagem do Santo Antonio, banco de encosto, 23 24

Inventário 02.01.1788, São Cristóvão, Ref. Arq. SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 01-14, 139p. Inventário 14.05.1788, São Cristóvão, Ref. Arq. SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 01-14, 49p.

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mesa, caixa grande sem fechadura, baú de couro, frasqueira, roda de ralar mandioca, sítios de terras denominados Pau Grande, Santo Antonio, Limoeiro, tacho de cobre, casa de telha na cidade, porta, morada de casas no Socorro, colheres de prata, canas, dívidas, dote, sobrado. Contendo ainda a Provisão de tutoria concedida a inventariante por D. Maria, rainha de Portugal25. No inventário do Tenente Coronel Antonio Simoens dos Reis, que teve por inventariante Anna Maria da Victoria em 02 de agosto de 1790, encontraram-se relacionados dentre outros bens, um oratório grande com telha dourada com sete imagens, relicário de ouro, botões de ouro, brincos de ouro, colheres de prata, garfos de prata, fivelas de prata de sapatos, caixa de breve de prata, seis escravos, morada de casas de telha e de madeira branca, bolandeira, caixa, sela, tachinhos de cobre, roda de ralar mandioca, baú, mesas de pau branco, bacia e jarro de latão, bacia de cobre, enxadas, machado, foices, cadeiras de assento, imagem de Nossa Senhora da Conceição, dívidas. Constando também a Provisão de tutoria concedida a inventariante por D. Maria, rainha de Portugal26. Joze de Souza de Menezes teve seus bens inventariados, em 26 de abril de 1794, por Joze Teles de Menezes arrolando colheres de prata, seis escravos, bois, garrote, bezerros, vacas, novilhos, carro, mandioca, roda de ralar mandioca, mesa, caixinha, foices, machados, serras, enxadas, tachos, selas, banco, tabaco de fumo, tamboretes, sítio de terras com benfeitorias, redes, bacia de cobre27. Em 14 de julho de 1794, Antonio Cazimiro Leite foi o inventariante dos bens de Jozefa Maria de Serqueira, constando dentre outros bens, espadim, fivelas de prata, três escravos, morada de casas de sobrado com parede de pedra até o envergamento da rua, livraria de quinhentos livros, dos quais 68 tomos pequenos de História Eclesiástica vendidos ao Reverendo Padre Domingos Vieira de Mello, bofete de jacarandá, caixas, pratos finos rasos, fracos, castiçal de latão, cadeiras de encosto, cadeiras, catre, tacho de cobre, cama de jacandá, candeeiros de latão, sopeira grande da Índia, mesas, caminha, bancos, imagem de Santo Antonio pequeno, imagem do Santo Cristo, Santa de marfim, rede de varanda, sítio de terras com casas de telha e pés de coqueiros, cabo de chicote de prata, colheres de prata, morada de casas na rua São Francisco, cavalo, dote e dívidas28.

25

Inventário 28.03.1789, São Cristóvão, Ref. Arq. SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 01-14, 85p. Inventário 02.08.1790, São Cristóvão, Ref. Arq. SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 02-15, 54p. 27 Inventário 26.04.1794, São Cristóvão, Ref. Arq. SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 02-15, 79p. 28 Inventário 14.07.1794, São Cristóvão, Ref. Arq. SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 02-15, 44p. 26

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Por fim, foram inventariados em 27 de novembro de 1795 os bens de Aguida Francisca de Goes, tendo como inventariante Francisco Xavier de Gouvea, listando como bens uma casa de taipa coberta de telha em terras do Engenho Itapuranga, canas, pães de açúcar, tachos de cobre, treze escravos e dívidas29. A preocupação permanente com a caridade religiosa e a posse de bens religiosos (de oratórios, imagens de santos e até uma biblioteca com livros eclesiásticos) por parte dos testadores e inventariados evidencia um comportamento social permeado pela influência exercida pelas ordens religiosas católicas estabelecidas em São Cristóvão. Salienta-se que Fixaram-se na cidade os religiosos Jesuítas (1597), Capuchinhos (1603), Carmelitas (1618 ou 1619), Beneditinos (1693) e por fim, os Franciscanos, que se tornariam proprietários de terras, gados e engenhos [...]. Igualmente o orfanato Imaculada Conceição, o Convento do Carmo, além das igrejas de São Francisco e da Ordem Terceira de São Francisco, da Misericórdia, da Matriz de Nossa Senhora da Vitória, de Nossa Senhora do Carmo, da Ordem Terceira do Carmo (Senhor dos Passos), de Nossa Senhora do Amparo, do Rosário e o Museu de Arte Sacra, são monumentos que compõem o acervo sacro do centro histórico30.

Nota-se ainda que três inventários possuem “Provisão de tutoria concedida ao inventariante por D. Maria, rainha de Portugal”, que traduzem um “ compromisso que a mulhertutora assumiu no gerenciamento dos bens da família e na educação dos órfãos setecentistas sergipanos”.31 Eram as inventariantes: Anacleta Rufina de Santa Anna (1788), Maria Pereira de Jesus (1789) e Anna Maria da Victoria (1790). Quanto às fortunas dos inventariados a pesquisadora Eugênia Andrade Vieira da Silva, em sua tese de doutorado, identificou sete dos nove inventários aqui tratados, desse modo, Antonio de Souza Benavides possuía um montante de 383$444, o casal Joze Cardozo de Santa Anna e Cardula Maria de Sam Joze perfaziam 13:100$615, enquanto Joze de Freitas Brandão sozinho acumulou 1:447$960, abaixo do valor anterior estavam Francisco Rodrigues Ferreira com 993$320 e Antonio Simoens dos Reis com 907$330, tendo Joze de Souza de Menezes

29

Inventário 27.11.1795, São Cristóvão, Ref. Arq. SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 02-15, 37p. Beijanine Ferreira da Cunha; BARROCO, Helio Estrela. Cidade de Sergipe D’El Rei: O Patrimônio e o Turismo no Centro Histórico de São Cristóvão, Sergipe. Revista Rosa dos Ventos, n.4(IV), out-dez, 2012, p.526. 31 SANTOS, Vera Maria dos. As tutoras e a educação dos órfãos da elite setecentista sergipana. Anais Eletrônicos do V Congresso Brasileiro de História da Educação – SBHE. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; Aracaju: Universidade Tiradentes, 2008. p. 1. Disponível em: http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe5/pdf/434.pdf, acesso em: 15/02/2016. 30ABADIA,

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elevado o valor para 1:198$116 e Jozefa Maria de Serqueira era proprietária do maior quantitativo individual com 1:860$67632.

Quando o post-mortem revela os hábitos e costumes da Comarca de São Cristóvão A leitura dos testamentos e inventários produzidos para serem publicizados no postmortem permite descrever os hábitos e costumes que norteavam parte da sociedade da Capitania de Sergipe D’El Rey. Tratando da vida familiar e das condições de privacidade nos domicílios coloniais, a historiadora Leila Mezan Algranti ressaltou o caráter estratificado da sociedade colonial cuja condição legal era balizada por brancos e negros, livres e escravos.33 Nesse sentido, os inventários pesquisados na Comarca de São Cristóvão revelam a posse de terras e homens, de sítios, fazendas e escravos nos arrolamentos de bens, delimitando as hierarquias sociais sergipanas no setecentos. Dos nove inventários pesquisados, oito apresentam a propriedade de escravos entre os bens listados. E dentre os seis testamentos apresentados, cinco revelam a posse de escravos, sendo que em apenas um deles, tendo por testadora Escolástica de Almeyda de Mendonça (1790), há uma determinação para a concessão de alforrias. Era costumeiro deixar alguma herança aos afilhados, além dos familiares. Esses dados aprecem em três testamentos (1790, 1794 e 1795). Os dados sobre a vida doméstica podem ser auferidos a partir da relação de mobiliários e utensílios do interior das casas listados nos inventários. Constam móveis de descanso ou de serviço como catres34, camas, caminhas, rede de varanda, bancos, bofetes, cadeiras de encosto, cadeiras de assento, mesas e tamboretes sugerindo um maior interesse em acolher de modo mais confortável familiares e amigos nas residências, além de evidenciar uma disponibilidade financeira para adquirir tal mobiliário em um período e zona geográfica onde não haviam tantos artesãos especializados nesse ofício.

32

SILVA, Eugênia Andrade Vieira da. 2013. Op. cit, pp.47-49. ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (Org.) História da vida privada no Brasil, vol.1 (Cotidiano e vida privada na América portuguesa). São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p.85. 34 Cama de viagem dobrável; leito tosco e pobre. 33

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Ainda sobre as relações de sociabilidade nas casas, Algranti refere-se a colheres e garfos como objetos raros, usados em ocasiões especiais, denotando a precariedade dos utensílios nas refeições. Dese modo, aportando-se em relatos de viajantes, enfatizou Garfos, então, se já eram raros no Reino e em quase toda a Europa, na Colônia praticamente não existem. Seu uso só será generalizado no século XIX. Em todas as classes sociais comese com as mãos, mesmo ao se entrar no século XIX. Por essa época, visitando Salvador, Lindley observou que “era costume do país comer com as mãos, mesmo que os convidados fossem finos”.35

Por outro lado, em Sergipe D’El Rey encontram-se nos inventários de 1783 a 1794 uma lista de colheres de prata, cabos de faca de prata, garfos de prata, copo de vidro, sopeiras e pratos finos rasos. Também o testamento de Archangela Pereira de Almeida (1793) inclui garfos de prata na partilha dos bens, indicando a apreciação de “costumes requintados e raros” à mesa. Para o cuidado com a iluminação das moradias ao anoitecer são arrolados candeeiros e castiçal de latão relacionados nos inventários sergipanos. Conforme Algranti: “Em geral queimava-se óleo nos lampiões, candeias e candeeiros de latão, disponíveis em vários tamnhos, com ou sem vidro”36. Aliás, ouro, prata, cobre, latão e marfim, além da madeira e do couro, eram a matéria prima de vários objetos de adorno pessoal ou uso doméstico em Sergipe D’El Rey. Encontram-se fivelas de ouro e prata, anel de ouro, brincos de ouro, botões de punho de ouro, laços de ouro, boceta de prata, argolas e caixas de prata, jarro e bacia de estanho ou de latão, caldeira de cobre, tachos de cobre, imagem religiosa de marfim, baús de couro e mobiliário de jacarandá, demonstrando a diversidade/complexidade de circulação (importação) e confecção das peças em uso. Dois inventários de 1788, um do casal Joze Cardozo de Santa Anna e Cardula Maria de Sam Joze e outro de Joze de Freitas Brandão, ressaltam a posse de uma expressiva quantidade de ouro em adornos de uso pessoal. Esses ornamentos são indícios da vaidade de homens e mulheres, do hábito de presentear esposas e de ostentar a riqueza como signo de distinção social na cidade de São Cristóvão, uma vez que:

35 36

ALGRANTI, Leila. Op. cit, p.122. Idem, ibidem, p.130.

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[...] roupas, acessórias e jóias, criaram uma linguagem não-verbal de comunicação em que o prazer de ser visto e exibir-se ao olhar do outro tornara-se a “experiência mais importante” para a população colonial praticamente analfabeta37.

Quanto aos hábitos alimentares chamam atenção utensílios como os tachos de cobre. Além da produção do alimento salgado (carnes e peixes), a cultura do açúcar nos engenhos, a referência ao açúcar mascavo, mel, pés de coqueiros, pães de açúcar, marcaram a tradição da feitura de doces em São Cristóvão. Dos doces de compotas às queijadas – que em Sergipe D’El Rey teve na receita portuguesa, aqui preparada por escravas, a substituição do queijo pelo coco – coube à figura feminina um lugar de destaque na preparação dos alimentos. Conforme a pesquisadora portuguesa Isabel Drumond Braga: [...] a abundância de açúcar combinada com a imensa variedade de frutas e com o conhecimento da doçaria portuguesa foi responsável pela proliferação de muitos doces, quer de ovos, quer de frutas. Mesmo nas regiões em que não se produzia açúcar, caso do Sul do Brasil, a tradição doceira foi e é importante. A exportação do charque do Rio Grande do Sul permitia a importação do açúcar nordestino, dando origem a uma doçaria variada e abundante38.

Havia ainda “[...] a farinha que precisava ser lavada, esprimida e cozida antes de se transformar nos bolos e pães”39, desse modo, a integração no fabrico de farinha de mandioca transparece em seis inventários que listam entre os bens: mandiocas e rodas de ralar mandioca. Costumes portugueses, africanos e indígenas mesclavam-se no cotidiano dos grupos sociais sergipanos, fosse na alimentação colonial, como nas práticas e instrumentos de trabalho. Uma atividade doméstica de trabalho que compreendia homens e mulheres na sociedade colonial era a fiação do algodão para a confecção de roupas e redes. Identificam-se nos inventários de Sergipe D’El Rey: toalhas (renda, pano e algodão), redes de varanda, retalho de chita e um tear com seus acessórios. Segundo Algranti:

37

JANUÁRIO, Erlaine Aparecida. Jóias de adorno, como investimento e de devoção. Disponível em: http://www.ichs.ufop.br/memorial/trab/h8_4.pdf, acesso em: 16/02/2016, p. 1. 38 BRAGA, Isabel M. R. Mendes. Sabores do Brasil em Portugal. Descobrir e transformar novos alimentos (séculos XVI-XXI). São Paulo: SENAC-SP, 2010, p.147. 39 Idem, ibidem, p.144.

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[...] o trabalho permeou o cotidiano dos indivíduos e trouxe dinamismo ao interior dos domicílios, fosse ele dirigido para a subsistência e consumo dos moradores, fosse voltado para o mercado.40

Salienta-se também a criação de animais como ocupação tendo em vista: bois, vacas, novilhos, bezerros, cavalos, bestas, gado cavalar e pastos listados nos inventários. Lembrandose que alguns animais eram utilizados na empresa açucareira. A cultura da cana de açúcar também se materializa nas bolandeiras41 legadas em dois inventários (1788 e 1790), além dos vários engenhos constantes em testamentos e inventários. Rafael Ribeiro ressalta ainda que as culturas do tabaco e da cana-de-açúcar, aumentaram o comércio local, ocasionando a circulação de novos produtos, impulsionando mercados, a criação e ampliação de novas vilas e cidades, influenciando na vida social da Bahia e de Sergipe D’El Rey42. Na listagem dos inventários a presença constante de tabaco de fumo, canas, caixas de açúcar, enxadas, machados, engenhos de fazer açúcar equipados, cavadores, foices, serras, escravos, aliada aos demais produtos requintados outrora citados e a criação de novas vilas pelo Ouvidor Diogo Pacheco de Carvalho corroboram a afirmação de Ribeiro. Do rol arquitetônico nas propriedades inventariadas observam-se casas de sobrado de taipa com pilares de tijoloso, casas de vivenda de sobrado com Capela, casas de telha e de madeira e terras com Engenho de açúcar completamente equipados, além das senzalas de escravos. Cruzando a documentação, identifica-se tanto nos testamentos quanto nos inventários pesquisados a presença de dívidas não quitadas. Essas informações repetem-se em três testamentos: de Francisco Jozé de Santa Rita (1794), do Alferes Francisco Jozé de Souza (1794) e de Maria Francisca da Silveira (1795). Já nos inventários, a mensão às dívidas aparece seis vezes. Em ambos os documentos também se revelam nos inventários a patente de Tenente Coronel do inventariado Antonio Simoens dos Reis (1790) e nos testamentos as patentes do Capitão Serafim Mendes de Souza (testamenteiro) em 1790, do Alferes Joze de Seixas Correya (testamenteiro) em 1794, do Alferes Francisco Jozé de Souza (testador) em 1794 e do Capitão

40

ALGRANTI, Leila. Op. cit., p.151. Grande roda dentada, nos engenhos de açúcar, que trabalha horizontalmente, por impulso do rodete. 42 RIBEIRO, Rafael. Op. cit, p. 8. 41

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Florencio Rodrigues dos Anjos (testamenteiro), também em 1794. Ao analisar a ocupação dos testamenteiros e inventariantes na Capitania de Sergipe D’El Rey, a pesquisadora Eugênia Andrade Vieira da Silva identificou que 2% de Capitães-mor das Entradas, 2% de Coronéis, 3% de Capitães-mor, 7% de Capitães, 9% de Padres, 11% de Alferes e 66% não possuiam cargos evidenciados. Dentre os inventariantes havia 1 Juiz, 1 Tenente Coronel, 2 Alferes, 2 Capitãesmor, 2 Sargentos-mor, 2 Tenentes e 6 Capitães.43 Nos séculos XVII e XVIII a mulher da alta casta social era uma moeda valiosa no sistema produtivo, pois o dote que trazia consigo era responsável por investimentos na viabilização material da família. De acordo com a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva: Quando um casal calculava o dote para a primeira filha que casasse, fazia um cálculo do seu patrimônio no momento e atribuía-lhe o equivalente à sua legítima, acrescentada no máximo com o valor calculado da terça parte dos bens de cada um e dos quais podiam dispor livremente. [...] por morte de um dos progenitores, só ia à colação metade do valor do dote, ficando a outra metade para quando morresse o segundo44.

Para o período estudado em Sergipe D’El Rey, a referência aos dotes deixados como herança foi encontrada em seis inventários, não aparecendo em nenhum dos seis testamentos relacionados. Ressalta-se, no entanto, que os estudos de Eugênia Silva afirmaram que uma parte expressiva (88%) da elite sergipana do século XVIII era composta de pessoas casadas45.

Considerações Finais O artigo aqui apresentado trata apenas a ponta do iceberg na identificação das hierarquias sociais, hábitos e costumes culturais na Capitania de Sergipe D’El Rey no período compreendido entre 1780 e 1795. Revela, entretanto, a possibilidade e mesmo necessidade do recurso à documentação cartorária (testamentos e inventários) para se trilhar as trajetórias de personagens que compuseram a elite econômica sergipana. Testamentos e inventários nos contam sobre as fortunas acumuladas, bem como sobre os destinos póstumos que seus proprietários encaminham junto aos seus testadores, inventariantes e tabeliões. As disputas pelas heranças não tornaram essa ambiência um 43

SILVA, Eugênia Andrade Vieira da. 2013. Op. cit, p. 45. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.21. 45 SILVA, Eugênia Andrade Vieira da. 2013. Op. cit, p.66. 44

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território pacífico, transparecendo quer nos confrontos violentos quanto nas contestações apresentadas nos próprios testamentos. As propriedades querem em seus aspectos econômicos ou sócio-culturais sugeriam a perpetuação de grupos com poder aquisitivo ostentatório. Os inúmeros documentos acondicionados no Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe possuem dados ricos em informações sobre os modos de vida que nos dão a antever as relações de sociabilidade nas quais várias famílias estavam imersas. Certamente, um estudo como esse – se ampliado em seu recorte cronológico e geográfico – será responsável por complementar as lacunas ainda existentes na historiografia sergipana colonial, contrapondo dados, salientando contradições, enfim, apresentando um quadro mais profundo da sociedade que vivia à serviço d’El Rey.

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e Almas de Itabaiana, uma das que se criaram na Capitania de Sergipe del Rey. Escolhido João da Costa Feio (desistiu). Nº Inventário: 075, Caixa: 01, Documento Nº: 80, Ano de Emissão: 1700, Mês de Emissão: junho, Dia da Emissão: 16, Local da emissão: Lisboa, Ementa do documento: Consulta do Conselho Ultramarino referente a nomeação de pessoas para propriedade do ofício de Tabelião do Público Judicial e Notas da Vila de Santo Antônio e Almas de Itabaiana. Escolhido Manuel João do Cabo (Anexo: 1 doc.). Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe (AGJ-SE): SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 01 (Testamento 07.03.1780, São Cristóvão; Testamento 04.10.1790, São Cristóvão; Testamento 14.02.1793, São Cristóvão; Testamento 17.06.1794, São Cristóvão; Testamento 01.09.1794, São Cristóvão; Testamento 01.04.1795, São Cristóvão). SRC/C.1ºOF. Inventários. Cx. 01-14 (Inventário 26.08.1781, São Cristóvão; Inventário 24.10.1783, São Cristóvão; Inventário 02.01.1788, São Cristóvão; Inventário14.05.1788, São Cristóvão; Inventário 28.03.1789, São Cristóvão); Cx. 02-15 (Inventário 02.08.1790, São Cristóvão; Inventário 26.04.1794, São Cristóvão; Inventário 14.07.1794, São Cristóvão; Inventário 27.11.1795, São Cristóvão). Bibliografia ABADIA, Beijanine Ferreira da Cunha; BARROCO, Helio Estrela. Cidade de Sergipe D’El Rei: O Patrimônio e o Turismo no Centro Histórico de São Cristóvão, Sergipe. Revista Rosa dos Ventos, n.4(IV), pp. 522-535, out-dez, 2012. ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (Org.) História da vida privada no Brasil, vol.1 (Cotidiano e vida privada na América portuguesa). São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p.83-154. ALMEIDA, Joseph Cesar ferreira de. O Testamento no Âmbito da Herança: uma análise demográfica. Anais do XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Ouro Preto/MG: ABEP, 2002. pp.1-22. Disponível em: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2002/GT_His_PO17_Almeida_texto.pdf, acesso em: 10/02/2016. BIBLIOTECA NACIONAL. Anais da Biblioteca Nacional. Vol. 93, 1973. Rio de Janeiro: BN, 1974. BRAGA, Isabel M. R. Mendes. Sabores do Brasil em Portugal. Descobrir e transformar novos alimentos (séculos XVI-XXI). São Paulo: SENAC-SP, 2010. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Inventários e Testamentos como fontes de pesquisa. Unicamp, 2005. Disponível em:

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