Eu, Leão R., comi o Marquês de Pombal

July 17, 2017 | Autor: Eduardo Pellejero | Categoria: Literatura
Share Embed


Descrição do Produto

EDUARDO PELLEJERO

EU, LEÃO RIVIÈRE, COMI O MARQUÊS DE POMBAL (Trad. do espanhol por Susana Guerra)

As sessões podiam durar toda a tarde. O trabalho de um artista da corte é o das cuidadosas modulações e dos meditados retoques. Também o da ociosa inspiração. Não conhece, nunca, as reclamações da necessidade nem a fome do novo que infernizam a vida dos espíritos fortes. O tratador vinha buscar-me depois do meio-dia e arrastava-me até ao salão que dava para o jardim. Bermudes, o arquitecto, já estava ali desde a manhã. Geralmente cumprimentava-me com respeito, e eu não o despreciava, mas em seguida distraía-me com os rascunhos, que logo encheram as paredes de todos os salões do rés-do-chão. Por medo, por precaução, por estupidez, costumavam exagerar a minha ração, o que me mantinha atordoado por algumas horas. Deixar que me passassem a mão pela cabeça não me custava nada. Arnaldo falava-me dos seus problemas enquanto revia os seus apontamentos e, ainda que muitas vezes tivesse tido uma palavra para ele, a sua voz era para mim como um acalento, e às vezes adormecia, sem querer. Os sonhos eram numerosos e exuberantes. Os tormentos da cela e o estrondo do circo voltavam ciclicamente. Não era raro que despertasse com o nome cristão nos lábios, mas a confusão do movimento da praça apoderava-se rapidamente da confusão do sonho, e talvez eu também quisera esquecer. Resignava-me a isso do mesmo modo que suspeitava as drogas na tenra carne de borrego e comia-a com vontade. O marquês e a sua gente não chegavam nunca antes das quatro. Era uma corte como não havia visto jamais, embrutecida pela possessão do poder e dos faustos de um reino que se afogava no ouro. Não me envergonha admitir que secretamente me intimidavam. Para além dos portões havia ouvido repetidamente as vozes de protesto, mas sobretudo havia ouvido os ecos da repressão. Na pompa dos uniformes nunca faltavam as armas, que não dissimulavam o uso, e o patíbulo de Belém só era superado em actividade pelas obras da Baixa, donde ressurgia a cidade, que eu tinha visto abater-se sobre a sua miséria como um castelo de cartas, e que como um castelo de cartas era levantada, para fascinação do povo. A presença da condessa de Orey era um sopro de ar fresco entre tanta besta política. Podia passar horas ouvindo-a falar dos princípios da representação clássica, que aborreciam de morte o resto da gente, e Arnaldo sabia que jamais me comportava melhor que quando ela

1

participava das veladas, pelo que fazia questão de que fosse especialmente convidada. A beleza não era o menos notório dos seus atributos, mas podia ser mordaz na conversação, e o certo é que os homens a evitavam, por temor a ser humilhados em público, o que de qualquer dos modos acontecia com alguma frequência. O formalismo lógico e a erudição inútil, para além do mais, dominavam as nossas conversações. A intriga, que regia os dias desses homens desiguais, não entrava no estúdio de Arnaldo, e a verdade é que entre nós vivia-se como se nada no mundo fosse urgente. Essa espécie de acordo tácito pesava sobre todos como o efeito de um licor, delicado e ligeiro, mas sufocante. Quando era quebrado por algum dos habituais, raramente tardava em ser excluído das reuniões pelos homens mais próximos do marquês, que desesperava só de ver misturar-se os assuntos quotidianos do reino com a cunhagem da sua glória. Então voltava a entregar-se à imobilidade da posse com a disposição das primeiras sessões, numa espécie de êxtase religioso, como se nada o fizera mais feliz que a observância da sua vontade, coisa que Arnaldo agradecia e a mim não me incomodava. Este costume comportava algumas excepções, não obstante, que ao final acabariam por minar o ambiente de desconfianças. Exemplo. Uma tarde chega Cerejeira com um conto do mais estranho. Ao que parece, um dos homens do rei, que recentemente havia tido um desentendimento com Pombal pela questão da intervenção das universidades, se havia atirado à jaula dos leões do jardim das feras, que é a forma irónica que costumam usar para se referirem à prisão. Havia procurado a morte do pior dos modos, segundo se entende, e tinha-a encontrado, pressuponho que sem querer, do tremendo golpe que dera na queda, não de meus irmãos, que em todo o caso também não terão despreciado a imprevista refeição. Não pude deixar de notar que, enquanto o ouvíamos, muitos dos presentes me observavam com algum receio. Mas eu não conseguia tirar a vista da guarda do marquês, e profundamente temia por todos, porque as suas mudanças de humor eram cada dia mais habituais. Noutra oportunidade, em que gozávamos da visita dos Marqueses de Távora, falou-se de dinheiro com alguma incomodidade, e eu fui obrigado a retirar-me, junto com Arnaldo, para que pudessem tratar do assunto à vontade. Quando fomos chamados outra vez, os marqueses já não se encontravam entre nós, coisa que lamentei, porque o círculo das veladas estreitava-se de dia para dia, e eram cada vez mais raras as ocasiões que tinha de ver caras novas. Um mês depois o nome dos Távoras surgiu novamente associado a uma conspiração malograda. Nunca se duvidou da habilidade do marquês para enterrar os seus mortos, e a verdade é que foi a última vez que os ouvi nomear. O trabalho de Arnaldo evoluía a bom ritmo, mas não tão rápido como a situação; a

2

estátua representava cada vez melhor a figura de Pombal, mas Pombal cada vez menos representava a alguém. Voltávamos ao tema da estatuária com algum esforço, mas também com alívio. Orey insistia na necessidade de reforçar o motivo principal com uma série de esculturas subsidiárias, que denotassem o trabalho dos diferentes quadros populares sob a direcção do marquês, num momento em que muitos, passado o entusiasmo inicial pela grandiosidade das obras públicas, começavam a sentir a necessidade de ostentar um certo progressismo. Recordo isto com algum pesar, porque sempre quis crer que a condessa não estava comprometida nos assuntos de Pombal, que de qualquer modo despreciava as suas ideias. Na discussão podiam ser bruscos, e eram-no, em fim, muitas vezes ao cabo de uma sessão. A mim, que desconhecia as maneiras da corte, que outra coisa me restava fazer que tratar de manter-me à parte? Pombal era o pior de todos. Às vezes levantava-me a voz como se não valesse nada. Em vão procurava que esses agravos não me tocassem. Uma tarde aplicou-me o predicado das bestas. Outra, cuja lembrança me infama, correu-me a pontapé da sala, até ao jardim. Os demais deixavam-no fazer, e em geral festejavam os seus ímpetos. Só a condessa de Orey se mantinha à parte, como se toda a situação a aborrecesse um pouco, e nada me magoava mais que isso. Comecei a calar-me cada vez com mais frequência. Muitas vezes era difícil conter-me, mas não dizia nada por muito que me doesse. Fazia o meu trabalho sem proferir o menor comentário e tratava de não pensar em nada. Esse obstinado silêncio, que exemplificava pouco para eles, que não denotava nada em si, representava para mim uma verdadeira libertação. Se me era impossível evitar toda a reacção, ninguém o lamentava mais que eu, e a verdade é que às vezes, sem me dar conta, movia a cabeça para assentir a alguma proposição de Arnaldo, ou para manifestar a minha indignação ante um comentário da condessa, de quem me era mais difícil que de ninguém admitir um erro. A corte, em geral, demostrava a sua cultivada indiferença, mas Pombal, que era mais para o medroso, costumava recuar. Uma tarde, falando dos símbolos com denotação nula, Orey quis concluir uma diferença essencial entre as representações do unicórnio que caçam as virgens e as representações do Japão. Não era a primeira vez. Será possível? O Japão não existe. Quantas vezes tinha que repeti-lo? Talvez tenha movido a cabeça com excessivo ênfase. Pombal deu um salto para traz e caiu, desarmado como um boneco, entre a compungida solidariedade da sua guarda. Ia abrir a boca, para desculpar-me, quando me bateu a primeira garrafa. Pareceu-me que os demais riam. Tinha sido uma longa jornada. Pombal, guinchando como uma mulher, atirava-

3

me todo o tipo de objectos desde um dos cantos da sala, onde se havia parapeitado, e proferia insultos ridículos, que eram para todos e para nenhum, mas que me alcançavam mais que nada a mim. É algo que teria deixado passar noutras circunstâncias, mas eu tinha visto desaparecer gente mais importante que eu por menos, e compreendi que não podia deixar de defender-me. Disse que eu ali já não servia para nada. Disse-me a mim. Se equivocava. O trabalho do arquitecto, que me dera um lugar tão importante no conjunto, não me denota a mim sem exemplificar a nobreza e a força que caracterizam os da minha espécie, metaforicamente enobrece e fortalece a sua desmaiada imagem, amaneirada na pintura de Rego, mais viril graças a mim, por uma vez, na obra de Arnaldo, que nos unirá, por fim, para a eternidade perecedoura do bronze, num símbolo que seguramente saberão explorar os poderes de turno. Não lhe respondi. Mais fácil, mais irracional, mais próprio do que sou também, saltei-lhe em cima. O sabor da carne morna na boca trouxe-me a recordação dos dias no deserto, o odor das feras assustadas, a amizade e o respeito dos meus. Não me tirariam isso os paus. Só, agora, na tranquilidade da cela, espero a hora da morte. O sacrifício, segundo me dizem, será de madrugada. Tenho consagrado a noite ao exercício inteligente da memória e à infinita beatitude da digestão. Levam horas dobrando os sinos, mas não conseguem apagar o clamor do povo, que há saído uma vez mais à rua. Quero crer que não sou apenas o vazio que encherá oportunamente o bronze impuro das fráguas reais, nem a figura emblemática de uma heráldica infame que mansamente celebrarão gerações vindouras, levantadas sobre o esquecimento de tudo o que se passou, e do que passará. Quero crer que sou também o outro, o indomado, o forte, que um olho de água, numa caverna, na Etiópia, me revelou uma vez.

4

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.