\"Eu não sou feminista\" - Estudos de gênero em Marina Abramovic

July 23, 2017 | Autor: Gabriela Paes | Categoria: Gender Studies, Feminism, Marina Abramovic
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EU NÃO SOU FEMINISTA: DISCUTINDO RELAÇÕES DE GÊNERO NO BRASIL A PARTIR DAS OBRAS DE MARINA ABRAMOVIC Gabriela Paes dos Santos Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Professora Orientadora: Carla Andréa Silva Lima

Introdução

Esta é, a meu ver, a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: deshabituar, des-mecanizar, escovar a contra-pêlo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial... (Fabião, 2008, p.237)

Marina Abramovic (1946, –) é uma artista sérvia que, autodenominada a “avó da performance arte”,

tornou-se um ícone das artes performáticas por seus trabalhos que

abordam a exploração dos limites mentais e físicos, e os questionamentos sobre as relações entre artista e público. Ainda na infância, ela iniciou seu percurso artístico por meio da pintura e realizou sua primeira exposição aos dezesseis anos de idade. Dez anos depois, Abramovic começou suas pesquisas no campo da performance, empregando a dor física e psicológica e, literalmente, o próprio sangue como suportes para sua criação. Também nesse período, ainda em Belgrado, sua cidade natal, ela executou alguns de seus trabalhos mais conhecidos, como “Rhythm 0” (1974), em que a artista fica “exposta” durante seis horas, juntamente com setenta e dois objetos diferentes ( incluindo uma tesoura e um revólver carregado) para a livre intervenção do público sobre seu corpo; e “Rhythm 10” (1973), no qual ela trespassa vinte tipos de facas diferentes entre os dedos o mais rápido possível, trocando de acessório a medida em que se fere com cada um dos objetos. Filha de partisans comunistas1, Abramovic relata que passou por uma infância traumática, marcada pela falta de carinho maternal e pelas inúmeras restrições impostas pela mãe. Sob o olhar vigilante da matriarca, que impunha até mesmo toques de recolher a ela e a

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Partisan é o nome dado a pessoas que lutam em grupos, normalmente secretos, contra forças de dominação. Exemplo disso foi a resistência iugoslava às tentativas de ocupação alemã, durante a II Guerra Mundial.

seu irmão mais novo, a artista conta que “é completamente insano, mas todos os meus processos de me cortar, me chicotear, me queimar e quase perder minha vida em uma estrela de cinco pontas, todos foram feitos antes das 10 horas da noite.” (ABRAMOVIC, 1998, tradução da autora) 2. Aos vinte e nove anos, quando então se mudou para Amsterdã, Abramovic conheceu Ulay, artista alemão cujo verdadeiro nome é Frank Uwe Laysiepen e com quem estabeleceu vínculos amorosos e artísticos por mais de uma década. Durante esse período, eles desenvolveram conjuntamente pesquisas baseadas nas questões de superação física e psicológica, associadas aos princípios ritualísticos com os quais tiveram contato em diferentes tribos e aldeias da Europa e Oceania. Seus trabalhos desafiavam os modos ocidentalizados de compreensão do corpo e propunham a criação de um “estado de ser hermafrodita” (ABRAMOVIC, 1999, p.17), dissociado das relações culturalmente pré-estabelecidas entre masculino e feminino.

Objetivo e metodologia

A intensidade dos processos criativos ocorridos no período em que trabalhou com o performer alemão fez com que o trajeto artístico de Marina Abramovic se dividisse em três fases: seus trabalhos antes, durante e depois de Ulay. Dado isso, e considerando a grande quantidade de obras criadas durante todo o seu percurso artístico, a presente pesquisa debruçou-se sobre três trabalhos pontuais de Abramovic – sendo dois de autoria própria e uma reperformance3 –, descrevendo-as e analisando alguns dos entrecruzamentos possíveis entre as criações escolhidas e as questões de gênero que permeiam os cenários artístico e político brasileiros na contemporaneidade. Para o desenvolvimento da proposta, buscou-se estabelecer pontos de diálogo entre contextos culturais divergentes, reconhecendo semelhanças e diferenças sociais e históricas no que se refere às modificações do(s) corpo(s) feminino(s) e às relações entre homem e mulher na cultura ocidental, a partir de meados do século XX. Tomando a arte da performance como campo de questionamentos e subversão aos modelos recorrentes de pensamento, outras artistas significativas para a discussão de gênero, como Ana Mendieta, Orlan, Maureen 2

“It's completely insane, but all of my cutting myself, whipping myself, burning myself, almost losing my life in the firestar, everything was done before 10 in the evening”. Disponível em < http://en.wikipedia.org/wiki/Marina_Abramovi%C4%87> Acesso em 22 set. 2013. 3 Reperformance caracteriza-se pela reexecução de uma performance previamente realizada pelo mesmo artista ou por outro performer.

Connor, Valie Export, Isa Sanz e Márcia X também tiveram suas obras revisitadas, contribuindo para a verticalização do debate. É salutar, ainda, ressaltar que o próprio campo da performance arte caracteriza-se como

um lugar

em efervescência, de descobertas contínuas, de múltiplas leituras e

interpretações – por vezes até discordantes entre si. Conectada às transformações históricas e sociopolíticas de seu tempo, a performance consiste em uma arte de vanguarda, contestadora, sem nunca cerrar-se em um conceito único ou pronto. Sendo assim, a opção por abordar as relações de gênero no Brasil por esse viés artístico parte do entendimento de que a discussão do tema, de maneira análoga à performance, também apresenta-se como um debate amplo, multifacetado, dentro do qual inserem-se diferentes lutas e posicionamentos. Dessa maneira, em ambas as áreas, torna-se mais importante compreender percursos e apontar outras formas de enxergar a nossa realidade, no desejo de torná-la mais igualitária, do que impor soluções generalizantes ou padronizadoras. Ademais, esta pesquisa não busca justificar as questões brasileiras a partir do trabalho da artista sérvia, mas, como já apontado, descobrir e investigar, pela arte, diálogos entre realidades aparentemente distantes. A escolha pela performer dá-se pelo fato de Marina Abramovic ter se tornado uma figura importante para o debate ao ocupar espaços relativamente conservadores, como galerias e museus renomados internacionalmente, com suas provocações artísticas, além de contar com vasto material bibliográfico – o que, infelizmente, não ocorre com boa parte das(os) performers feministas. Deseja-se, assim, que o estudo das obras a seguir contribua para pesquisas futuras nestes campos do conhecimento e suas abordagens cada vez mais aprofundadas e desafiadoras.

Feminismos e femininos: o que cabe nas performances de Abramovic?

Eu estou bastante certa de que não sou uma feminista. Isto coloca você em uma categoria, e eu não gosto disso. Um artista não tem gênero. Tudo o que importa é se eles fazem arte de boa qualidade ou arte de má qualidade.4 (Abramovic, 2012, tradução da autora) Feminismo (com feminista anexado) deveria significar a crença na mulher, o suporte público dos direitos das mulheres,

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“I am very clear that I am not a feminist. It puts you into a category and I don't like that. An artist has no gender. All that matters is whether they make good art or bad art”.

a prevalência da influência feminina.5 (Fowler, 1965, tradução da autora)

Provocadora desde o início de sua carreira como performer, Marina Abramovic tem possibilitado aos seus espectadores inúmeras maneiras de ler e sentir suas obras. Dentre tais percepções de suas propostas artísticas, a ligação dos trabalhos da artista com os conceitos feministas tem sido continuamente discutida por pesquisadores(as) ligados(as) à área, curadores(as) e interessados(as) no assunto6. Embora ela mesma negue publicamente suas conexões diretas com o feminismo, o uso do próprio corpo (neste caso biologicamente feminino, além de autoidentificado como tal) como objeto e meio de pesquisa e os desafios/superações constantes de seus limites, inseridos no contexto sociopolítico ocidental atual, ainda marcado pela binaridade e hierarquização dos gêneros (homem sobre mulher), torna plausível o interesse pelo debate proposto. Na primeira performance estudada, Art must be beautiful (1975), realizada na cidade de Copenhague, capital da Dinamarca, Abramovic penteia-se durante uma hora perante o público e uma câmera, até ter o couro cabeludo sangrando.

Eu escovo meu cabelo com uma escova de metal na mão direita e simultaneamente o penteio com um pente de metal na mão esquerda. Enquanto eu faço isso, eu repito continuamente “Art must be beautiful, artist must beautiful” [a arte deve ser bonita, a/o artista deve ser bonita/o] até que eu machuque o meu rosto e danifique meu cabelo. (ABRAMOVIC, 2004, p.91, tradução da autora)

Considerando sua inserção em uma década marcada pelas transformações políticas e culturais resultantes dos movimentos liberais de 19687, o trabalho da artista relaciona-se, inevitavelmente, às críticas feitas pelo movimento feminista aos padrões de beleza impostos pela sociedade. Ao colocar seu corpo, despido, repetindo uma ação cotidiana até torná-la um ato de violência contra si mesma, Abramovic dialoga – mesmo que de forma não intencional – com as agressões provocadas pelas diversas intervenções estéticas às quais as mulheres são, até hoje, expostas diariamente. Se pentear os cabelos não é capaz, na rotina, de lhes ferir o 5

“Feminism (with feminist attached) should mean faith in woman, advocacy of the rights of women, the prevalence of female influence”. 6 Mesmo afirmando não ter conexão direta com o feminismo, Abramovic já teve seus trabalhos inseridos em diversas atividades culturais ligadas à temática, como a exposição WACK! Art and the Feminist Revolution e o simpósio The Feminist Future: Theory and Practice in the Visual Arts, ambos realizados no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa). 7 Os movimentos de 1968 tiveram como centro a França e se espalharam por grande parte da Europa, afetando também o Brasil, como reação às inúmeras medidas repressivas tomadas pelo governo ditatorial vigente no país desde 1964. O ano foi marcado pela busca da liberdade sexual, de expressão e pelas lutas dos grupos negros e feministas. Para mais informações, cf.VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. 3. ed. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.

couro cabeludo tanto quanto na performance, recursos ainda mais danosos ao corpo, como o uso frequente de maquiagens e roupas apertadas, além da realização de cirurgias plásticas, etc., configuram-se como ferramentas necessárias para atingir modelos de beleza e feminilidade pré-estabelecidos culturalmente. Da mesma maneira, a repetição da frase Art must be beautiful, artist must beautiful transforma-a em um mantra, um ideal a ser perseguido. Seu efeito quase hipnótico faz com que a sentença – inicialmente consciente e, pouco a pouco, reificada –, se configure como o motor da ação, assegurando que ela seja executada ininterruptamente, mesmo que isto prejudique o corpo da performer. O público é, assim, colocado em questão. Até onde é possível (e desejável) seguir para atingir os ideais padronizados de beleza? E ainda, quais atitudes cotidianas não são também resultantes de processos similares de coisificação? Já em Expansion in Space8 (1977), performada em Kassel, Alemanha, Marina e Ulay tentam expandir seus corpos “movendo duas largas colunas de 140 e 150 quilos, respectivamente” (ABRAMOVIC apud NIGIANNI, sem ano, tradução da autora) 9, o dobro do peso de cada um. Perante quase mil pessoas, os artistas subvertem os referenciais de limite físico e mental e, pouco a pouco, reorganizam o espaço arquitetônico a partir do sucessivo choque corporal com as colunas. Além de provocar o público com o ato em si, a performance – assim como boa parte das obras realizadas pela dupla durante o período em que trabalharam em conjunto – coloca em xeque o ideal de feminilidade/fragilidade versus masculinidade/força. Embora considerada por muitos como uma “verdade científica”

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, esta ideia é significativamente desestabilizada

ao longo da obra. Corpos biológica e anatomicamente diferentes, mas igualmente potentes. Retomando mais uma vez os debates feministas, pergunta-se: como, então, é possível defender a hierarquização entre os gêneros como um princípio “natural”?

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Em alguns materiais bibliográficos, é possível encontrar o trabalho também com o nome de Expanding in Space. 9 “(…) We tried to expand our bodies in the space by moving two large columns of 140 and 150 kilos respectively, twice the weight of our own bodies”. Disponível em < http://www.artandeducation.net/paper/marina-abramovic-presents-architectural-experience-as-critical-selfreflective-practice/> Acesso em 22 set. 2013. 10 Marina Fischer Nucci, em seu artigo “’O Sexo do Cérebro’: uma análise sobre gênero e ciência”, debate as questões relacionadas à validade da afirmação de que o corpo feminino é mais frágil do que o corpo masculino fazendo uma análise dos procedimentos de pesquisa utilizados pela ciência entre os anos de 1995 e 2009. Para entendimento mais aprofundado sobre o tema, cf. NUCCI, Marina Fischer. “’O Sexo do Cérebro’: uma análise sobre gênero e ciência”. 6º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, Brasília, 2010. Disponível em Acesso em: 22 set. 2013.

Por último, o terceiro trabalho, Action Pants: Genital Panic (in Seven Easy Pieces, 2007), consiste em uma reperformance da obra homônima elaborada pela artista austríaca (e feminista declarada) Valie Export. Ocorrida originalmente no ano de 1968 em um cinema de arte experimental em Munique, a proposta objetivava “desafiar a percepção clichê da representação histórica das mulheres no cinema como objetos passivos que tinham suas ações negadas” (EXPORT apud MANCHESTER, 2007, tradução da autora) 11. Durante a execução da performance, Export andava entre os espectadores usando uma calça recortada na região pubiana, de forma que as pessoas que se encontravam sentadas nos assentos tinham a vagina da artista diretamente ao nível dos seus olhos. Reapresentada durante sete horas por Abramovic, quase meio século depois, na galeria de Guggenheim, Alemanha, Genital Panic mostra que não perdeu sua força. Para a releitura do trabalho, ela utilizou as imagens feitas por Export em 1969, nas quais ela aparece sentada, com a calça igualmente recortada, portando uma metralhadora em seus braços. Percebe-se, durante a reperformance da obra, que a simples exposição da genitália feminina, entendida sumariamente como algo que é privado, sigiloso, resguardado, ressignifica toda a ação. Mesmo com a artista carregando uma arma de grande porte, a maioria dos espectadores direciona o olhar, a priori, aos órgãos genitais a mostra. Torna-se perceptível, com isso, a maneira como o rompimento com as fronteiras socialmente estabelecidas entre público e privado ainda é tida como algo quase impensável, uma ação de verdadeiro choque. Afinal, quais são os limites entre estas duas esferas? Até onde o corpo feminino pode ser exposto? Ao refletir sobre as três obras selecionadas e desenvolver algumas questões pontuais a respeito de cada uma delas, é possível notar que o debate sobre a relação entre os gêneros12 permeia o percurso artístico de Abramovic, muito embora esta não seja sua proposta central. Como provoca Mira Schor

Todos(as) os(as) artistas rejeitam leituras limitadas de seus trabalhos. Mas quando o trabalho lida claramente com o gênero e as relações generificadas [gendered] de poder, quando ele lida com a feminilidade, quando ele explora a sexualidade feminina e o corpo feminino, quando o trabalho usa o vocabulário dos temas generificados desenvolvidos pelas primeiras gerações do movimento artístico

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“(...) [This confrontation] challenged the perceived cliché of women’s historical representation in the cinema as passive objects denied agency”. Disponível em Acesso em 22 set. 2013 12 Para delimitar o foco da discussão, considero aqui apenas as relações entre os gêneros masculino e feminino.

feminista (...), como isto não é arte feminista? Por que isto ainda é um problema? (SCHOR, 2008, sem página, tradução da autora). 13

Mais a frente, a escritora ainda aponta que

Estas negações são uma indicação incômoda de que o feminismo continua a ser percebido como uma identificação controversa e perigosa. As mulheres ainda não querem ser vistas como artistas feministas porque isto poderia limitá-las a serem vistas como mulheres artistas e ninguém quer ser vista como uma mulher artista. “Mulher” ainda denota um status secundário dentro de um (ainda masculino, depois de todos esses anos) universal. Que isto deveria ser, ou deveria ser percebido como tal, o caso prova apenas que o feminismo ainda é uma análise política necessária da sociedade e uma ferramenta poderosa para mobilizar a produção artística que se engaja com a questão de gênero e a injustiça em todos os níveis. (ibidem, grifos da autora, tradução da autora) 14.

Embora sem se enquadrarem publicamente “em uma categoria”, as performances da artista sérvia subvertem, desconstroem e deslocam os padrões de gênero binários construídos socialmente. A partir desta contextualização histórica é possível enxergar alguns dos trajetos percorridos por Abramovic no que tange a ressignificação do corpo feminino e da dor como caminhos para a elevação quase ritualística de si.

Levando o corpo às suas últimas

consequências psicofísicas, a performer abre espaço para o florescimento de múltiplas possibilidades de discussão das relações entre masculino e feminino e suas afetações no corpo da(o) artista e de quem a/o assiste.

Costurando caminhos: as provocações das performances e o cenário brasileiro

No dia dezessete de agosto deste ano, o Jornal Hoje, noticiário televisivo de grande visibilidade no Brasil, divulgou uma reportagem sobre a quantidade de cirurgias plásticas realizadas no país. Ultrapassando os Estados Unidos, a população brasileira já é a que mais realiza este tipo de procedimento médico em todo o mundo, dentre as quais sete em cada dez operações possuem caráter estético.

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“All artists reject limited readings of their work. But when the work clearly deals with gender and gendered power relations, when it deals with femininity, when it explores female sexuality and the female body, when the work uses the vocabulary of gendered tropes developed by the first generations of the feminist art movement (…)how is it not feminist art? Why is it still such a problem?” Disponível em Acesso em 22 set. 2013. 14 “These denials are a troubling indication that feminism continues to be perceived as a controversial and dangerous identification. Women still don’t want to be seen as feminist artists because that would limit them to being seen as women artists and no one wants to be seen as a woman artist. “Woman” still denotes second-class status within a (still male after all these years) universal. That this should be, or should be perceived to be, the case only proves that feminism is still a necessary political analysis of society and a powerful tool for mobilizing the production of art that engages with the question of gender and injustice on all levels.”

Também em 2013, outra questão importante ganhou notoriedade e foi bastante discutida: o Estatuto do Nascituro. Lançado em 2007 e aprovado em junho deste ano, o projeto prevê direitos ao embrião, resguardando-o “de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (BASSUMA e MARTINI, 2007, p.2) que possam ser executadas por outro ser humano. Mas o que estes temas possuem em comum? Qual a sua relação com as performances apresentadas anteriormente? Se olharmos com cuidado, tanto os trabalhos desenvolvidos por Abramovic quanto ambos os assuntos se entrecruzam em um ponto-chave: as relações de poder impostas no/sobre o corpo feminino. Retomando os questionamentos feitos previamente, percebemos que, assim como sugeriram os movimentos feministas e as leituras sobre as obras da artista, a obrigatoriedade de seguir padrões de beleza pré-determinados e a ideia de soberania do homem (tanto como sujeito quanto na figura do Estado) sobre a mulher fazem com que esta tenha, muitas vezes, seus direitos de pensar e agir suprimidos, recalcados. Estas repreensões resultam não somente na autodesvalorização – fazendo com que uma parcela considerável da população feminina veja as intervenções estéticas como fórmulas mágicas para permanecerem jovens e belas – quanto na criminalização da mulher pelo Estado – o Estatuto do Nascituro prevê detenção de um a três anos para quem praticar o aborto, mesmo se a gestação for fruto de abuso sexual. O corpo feminino, diretamente afetado por essas problemáticas, é, então, coisificado, configurando-se como mero acessório social que, para assegurar a devida manutenção da moral e dos bons costumes, pode – e deve – ser continuamente remodelado, reconfigurado. Mesmo com as conquistas alcançadas desde o século passado pelos movimentos já citados, no Brasil, e em muitos outros pontos do planeta, a mulher ainda é vista como a figura maternal, doce, sensível, subserviente ao marido e aos filhos. Suas necessidades e seus desejos, sejam eles sexuais, profissionais, estéticos ou políticos, não só ficam, muitas vezes, esquecidos, mas também subjugados aos interesses heteronormativos. Assim, é aceitável, por exemplo, que uma mulher se interesse por sexo, desde que seja para, como garantem muitas reportagens em revistas voltadas para o público feminino, dar mais prazer ao seu parceiro ou torná-lo mais “interessado” na relação. Questionando essas linhas de pensamento, a arte da performance coloca-se como lugar de reflexão e subversão aos tabus, padrões, estruturas de poder e a tudo aquilo que é tido como “verdade incondicional”. Inseridas neste contexto, as questões oriundas do contato com as obras de Abramovic são motores potentes para fomentar o debate de gênero e compreender como a arte também é um fazer político.

Se, como aponta o Prof. Dr. José Márcio15 (2013, sem página), “a cultura nos faz humanos”, a performance arte nos faz pensantes. Radicalizando a máxima feminista de que “o privado também é público”, as/os performers exploram artisticamente os próprios limites psicofísicos, provocando continuamente a si mesmos e aos expectadores – posto que não são sujeitos passíveis, apenas, mas atores importantes do trabalho, preenchidos por expectativas sobre o que ocorre. Colocados em questão, ambas as partes são afetadas – mesmo que pelo asco, raiva ou aversão à obra proposta – e veem-se estimuladas a repensar muitos de seus próprios conceitos e crenças. Ainda, é importante ressaltar que um número crescente de artistas brasileiras(os), além de diversos eventos de performance, também têm ampliado, desde meados do século XX, a discussão a respeito das questões de gênero. Ludmila Castanheira, Marcelle Louzada, Flávio de Carvalho, Élder Sereni e Nina Caetano, bem como os festivais BodeArte (RN), Ruínas Circulares (MG) e Festival de Apartamento (SP), são alguns nomes deste universo artísticopolítico. Com ações que expõem desde as repressões religiosas sobre o corpo feminino, como ocorre em Laico, de Castanheira16, até a mercantilização da mulher como produto sexual – a exemplo dos trabalhos Performafunk, de Louzada17, e Eroticoelha, do Coletivo Parabelos18 –, tanto as/os artistas quanto os espaços de apresentação e discussão ampliam as fissuras existentes nos paradigmas sociais. Assim como fez Abramovic, em muitas de suas obras, as performances contribuem para a diluição de antigas verdades incondicionais e possibilitam o surgimento de outros olhares sobre as relações entre feminino e masculino.

Conclusão

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Professor Doutor José Márcio é do Curso de Ciências Sociais e Comunicação Social e do Programa de PósGraduação em Comunicação da PUC/Minas. Também atua como professor na Escola Guignard/UEMG, onde coordena o Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Ensino e Pesquisa. 16 Nas palavras da performer: “começo me despindo e vestindo um terno e gravata, equilibrando uma bíblia. A cada vez que a bíblia cai, tiro uma peça de roupa, até a nudez. Depois boto de volto a minha roupa, dobro e carrego o terno, e deixo a bíblia no espaço. Para mim (...), é curioso exibir um corpo feminino por debaixo da figura de um pastor... esse que, quase sempre, legisla sobre o mesmo corpo feminino”. (CASTANHEIRA, 2013, sem página) 17 Nas palavras da performer: “(...) tendo as letras do funk carioca como elemento norteador de pesquisa cênica, coloquei meu corpo em contato com a mulher animalizada, tratada nas composições como cachorra. Trajando a típica vestimenta das mulheres prontas para o baile funk, porém com coleira no pescoço e um colar elisabetano, muito utilizado em processos pós-cirúrgicos nos cachorros, para evitar que eles lambam as feridas, passeei pelas ruas do centros da cidade, oferecendo-me para ser a cachorra dos transeuntes e passear de coleira.” (LOUZADA, 2013, sem página) 18 Nesta performance, realizada na cidade de Natal (RN) durante o Festival BodeArte, a perfomer Denise Rachel oferece seus seios, cobertos de granulado e calda de chocolate, aos transeuntes do centro da cidade.

A partir dos materiais analisados, percebe-se que a discussão sobre questões vinculadas às relações de gênero tem, historicamente, ultrapassado limites geográficos e permeado diversos cenários culturais e políticos. Em constante transformação, o debate não se encontra encerrado em uma única verdade, mas pulverizado nestes diferentes grupos sociais, afetando e sendo afetado por eles, possibilitando diálogos e entrecruzamentos. Apesar dos avanços conquistados pelas primeiras gerações de feministas no século passado, ainda há muito para ser rompido e (re)pensado. Mesmo hoje, as inúmeras tentativas de padronização e hierarquização dos sujeitos pelo Estado e pela própria sociedade são visíveis, à medida que ambos buscam, muitas vezes, reduzir as subjetividades e a liberdade de pensamento de seus membros, em especial no que se refere aos corpos femininos. Utilizando tanto do aparato legal quanto da veiculação midiática, estes grupos dominantes passam a reger cada vez mais as decisões que, a priori, supõem-se individuais, como a compreensão sobre o que é beleza ou a decisão por ser ou não ser mãe. Neste contexto, ampliar as maneiras de debater e questionar esta realidade tem se mostrado importante para fomentar a reflexão sobre o tema e entremea-la a outras áreas do conhecimento. Analisando os trabalhos de Marina Abramovic, bem como os de outras(os) artistas – especialmente as(os) brasileiras(os) – , nota-se força da arte da performance como lugar de reflexão e engajamento político. O estudo das obras selecionadas mostra que a performance provoca, constrói possibilidades, subverte aquilo que é dado como natural, correto, aceitável. Muito mais do que mero suporte para discursos pré-existentes, este campo artístico desafia performer e público, convidando ambas as partes a se posicionarem como protagonistas sociais. Mais ainda, as artes performáticas, como sugere Louzada, escancara “o corpo ao movimento pulsante da vida, rompendo as amarras da produção-consumo a favor da produtividade criativa” (LOUZADA, 2013, sem página). Assim sendo, verifica-se que, a partir das conexões estabelecidas entre contextos tidos como distantes, foi possível abordar as questões de gênero por outros vieses. A pesquisa contínua nestas áreas não é só de grande valia para a abertura de outros caminhos de pensamento, mas também para mostrar como é possível à mulher questionar e assumir, na vida e na arte, papéis antes vistos como exclusivamente masculinos. A subversão da performance, com isso, deixa clara a importância de se discutir estes paradigmas em toda a sua potência criativa e crítica.

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