EU-PARA-MIM MESMO; O OUTRO-PARA-MIM; O EU-PARA-O OUTRO

June 14, 2017 | Autor: Brígida Campbell | Categoria: Arte contemporáneo, Espaço Publico
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EU-PARA-MIM MESMO; O OUTRO-PARA-MIM; O EU-PARA-O OUTRO Brígida Campbell Disciplina “Tensões entre intimidade e esfera pública na arte moderna/perspectivas na arte contemporânea” Sônia Salzstein

ECA - USP/2014/1

INTRODUÇÃO Este cartaz, ao lado, instalado na cabeceira da cama de um casal de amigos, faz parte de um dos meus trabalhos, chamado “Por novas práticas e espacialidades (2011)”; que consiste em uma série de cartazes em serigrafia desenvolvidos para ocupar o espaço público1. Sempre me interessei pela presença do “gráfico” na cidade: cartazes, placas, textos, imagens e todas as formas de comunicação urbana. Me interessa especialmente as formas de comunicação popular nas cidades e como as pessoas se apropriam destes meios das mais diversas formas. Como campo experimental para a arte percebi uma série de possibilidades expressivas nestes canais e desenvolvi, no decorrer do tempo, uma série de intervenções que buscavam se mimetizar com estes meios; panfletos, faixas, cartazes etc.

< Cartaz da série “Por novas práticas e espacialidades , Poro (Brígida Campbell e Marcelo Terça-nada!, 2011

1. Mais trabalhos aqui: www.poro.redezero.org

Me interessa muito estudar e produzir uma arte que atue diretamente na dimensão urbana, na esfera pública, que passe desapercebida e que se dilua no cotidiano de forma fluida, e que também de alguma maneira, influencie no imaginário presente na cidades, majoritariamente ocupada por publicidade. Esta produção gráfica criada inicialmente para a rua, circula também por outros lugares: espaços domésticos, espaços íntimos que fazem, a meu ver, no processo do trabalho, uma bonita relação entre “o dentro e o fora”, entre “a intimidade o espaço público”. Cria uma espécie de outro circuito para a Arte,

uma circulação fora os espaços institucionalmente criados para isso, (museus, galerias, centros culturais). Minha intenção com esses trabalhos é criar uma intervenção no cotidiano das pessoas e conectá-las de alguma forma com a ideia de uma “coletividade universal” que compartilha diversas questões comuns. Foi a partir desta observação que percebi que o espaço público não estava restrito a cidade em sua “parte de fora”. Mas os espaços íntimos e todas as outras formas de circulação (um pra um, boca a boca, internet) também compunham uma rede ampla e potente de circulação e debate.

ESFERA PÚBLICA ESPAÇO PÚBLICO

< Cartazes da série “Por novas práticas e espacialidades , Poro (Brígida Campbell e Marcelo Terça-nada!, 2011

A construção da “esfera pública” foi um longo processo e está ligada a ascensão do capitalismo e ao surgimento das cidades. Para Habermas (1997) a esfera pública é, “como uma rede de comunicação de conteúdos, de tomadas de posição e de opiniões, em sintonia com a prática comunicativa cotidiana”. Esta definição aponta para um universo, um espaço de trocas e de participação política coletiva. Inúmeras foram as mudanças neste conceito, desde então, incluindo mudanças radicais oriundas do desenvolvimento tecnológico e na própria percepção da noção de “público”. Aqui vamos assumir o termo “espaço público” para designar não apenas o espaço físico das cidades, ruas, praças, parques, prédios, públicos, (embora precise também destes espaços para acontecer) mas também o espaço desmaterializado onde acontecem os debates e acontecimentos públicos.

Esse espaço público ganha vida e é alimentado a partir dos mais diversos canais, sendo eles muitas vezes domésticos e íntimos. O espaço público contempôraneo, é o modo de negociação e articulação entre saberes, poderes e forças de interesses em conflitos em uma sociedade baseada na comunicação e no espetáculo. O espaço público, originalmente o lugar físico do debate público, com o desenvolvimento dos aparatos de comunicação e com todos os avanços tecnológicos, foi desterritorializado e os envolvidos nos debates estão nos mais diversos tempos e locais. Podemos pensar assim, na internet e nas redes de comunicação, como uma espécie de “espaço público expandido”, onde o debate se dá de forma orgânica e descentralizada. Podemos dizer ainda, que existem uma infinidade de “esferas públicas”, ou “espaços públicos”, uma vez que não há apenas uma questão central nos debates políticos, mas pelo contrário há uma série de situações e pensamentos consonantes e dissonantes. Entende-se também que essa multiplicidade de esferas não poderiam existir de formas isoladas, pois a relação entre elas é imprescindível para sua própria configuração. O Estado, os meios de comunicação, os movimentos sociais, as organizações-não-governamentais, enfim, às redes sociais construtoras do contexto contemporâneo. Então, para entender como a arte que se relaciona com essas práticas, é necessário pensar em uma arte que se relacione com os mais diversas esferas da vida (e não somente a esfera artística), e se insira neste campo complexo de relações e conflitos. O artista participa desta dimensão pública do debate de diversas formas que podem ser através da comunicação, intervenção, cooperação etc.

< Pixação no Centro de Sào Paulo

Me interessa pensar como a arte se infiltra neste território de disputa e ativa uma série de dispositivos de forma sutil e dinâmica. Seria interessante pensar aqui então, em uma “arte de interesse público”, e como as ações artísticas

colaboram e se inserem no “espaço público” abordando assuntos que são diretamente relevantes para a vida de todos. Qual o papel do artista nesta relação? Richard Sennet em seu livro “O Declínio do Homem Público”, aponta para o esvaziamento do espaço público, a partir da supervalorização da intimidade, da privacidade, do retraimento e do silêncio. Para o autor isso impede as pessoas de verem a verdadeira função da cidade: o encontro entre estranhos. Ele aponta ainda a importância da Arquitetura e do Urbanismo para o fortalecimento da casa como espaço para o refúgio da intimidade, que para ele é a força contraria à civilidade e a impossibilidade de se criar laços sociais pois “quanto maior a intimidade, menor a sociabilidade” (SENNETT, 1999: 325). E na construção das cidades, a supervalorização dos espaços para os carros e a transformação das ruas em meros espaços de descolamento, sem espaço para o ócio, o convívio e atividades lúdicas. A completa inversão desse modelo é proposta pelo autor: As pessoas somente podem ser sociáveis quando dispõe de alguma proteção mútua; sem barreiras, sem limites, sem a distância mutua que constitui a essência da impessoalidade, as pessoas são destrutivas, não porque a natureza do homem seja malévola [...] mas por que o efeito último da cultura gerada pelo capitalismo e pelo secularismo modernos torna lógico o fratricídio, quando as pessoas utilizam as relações intimistas como bases para as relações sociais (SENNETT, 1999: 379). A proposição do autor é o retorno, ou a instituição de uma vivência permeada pela ludicidade do jogo e de estratégias de interação social que facilitem o contato com a diversidade. A partir da colocação do autor, acredito que a mudança na forma de percepção do espaço público, ajude na construção de um imaginário público liberto da lógica individualista.

> Um dos cartazes da série “Por novas práticas e espacialidades , Poro (Brígida Campbell e Marcelo Terça-nada!, 2011

IMAGINAÇÃO PÚBLICA

< Lotes Vagos, Breno Silva e Louise Ganz, 2006-2009

A noção de Imaginário é bastante complexa, e possui uma multiplicidade de significado, sendo os mais comuns aqueles que conectam o imaginário a fantasia, o ilusório, o fictício, o irreal. Mas o campo do imaginário é também um campo político, pois a partir dele se configuram identidades e subjetividades coletivas e não está restrito ao campo da produção de imagens, onde é tradicionalmente usado, mas pode ser aplicado no domínio da vida social, pois pode ser entendido como uma rede de conexões, imagens e ideologias que nos fazem perceber a vida. A publicidade sempre esteve presente nos processos de participação política como braço direito do capital. Assim a publicidade aliada a outras estratégias de controle criam um imaginário presente no cotidiano e um forte filtro corporativo através do qual percebemos as coisas. Este imaginário construido pela publicidade e pelo capital privatiza os espaços públicos, fortalece os poderes vigentes e cria subjetividades. O que vem acontecendo com isso é a total privatização da vida, através dos aparatos de controle e comunicação.

Estas práticas privatizadoras constrõem um tipo de imaginário, e orienta também as nossas práticas espaciais. Se a noção de imaginário está ligada a um poder simbólico, podemos pensar então que um “imaginário público” estaria ligado a maneira como interpretamos e experienciamos o “público” em níveis simbólicos e subjetivos. Como as imagens/paisagens públicas/urbanas interferem nos processos de subjetivação contemporâneos, e ainda como experienciamos os lugares e territórios da cidade. Um trabalho que acredito conseguir se infiltrar para transformar o imaginário público é “Lotes Vagos” de Breno Silva e Louise Ganz, (2006-2009, Belo Horizonte e Fortaleza), em que a partir da observação de propriedades privadas (lotes vagos) que ficam ociosas a espera do início de uma construção, criam um processo de ocupação destes espaços, negociando com os proprietários o empréstimo dos lotes para uso público temporário. Eles criam ali, em contato com a comunidade do entorno, uma série de ações bem simples, como a instalação de um salão de beleza, um lugar para lavar carros, ver tv, lugar de descanso etc.

As possibilidades de ocupações livres, problematiza os modos de vida social hoje, abordando questões como as noções de propriedade, meio ambiente, ócio, comunidades, ética e estética. Os diversos processos de intervenção nos lotes foram feitos após negociações com seus proprietários, os quais emprestaram os lotes por períodos distintos, para trabalhos que envolviam as populações locais.

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O processo de construção urbana é hoje baseado na lógica do mercado, da especulação imobiliária, do estímulo à espetacularização dos espaços, e paralelamente vem aumentando a segregação e o medo entre os habitantes. Esse projeto de ação coletiva propõe outro caminho – realçar uma rede de espaços vazios, que são potências de respiração e invenção.

Lotes Vagos” de Breno Silva e Louise Ganz, 2006-2009

Neste movimento os artistas tornam-se agentes, mediadores sociais, que ativam temporariamente o convívio. Interfere nas pequenas táticas do habitat, provoca situações rápidas e perturbadoras, pequenos ruídos na entropia urbana, desarticulando, ainda que momentaneamente, as práticas e os hábitos culturais de grupos sociais distintos que dominam ou se deslocam por um determinado território. Também na dimensão do debate entre público e privado, e ainda sobre as formas de convivência contemporânea, dois trabalhos da artista gaúcha, Letícia Lampert nos mostram, de forma poética algumas maneiras de relacionar-se com a esfera pública nas cidades. No trabalho “Conhecidos de Vista” (2013) a artista cria uma video-instalação a partir do registro de casas de pessoas que vivem em prédios onde as janelas estão muito próximas uma das outras. Neste tipo de construção as pessoas passam a conviver com desconhecidos e mesmo sem conhecer as pessoas muitas vezes, fazem parte e se integram em seus cotidianos. Este projeto lança um olhar crítico e poético para uma situação cada vez mais comum no contexto urbano contemporâneo: prédios com janelas próximas demais e aponta ainda para o vazio das relações interpessoais nos espaços urbanos.

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Também em “A cidade e seus Avessos” (2011), ela explora a relação público/ privado focalizando em suas imagens o que está está dentro e o que está fora. As casas como pequenos aconchegos no meio do caos urbano são registradas em um jogo de negativo e positivo que vai revelando as relações na cidade.

“Conhecidos de Vista” (2013), de Letícia Lampert, vídeo instalação, 14”

Clique aqui para ver o vídeo http://vimeo.com/71093109

> “A cidade e seus avessos” (2011), de Letícia Lampert, Fotografia 200 x 150 mm

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A intimidade como exercício moderno está ligada ao culto do individualismo, e não podemos separar a construção cultural da intimidade dos processos de privatização no contexto do capitalismo neoliberal. Talvez a questão que nos seja colocada então, é a dificuldade de compreender a dimensão “pública” da vida e “compartilhar”, não no sentido em que as redes sociais deram a essa palavra, mas compartilhar direitos e deveres daquilo que possuímos em comum. Pensar o público não como pertencente ao Estado, ou a Cidade, mas aquilo que compartilhamos com todos. Pois “reproduzimos a cultura do individualismo para que possamos existir e, ao existir, deixamos de existir com o outro” (HISSA, 2011: 25). A Arte neste contexto, pode dar visibilidade para questões hegemônicas, cujo contexto global tenta reprimir. A arte propõe debates de outras formas, e atua no simbólico, no sensível e portanto no político. Acredito que o desenvolvimento de um outro imaginário criado e veiculado através da arte possa reinvidicar no contexto geral novas formas de percepção e a criação de um imaginário livre que colabore na produção de uma cultura política sensível.

CAMPBELL, Brígida, TERÇA NADA, Marcelo. Manifesto: por uma cidade lúdica e coletiva / por uma arte pública, crítica e poética, in Revista da UFMG, v.20, n1, Editora UFMG, 2013 HABERMAS, J. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade (v. II), Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1997 HABERMAS, J., Mudança Estrutural na Esfera Pública, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 2003 HISSA, Cássio. Entre Territórios [por entre notas]: convivências entre o público e o privado. In: caderno de textos do projeto “Muros Territórios Compartilhados”. Belo Horizonte, 2012. Disponível on line em www.muros.art.br GUEDES, Éllida. Espaço público contemporâneo: pluralidade de vozes e interesses. 2011. Documento eletrônico. SENNETT, Richard. O declínio do homem publico: as tiranias da intimidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1999 SILVA, Breno; GANZ, Louise Marie; CORTEZÃO, Simone; LINKE, Ines; CÉSAR, Marisa Flórido. Lotes vagos: ocupações experimentais = Vacant lots : experimental occupations. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas, 2009 Sites: www.leticialampert.com.br

SÃO PAULO. JUL. 2014

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