Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade

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NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

EU TIVE UM SONHO QUE NÃO FOI DE TODO UM SONHO1: CONSIDERAÇÕES SOBRE HISTÓRIA, LITERATURA E TEMPORALIDADE*

Diogo Cesar Nunes2

O sonho é ver as formas invisíveis Da distância imprecisa, e, com sensíveis Movimentos da esperança e da vontade, Buscar na linha fria do horizonte [...] Os beijos merecidos da verdade. Fernando Pessoa.

O filósofo Ernst Bloch, inquieto autor de um enciclopédico estudo sobre a Utopia, que vai desde peculiares análises existenciais do homem, da história e da realidade, até um profícuo inventário das ideias utópicas que mobilizaram e mobilizam a civilização ocidental, afirmou que “o que caracteriza o amplo espaço da vida ainda aberta e ainda incerta é a possibilidade de velejar em sonhos”. (BLOCH, 2005, p. 194). O sonho diurno, aquele que se tem quando acordado e projeta o futuro, na filosofia da Esperança de Bloch é o que anima o homem a querer mais, e, assim, ir adiante, dando sentido à existência. Pa ra Bloc h, a vida huma na é fe ita de inde te rmina ç ã o, pois e la se inc li [210] na sempre para o porvir. O futuro, síntese sempre inconclusa na dialética da existência, “ainda” ausente no plano empírico e ainda-não realizado no reino dos fatos, faz-se presente enquanto horizonte de possibilidades que alimenta e é alimentado pelo anseio, pela Esperança, o querer mais e querer diferente. Os sonhos não permitem que a realidade humana se limite e “I had a dream, which was not all a dream” é o primeiro verso do poema Darkness, de Lord Byron (1997, p. 72). * In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226. 2 Historiador, mestre em Psicologia Social (UERJ). Professor da UNIABEU Centro Universitário. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Subjetividade, Narrativas, Imagens (PPGPS-UERJ/Cnpq), nas Linhas de Pesquisa “Subjetividade e Cultura” e “Utopias, Distopias e Narrativas do Futuro”. 1

NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

encerre no aqui-e-agora. A realidade “ainda não foi elaborada e contém em sua margem coisas que se avizinham, que estão irrompendo”: ela é “mediação vastamente ramificada entre o presente, o passado pendente e sobretudo o futuro possível”. (BLOCH, 2005, p. 195-194). Deste modo, diz Bloch, “a limitação da realidade ao fato foi [é] bem pouco realista”. Como escreveu Walter Benjamin, “os fatos nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação” (BENJAMIN, 2011, p. 239). Caberia “tatear em terra escura”, escapando ao inventariado do já achado. Afinal, “não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?” (BENJAMIN, 1994, p. 223). Se sim, há um “encontro secreto” entre as gerações, em que o passado, perpassando veloz como um raio, ilumina os cacos de um tempo histórico fragmentado, “escovado a contrapelo”. Presente, passado e futuro se atravessam e entrecruzam, assim, de forma não linear: o tempo da história é “um tempo saturado de ‘agoras’”. (BENJAMIN, 1994, p. 229). Ao abrir o presente para possibilidades de futuro, o sonho pode revelar que realidade não é mero sinônimo de empiria, e que cada presente factualmente realizado é resultado de uma luta que descartou outros tantos possíveis. Os “agoras” dos quais é feito o tempo histórico não são de modo algum dados e estáticos, mas interim que se constituem entre experiências e expectativas, como notou Koselleck (2006, p. 15-16), ou seja, daquilo que, se não aconteceu enquanto fato empírico, realidade consumada, aconteceu enquanto sonho e como universo de possibilidades que, mesmo, permitiram que aquilo que o historiador considera fato realizado assim pudesse vir a acontecer. Não distinguindo os diurnos dos noturnos, diz Koselleck: “os sonhos dão testemunho de uma realidade passada, de uma forma que talvez nenhuma outra fonte seja capaz de fazer”. (KOSELLECK, 2006, p. 251). O sonho diurno não é mera representação; também é mais que projeção. Com a memória, insere o homem na temporalidade, compartilhando com ele não somente a condição de objeto do tempo, mas de sujeito. Ao desdobrar a existência humana da realidade-presente para o vasto campo [211] de possíveis-reais, o sonho adquire caráter subversivo de resistência e êxodo, com o (e no) qual o presente pode ser superado: Nenhum regime político poderá dominar esses fenômenos. [...] nenhum tirano, ditador, monarca ou presidente poderá banir sonhos, pesadelos, fantasmas e delírios – enfim, todas essas atividades febris através das quais o nosso cérebro rumina histórias e acredita nelas, fazendo com que a nossa

NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

passagem pela Terra não seja meramente uma existência, mas uma vida, ou seja, que ela nos pareça seguir uma trajetória, corresponder a um destino, ter um Sentido. (HUSTON, 2010, p. 59).

Sonhos, pesadelos, fantasmas e delírios. Criações ficcionais, diz Nancy Huston, com as quais a existência humana se transforma em “vida”, transbordando Sentidos. Pois, “o universo como tal não tem sentido. Ele é silencioso. Ninguém pôs Sentido no mundo, ninguém além de nós. O Sentido depende do humano, e o humano depende do Sentido” (HUSTON, 2010, p. 18). O problema do estatuto epistemológico dos sonhos para a História não se restringe, assim, nem à heurística nem à hermenêutica, situando-se, antes, na complicada distinção entre o factual e o ficcional, que põe em questão toda a problemática que envolve a relação entre realidade e sentido. O homem, esta “espécie fabuladora”, não vive num mundo “Real-real”: este “não existe, para os humanos. Real-ficção apenas, por todos os lados, sempre, uma vez que vivemos no tempo” (HUSTON, 2010, p. 19). No seu inédito esforço de fazer dos sonhos matéria para a investigação histórica, Koselleck (2006, p. 251) afirmou: “os sonhos se encontram, sem dúvida, no ponto extremo de uma escala imaginável de racionalidade histórica. Mas, a rigor, testemunham uma inevitável facticidade do fictício, com a qual um historiador não deveria deixar de envolver-se”. Ora, também o factual, matéria da ficção onírica, é preenchido por ficções. Se a realidade humana enleia-se aos Sentidos construídos, elaborados ficcionalmente, “temos acesso ao real [empírico] apenas através da mediação dos discursos; todo discurso elabora ficções aproximativas à realidade, portanto, todo discurso funda-se pela ficção”. (BERNARDO, 2010, p. 15). Por outro lado, o acesso ao sonhado – que lhe dá sentido e permite almejar a condição de fonte – acontece quando desperto: quando ele é contado, (re)elaborado nar[212] rativamente, transformado em discurso, e, portanto, inserido novamente no plano da ficção. As ficções, diz Gustavo Bernardo, são “construções mentais que preenchem os buracos da realidade, assim como preenchemos os buracos de um sonho quando o contamos para alguém” (p. 23). “O sonho espera secretamente pelo despertar”, afirmou Benjamin (2007, p. 435), despertar é o seu telos. A indistinção, em Benjamin, dos sonhos diurnos e noturnos não é descuido, mas parte de uma estratégia discursiva que, ao desencadear e sobrepor metáforas e

NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

alegorias, faz romperem, embaralharem e/ou, por vezes, diluírem oposições antitéticas interior/exterior, consciente/inconsciente, realidade/esperança: sonhos noturnos e diurnos, tal qual em Bloch, têm, na sua promoção do sonhado para a realidade acordada, “a mesma estrutura” (BENJAMIN, 1994, p. 37). O sonho noturno têm sentido para o sonhador que desperta, do mesmo modo que o diurno “espera secretamente” sua realização no futuro. Se presente e Esperança se atravessam na dialética da existência, sono e vigília fundamentam a “dialética do despertar”: os sentidos vão sendo costurados, narrativamente, neste entre-dois. O sonhador volta à vigília trazendo consigo as sensações e imagens, ainda que confusas e caóticas, do universo onírico. Se o sonho não permanece na vigília, tira-se dele seu sentido; e se não se confunde com a realidade, então se regride ao cartesianismo: ele seria mera ilusão vazia, aparência. Sonho e sonhador, sono e vigília, não passam impunes: se constituem e se modificam numa espécie de “terceira margem”. Neste jogo de perdas e ganhos, de lembranças, invenções e esquecimentos, o que importa, diz Benjamin, não é o objeto a ser narrado, mas a própria narrativa: não o próprio sonho, mas sua dialética, “o tecido da sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento?” (BENJAMIN, 1994, p. 37). No entrecruzamento da temporalidade e da memória (do passado e do futuro), da atividade narrativa e do empírico, fato e ficção não se mantêm como polos opostos, paralelos facilmente distinguíveis. Se a insistência na preponderância da ideia de fato – como associado à empiria –, resulta ainda nas Humanidades do longo processo que Costa Lima (2009) chamou de “controle do imaginário”, que vem subordinando o ficcional (em específico, a literatura) aos discursos dominantes da religião, da filosofia e, na modernidade, mais precisamente das ciências empíricas, a laterali[213] zação dos sonhos (especificamente os utópicos, diurnos) atende a uma demanda ideológica que, como afirmou Marcuse, “se esforça para que tudo permaneça como está”, restando “um caminho de apreço pelo conhecido”. (MARCUSE, 1968, p. 150). Nas Humanidades, e na História em particular, perdura a ideia de que o ofício consiste em des-velar, situar, explicar, e não em re-interpretar, realocar, dialogar. Tanto o utópico quanto o poético, ao embaralharem as referências do factual e do ficcional, põem em xeque a realidade como tal, promovendo o acontecer do pensamento e da

NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

linguagem: no desacordo entre conceitos e coisas, na imprecisão de significados e sentidos, na inexatidão contingencial da existência. É contra o indeterminado da vida, pendente e em devir, que a sociedade escrita por Ray Bradbury (2012) em Fahrenheit 451 aboliu os livros: num mundo absolutamente instrumentalizado e utilitário, em que verdade, realidade e empiria se amalgamam, não importa saber “o porquê”, mas “‘o como’ de vivências protocolares”. (PINTO, 2012, p. 17). Não importa saber o que poderia ter acontecido, e ainda poderá vir a acontecer, mas sim mensurar o que “é”; tampouco explorar as múltiplas possibilidades interpretativas de enredos alegóricos, mas afixar unidades e identidades estáticas. No mundo em que “cidadãos honestos” vivem à base de remédios narcotizantes, cercados por placas publicitárias e gigantescos televisores, em que se pode ser preso por vaguear a esmo pelas ruas, e que tudo o que se quer é “um passatempo sólido”, a literatura é proscrita, censurada e perseguida, para que os sonos não sejam perturbados por quimeras e fantasias. Pesadelos distópicos como os de Bradbury e George Orwell, que descrevem mundos futuros submetidos ao controle absoluto, têm nos sonhos importância fundamental. Uma das obras pioneiras do “gênero” distópico, publicada em 1891, o conto The New Utopia, de Jerome K. Jerome (1981), narra a estória de um inglês médio que, após jantar com amigos do Partido Socialista, deita-se sonhando com um mundo pautado pela igualdade entre os homens e cai num sono profundo de mil anos. Ao acordar, percebe que os sonhos tornaramse realidade – “o mundo tinha entrado, finalmente, nos eixos”: todos são iguais. Mas logo o sonho converte-se em pesadelo: homens e mulheres se vestem com o mesmo uniforme cinza; não têm nomes, mas se identificam por números; têm cabelos iguais, moram em casas padronizadas, andam por ruas largas e retas, todas iguais. El sueño [214] de la razón produce monstruos, provocou Goya3. Razão sem sensibilidade, que negligencia sua dimensão crítica e autocrítica, confunde fins e meios: perverte sua vocação para a emancipação, aliando-se à dominação – é “totalitária”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 22). “El sueño de la razón produce monstruos” é o título da litogravura número 43 da série Los Caprichos, de Goya. Afirmam Jorge Coelho Soares e Blanca Muñoz (2010, p. 194), referenciando E. Helman (Transmundo de Goya. Madrid: Alianza, 1983), que na primeira exposição da série no Museu do Prado, Goya inseriu no manuscrito uma segunda frase: “La fantasia abandonada de la razón produce monstruos impossibles: unida com ella es madre de las artes y origen de las maravillas”. 3

NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

O protagonista de The New Utopia de repente se percebe em sua cama, de volta ao século XIX. Foi tudo “apenas” um sonho. Ao levantar e chegar à janela, toma contato com imperfeições do mundo e dos homens, que antes o afligiam: “os homens estão vivos!”, diz para si em alívio (JEROME, 1981, p. 360). Pesadelos distópicos invertem, narrativamente, os bons sonhos das Utopias, corroborando com Adorno: se não sabemos bem para onde ir, bem sabemos para onde não ir. (ADORNO; BLOCH, 1988, p. 11-12). Não fora “apenas” um pesadelo; de volta ao seu tempo, o sonhador não era mais “o mesmo”. O pesadelo de Jerome, como uma matrioskha russa, se abre para revelar outro sonho, tecido por outros sonhos. Como nos “pequenos sonhos diurnos”, como chamou Bloch, os particulares, que referenciam a vida individual, aqueles que embalaram o sono do protagonista de Jerome – os de igualdade – trocam com o humano a posição de “sujeito”: o homem é sonhado, refletido “no” sonho, para então, “do” sonho, nas “instâncias do despertar”, poder assumir a condição de sujeito. O leitor4, no mundo da existência “factual”, estabelece uma relação com a “ficção” que não é de distanciamento, ou indiferença, mas de troca. É justamente mediante (e, mesmo, promovendo) uma espécie de “suspensão” do pré-juízo do que é real (ECO, 2003, p. 13) que a ficção literária pode acontecer como algo “vivo” (ou seja, não como mero “documento”, arquivo-morto, mas interlocutor), que interfira na existência do leitor, provocando incertezas e abrindo novas perspectivas da (na) realidade (LaCAPRA, 1985, p. 116). Ao voltar do País das Maravilhas, Alice não é mais a mesma; tampouco o leitor, que compartilha com ela “experiências” do fan[215] tástico. Em poema que prefacia Através do Espelho, obra que Lewis Carroll associa a um jogo de xadrez e chama de “conto-sonho”, lê-se: “Eco que na memória não esmorece / Embora o ciúme do tempo diga: ‘esquece’” (CARROLL, 1980, p. 138). Tempo e memória em confronto dialético constituem o sujeito. Este, se não é aquele do Iluminismo, soberano, uno e autocentrado – ou seja, se é constituído por circunstâncias e forças, inclusive sonhos, que lhe são conscientemente alheios –, é capaz de, incerto, fragmentado e precário, ser mais que uma “mônada”: des-cristalizando-se, desindividualizando-se. Através do espelho, Alice é reflexo de si mesma, mas seus gestos, falas, pensamentos não são os mesmos. Ao deparar-se com o Rei, indaga: e se... não sou eu mesma Diz Sartre: “o objeto literário é um estranho pião que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é preciso um ato concreto que se chama leitura [...]”. (SARTRE, 2004, p. 35). 4

NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

um sonho dele? (CARROLL, 1980, p. 213). “E se...?”. Em As Ruínas Circulares, Borges narra o esforço do personagem para “sonhar um homem”, inclusive seus sonhos. Por fim, “com alívio, com humilhação, com terror, [o personagem sonhador] compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando” (BORGES, 2001, p. 73). “E se...?”, termo combatido na História, mas fundamental na existência. “Nossa existência diurna é um país cheio de lugares ocultos, em que desaguam os sonhos”. (Benjamin Apud ROUANET, 1987, p. 118). O sonho se desdobra, e com ele o tempo; desencaixa-se como boneca russa, mas também como baú de Pandora: lançando ao mundo temeridades e pesadelos... Mas também Esperança. Contra o poder transformador da ficção (RICOUER, 1999, p. 229) e as suspeitas e vertigens que ela faz provocar se levanta o terror autoritário e iconoclasta, mandatário do medo: da indeterminação (La Boétie), do “outro” (Freud). Na trilha de todo aparato de violência física e ideológica, uma das questões centrais dos regimes de controle absoluto é a incapacidade dos indivíduos a eles pertencentes de projetarem qualquer superação do estado atual da realidade. Em entrevista a Osvaldo Ferrari, Borges (2009, p. 157-159) afirmou que o pesadelo mais terrível é o do labirinto: da sensação de andar, mas só ver paredes, permanecer como que parado. Assujeitados, indexados, conformados, os indivíduos que habitam as sociedades absolutamente controladas, como as de Fahrenheit 451 e de 1984 (ORWELL, 2002), não enxergam no horizonte de sua vida em comum nada além da eterna repetição do mesmo, assegurando a familiaridade e a previsibilidade, descartando qualquer complexidade. O discurso do poder assim se manifesta [216] e torna verdadeiro através da naturalização das relações que constituem a realidade, “presentificando” o tempo, arquivando a memória, e impossibilitando o futuro. O ponto de fuga passa necessariamente pela ativação dos sonhos, e, em 1984, Orwell o soube evidenciar de forma singular. “Tornaremos a nos ver onde não há treva”. Esta frase aparece seguidamente em sonhos ao protagonista Winston Smith sem que ele a compreenda. Espécie de historiador de um mundo sem história, o protagonista do romance de Orwell apaga e modifica a memória indesejada do Estado5 ao mesmo tempo em que trava constante luta contra o esquecimento que o ronda e põe em suspenso sua própria identidade. Impossível Smith trabalha no Ministério da Verdade, órgão que cuida da informação pública do governo, modificando (apagando e/ou incluindo) publicações passadas conforme exigências políticas do presente. 5

NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

distinguir a memória da infância do que contam os meios de comunicação. Por sorte, ou azar, Smith sabe, pois é este o seu trabalho, que os jornais modificam o passado a todo instante, e que certamente o passado do presente, no futuro, haverá de ser outro. “Quem controla o passado controla o futuro”; a luta da memória agoniza submersa na luta política “pela” memória. Ainda assim, uma voz rouca lhe aparece constantemente nos sonhos, estimulando estranha certeza de verdade, prometendo reencontro “onde não há treva”. O leitor de 1984 é convidado, desde o início, a se confrontar com um Poder total, incansavelmente vigilante, representado pela “teletela”6, pelos cartazes que estampam a face do Grande Irmão 7, sempre acompanhada da lembrança de que ele “zela por ti”, e pela reprodução esquemática e mecânica de máximas morais e palavras-de-ordem que, patrulha e amplificador ideológico, a todo instante rodeiam o protagonista, contornando seus passos e pensamentos. Imagem do domínio total, antecipada em 1924 [217] por Evgueny Zamiatin, em Nós (2004), com paredes de vidros: todos controlam todos, o caráter talvez mais aterrador do totalitarismo (ARENDT, 1989, p. 356-357). Ironicamente, o “nós”, tão reafirmado, se dissolve numa coletividade de todos contra todos em que a individualidade se debate em torno de um Eu que, reificado e (mas) certo de si, reproduz o mesmo. Coletivização que, paradoxalmente, faz do próximo outro, objeto do medo e da violência (SOARES; EWALD, 2010, p. 165-166). A trágica jornada de Smith de recusa ao Poder se inicia gradualmente a partir do momento em que ele resolve escrever suas inquietações num caderno velho. Se é provavelmente devido à função que exerce no Partido [INGSOC] que ensaia dúvidas e desconfortos com a ordem existente, é no momento em que começa a rabiscar pensamentos avulsos que se inicia a trama propriamente dita: Smith, o sonhador, o refratário, começa a inventar a si mesmo. Não obstante, é a partir deste momento que os sonhos noturnos, outrora confusos e neblinados, começaram a lhe ficar claros, e a memória, antes fragmentos A um tempo televisor e câmera, a teletela transmite simultaneamente a programação oficial do governo e filma o que acontece em frente ao aparelho. Na trama, todos os locais de trabalho, públicos e as residências dos membros do Partido Externo (espécie de classe média) têm teletelas, que não podem ser desligadas, e mantém vigília constante sobre os cidadãos/membros do partido. 7 Do original, Big Brother, trata-se do líder político onipresente da Oceania, um dos três Megablocos (ao lado da Eurásia e Lestásia) que dividem geopoliticamente o mundo, onde se desenrola a trama. 6

NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

embaralhados e desconexos, começa a lhe contar histórias. Lá embaixo, na rua, o vento ainda fustiga o cartaz rasgado, e a palavra INGSOC ora aparecia ora desaparecia. Ingsoc. Os princípios sagrados do Ingsoc. Novilíngua, duplipensar, a mutabilidade do passado. Sentiu-se como quem vagueia nas florestas do fundo do mar, perdido num mundo monstruoso onde ele próprio era o monstro. Estava só. O passado morto, o futuro inimaginável. Que certeza haveria de estar ao seu lado uma única criatura viva? E de que maneira saber que o domínio do Partido não duraria para sempre? (ORWELL, 2002, p. 28-29).8

[218] O caminho escolhido por Smith o levará a morte, ele sabe, o leitor é avisado. “Ele já estava morto, refletiu. […] Agora que se reconhecia como defunto, tornava-se importante ficar vivo” (ORWELL, 2002, p. 30). Paradoxal e repleto de Sentidos. No momento em que se pôs em face do extremo, a morte justificada passou a justificar sua vida. Em face do extremo, diz Todorov, a diferença entre escolher a morte e submeter-se a ela pode ser o “que separa o ser humano dos animais” (TODOROV, 1995, p. 24). No caminho para o fim anunciado, Smith torna-se digno de viver e, portanto, de morrer: então agora ele sabe (“ou acredita saber”), “'tornaremos a nos encontrar onde não há treva' […]. O lugar onde não havia trevas era o futuro imaginário que nunca se podia ver, mas que, pelo pensamento, se podia compartilhar misticamente” (ORWELL, 2002, p. 98-99). Em seu caderno: Ao futuro ou ao passado, a uma época em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferente uns dos outros e que não vivam sós – a uma época em que a verdade existir e o que foi feito não puder ser desfeito: Cumprimento da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensar! (ORWELL, 2002, p. 30).

Smith é traído e encontra a morte, mas sem qualquer glória, sem dignidade e heroísmo. Os mortos viram mártires, lhe diz o personagem O'Brien, carrasco da sua Esperança, e este “erro do passado” o Estado total do futuro não mais comete. Depois de longos sete capítulos

“Novilingua”: idioma oficial da Oceania, previsto para tornar-se hegemônico no uso comum em 2050. Trata-se de uma redução do inglês tradicional, que pretende, ao tornar a língua mais simples e direta, acabar com as possibilidades de diversos significados acerca de um significante: em suma, tornar simples e objetivo o pensamento através de uma linguagem o máximo objetiva, precisa e, portanto, precária, evitando, assim, o “duplipensamento”. “Duplipensar”: termo da Novilingua que representa a dúvida, a crítica, a, digamos, bidimensionalidade, contraposta à estreiteza unidimensional, reprodutora e acrítica, estimulada pelo Partido e pela Novilingua. Duplipensar é o crime mais grave que um membro do Partido pode cometer; é “crimdéia”, infração do pensar, crime que dá origem a todos os crimes. Em seu diário Smith escreveu: “Crimidéia não acarreta a morte: crimidéia É a morte”. (ORWELL, 2002, p. 30). 8

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(dum total de 23) narrando torturas físicas e psicológicas sofridas por Smith, Orwell encerra a obra com o fracasso absoluto: a desilusão, a desistência, a aceitação apática e resignada. Smith morre, mas antes dele o sonho; antes de seu corpo cair derradeiramente, já não havia Esperança, somente conformação. A morte não redimiu sua luta inglória; pelo contrário, o instante da morte física, na trama, tão-somente ratifica a morte verdadeira, anterior. O personagem que, durante o livro, elabora, constrói, inventa uma subjetividade pautada na recusa e no ódio ao sistema – ao Grande Irmão – retira-se antes. O “Eu” Smith com o qual o leitor pôde compartilhar o ar abafado da realidade e o futuro ausente mas verdadeiro da Esperança, abandona a um tempo o próprio Smith e o leitor. Eis o último parágrafo: [219] […] Ia andando pelo corredor de ladrilhos brancos, com a impressão de andar ao sol, acompanhado por um guarda armado. Por fim penetrava-lhe o crânio a bala tão esperada. […] Levantou a vista para o rosto enorme. Levara quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh, mal-entendido cruel e desnecessário! Oh, teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gim escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograra a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão. (ORWELL, 2002, p. 277).

Sem Esperança somos cadáveres, diz Bloch (2005, p. 230). Ainda que ela não se realize, que sua existência escape aos fatos, que nunca se a alcance “porque está sempre onde a pomos / e nunca a pomos onde estamos”, ela “existe sim”, diz o soneto de Vicente de Carvalho, “disfarça[ndo] a pena de viver”: O eterno sonho da alma desterrada, sonho que a traz ansiosa e embevecida, é uma hora feliz, sempre adiada e que não chega nunca, em toda a vida. (CARVALHO, 1970, p. 9-10).

Pois “o lugar onde não havia trevas era o futuro imaginário que nunca se podia ver, mas que, pelo pensamento, se podia compartilhar misticamente”. A verdade da Esperança não depende da sua realização factual. Justamente pelo contrário. Tampouco sua importância para a investigação histórica precisa se ater ao seu caráter “antecipador” de algum evento. “Os sonhos do sonho não podem se restringir ao papel de arautos da ideologia da continuidade histórica”, diz Baêta Neves (1998, p. 75). “O sonho é feito de passado; é uma forma de, exprimindo-o, exprimir o presente do desejo. Fazer do sonho um escravo do futuro é aprisiona-

NUNES, Diogo Cesar. Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho: considerações sobre história, literatura e temporalidade. In: RAMOS, Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selam Fernandes; PATRIOTA, Rosangela. (orgs.). Narrativas Ficcionais e Escrita da História. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 209-226.

lo irremediavelmente” (NEVES, 1998, p. 74). Os futuros que os sonhos (e os pesadelos) apresentam são “possibilidades”, e é como tal que fazem entrecruzar o tempo e inserir o homem no “agora”, que é saturado de antes e de depois – múltiplos, plurais, e, claro, pendentes. Se os mortos não estão em segurança, e o futuro – possibilidade –, em aberto, o presente não está pacificado: ele [220] marca o lugar de uma luta que se não é propriamente dele, não pode recusar a herança, sob o risco de não lhe sobrar nenhuma identidade, e/ou de sobreviver, cego e mudo, na superfície efêmera do instante eternizado. Como nos sonhos de Smith, se são decerto feitos de passado, re-significam-no, preenchendo o presente de sentidos (direções) e Sentidos. É este lugar que não é fixo nem espacial, que é interim e indeterminado, entre sono e vigília, entre experiências e expectativas, que, como diz Rouanet (1987, p. 123), deve interessar ao historiador que assume a tarefa de “interpretar os sonhos”: o momento do “esfregar os olhos”. Ao historiador cultural e/ou intelectual, empenhado em compreender como a realidade é “construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1988, p. 17), e/ou que, questionando as noções de “dentro” e “fora” em “relação aos processos de interação entre linguagem e mundo” (LaCAPRA, 1994, p. 26), entende como “pertinentes temas dialógicos e críticos, de leitura e resposta” (LaCAPRA, 2006, p. 105), os sonhos se apresentam, sim, como “testemunhas” de uma realidade histórica, mas também como chave para compreensão de outras dimensões desta realidade que escapam aos olhos acostumados com a luz que se projeta da lanterna empiricista: que isola fato e ficção, assume como objeto a realidade enquanto facticidade, e se compromete com a ideia de tempo linear. Tomando emprestadas as palavras de Carlos Vogt ao prefaciar Bradbury: A revelação do que ali se esconde é vazia de substância, é a forma do conteúdo de uma resposta para a qual não se encontrou a forma da pergunta adequada. É nada. É nada que não esteja na forma da vivência das experiências de vida compartilhadas. É a memória de si mesma, como o futuro não pode ser outra coisa senão o que carrega do passado e do presente como potencial de novas realidades. (VOGT, 2008, p. 18).

Se o que o sonho revela é vazio de substância, seu conteúdo cifrado não é apartado da forma pela qual se veicula. Se vazio de substância, não é por falta de história, mas, pelo contrário, porque esta mesma não é dada, neutra, homogênea, tampouco em-si. “As

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promessas de futuro, convertido em pretérito, não feneceram definitivamente” (PEIXOTO, 2003, p. 280), daí pesadelos distópicos serem, antes de pessimismo quanto ao futuro, melan[221] colia e frustração com o presente: frustração com o malogro dos sonhos de outrem, ontem. O que ali se esconde não é idêntico a si mesmo, não tem origem nem fim, pois se trata de camadas sobre camadas de percepções, imagens, anseios, desejos, medos, aflições, e outras tantas imprecisões para as quais talvez não haja nomes e que sequer penetram o entendimento. A pergunta, portanto, não é unicamente pela facticidade do fictício – o que furtaria dos sonhos todo o seu potencial, e o reduziria à condição de representação. Assim situada no seu entorno, a pergunta correria o risco de escorregar para o vazio da continuidade temporal, reafirmando a ilusão da certeza documental e/ou a estreiteza do pré-conceito contextual. Carente de forma adequada, a pergunta que não chega a formalizar ponto de interrogação pode reconhecer a precariedade da sua condição e aproveitá-la: ao escapar à tentação de ordenar o caos com modelos preestabelecidos, explorar o contraditório, o impreciso, e, portanto, inesgotável. Pois, “o sonho tem o poder de desfazer e refazer conexões, de tirar as coisas do lugar e repô-las em outros lugares” (ROUANET, 1987, p. 119). Na medida em que descarta a linearidade e a exigência do sentido único, primordial, a investigação pode aprender com os sonhos a ambiguidade fluida da existência humana. Em vez de violentá-la com categorias hierarquizantes e conceitos supostamente autossuficientes, investir, como propõe Benjamin, num ato interpretativo que, crítico, mais se aproxima do artesanal que do laboratorial, e justamente por isso não sem rigor. Pois, se vazio de substância, transborda de Sentidos. Lembrando Hayden White (2001, p. 62-63), a História tem a “oportunidade de se valer” dos “elementos dinâmicos” da vida, do “caráter essencialmente provisório das metáforas” empregadas para compreendê-los, e, assim, reconhecendo os “muitos sentidos diferentes”, “desafiar o mundo a cada segundo, pois somente a história serve de mediadora entre o que é e o que os homens acham que deveria ser”. Se o sonho não re-presenta outra coisa senão o que a narrativa “fabulada” nas instâncias do despertar apresenta, ele traz suas dobras, camadas de “vivência das experiências de vida compartilhadas”. Formadas também por fatos e pelo empírico, elas confluem através de um “filtro” poético e subjetivo, particular e compartilhado, que, “como uma sanfona, comprime e

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empurra o som de lembranças, de expectativas, de esperanças, de abandonos, de solidões, de desertos, de cidades vazias, de países de infância para sempre perdidos”. (VOGT, 2008, p. 14). [222] O sonho marca o lugar da ausência; contudo, encontra morada não no homem isolado, mas em vivências compartilhadas, tomadas das e recolocadas nas coisas, materiais e/ou imateriais, com as quais ele se relaciona e nas quais se estende: espaços, nunca neutros, que ele habita e que, assim, o habitam. Museus, fábricas, jardins, universidades, aeroportos, estações ferroviárias, shopping centers, roupas, livros, bibliotecas, fotografias são “moradas dos sonhos”, mas também seus resquícios e ruínas, posto que transitórias, perecíveis e superáveis. Benjamin examinou algumas destas de forma singular. Os museus, por exemplo, encenam de forma ímpar a dialética do novo e do velho, do anseio pela superação e sua transformação em resquício: neles, o que fora a manifestação do latente desejo de romper com o conhecido, se reúne, em espólio e inventário, categorizado e enfileirado, “voltando-se para trás” e “impregnando-se de passado”. (BENJAMIN, 2007, p. 450-451). Noutro exemplo, as estações ferroviárias, que um dia foram apontadas como “verdadeiras fábricas de sonhos”, [...] na era do automóvel e do avião, são apenas terrores suaves e atávicos que ainda povoam os saguões enegrecidos, e aquela comédia banal do reencontro e da despedida, que se apresenta com um vagão pullman como pano de fundo, torna a plataforma de embarque um palco de província. (BENJAMIN, 2007, p. 450).

A cidade, os espaços urbanos, com seus fluxos, labirintos e emaranhados de ruas, avenidas e construções, como nenhum outro “objeto” materializa, por assim dizer, a vida dos sonhos: seu nascimento e envelhecimento. Espaço, por excelência, da literatura moderna, como diz Octavio Paz, é o “lugar onde os homens, por seus atos, salvam-se ou perdem-se” (PAZ, 1989, p. 346). Como notaram Baudelaire e Benjamin, a cidade moderna, “portentosa”, é tanto palco “das mais intensas experiências modernas, a máquina e a revolução”, diz Nelson Brissac Peixoto (2003, p. 269), como demonstração de força e imponência da razão fronte à natureza. Há algo nela “que transcende sua transitoriedade e remete ao eterno”: seu desejo de permanência, de superação dos perigos da natureza aleatória e contingente; o sonho da razão soberana, que esquadrinha, mensura, divide espaços e racionaliza caminhos, mas que não perdura: “a cidade de pedras – aparentemente tão imune ao decorrer do tempo – acaba se tornando quebradiça

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[223] como o vidro” (PEIXOTO, 2003, p. 274). Ao contrário dos museus, que sequestram o novo transformando-o em antiguidade, a cidade é constante decrepitude e desejo de eternidade; sonho que envelhece e se supera em luta com (e contra) o tempo. Como que por resposta à ousadia da razão, o tempo transforma o concreto em pó, a construção em ruína. Tudo que é sólido, se sabe, há de se desmanchar no ar. Os sonhos, contudo, escapam ao concreto: o atravessam, habitam, mas não repousam por muito tempo. Utopias são ficções, acima de tudo (SOUZA, 2006). Transformado em ruína, ele não se retira nem reconcilia, pois suas fendas, fissuras e corrupções são as marcas da ausência – ou do que foi, ou do que poderia ter sido: lembrança presente de um tempo que não foi acolhido, ou que, talvez, sequer tenha ainda chegado. Tal indecisão, ou imprecisão, é a “porta entreaberta” que Bloch chamou de “Esperança”, que não existe sem angústia – recíprocas, “se mantém em suspenso” (BLOCH, 2005, p. 326). O sonho é carregado de passado, do que foi e/ou do que nunca se consumou, em elaboração de um futuro igualmente ausente: espera, angustiada, que não resigna. O sonho marca o lugar do desejo e da falta, da carência e da produção da sua superação. Por isso Bloch o compara à fome: sofrimento básico a partir do qual se dá a vida social; presença do vazio que mobiliza sua superação, num movimento revolucionário e subversivo de auto expansão (BLOCH, 2005, p. 77-79). Como a fome, que nunca é completamente eliminada, nunca saciada permanentemente, o sonho utópico continua, pois não adormece por completo o anseio pelo melhor. Ele é desejo de completude que não se realiza, mas que só assim existe, e necessita existir, sob pena de ter a vida reduzia à condição de “coisa”. Mesmo na mais abafada e violenta das realidades, em que o próprio tempo perde seu sentido usual e vulgar, e que o reconhecimento de si mesmo enquanto humano vacila sem garantias, o sonho persiste – e com ele o tempo, a busca do humano, a Esperança resgatada do desespero: Sonhávamos nas noites ferozes sonhos densos e violentos sonhados de corpo e alma: voltar; comer; contar. Então soava breve e submissa

[224] a ordem do amanhecer: “Wstavach”; e se partia no peito o coração. (LEVI, 2010, p. 5)

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Nas noites ferozes o sonho é violento. De Auschwitz, o sonho de Primo Levi concilia espera e desespero, talvez sem preponderância de um sobre o outro. Se a realidade é o pesadelo, e o sono sua fuga, o sonho persiste, escorregando para a noite e de forma densa: voltar, comer, contar. Voltar: em direção ao topos possível fronte à destruição do futuro; comer: auto expansão subversiva da carência primeira; contar: ação contra a apatia, contra a morte do eu. O sonho, a narrativa, a fome, o desejo de fuga e regresso ao lar se aliam como resistência única contra o aniquilamento da vida. A palavra estrangeira, Wstavach, que perseguiu as noites e os dias de Primo Lévi depois do Campo9, marca a permanência da realidade no sonho e deste na realidade. O sonho, que não é nem diurno nem noturno (talvez seja ambos), toma a ponta da caneta e se converte em poema, “re-ficcionalizando” o ficcional. Como o sonho de Jerome, que se desdobra e dobra para dentro, salta de volta ao mundo em forma de pesadelo-texto – então, fonte: palavra escrita, grafada, legível, matéria narrada, interpretável, inserida no discurso... ficção. Não que os pesadelos de Jerome e Lévi sejam feitos da mesma realidade (empírica), matéria-prima, por assim dizer, das imagens oníricas: um, a experiência da violência, talvez inenarrável; outro, a consciência antecipadora dis-tópica. Mas que, ao embaralharem sonho e realidade, fato e ficção, se talvez levem os conceitos à beira do abismo da utilidade teórica, decerto ratificam o caráter dialético da utopia, do u-topos: ele está aqui e lá, e, por isso, lá é também aqui. “Nos sonhos”, diz o poema de Wislawa Szymborska, Elogio dos Sonhos, “Sou, mas não tenho que ser / filha da minha época” (SZYMBORSKA, 2011, p. 49). Por promover atravessamentos da realidade e da imaginação, do passado e do futuro, os elaborando, significando e dimensionando, o sonho “testemunha” que a condição humana é mais incerta e fluida, mais complexa e rica, portanto, que o que supõe o empiricismo. Afinal, “o sonho é uma imposição inescapável da vida” (NEVES, 1998, p. 75). [225] Referências 1. ADORNO, T. W.; BLOCH, E. Something´s Missing. In: BLOCH, Ernst. The Utopian Function of Art and Literature. Cambridge: MIT Press, 1988. O poema continua: “Agora reencontramos a casa, nosso ventre está saciado, acabamos de contar. É tempo. Logo ouviremos ainda o comando estrangeiro: Wstavach”. (LEVI, 2010, p. 5). 9

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