Europa, escombros e soslaios

May 28, 2017 | Autor: F. Vassoler | Categoria: Filosofía, Teoría Literaria, Literatura Brasileira Contemporânea
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rapsódia rapsódia almanaque de filosofia e arte

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rapsódia almanaque de filosofia e arte Publicação do Departamento de Filosofia da USP n°±± 8 – 2014 – ISSN 1519.6453 – publicação Anual Universidade de São Paulo Reitor Marco Antonio Zago Vice-Reitor Vahan Agopyan Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretor Sérgio França Adorno de Abreu Vice-Diretor João Roberto Gomes de Faria Departamento de Filosofia Chefe Roberto Bolzani Filho Vice-Chefe Caetano Ernesto Plastino E ditor Responsável: Marco Aurélio Werle e Ricardo Nascimento Fabbrini Comissão Executiva: Alice Lino, Fabiano Barboza Viana, Letícia Botelho, Marco Aurélio Werle, Mariana Bardelli, Paolo Colosso, Pedro Franceschini, Pedro Galé, Renata Karla Magalhães, Ricardo Nascimento Fabbrini e Talita Trizoli. Conselho Editorial: Ana Portich, José Carlos Estêvão, Luiz Fernando Franklin de Mattos, Marco Aurélio Werle, Maria das Graças de Souza, Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola, Márcio Suzuki, Mário Videira, Milton Meira do Nascimento, Olgária Chain Féres Matos, Oliver Tolle, Pedro Paulo Pimenta, Raquel de Almeida Prado, Ricardo Nascimento Fabbrini, Roberto Bolzani Filho, Rosa Gabriella de Castro Gonçalves, Victor Knoll, Yanet Aguilera.

rapsódia – almanaque de filosofia e arte Departamento de Filosofia – FFLCH – Universidade de São Paulo Av Prof Luciano Gualberto, 315, sala 2007 05508-010 São Paulo SP Brasil Tel (0xx11) 3091-3761 Fax (0xx11) 3031-2431 www.fflch.usp.br/df/rapsodia e-mail [email protected] Tiragem 200 exemplares

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Arte contemporânea – opacidade e indeterminação Celso Favaretto 29 Canções em busca do absoluto Henry Burnett 51

Da dignidade ontológica da literatura Jeanne-Marie Gagnebin

69 Marcuse e Medusa. Uma interpretação Imaculada Kangussu 79 Kant e o modernismo Alice Lino 109 Discurso, figura, figural Rafael Gargano 143 Arte contemporânea: o domínio dos simulacros e do descentramento Bernardete Marantes

153 Forma e estilo em Kafka: um diálogo conceitual entre Adorno e Deleuze Benito Eduardo Araujo Maeso

173 Vida e morte do teatro contemporâneo Artur kon 207 Realismo, consciência histórica e presssupostos estéticos do teatro segundo Gerd Bornheim Gaspar Paz Textos literários 07 Europa, escombros e soslaios Flávio Ricardo Vassoler 107 Aforismos Juliano Garcia Peçanha 203 A Ficção não existe Julián Fuks 223 A última ceia Julián Fuks 192 Gravuras de José Milton Turcato Páginas: 5, 50, 68, 78, 141, 171, 221

Europa, escombros e soslaios

ensaio gráfico água-forte 36,5cm x 59,5cm 2013

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Europa, escombros e soslaios Flávio Ricardo Vassoler1

Barcelona, 03 de janeiro de 2013 Em uma taverna/restaurante do bairro gótico. Mesas separadas por cortinas marromamareladas e algo translúcidas. O escritor norueguês Knut Hamsun e sua Fome ao alcance da minha mão direita. Vinho da casa à frente, mais amadeirado, precisamente como me haviam alertado que os vinhos espanhóis seriam. No bairro gótico, as ruas vão se transformando em vielas conforme o andarilho é tragado. Em determinados lugares – eis uma cena bem latina –, seria possível abraçar a vizinha que mora na varanda à frente. (Eu incluiria essa cena no Amarcord se o bom e velho Federico Fellinni tivesse nascido em Barcelona.) Prediozinhos enegrecidos, paredes descascadas, nódoas oleosas pelas ruas. Me vem à memória uma imagem que o Frank, meu professor de história do terceiro colegial (1999), nos trouxe sobre o período de iminência da Revolução Francesa: nos bairros da periferia de Paris, cujas vielas não comportavam sequer um transeunte intumescido diante de uma camponesa desavisada, os cobradores de impostos, em nome de Sua Majestade, o rei, eram recebidos com tinas e mais tinas de óleo fervente arremessadas das varandas apenas pouco sobrelevadas. Barcelona, 04 de janeiro de 2013 Me parece que não progredimos sem esquecer. Mas lembrar e reparar são antecâmaras do esquecimento. No Parque Güell, ausculto a guitarra espanhola. As lágrimas colidem umas contra as outras como se a fronteira dos olhos fosse a borda de uma taça à iminência de transbordar. Seria o sal das lágrimas o vestígio daquilo que não conseguimos reconciliar?

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Escritor e Doutorando em Teoria Literária pelo DTLLC-USP.

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Barcelona, 05 de janeiro de 2013 No Museu Picasso. Picasso e seu Caballo corneado. Guimarães Rosa certa vez sentenciou: “Vê-se muito da tristeza do mundo nos olhos de um cavalo”. Como o estralar do chicote, as pinceladas de Picasso põem uma sela sobre o aforismo de Guimarães: “Vê-se muito do fardo do mundo contra o dorso de um cavalo”. La mujer muerta. Azul, branca e impassível. Me angustia a síntese e o silêncio desse retrato. A literatura o narraria paulatinamente. A imagem, por sua vez, sentencia que não há mais nada a dizer. Quando é que meu silêncio será azul? Quando meu impasse for branco e silencioso.

Barcelona, 06 de janeiro de 2013 No circo. As acrobacias dos trapezistas catalães me levam ainda uma vez ao Circo de Moscou (2008). A arena estava lotada. Muitos russinhos que, provavelmente, jamais haviam visto africanos. Eis que uma menina de uns 5 anos não consegue calar a dúvida: – Mamatchka, mamatchka! – Que foi, Anna? – Os trapezistas são de verdade? – São, querida, por quê? – Mas eles são negros, mamatchka! – E o que tem isso, filha? – Eles são de chocolate, mamatchka? Chocolate amargo. Li certa vez que o menino Tolstói tinha medo de olhar para trás. “E se o meu olhar não tiver tempo de criar o mundo antes de eu me virar?” Outro dia, em uma conversa de bar, um amigo físico me disse que a formiga não sabe que existe um mundo para além da direção horizontal ao longo da qual tateia. Assim, quando a formiga escala a perna de uma mesa, não sabe que encontrará uma realidade perpendicular sobre a qual os copos de cerveja vão sendo esvaziados. “A morte não tem data marcada para ocorrer”. Assim Samuel Beckett começa O inominável para inflamar o medo do menino Tolstói. (Consigo auscultar os sussurros de Beckett à formiga: “Continue tateando...”)

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Barcelona, 07 de janeiro de 2013 Terminei de ler Fome, de Knut Hamsun. O autor pôde descobrir e narrar que, por vezes, a alma profundamente suscetível pelas cicatrizes da pobreza acaba desenvolvendo um senso ainda maior de amor-próprio e dignidade. Os sentidos (e os ressentimentos) de autoafirmação tornam-se perenes, do contrário tudo pode desmoronar (ainda uma vez). Para o mendigo intelectual de Hamsun – a versão norueguesa e adaptada do homem do subsolo, protagonista de Memórias do Subsolo, do bom e velho Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski –, um esbarrão a esmo que não lhe peça desculpa equivale ao esquecimento proposital de um rei em relação às demandas de seu general. Súbito, o mendigo vai ao pedestre indiferente que lhe deu um encontrão e o intima: “Mas por que um mero esbarrão? Será que eu não mereço um tapa?”

Florença, 08 de janeiro de 2014 Morei na casa de uma família italiana que parecia ter saído diretamente de um dos filmes do bom e velho Federico Fellini. Me lembro, agora, de um almoço de domingo, a família toda reunida. A câmera de Fellini, a sombra do meu olhar ali, vai mostrando os convivas – lentamente. A comida é servida com fartura, a nonna bate com a colher de pau nas mãos heréticas daqueles que ousam cortar os fios do macarrão – é preciso enrolá-los no bojo da colher, artesanalmente, para só então levá-los à boca. O azeite rega o pão, pão cheiroso, o pai o abençoa, logo vêm os cânticos, o vinho róseo, a bruschetta. Um causo se enreda ao outro, eles falam, contam e brindam. O cunhado parrudão pega o irmão da esposa pela nuca – Giuseppe, o cunhado, já bebera muita grappa. Eu estou ali na mesa de madeira sólida, em uma das esquinas, e sinto que a comida, deliciosa, é um dos grandes pretextos de toda aquela comunhão. O nonno feliz, felicíssimo, sorri com a boca enrugada – ele tenta propor um brinde, chega até a golpear a taça com a colherinha para pedir atenção, mas o reumatismo o impede de se levantar da cadeira/trono do patriarca. Na Piazza della Signoria, há várias estátuas com temas da mitologia clássica. Em uma delas, o artista estancou a mão do soldado que empunha a clava. Sob seus pés, uma criancinha desvela os estertores do medo através dos olhos vazios e das mãozinhas trêmulas que tentam se impor como escudo. O ponto alto da obra, a meu ver, desponta com a terceira personagem. Até aqui, nos deparamos com Talião revisitado – o soldado faz valer seu direito ao butim. Mas a possível mãe da criancinha se esgueira entre as pernas do soldado para suplicar por aquilo que está entre as mais importantes heranças rapsódia

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legadas pelo Cristo: a compaixão. Ora, como um nobre romano leria tal cena? Talvez ele pensasse que o soldado perdia muito tempo com meros corpos, enquanto os demais só faziam saquear e pilhar. Mas o cristianismo nos faz contemplar a iminência do assassínio pelo prisma do condenado. É bem verdade que a estátua sobrelevada enfatiza o golpe (estancado) do algoz. Mas nós, os espectadores, temos a mesma visão da mãe que suplica. Como se devêssemos nos compadecer com seu sentimento enquanto contemplamos o belo como escombro da guerra. O cristianismo lança luzes entre as sombras dos plebeus, aqueles que, efetivamente, soerguem a (e padecem com a) história.

Florença, 09 de janeiro de 2013 Na Galleria degli Uffizi. A escuridão de Caravaggio conforma o nosso olhar para o entardecer. A escuridão de Caravaggio conforma o olhar para o nosso entardecer.

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