Eusébio de Cesaréia e suas inovações no modo de escrita da história do cristianismo: Uma análise da composição da História Eclesiástica

July 4, 2017 | Autor: R. Della Torre | Categoria: Ecclesiastical History, eusebius of Caesarea
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O ofício do medievalista PPGHIS/ICHS/UFMT/ Cuiabá

ANAIS ELETRÔNICOS

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ABREM

VIVARIUM

Associação Brasileira de Estudos Medievais

Laboratório de Estudos da Antigüidade e Medievo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Anais Eletrônicos do IX Encontro Internacional de Estudos Medievais: O ofício do Medievalista. Organizadores: Cláudia Regina Bovo; Leandro Duarte Rust; Marcus Silva da Cruz. Cuiabá: ABREM, 2011. Vários Autores. Bibliografia. ISBN: 978-856-526-801-21 Índice para catálogo sistemático: 1. Europa : Idade Média : Civilização : Ciências Humanas

Apresentação 2011 Todos os direitos dessa edição reservados à Associação Brasileira de Estudos Medievais Av. Brasília, n. 117 CEP 78060-960 – Cuiabá - MT www.abrem.org.br

DIRETORIA ABREM 20092011 Presidente: Marcus Silva da Cruz (UFMT) Vice-Presidente: Maria Filomena Coelho (UNB) 1o. Secretário: Flávio Ferreira Paes Filho (UFMT) 2 o. Secretária: Cláudia Regina Bovo (UFMT) Tesoureira: Renata Cristina de Sousa Nascimento (UFG/Jataí, UEG, PUC/GO) Comunicação Social: Leandro Duarte Rust (UFMT) ORGANIZAÇÃO DO IX EIEM Cláudia Regina Bovo (Vivarium/UFMT) Flávio Ferreira Paes Filho (Vivarium/UFMT) Leandro Duarte Rust (Vivarium/UFMT) Marcus Silva da Cruz (Vivarium/UFMT) Maria Filomena Coelho (UNB) Renata Cristina de Sousa Nascimento (UFG/Jataí, UEG, PUC/GO) ORGANIZAÇÃO DOS ANAIS ELETRÔNICOS DO IX EIEM Cláudia Regina Bovo (Vivarium/UFMT) Leandro Duarte Rust (Vivarium/UFMT) Marcus Silva da Cruz (Vivarium/UFMT) COMISSÃO CIENTÍFICA Álvaro Alfredo Bragança Jr. (UFRJ) Dulce Oliveira Amarante dos Santos (UFG) Jonnhi Langer (UFMA) Marcella Lopes Guimarães (UFPR) Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ) Maria Simone Marinho Nogueira (UEPB) Mário Jorge da Motta Bastos (UFF)

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O Encontro Internacional dos Estudos Medievais é o principal evento científico promovido pela Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) que, a partir do intercâmbio entre pesquisadores nacionais e internacionais, visa promover o aperfeiçoamento da pesquisa e do ensino da Idade Média no Brasil. Em sua nona edição o encontro foi sediado em Cuiabá, sob a organização do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antigüidade e Medievo da UFMT/Cuiabá. A temática escolhida para o IX Encontro Internacional dos Estudos Medievais foi o ofício do medievalista, a partir da qual buscou-se promover o debate interdisciplinar sobre a trajetória das pesquisas e construção do conhecimento sobre Idade Média, bem como tratar o perfil profissional daqueles que se dedicam ao seu estudo. Como cada área do conhecimento desenvolve um tipo específico de metodologia de pesquisa e investiga a Idade Média a partir de uma problemática particular, foi possível integrar as especificidades profissionais vindas da História, das Letras, da Filosofia, da História da Arte e do Direito. Sob a forma de Anais estão aqui reunidas as principais contribuições apresentadas durante o IX Encontro Internacional dos Estudos Medievais. Conferências, mesas redondas e comunicações de pesquisa que em busca da especificidade do ofício do medievalista apresentaram, discutiram e avaliaram o andamento da produção do conhecimento sobre a Idade Média no Brasil, possibilitando o fortalecimento dos estudos medievais nas Instituições de Ensino Brasileiras.

Cláudia Regina Bovo

Dom eremita, os sarracenos estão em tal estamento que aqueles que são sábios, por força do argumento, não crêem em Maomé, antes desprezam o Corão, porque ele não viveu honestamente. Assim, eles viriam à conversão rapidamente se estivessem com eles em grande disputa, e lhes mostrassem a fé por força do argumento, e aqueles, convertidos, converteriam as gentes. Não precisa muito tempo para aprender sua linguagem, nem é preciso blasfemar Maomé imediatamente. E quem faz o que pode, o Espírito Santo

Eusébio de Cesaréia e suas inovações no modo de escrita da história do cristianismo: uma análise da composição da História Eclesiástica ROBSON MURILO GR AND O DELL A TORRE 1*

faz o que a ele convém, dando o cumprimento.17

espaço

Ramon Llull, Desconsolo, XXVIII.

A proposta desta comunicação é apresentar as principais diretrizes metodológicas que venho adotando ao longo de minha pesquisa de mestrado no trato da documentação do bispo palestino Eusébio de Cesaréia (c. 260-339) referente tanto ao imperador romano Constantino (306-337) quanto à nova relação existente entre Igreja e Império a partir do início do século IV. São três os textos principais de minha pesquisa – a História Eclesiástica, o Louvor a Constantino e a Vida de Constantino – mas optei por me concentrar no primeiro destes por julgá-lo não só mais emblemático desta nova metodologia histórica que o autor inaugura com seus textos como também acredito que ela teve um impacto muito importante na produção histórica cristã dos séculos seguintes, tanto no Oriente quanto no Ocidente2. Fundador do gênero prolífico da História Eclesiástica, Eusébio não é o primeiro cristão a pensar o cristianismo (ou a Igreja) em termos históricos, mas ele é certamente aquele que redefine esses termos e reorienta o modo como estes deveriam ser analisados e organizados dentro de uma narrativa coerente. Antes dele, as comunidades cristãs já se entendiam como parte de um grande processo histórico cujo auge fora a Encarnação do Verbo e que culminaria com a plena realização da economia de salvação, mas o modo como esse processo era pensado ainda era muito distante daquilo que o bispo palestino faria por volta do ano 300. O modelo por excelência das narrativas cristãs sobre a história do cristianismo foram por muito tempo os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos, que eram entendidos como histórias no sentido pleno do termo até, no mínimo, meados do século III, quando Orígenes propôs ser possível reler esses textos de forma metafórica ou alegórica para além de uma interpretação estritamente factual3. Os textos neo-testamentários, no entanto, eram narrativas vagas, escritas muitas vezes com propósitos catequéticos e com alto grau de seletividade de seu 1. 17. “N’ermita, els sarrains son en tal / estament, / que cells qui son savis, per força / d’argument / no creen en Mafumet; ans tenen a nient / l’Alcorà, per ço car no visc honestament. / Per que aquells venrien tost a / convertiment, / si hom ab ells estava en gran / disputament, / e la fe los mostrava per força / d’argument, / e aquells convertits, convertrien la gent. / E en pendre llur llenguatge hom no està / llongament, / ne no cal que hom blastom Mafumet / mantinent. / E qui fa ço que pot, lo Sant Espirament / fa ço que a ell cové, / donant lo / compliment”. Poemas de Ramon Llull. Desconsolo (1295) – Canto de Ramon (1300) – O Concílio (1311) (apres. e trad. de Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos. Prefácio de Alexander Fidora). Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2009. Internet, http://www.ricardocosta.com/textos/Llull-Desconsolo-Canto-Concilio.pdf

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2.

3.

* Mestre em História Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP). A pesquisa conta atualmente com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Todas as traduções feitas ao longo desta comunicação são de minha autoria. Apóio-me aqui sobretudo nas conclusões de WILLIAMS, Megan; GRAFTON, Anthony. Christianity and the Transformation of the Book: Origen, Eusebius and the Library of Caesarea. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006, p. 236-243. Para o entendimento dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos como textos históricos na Antigüidade, ver TREADGOLD, Warren. The Early Byzantine Historians. Hampshire; Nova York: Palgrave Macmillan, 2010, p. 14. Para a interpretação alegórica das Escrituras feita por Orígenes, ver BARNES, Timothy D. Constantine and Eusebius. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996 (1ª edição: 1981), p. 90-91.

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material, como no caso do Evangelho de João. Os relatos ainda eram baseados em testemunhos orais cuja comprobabilidade já era difícil de ser atestada na época em que foram produzidos e, além do mais, eram organizados tendo em vista a defesa de princípios teológicos importantes para as comunidades onde foram produzidos, relegando, assim, a historicidade do material coletado para segundo plano. Para as comunidades cristãs até meados do século II, este tipo de narrativa histórica era suficiente a seus propósitos, mas logo isso passou a ser um problema para elas, especialmente por conta da inserção do cristianismo dentro dos debates filosófico-religiosos que marcaram a época dos imperadores Antoninos. Costuma-se falar hoje que se constituiu, a partir dos anos 150, um verdadeiro “mercado de religiões”4 no Império Romano, onde elas competiam entre si por fiéis e, principalmente, por patronos generosos que pudessem fazer ricas oferendas a fim de sustentar grupos de sacerdotes numerosos e templos cada vez mais imponentes. Inseridos nesse mercado e disputando fiéis com os demais cultos e filosofias espalhados pelo Império, os cristãos se viam defrontados por alguns obstáculos inerentes às características fundamentais de sua religião, dentre os quais se destacavam sua relativa novidade temporal e o caráter muitas vezes mítico de seus textos fundacionais. Em contrapartida, as religiões vindas da Babilônia e do Egito podiam traçar longas genealogias de seus deuses e de suas práticas religiosas que podiam recuar às vezes por milênios, o que lhes conferia muito prestígio entre os círculos eruditos da época. Por volta do início do século III, começamos a ver o aparecimento de uma multiplicidade de Crônicas escritas justamente com o fim de mostrar a ancestralidade desses cultos orientais e de associar as divindades por eles cultuadas a personagens históricas, não míticas: isso não era sinal de desprestígio para esses cultos como os apologistas cristãos entenderiam posteriormente, mas era a comprovação da ancestralidade histórica dessas religiões que se prestava a lhes conferir credibilidade e superioridade frente às demais crenças da época5. Dentro desse debate religioso, os cristãos se viram compelidos a defender a respeitabilidade de sua crença, a qual deveria se calcar sobretudo em sua ancestralidade. Nesse contexto, surgem as primeiras obras cristãs que tentam situar o cristianismo em uma perspectiva histórica mais ampla, como é o caso das de Hegésipo (séc. II) e da Cronografia de Júlio Africano, um correspondente de Orígenes que escreveu por volta do ano de 230. A obra de Africano me é particularmente importante aqui porque ela, das mais diversas maneiras, serviu de parâmetro para a composição das obras históricas de Eusébio de Cesaréia e hoje ela nos serve como excelente contraponto para se pensar dois modos distintos de se conceber um relato histórico sobre o cristianismo. O autor da Cronografia pensava seu texto também com preocupações teológicas, mas seu principal foco de atenção era a refutação das críticas dos pagãos de que a fé no Cristo seria muito recente e baseada em meras fábulas e, por isso, inferior aos demais cultos em voga nesse período. Por conta disso, Africano teve o cuidado não só de remontar as origens do culto cristão ao relato bíblico da Criação como de datá-la, com base no relato de Gênesis contido na versão da Septuaginta, em um período anterior ao que as narrativas egípcias e babilônicas situavam o nascimento de seus deuses (algo em torno de 6000 anos antes da época em que estava escrevendo). Com isso, o objetivo de Júlio Africano era estabelecer o cristianismo como a primeira das religiões a existir, o que, em sua época, significava alegar que esta era uma religião superior às demais, que seriam posteriores. 4. 5.

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Um dos principais defensores desta tese é STARK, Rodney. The Rise of Christianity. Nova York: HarperCollins, 1997. Diversas dessas Crônicas foram preservadas ou através de papiros ou através de sua cópia por historiadores como Diodoro Sículo (século I a.C.), Alexandre Polihístor ou Filo de Biblos. O próprio Eusébio é prolífico em citá-los em seus textos apologéticos, principalmente a Preparação do Evangelho, escrita na década de 310.

Todo o relato de Africano era concatenado com base em sua leitura das Escrituras tal como reproduzidas na versão da Septuaginta e na sua utilização das crônicas pagãs para demonstrar a falsidade destas. O autor combinava texto bíblico e histórias egípcias e babilônicas de modo a fundi-las em um todo coerente que lhe permitia atravessar o curso da História até seus dias, mas o resultado dessa combinação sempre deveria resultar na comprovação de que as afirmações feitas nos textos escriturais eram mais verdadeiras que aquelas contidas nas crônicas pagãs6. Desse modo, o autor ignorava severas incoerências e imprecisões das Escrituras7 quando tratavam de fatos históricos somente para provar sua tese de ancestralidade e superioridade do cristianismo, que se convertia, por isso, mais em uma proposição apologética do que minimamente histórica. A proposta de narrativa histórica de Africano introduzia novidades importantes na historiografia, principalmente o recurso a fontes escritas para documentar suas afirmações – algo raro mesmo em historiadores clássicos como Heródoto, Tucídides e Tácito8 – e o confronto dessas mesmas fontes com as afirmações de historiadores pagãos no sentido de construir uma única narrativa que as englobasse – mas que, obviamente, favorecesse as afirmações escriturais. A grande deficiência, porém, do texto de Africano, algo que foi notado como tal por Eusébio, é sua leitura acrítica dos textos escriturais como se eles estivessem acima de qualquer suspeita pelo simples fato de serem textos autoritativos dentro das igrejas. Escrevendo mais de meio século após Africano, Eusébio era profundo conhecedor das Escrituras, pois trabalhava na biblioteca de Cesaréia a serviço de Pânfilo, um presbítero de Berito (atual Beirute) que se mudara para a Palestina a fim de recolher todas as obras de Orígenes que ainda sobravam em finais do século III e também reunir um grupo de jovens interessados na produção de cópias corrigidas dos textos bíblicos a serem distribuídas entre particulares e para o uso das igrejas. Eusébio foi um desses jovens recrutados pelo presbítero de Berito, algo que ocorreu no início do principado de Diocleciano (284-305 – ou seja, 6.

7.

8.

Africano, por exemplo, com base em Gênesis, que dizia que a Criação não tinha mais de seus milênios por volta do século III d.C., ridiculariza como impossíveis cronologias caldéias ou fenícias que contavam mais de centenas de milênios de existência (WILLIAMS, Megan; GRAFTON, Anthony. Christianity and the Transformation of the Book. Op. cit., p. 150-151). Orígenes e Júlio Africano costumavam trocas cartas em que discutiam essas incoerências e imprecisões das Escrituras ou de diferentes versões das mesmas. A solução de Orígenes para esses casos costumava ser adotar uma interpretação alegórica de certos episódios, enquanto Africano costumava reiterar a confiabilidade do texto da Septuaginta (ainda que fosse pouco plausível) ou atribuir o erro textual a uma corrupção feita pelos judeus de uma versão original perdida. Para um exemplo dessas discussões exegéticas entre esses dois autores, ver idem, p. 119-121. A historiografia clássica de influência ateniense não costumava se ocupar em comprovar suas afirmações com base em documentos, mas a credibilidade do autor residia tanto em certo fundo histórico já previamente conhecido por seus leitores como no modo como ele compunha sua narrativa. Um leitor antigo de histórias não se interessava pela reprodução integral de longos documentos oficiais que comprovassem as afirmações do historiador (algo deselegante do ponto de vista da retórica), mas apreciava quando este inseria longos discursos (inventados) de grandes personagens, nos quais o escritor podia exercer suas técnicas retóricas em seu ponto mais elevado. Esses discursos, que estruturavam a narrativa histórica (como no caso de Tucídides, Salústio ou Dião Cássio) precisavam ser apenas plausíveis, não autênticos, e serviam para que o historiador colocasse na boca de suas personagens suas opiniões a respeito dos eventos narrados. Uma boa história na Antigüidade não era necessariamente aquela mais correta ou confiável do ponto de vista de suas evidências históricas, mas aquela que conseguia mobilizar informações históricas de conhecimento geral e outras obtidas através de testemunhas oculares em um relato retoricamente elevado e bem trabalhado. Sobre a metodologia histórica da historiografia clássica, ver FELDHERR, Andrew. “Introduction”. In: FELDHERR, Andrew (ed.). The Cambridge Companion to the Roman Historians. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 7; MARINCOLA, John. “Ancient audiences and expectations”. In: idem, p. 18-19; LENDON, Jon E. “Historians without history: Against Roman Historiography”. In: idem, p. 42 e TREADGOLD, Warren. The Early Byzantine Historians. Op. cit., p. 1-22.

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ambos se conheceram entre 285 e 290, aproximadamente)9. Como bem sabiam Pânfilo e Eusébio, existiam inúmeras versões de textos vetero-testamentários em uso mesmo nas comunidades judaicas, sendo que estas versões apresentavam variações textuais muitas vezes irreconciliáveis além de omissões e acréscimos que sugeriam que o texto poderia ter sofrido a intervenção de “hereges” que interpolaram ou elidiram os textos sagrados para favorecer suas teses teológicas. Com relação aos textos neo-testamentários, a situação não era muito melhor, sendo que, nesse caso, o problema se tornava ainda mais grave pela existência de uma miríade de obras que alegavam ser de autoria apostólica, muitas das quais foram classificadas posteriormente como apócrifas, mas que, nesse momento, ainda tinham sua autoridade doutrinal discutida por autores eruditos como Orígenes e Dionísio de Alexandria. A idéia de Pânfilo ao recrutar esses jovens em Cesaréia era passar em revista essas diversas versões escriturais que circulavam na época e, com base na Hexapla10 de Orígenes, produzir textos livres dessas interpolações, omissões e variações a fim de se chegar o mais próximo possível de uma hipotética versão original. Através de seus estudos em Cesaréia, Eusébio chegou à conclusão que os esforços de Júlio Africano não se adequavam a uma verdadeira história que se propusesse a defender a ancestralidade e conseqüente superioridade do cristianismo. Isso porque Africano desconsiderava justamente essas variantes dos textos bíblicos que, em última instância, deveriam ser questionadas e não ignoradas em favor do texto da Septuaginta. Conhecedor de diferentes versões do texto grego, Eusébio sabia que mesmo a Septuaginta era uma versão com problemas e que não podia ser tomada como única referência nos assuntos que discutia. O erudito palestino menciona, por exemplo, o caso da contagem das gerações que se sucederam a Adão feita em Gn 5.3-32, a qual apresenta significativas diferenças no que se refere à somatória dos anos decorridos entre Adão e Noé. Apesar de quase todas as versões mencionarem as mesmas gerações, a versão hebraica usada em Cesaréia totalizava 1656 anos para esse período, enquanto a versão samaritana que circulava na Palestina contava 1307 anos e a Septuaginta, por sua vez, somava 2242 anos11. Para Africano, a explicação para essas discrepâncias era simples: a versão correta era a da Septuaginta e as demais eram corrupções judaicas que tentavam induzir os cristãos a erro12. Para Eusébio, tal escolha parecia arbitrária, e deveria se fundamentar em estudos mais cuidadosos, que inclusive levassem em conta as evidências fornecidas pelas crônicas pagãs. 9. EUSÉBIO. HE 7.32.25-28. 10. A Hexapla era uma coletânea de seis versões diferentes dos textos vetero-testamentários (lidas da esquerda para a direita – uma versão hebraica utilizada pela comunidade judaica de Cesaréia, uma transliteração dessa versão hebraica, uma tradução grega feita por Símaco, uma tradução grega feita por Áquila, a tradução grega da Septuaginta e uma tradução grega feita por Teodócio) organizadas em colunas paralelas de modo que elas pudessem ser comparadas linha a linha, palavra por palavra (quando não havia correspondência entre as versões, anotava-se uma lacuna no espaço correspondente). A utilidade desse material na época de Orígenes era dupla: em primeiro lugar, cotejar essas versões com as demais que circulavam nessa época a fim de produzir cópias corrigidas das Escrituras para uso das igrejas – nesse sentido, Pânfilo e Eusébio apenas dão continuidade àquilo que Orígenes iniciara – e, em segundo lugar, servir como referências para o estudo bíblico e para a produção de comentários teológicos sobre os livros sagrados. Sobre a Hexapla, ver WILLIAMS, Megan; GRAFTON, Anthony. Christianity and the Transformation of the Book. Op. cit., p. 86-132. 11. Idem, p. 156. 12. O que também era um raciocínio mais cômodo, pois ela recuava ainda mais a ancestralidade da narrativa bíblica e, assim, podia alegar uma origem ainda mais recuada do cristianismo. Como bem notam Williams e Grafton, é provável que a tradução da Septuaginta já fosse ela mesma uma resposta das comunidades judaicas helenizadas vivendo em Alexandria às críticas de que o judaísmo era um culto novo e, por isso, inferior às religiões egípcia e grega, o que teria motivado os tradutores a esticar o intervalo entre um patriarca e outro (idem, p. 156).

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Foi como prolongamento de seus estudos das Escrituras e com base nessas considerações sobre a metodologia de Africano que Eusébio pôs-se a escrever, por volta do ano 30013, uma Crônica que pretendia resumir toda a história mundial desde a Criação até o momento em que escrevia14. Essa obra era composta de duas partes complementares que mostram como o trabalho na biblioteca de Cesaréia contribuiu para a formação de uma concepção inovadora de História da parte de Eusébio e que serviria de base para sua História Eclesiástica. Na primeira parte, chamada Cronografia assim como a obra de Africano15, o então presbítero de Cesaréia16 fazia uma longa discussão bibliografia a respeito do material que empregara para a composição de sua obra e explicava, em linhas gerais, quais os caminhos que seguiria em sua narrativa. É nesse texto em que os comentários sobre os equívocos sobre a metodologia de Africano foram feitos, e é também aí que Eusébio apresenta suas considerações sobre a relação entre textos escriturais e histórias e crônicas pagãs como documento histórico. O autor defende que o recurso puro e simples à Bíblia para narrar a história da Salvação desde a Criação até o tempo presente é insuficiente, não só porque, devido à pluralidade de versões dela existentes, era praticamente impossível derivar alguma certeza sobre datações ou mesmo sobre fatos concretos como também nada assegurava que o autor bíblico realmente estivesse preocupado em escrever uma narrativa fiel dos eventos e não em produzir um texto filosoficamente elaborado que deveria ser lido em sentido metafórico, não literal. Por conta disso, Eusébio acreditava ser necessário confrontar as afirmações bíblicas com aquelas de autores judeus como Flávio Josefo ou Filo de Alexandria e também de autores pagãos como Alexandre Polihístor, Filo de Biblos e Diodoro Sículo (todos muito influenciados por crônicas pagãs), pois só através desse confronto se poderia chegar a alguma certeza sobre o passado cristão. Todo o esforço ao longo de sua Cronografia era tentar criticar o material de que dispunha de modo a definir de que modo poderia usá-lo (ou recusá-lo) na escrita de uma história universal. 13. A questão da datação da Crônica, e conseqüentemente da História Eclesiástica, é um assunto polêmico na historiografia até hoje e que excede os limites dessa comunicação, razão pela qual me atenho apenas a mencionar as principais posições no debate. Estas foram enunciadas por BARNES, Timothy D. Constantine and Eusebius. Op. cit., p. 111 (que favorece uma data anterior a 300 para a composição da primeira versão de ambas as obras) e BURGESS, Richard W. “The dates and editions of Eusebius’ Chronici canones and Historia Ecclesiastica”. Oxford. Journal of Theological Studies, nº 48, 1997, p. 471-504 (que defende que ambos os textos foram compostos após o fim da Grande Perseguição em 311 até mesmo como uma resposta a ela). De minha parte, acredito fazer mais sentido pensarmos que Eusébio, ainda que não tenha publicado esses textos antes da eclosão da perseguição, já trabalhava neles por muito tempo antes de 300, posição esta defendida por GRANT, Robert M. “Resenha de Constantine and Eusebius de Timothy D. Barnes”. Washington, DC. The Catholic Historical Review, volume 70, nº 1, janeiro de 1984, p. 100-101. Disponível em: http://www.jstor. org/stable/25021745, acessado no dia 16/01/2009, p. 101. 14. Na tradução latina da segunda parte dessa obra (os cânones canônicos) feita por Jerônimo no final do século IV, o autor indica que a obra eusebiana terminava no vigésimo ano do principado de Constantino (i.e. 325/6) e que as entradas subseqüentes foram acrescentadas de seu próprio punho. Rudolf Helm, o editor moderno da Crônica, no entanto, notou que havia uma ruptura significativa no texto de Jerônimo no segundo ano do principado de Probo (i.e. 276/7), o que indicaria que este teria sido o término de uma primeira versão desse texto (BARNES, Timothy D. Constantine and Eusebius. Op. cit., p. 111). Aqueles que acreditam em uma escrita posterior da Crônica e da História Eclesiástica tendem a minimizar a relevância da ruptura identificada por Helm, como faz, por exemplo, CHESNUT, Glenn F. The First Christian Histories: Eusebius, Socrates, Sozomen, Theodoret, and Evagrius. Second edition, revised and enlarged. Macon: Mercer University Press, 1986, p. 116-117. 15. Da Cronographia, restou-nos apenas uma tradução armênia feita provavelmente no século VI. Ao que tudo indica, a tradução armênia foi feita de forma literal e fiel ao texto eusebiano (BARNES, Timothy D. Constantine and Eusebius. Op. cit., p. 112). 16. Eusébio só seria ordenado bispo de Cesaréia após o fim da perseguição de Maximino Daia em 313. Sua ordenação como presbítero ocorreu antes do início da perseguição de Diocleciano, possivelmente antes mesmo de 300 (BARNES, Timothy D. Constantine and Eusebius. Op. cit., p. 94).

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Na segunda parte da Crônica, chamada Cânones Cronológicos, o autor organizava, à semelhança da Hexapla de Orígenes, as evidências que discutira na parte anterior em colunas paralelas, onde cada linha corresponderia a um ano e em que cada coluna corresponderia a uma das cinco principais civilizações antigas – caldeus, assírios, hebreus, gregos e romanos, lidos nessa ordem da esquerda para a direita. Em cada coluna constaria, além dos acontecimentos principais relativos a cada uma delas, também o ano correspondente no calendário do povo em questão, que seria igualado à datação mais geral, computada a partir da Criação, anotada à direita. Desse modo, Eusébio criava um verdadeiro manual de como equacionar diferentes sistemas de datação presentes inclusive nos textos sagrados, o que também facilitava o trabalho do erudito interessado em uma compreensão mais ampla desses textos. Desse modo, também, Eusébio englobava todos esses povos em um todo coerente que partiria da Criação e que rumaria, progressivamente, a apenas duas colunas: quando tratava do principado de Augusto, apenas restaram as colunas referentes aos romanos e aos hebreus, e a esta era acrescentada uma nova coluna, a do cristianismo, onde o autor anotava eventos como a Encarnação, a Paixão, martírios de personagens importantes e as sucessões dos bispos nas principais sedes da cristandade (Roma, Alexandria, Antioquia e Jerusalém). Contudo, após o massacre da revolta de judeus na Palestina pelas tropas de Tito e Vespasiano em 70 d.C., Eusébio exclui a coluna dos hebreus (pois perderam sua independência política), e Império e cristianismo passam então a caminhar sozinhos em colunas paralelas até a época do autor, o que foi comumente interpretado como um artifício apologético do autor para ressaltar a importância da religião cristã para o Império desde Augusto17. A Crônica pode, então, ser entendida como uma obra apologética? A meu ver, não no sentido que podemos atribuir, por exemplo, à obra de Júlio Africano, esta claramente orientada para a polêmica com os pagãos a ponto até mesmo de sacrificar seu cuidado com a erudição para defender a superioridade das Escrituras18. É impossível negar que a obra eusebiana não possua um objetivo apologético claro de mostrar a ancestralidade do cristianismo ao subordinar todas as demais histórias de povos mediterrâneos à lógica da história da Salvação e ao equiparar história romana e história cristã na porção final dos cânones. Contudo, diferentemente de Africano, Eusébio prioriza uma análise crítica de suas fontes (inclusive os relatos vetero-testamentários) e uma ampla recolha de material histórico para a composição de seu relato. Rompendo inclusive com a historiografia clássica, o então presbítero de Cesaréia introduz em sua Crônica uma preocupação fundamental para os historiadores subseqüentes, especialmente cristãos: o recurso a uma ampla base documental capaz de permitir a reconstituição de um passado remoto, mas que deveria ser criticada independentemente de sua natureza ou de sua importância doutrinal a fim de se alcançar uma reconstituição histórica o mais próxima possível do que “realmente aconteceu”. É essa realidade reconstituída que deveria mostrar a superioridade do cristianismo, não pretensas alegações de superioridade dos textos escriturais frente às narrativas pagãs.

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superior às demais e necessária para a sobrevivência mesmo do Império Romano, entendido como o ápice de um longo processo de progressão da humanidade nos ensinamentos divinos e nos rudimentos da civilização19. Também é essa crença que o mobiliza a promover uma análise sistemática de toda a documentação que encontrou disponível na biblioteca de Cesaréia a fim de produzir uma obra que fosse a visualização concreta20 do projeto salvífico de Deus para os homens e da importância crucial tanto do cristianismo quanto do Império para esse intuito divino. Contudo, como o próprio autor reconhece, o projeto da Crônica era insuficiente na medida em que fornecia apenas um relato esquemático dessa história, sendo necessário, portanto, desenvolvê-lo com mais vagar em uma obra à parte21. É justamente essa obra à parte que costumamos chamar História Eclesiástica, escrita logo após a conclusão da Crônica. É por essa ligação umbilical entre essas duas obras que considero oportuno tratá-las como parte de um mesmo projeto de narrativa histórica, especialmente por desenvolverem, em conjunto, uma metodologia de escrita da história que influenciaria todos os autores cristãos subseqüentes. Eusébio abre sua História Eclesiástica anunciando os temas dos quais se ocuparia ao longo de seu texto. São estes: As sucessões dos santos apóstolos desde os tempos de Nosso Senhor até o nosso; quantos e quão grandes feitos são relatados a respeito da história da Igreja; desta, quantos, sobretudo nas dioceses mais notáveis, comandaram-na e lideraram-na com distinção; quantos, em cada geração, cultivaram a Palavra divina, seja através da escrita ou não; quem, quantos e quando, movidos pelo desejo extremado da inovação enganosa, proclamaram-se como os introdutores do Conhecimento, assim falsamente chamado, repartindo sem piedade, como lobos opressores, o rebanho de Cristo; depois disso, os acontecimentos que acometeram todo o povo judeu a partir de sua conspiração contra nosso Salvador; por quantas vezes e modos a Palavra de Deus foi atacada pelos pagãos neste tempo, e quão numerosos foram os que, de tempos em tempos, submeteram-se, em defesa Dela, ao enfrentamento através do sangue e da tortura; depois disso, os testemunhos que ocorreram também entre nós mesmos e o socorro propício e generoso de nosso Salvador a todos eles. Todos esses acontecimentos propus-me a transmitir por escrito22.

O que move o projeto histórico de Eusébio é sua crença de que é o próprio passado quem demonstra que o cristianismo é a religião ancestral e verdadeira por definição, muito

Muitos autores identificaram, com razão, que a escolha destes temas e a ênfase que o autor opta por adotar refletem um claro propósito apologético à obra, em grande parte semelhante àquele observado na Crônica, e que poderia estar motivado inclusive por uma crescente hostilidade aos cristãos que se verificava entre os círculos intelectuais pagãos em finais do século III e início do século IV. De fato, em diversas passagens ao longo dos dez livros da obra, o bispo palestino evoca os constantes martírios dos séculos II e III e menciona o trabalho de apologistas cristãos como Justino, Melito de Sárdis e Irineu de Lyon como uma

17. Sobre o caráter apologético da disposição das colunas nos cânones canônicos, ver WILLIAMS, Megan; GRAFTON, Anthony. Christianity and the Transformation of the Book. Op. cit., p. 141. Sobre a possibilidade de que mesmo todo o projeto da Crônica tivesse sido motivado por questões apologéticas, nomeadamente a polêmica de Eusébio com Porfírio, discípulo do filósofo neoplatônico Plotino e editor de suas Enéadas, que escreveu um tratado Contra os Cristãos também por volta do ano 300, ver KOFSKY, Aryeh. Eusebius of Caesarea against paganism. Leiden: Brill, 2000, p. 38-39. 18. Sobre a Cronografia de Africano como obra apologética, ver KOFSKY, Aryeh. Eusebius of Caesarea against paganism. Op. cit., p. 38.

19. Esse processo é descrito em detalhes em EUSÉBIO. HE 1.2.17-23, embora aqui o autor seja menos histórico e se volte mais para uma explicação teológica dos primórdios da humanidade caída e de sua reabilitação perante Deus através dos ensinamentos dos patriarcas. 20. Tomando aqui a licença de parafrasear o título de um dos capítulos do livro de WILLIAMS, Megan; GRAFTON, Anthony. Christianity and the Transformation of the Book. Op. cit. intitulado “Eusebius’ Chronicle: History made visible”. 21. EUSÉBIO. HE 1.1.6. 22. EUSÉBIO. HE 1.1.1-2.

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luta aberta entre a Palavra divina e seus opositores – tanto pagãos quanto hereges. Eu não nego que haja essa perspectiva apologética, mas gostaria aqui de chamar a atenção para a metodologia de trabalho descrita pelo autor no parágrafo seguinte a essa exposição temática. É essa exposição metodológica, muito influenciada pelo trabalho do autor na biblioteca de Cesaréia e por sua Crônica, que considero o elemento fundamental para a compreensão da História Eclesiástica: Nós rezamos para ter a Deus como nosso guia e o Senhor como nosso auxílio, pois em nenhum lugar pudemos encontrar vestígio algum daqueles que nos precederam nesse empreendimento [i.e. escrever uma história do passado cristão], a não ser pequenas indicações através das quais eles nos deixaram relatos parciais dos tempos passados como se fossem vozes candentes que se levantam em um tempo longínquo, gritando e orientando-nos de um lugar muito elevado tal qual um farol que os olhos mal podem enxergar, instruindo por onde é necessário seguir e guiando nossa fala por um caminho fixo e seguro. Por isso, decidimos tirar proveito de suas memórias dispersas para o presente tema, reunindo as vozes mais convenientes destes autores antigos como se colhêssemos flores de um campo intelectual. Nós tentaremos dar forma a elas através de um relato histórico23.

Por mais apologética que a História Eclesiástica se pretendesse, sua concepção é radicalmente diferente daquela de obras como a de Júlio Africano, que “moldavam” suas evidências de acordo com a tese que se pretendesse defender a ponto de priorizar a alegação de uma suposta verdade dos textos bíblicos em detrimento de testemunhos contrários de fontes pagãs. Eusébio, por sua vez se afastava desse tipo de composição histórica, preferindo escrever sua História a partir dos testemunhos dos “autores antigos” à sua disposição em Cesaréia. Estes incluíam, de fato, cristãos como Inácio de Antioquia, Irineu de Lyon, Orígenes e Dionísio de Alexandria, mas também incluíam judeus como Flávio Josefo e Filo de Alexandria e encontramos mesmo evidências de que o bispo possa ter utilizado obras históricas como a de Dião Cássio.

às fontes, e mesmo uma justaposição de citações não isenta o autor de subjetividade. No caso da História Eclesiástica ocorre o mesmo fenômeno, pois as citações documentais, além de serem cuidadosamente selecionadas, dependem da interpretação eusebiana para que adquiram sentido aos nossos olhos. Assim, o relato de Flávio Josefo sobre a revolta judaica de 70 d.C. pode se converter em castigo divino aos judeus pela morte de Cristo24, assim como um edito de Adriano a respeito do correto procedimento para investigação e processo de cristãos (cujo propósito era, assim se entende hoje, evitar a disseminação de delações anônimas) pode se tornar um testemunho do favorecimento com que esse imperador tratava os cristãos25. Contudo – e aqui reside a grande inovação historiográfica de Eusébio – essas citações cumprem um papel apologético importante na narrativa, na medida em que elas conferem valor de verdade às proposições do autor. É essa “verdade” que deveria, no entender do clérigo de Cesaréia, mostrar a ancestralidade e superioridade do cristianismo frente aos demais cultos do Império, e não, como no caso de Africano, da autoridade atribuída pelo autor a cada uma de suas fontes. Por esse motivo, apesar de reconhecer que o caráter apologético dessa obra influencia parte das conclusões do autor, acredito que a História Eclesiástica deve ser pensada como uma obra de erudição, uma tentativa sincera de reconstituição do passado cristão através de documentos, e que por isso suas informações devem ser confrontadas com as demais evidências históricas que possuímos a respeito dos temas de que ela trata. Não podemos desconsiderá-las como meras alegações apologéticas pois, se preferirmos pensar deste modo, é justamente a historicidade de suas afirmações e a fidedignidade das citações feitas que asseguraria a força apologética da documentação. Apesar de seus erros eventuais de datas e nomes e sua parcial desinformação em alguns assuntos da história imperial, a História Eclesiástica se propõe a ser uma “apologia histórica” em prol do cristianismo, e é esse aspecto propriamente histórico que deve interessar aos historiadores, não somente sua dimensão apologética. Lida como história, esta obra pode, no confronto com as demais evidências documentais, nos fornecer elementos importantes para repensarmos temas como a relação entre Constantino e as igrejas no início do século IV.

De escopo mais restrito que a Crônica, a História Eclesiástica se concentrava apenas no período posterior à Encarnação, mas sua base documental já se encontrava reunida na obra precedente: a diferença fundamental é que, tendo a oportunidade de desenvolver seu relato, Eusébio procede a longas citações dos documentos que tinha em mão, rompendo definitivamente com a tradição historiográfica clássica. Sua História não era mais um exercício retórico elevado sobre determinado assunto do passado e do presente, mas a recolha destas “vozes candentes que se levantam em um tempo longínquo, gritando e orientando-nos de um lugar muito elevado tal qual um farol que os olhos mal podem enxergar” reunidas “através de um relato histórico”. O passado narrado pelo bispo palestino não só era histórico como também era documentado, e deveriam ser estes documentos, e não o seu autor, que deveriam guiar a narrativa. Olhando de forma retrospectiva, podemos pensar que a proposta de Eusébio traía a seus próprios preceitos, uma vez que não mais acreditamos que os documentos “falam por si”. Aprendemos hoje que todo relato histórico depende da escolha e do tratamento dado 23. EUSÉBIO. HE 1.1.3-4.

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24. EUSÉBIO. HE 3.7.7-9. 25. EUSÉBIO. HE 4.9.

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