Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogeneizantes e dinâmicas de diferenciação

July 25, 2017 | Autor: Flavia Vasconcelos | Categoria: Territorio, Réseaux, Ports, Ports and City
Share Embed


Descrição do Produto

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

1 de 18

http://confins.revues.org/7685

Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia

15 | 2012 : Número 15 Dossiê Portos, cidades e regiões

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogeneizantes e dinâmicas de diferenciação Évolution des relations entre villes et ports: entre logiques homogénéisatrices et dynamiques de différenciation Evolution of relationships between cities and ports: homogenizing trends and differentiation dynamics

FRÉDÉRIC MONIÉ E FLAVIA NICO VASCONCELOS

Resumos A fase atual da globalização é acompanhada por mutações que, ao incidirem sobre a malha global das interações espaciais de longa distância, redefinem a paisagem institucional, as modalidades técnico-operacionais e a organização espacial do sistema portuário mundial. A situação dos portos, pelos quais transitam parte substancial do comércio internacional de mercadorias, é paradoxal e complexa. As estratégias desenvolvidas pelos atores que dominam o horizonte marítimo do porto somadas às estratégias impostas pelos atores econômicos que dominam seu horizonte terrestre colocam as cidades portuárias em um caminho marcado por redes de transporte e de produção. O jogo das políticas portuárias, oscilantes entre concorrência e complementaridade, consiste em posicionar o porto no coração dessas redes através da incorporação de um número crescente de variáveis econômicas, comerciais, urbanísticas, ambientais e sociais frente às racionalidades funcionais e territoriais de atores que podem transformar o porto em um simples nó de transbordamento ou, ao contrário, em um grande centro logístico. Com base na definição de portos comerciais como territórios situados nos espaços de manobra de um “tabuleiro” mundial e regional existem possibilidades para articulações diferenciadas entre as competências localizadas no porto comercial, no sistema produtivo e nos recursos do território urbano e para uma análise com trajetória em três escalas: no nível global, através da globalização; no nível meso-econômico, no âmbito dos sistemas regionais que capturam os volumes crescentes de fluxos e atividades de transformação; e, no nível local, sobre o território da cidade portuária. Essa abordagem nos permite elaborar uma tipologia das cidades portuárias como territórios de circulação e/ou territórios produtivos. La phase actuelle de la mondialisation porte en elle des mutations dont l´incidence sur la maille globale des interactions spatiales de longue distance redéfinit le paysage institutionnel, les modalités technico opérationnelles et l´organisation spatiale du système portuaire mondial. La situation des ports, par lesquels transite l´essentiel du commerce international de marchandises, n´en est pas moins paradoxale et complexe. Les stratégies

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

http://confins.revues.org/7685

développées par les acteurs dominant l´horizon maritime du port et celles imposées par les acteurs économiques dominant son horizon terrestre, placent les villes portuaires dans le double champs des réseaux du transport et de la production. L´enjeu pour les politiques portuaires, oscillant entre concurrence et complémentarité, consiste donc à positionner le port au cœur de ces réseaux en incorporant un nombre croissant de variables économiques, commerciales, urbanistiques, environnementales et sociales face aux rationnalités fonctionnelles et territoriales d´acteurs pouvant transformer le port en simple nœud de transbordement ou, à l´opposé, en grand centre logistique. S’appuyant sur la définition des ports de commerce comme territoires multi-situés dont les marges de manœuvre sur «l’échiquier» mondial et régional sont à l´origine d´une articulation différenciée des compétences liées au port de commerce, au système productif et aux ressources du territoire urbain, une analyse de leur trajectoire à trois échelles, au niveau global, dans le cadre de la mondialisation ; au niveau méso-économique, au sein de systèmes régionaux qui capturent des volumes croissants de flux et d´activités de transformation; et au niveau local, sur le territoire de la ville portuaire permet d´élaborer une typologie des villes portuaires comme territoires circulatoires et/ou productifs. The current stage of globalisation presents mutations that act on the global network of long distance spatial interactions and redefine the institutional scenery, the technic-operational modalities and the spatial organisation of the world port system. The situation of the ports, through which transit substantial part of the whole goods international trade, is not less paradoxal and complex. The strategies developed by the players that control the port maritime horizon added to the strategies imposed by the economic players that control the terrestrial horizon, put the city-ports in a path marked by transport and production networks. The game of the port politics, which oscillate between competition and complementarity, consists in placing the port in the core of these networks through a rising number of economic, commercial, urban, environmental and social variables facing the functional and territorial rationalities of players that can transform the port into a simple logistic hub or the contrary, a big logistic centre. Based on the definition of commercial ports as territories situated in manoeuvre spaces of a global and regional “game board”, there are possibilities of articulations differentiated among the capabilities located in the commercial port, in the productive system and in the resources of the urban territory and of an analysis with trajectory in three scales: in the global level, through globalisation, in the middle-economic level, in the regional systems that capture the rising volumes of flows and transformation activities; and in the local level, on the territory of the city-port. This approach allows the conception of a typology of city-ports as territories of circulation and/or productive territories.

Entradas no índice Index de mots-clés : villes portuaires, relations villes/ports; réseaux; territoires Index by keywords : port-city, cities/ ports relationships; networks; territories Índice de palavras-chaves : cidades-portuárias, relações cidades/portos; redes; territórios

Texto integral

Visualizar a imagem Créditos : Hervé Théry “Todos os lugares existem em relação com um tempo do mundo, tempo do modo de produção dominante, embora nem todos os lugares sejam, obrigatoriamente, atingidos por ele. Ao contrário, os lugares se diferenciam, seja qual for o período histórico, pelo fato de que são diversamente alcançados, seja quantitativamente, seja qualitativamente, por esses tempos do mundo.” (SANTOS, 2008, p. 135). 1

2 de 18

Nas cidades portuárias, porto e cidade constituem um sistema cujas interações e

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

3 de 18

2

3

4

5

http://confins.revues.org/7685

complementaridades variam no tempo sob influência das dinâmicas produtivas, tecnológicas, sociais e urbanas. Tanto as mudanças nas atividades e infraestruturas portuárias implicam em novos posicionamentos frente ao espaço (urbano-)portuário; quanto o desenvolvimento e crescimento urbanos também levam à uma nova postura da cidade em relação à presença do porto. O conjunto de variáveis intervenientes que modificam as relações espaciais e funcionais da cidade e do porto são muitas e variadas. A análise é complexa e requer que, numa perspectiva geo-histórico-analítica, consideremos a evolução tecnológica e o desenvolvimento logístico, o surgimento e posicionamentos de novos atores portuários, as transformações no sistema marítimo internacional, a conjuntura econômica e as dinâmicas globais, além das especificidades locais de cada cidade portuária. Considerando toda essa gama de variáveis, estudos e modelos acadêmicos apontam para a ocorrência de momentos ou fases comuns e recorrentes em cidades portuárias de todo o mundo. No contexto de imperativos globais que sobredeterminam comportamentos portuários e conduzem a lógicas homogeneizadoras, identificam-se dinâmicas diferenciadoras no nível das localidades. Os impactos das mudanças espaciais e funcionais nas cidades portuárias ficam mais nítidos quando observamos, utilizando termo de Hoyle (1989), a “interface cidade-porto”. Apesar da dissociação funcional e espacial contemporâneas serem traços comuns em grande parte das cidades portuárias, cada caso tem suas próprias peculiaridades. A natureza e a intensidade das relações nas cidades portuárias são influenciadas pelo contexto regional/nacional específico onde estão inseridas e pelos valores associados à comunidade local. Ou seja, as cidades portuárias estão longe de serem homogêneas ou monolíticas. Reconhecendo os aspectos multidimensionais que afetam as cidades portuárias, discorremos abaixo sobre a evolução comum às mesmas partindo da perspectiva morfológica e topográfica desenvolvida na geografia portuária - que prevê diferentes fases de desenvolvimento a partir de dinâmicas produtivas, tecnológicas, urbanas e sociais da atualidade - e identificamos uma tipologia das cidades portuárias como territórios de circulação e/ou territórios produtivos.

Sobreposição e proximidade dos espaços urbanos e portuários nas sociedades pré-industriais 6 A centralidade das cidades marítimas foi historicamente relacionada a sua inserção em redes comerciais que, a partir dos séculos XVII e XVIII, adquiriram uma dimensão mundial. Fernand Braudel sublinha assim que até o triunfo do capitalismo industrial e o advento da hegemonia definitiva dos Estados territoriais as “praças portuárias” do Mediterrâneo e da Europa do Norte foram pilares fundamentais do processo de emergência e consolidação do capitalismo mercantil (BRAUDEL, 1979). O comando exercido sobre sistemas de trocas de médio e longo alcance espacial, a concentração de funções manufatureiras, financeiras e de negócio e o desenvolvimento de atividades relacionadas à economia marítima e portuária produziram uma urbanidade própria às cidades-porto (BRAUDEL, 1979; PAVÓN, 2004). Segundo geógrafos como James Bird (1963), André Vigarié (1979) e Brian Hoyle (1989), a expansão das atividades portuárias participava intensamente dos desenvolvimentos urbanos e vice-versa. 7 O modelo Anyport, elaborado por Bird (1963), buscou identificar e analisar a natureza e a evolução histórica dos vínculos entre funções portuárias e funções

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

http://confins.revues.org/7685

urbanas. Trata-se de uma perspectiva histórico-morfológica que, a partir do exemplo dos portos britânicos, pretendeu criar um referencial que provesse uma base comparativa para a compreensão dos mecanismos do desenvolvimento portuário. Em sua essência a reflexão teórica de James Bird entende o espaço portuário como uma sucessão linear e cronológica de fases históricas de desenvolvimento. O modelo descritivo é organizado em três etapas, cada qual envolvendo uma mudança ou evolução no layout físico dos portos. Figura 1: O modelo Anyport de J. Bird

Fonte: Rodrigue et al (2009). 8

9

A fase inicial marca o “estabelecimento” da cidade portuária a partir da instalação de um porto num sítio adjacente ao centro urbano. A escolha desta localização original depende de considerações geográficas e dos fins aos quais atenderá o novo equipamento (BIRD, 1963). Nesse estágio pré-industrial, as estruturas, equipamentos e o modo de funcionamento do porto inicial mantiveram-se por bastante tempo de forma rudimentar. Nesta mesma linha de raciocínio, Hoyle (1989) apresenta um modelo cronológico de análise da evolução da interface cidade-porto estruturado em cinco fases distintas. Figura 2: Evolução temporal da cidade portuária industrial ocidental

4 de 18

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

5 de 18

http://confins.revues.org/7685

Fonte: Hoyle (1989).

A primeira delas – Porto-Cidade Primitivo – corresponde ao surgimento do porto que, em seu estágio inicial de desenvolvimento, mantinha um íntimo vínculo físico/morfológico e funcional com o tecido urbano dentro de uma relação simbiótica de beneficiamento mútuo. As fronteiras que delimitam atividades portuárias e urbanas ou o uso das infraestruturas técnicas eram então particularmente fluidas. 11 Em países periféricos, como o Brasil, as instalações portuárias frequentemente atendiam ao duplo objetivo geopolítico e geoeconômico da potência colonial. As cidades portuárias desempenharam uma função central no processo de conquista, controle e defesa dos territórios ultramarinos (DROULERS, 2001). Elas constituíam também o elo privilegiado das interações espaciais de longo alcance geográfico que marcaram a crescente inserção da economia nas redes do capitalismo mercantil. Os primeiros portos brasileiros funcionaram, assim, como portas de entrada dos colonizadores, de milhões de escravos e de bens manufaturados europeus e como pontos de saída das riquezas do país (COCCO; SILVA, 1999; MONIÉ, 2011). As atividades mais diretamente relacionadas ao porto geravam um grande volume de empregos e representavam uma fonte maior de arrecadação para a cidade. As famílias que dominavam o comércio ergueram fortunas e consolidaram seu poder político local. No entanto, se nos países centrais os portos eram associados à prosperidade econômica e ao progresso, na periferia do sistema mundial a cidade portuária simbolizou também uma inserção na divisão internacional do trabalho e num sistema de dominação colonial que alimenta até hoje uma relação complexa da sociedade com a atividade portuária (RIBEIRO, 1995). 10

O auge do sitema porto-cidade e a Revolução Industrial 12

No século XIX, a expansão das atividades industriais transformou a natureza das trocas comerciais e intensificou a circulação de mercadorias em todas as escalas. As comunicações, até então prejudicadas pela precariedade e pelo elevado custo dos

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

6 de 18

14

http://confins.revues.org/7685

transportes, intensificam-se sob o efeito dos ganhos de escala na produção industrial e da reorganização do espaço econômico. Uma onda de inovações facilita a circulação de pessoas, bens e informação. O progresso técnico beneficiou em primeiro lugar ao transporte marítimo. Os modernos navios de casco de aço e movidos a vapor transportam de forma segura volumes crescentes de mercadorias em longas distâncias (VIGARIÉ, 1979). O setor se organiza em Conferências e multiplica as linhas regulares que desenham uma malha circulatória cada vez mais abrangente. Mas, o aumento da capacidade de carga e a crescente especialização dos cargueiros por segmentos de mercados demandam uma reestruturação da ferramenta portuária. Os portos são dotados de docas para acolher navios maiores, de cais lineares, de modernos equipamentos de manuseio das mercadorias e de estruturas de armazenamento especializadas para atender às demandas impostas pelo aumento regular das trocas marítimas e pela gestão descontínua dos fluxos de mercadorias (CHALINE, 1994, p. 25). A dinâmica marítimo-portuária da época caracteriza, segundo Hoyle (1989), a transição da era “porto-cidade primitivo” para a fase “porto-cidade em expansão”, período de maior intensidade das relações entre espaços portuário e urbano. 13 Nas primeiras décadas do século XX, o “sistema cidade-porto” (CHALINE, 1994) ainda articula as funções marítimas e portuárias à um conjunto de atividades comerciais e de serviços. A gestão de inúmeros portos pelas autoridades locais contribui para transformar a atividade portuária em eixo central da economia e da vida urbanas. No Brasil, os portos mais diretamente vinculados aos ciclos do café (Rio de Janeiro, Santos) e da borracha (Belém, Manaus) são associados a um denso tecido de estabelecimentos bancários, casas de negócios, empresas oferecendo serviços de apoio diversos à navegação e estruturas produtivas voltadas para o processamento ou a transformação das mercadorias. A fixação local de valor agregado aos fluxos de bens transforma a rugosidade espacial da interface mar/terra numa renda de situação para a cidade (VIGARIÉ, 1979). O porto é também um elemento fundamental do desenvolvimento urbano. Na ausência de um sistema de transporte público eficiente, a numerosa mão de obra portuária e industrial instala-se nas proximidades de seu lugar de trabalho. No “novo mundo”, os migrantes e os tripulantes de navios, cujo tempo de permanência nos portos podia superar semanas, também se alojam nos espaços contíguos ao porto. No entanto, com o tempo, o crescimento da atividade comercial e a reestruturação do espaço portuário intensificam a funcionalização do solo urbano. Mesmo se, num primeiro momento, as descontinuidades espaciais provocadas pela construção de muros de separação, pela instalação de armazéns de grande porte e de vias férreas conectadas aos cais não rompem a coerência socioeconômica do sistema portocidade, os contornos do mesmo adquirem maior complexidade. Em suma, a era da expansão portuária, segundo momento identificado por Bird (1963), prefigura uma dinâmica de distanciamento do porto em relação a cidade.

Cidades e portos frente aos novos padrões de desenvolvimento e determinismos tecnológicos no século XX Nas primeiras décadas do século XX o sistema porto-cidade vivencia um desenvolvimento mais autônomo da cidade e do espaço portuário. Lenta e progressivamente a tendência de aninhamento, indissociabilidade e interdependência é substituída por outra, marcada pelo afastamento e o 15

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

7 de 18

http://confins.revues.org/7685

distanciamento. Porto e cidade separam-se do ponto de vista físico, econômico e gerencial (SEASSARO, 1999; HAYUTH, 1982; HOYLE, 1989; HENRY, 2006; WANG; OLIVER, 2003). 16 A expansão geográfica e setorial do mercado massifica os processos produtivos e as operações de distribuição. A concorrência pelo uso do solo e as limitações físico-operacionais aos portos tradicionais constituem gargalos para os atores econômicos. A mudança de escala na produção, no transporte e no consumo estimula a relocalização das estruturas produtivas e das infraestruturas portuárias para fora dos centros urbanos. A migração dos portos para lugares onde contam com amplas reservas fundiárias, com calados profundos e um maquinário moderno intensifica-se a partir dos anos 1950 (VIGARIÉ, 1979; HOYLE, 1989; BIRD, 1963). A especialização dos navios e o gigantismo naval impõem-se nos mercados de graneis (transportados sem condicionamento) que alimentam com insumos as unidades petroquímicas, químicas e siderúrgicas de Zonas Industrial-Portuárias (ZIP) instaladas em estuários (Antuérpia, Rotterdam) ou ao longo das fachadas marítimas regionais (Dunkerque, Fos-sur-Mer, Sepetiba/Itaguaí). Foto 1 – Zona Industrial-Portuária de Antuérpia

Fonte: Fotografia de Frédéric Monié

O desenvolvimento do mercado mundial das commodities sistematiza a busca por economias de escala e alimenta o gigantismo naval (VIGARIÉ, 1981). O crescimento das trocas internacionais de bens manufaturados estimula, por sua parte, o recurso ao porta-contêiner, cujo uso requer técnicas operacionais e de estocagem específicas. Intermodalidade e mecanização da atividade portuária garantem aos armadores ritmo de rotação rápido dos navios e tarifas competitivas. 17

Figura 3. Uma circulação segmentada, interfaces rugosos

Fonte: Elaborado por Frédéric Monié.

A massificação dos fluxos impõe novos padrões de acessibilidade náutica e terrestre aos complexos portuários; portanto, calados sempre mais profundos e 18

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

http://confins.revues.org/7685

infraestruturas de transporte terrestre de grande gabarito (VIGARIÉ, 1981). A era do “porto-cidade industrial moderno” (HOYLE, 1989) insere o porto num universo operacional e gerencial altamente funcionalizado que o transforma em simples ponto de transbordo de insumos de base destinados às zonas industriais e de cargas gerais que abastecem sua hinterlândia terrestre (COCCO, SILVA, 1999). A primazia da função de transporte sobre as atividades comerciais e de negócio consolida a dinâmica de distanciamento entre a cidade e o porto (VIGARIÉ, 1981; LAVAUDLETILLEUL, 2007; MONIÉ, 2011).

Cidades e portos diante dos imperativos de fluidez na era da globalização O imperativo da fluidez na atividade portuária 19

8 de 18

A partir da década de 1970, o aprofundamento da globalização reestrutura o espaço econômico mundial dando a ele uma feição de arquipélago cujos centros produtivos mais competitivos são interconectados por redes logísticas multi-escalares (VELTZ, 2002; MONIÉ, 2011). A reorganização do transporte marítimo e da atividade portuária provoca uma “remodelação da frente marítima”, que constitui a quinta e última fase do modelo de Hoyle (1989). 20 As pressões que se exercem sobre a interface cidade/porto intensificam a “crise dos cais”, cujas atividades são submetidas à adoção de novos padrões de organização e localização. A sincronização da produção, do transporte e da distribuição insere os portos em arquiteturas logísticas organizadas segundo princípios de flexibilidade operacional e de minimização das rugosidades espaciais e funcionais (SLACK, 2005; MONIÉ, 2011; DUCRUET, 2005). As estratégias funcionais e espaciais dos operadores logísticos aprimoram a gestão das redes integradas de prestação de serviços logísticos de porta-a-porta. A interface portuária é submetida ao imperativo de fluidez do supply chain management num ambiente de concorrência crescente entre portos por captação de mercadorias. Por esta razão, as reformas portuárias dos anos 1980 e 1990 promovem medidas de ordem institucional, administrativa, gerencial e operacional visando à inserção competitiva dos portos nas redes intermodais do transporte mundial. 21 As redes mundiais de nós de transbordo e vetores de circulação marítima são administradas pelos atores da logística segundo lógicas que deslocam a gestão dos terminais locais da escala do complexo portuário para o nível global (DUCRUET, 2005). Na Ásia, Europa e América do Norte, as estratégias heterogêneas dos operadores aceleram a tendência de fragmentação e “terminalização” dos territórios portuários (SLACK, 2005; NOTTEBOM; RODRIGUE, 2005; LAVAUD-LETILLEUL, 2007). A interiorização de parte da atividade portuária em direção à hinterlândia participa da mesma lógica de fluidificação da circulação. A conteinerização dos fluxos de mercadorias e a instalação de corredores intermodais permitem amenizar as rugosidades funcionais e burocráticas próprias aos espaços retroportuários e aproximam as etapas finais da produção a mercados de consumo cada vez mais diferenciados (NOTTEBOM; RODRIGUE, 2005; MONIÉ, 2011). 22 No Brasil, o crescimento do tráfego de contêineres, a chegada dos atores globais da logística e as dificuldades das Autoridades Portuárias em atenderem às demandas de seus clientes alimentam uma tendência, ainda embrionária, de regionalização de atividades tradicionalmente realizadas nos retroportos. Os operadores de Santos e Rio de Janeiro dispõem, assim, de um sistema de portos

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

9 de 18

http://confins.revues.org/7685

secos, zonas de atividades logísticas e centros de distribuição estrategicamente localizados nas suas hinterlândias que garantem maior agilidade nos processos de distribuição. 23 O imperativo de fluidez também leva os armadores a privilegiarem escalas em nós portuários que, apesar de não contarem com hinterlândia terrestre de porte, estão estrategicamente localizados nos eixos marítimos que conectam os três polos da Tríade. Os hub ports de Dubai, Gioia Tauro, Algésiras, Panama Cd, Tanjung Pelepas ou Freeport funcionam como plataformas de concentração e redistribuição de contêineres para portos alimentadores que servem em seguida suas áreas de influência terrestres regional (MONIÉ; VIDAL, 2006). Fruto da racionalidade técnica e operacional dos operadores logísticos internacionais, os portos pivô constituem nós de trânsito dentro de um sistema hierarquizado e polarizado que multiplica as lógicas des-territorializadoras (COCCO; SILVA, 1999). Figura 4 – Integração e fluidificação da circulação, terminalização dos portos organizados e interiorização das funções portuárias

Fonte: Elaborado por Frédéric Monié

25

26

24 Dinâmicas semelhantes caracterizam a inserção dos terminais de graneis líquidos e sólidos nos sistemas de objetos dos atores econômicos globais da mineração, da indústria petrolífera e do comércio de bens agrícolas. No Brasil, se os portos gateways de Santos, Rio de Janeiro, Paranaguá ou Vitória permanecem importantes pontos de trânsito para matérias primas, eles enfrentam, no entanto, a crescente concorrência de terminais monofuncionais que captam fluxos de commodities oriundos das fronteiras de acumulação do planalto central, da bacia amazônica e do off shore petrolífero. Essas cidades portuárias, depois de terem sido privadas de sua função de praça de negócio e de organização dos segmentos comerciais pelo desenvolvimento de mercados a termo, agora perdem os mercados de graneis em beneficio dos portos sem cidade (FOULQUIER, 2008, p. 214). A atividade dos portos generalistas é assim ameaçada tanto pela transferência do transbordo dos contêineres e dos graneis em direção a sítios logísticos interiorizados e/ou terminais extraurbanos, quanto por dinâmicas do espaço econômico nacional. É em particular o caso do Brasil, onde os investimentos de grande porte aplicados nas ZIP de Itaguaí, Suape e Vila do Conde e a construção de complexos industriais litorâneos fora dos grandes centros (Pecém, Porto do Açu, Porto Sul) fazem emergir uma nova geração de portos-indústria inseridos nas cadeias de valor de atores econômicos cujas escalas de ação ignoram o nível local (MONIÉ, 2011). A combinação destas dinâmicas foi decisiva para aprofundar a crise dos portos

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

http://confins.revues.org/7685

urbanos. Os cais que não proporcionavam soluções logísticas ajustadas às novas exigências operacionais e tarifárias dos atores econômicos foram parcialmente ou totalmente abandonados, confirmando o divórcio físico, gerencial, social e cultural da cidade e do porto (HOYLE, 1989).

As áreas urbano-portuárias no espaço mundial dos fluxos

29

30

10 de 18

27 A degradação dos espaços urbano-portuários foi apreendida como um fenômeno indesejável imposto pela decadência do modelo econômico. Num primeiro momento, os chamados friches acolheram infraestruturas de transporte e estacionamentos destinados a resolverem problemas de mobilidade comuns aos grandes centros urbanos (CHALINE, 1994; HARVEY, 2003). Mas, nos anos 1960, algumas metrópoles avistaram na “remodelação da frente marítima” (HOYLE, 1989) a possibilidade de pensar usos destinados à melhorar a qualidade de vida da população. As primeiras iniciativas foram voltadas para a criação de espaços verdes e recreativos - como passeios, esplanadas e pequenos parques a beira do espelho d´água que revalorizavam o elemento aquático no imaginário coletivo. São exemplos os projetos que aconteceram em New Orleans, Boston, Toronto ou Montreal (CHALINE, 1988, p. 700). 28 Na década seguinte, a crise econômica estimulou as autoridades públicas a buscarem soluções inovadoras diante do aumento do desemprego e da diminuição das receitas fiscais.Os friches receberam comércios e equipamentos de lazer e, aproveitando-se de sua localização estratégica entre a frente d’água e o Central Business District constituíram-se como fronteiras de acumulação para o capital imobiliário. A partir dos exemplos pioneiros de Baltimore, Boston e São Francisco, a refuncionalização dos espaços tradicionalmente dedicados à atividade portuária ofereceu às autoridades locais oportunidades para construir um modelo de cidade pós-industrial (HOYLE, 1989; HARVEY, 1989; CHALINE, 1994). Os níveis de lucratividade obtidos com os empreendimentos iniciais e a aceitação da população, que constrói uma nova representação dos bairros portuários, facilitaram o processo de difusão dos projetos de waterfront dos Estados Unidos para a Europa e daí para o resto do mundo. As estratégias de intervenção se tornam mais ambiciosas no que diz respeito às superfícies de solo urbano a ser refuncionalizado e ao leque das atividades chamadas a reerguer a economia local. Nos anos 1980 e 1990, diversos autores - dentre os quais se destacam Jordi Borja e Manuel Castells - teorizam a metrópole internacional administrada como uma empresa e reestruturada segundo princípios de competitividade territorial num contexto marcado pela competição entre territórios infranacionais para atrair investimentos produtivos, capital financeiro, turistas nacionais e internacionais, executivos, convenções ou grandes eventos (CASTELLS, 1999; BORJA; CASTELLS, 1992). Nesta perspectiva, planejamento estratégico e city marketing constituem instrumentos privilegiados do empresariamento da cidade na era neoliberal (VAINER, 2002; HARVEY, 1996; SMITH, 2002; SANCHEZ, 2001). A retórica e as estratégias discursivas que acompanham a produção e a execução dos projetos são destacadas como elementos centrais da “engenharia de consenso” que legitima os empreendimentos na perspectiva da “cidade modelo”, eliminando leituras alternativas e conflitos (SANCHEZ, 2001 p. 37). A literatura crítica destaca ainda o surgimento de novas formas de segregação sócio-espacial no acesso aos espaços de consumo e residenciais de áreas portuárias “gentrificadas” (SMITH, 2002). Concluindo, a dupla perspectiva dos operadores globais da logística e dos promotores das operações de waterfronts submeteu as cidades portuárias ao imperativo da fluidez. A capacidade de atrair fluxos de mercadorias, de capital,

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

11 de 18

http://confins.revues.org/7685

pessoas e eventos constitui um indicador maior da produtividade dos terminais portuários e da “performance” da cidade pós-industrial. A nova associação entre espaço portuário e território urbano estrutura-se em função de interesses e objetivos que produzem paralelamente dinâmicas de fragmentação do porto, redefinido em termos de nós inseridos em sistemas circulatórios globais e processos de reaproximação entre a cidade e os antigos cais, através da invenção de novos usos.

Indo além do imperativo de fluidez e construindo uma nova relação cidade/porto Logística, território e desenvolvimento local Para além das dinâmicas homogeneizadoras, os sítios geográficos, o jogo dos atores, a conjuntura socioeconômica, a capacidade de inovar em termos de governança e/ou a própria relevância da atividade portuária para a cidade diferenciam as trajetórias das metrópoles marítimas, as quais assumem inserções diferenciadas nos circuitos produtivos, logísticos e comerciais mundiais (LAVAUDLETILLEUL, 2005; COMTOIS, SLACK, 2003; COLLIN, 2003). A combinação de dinâmicas que atravessam o espaço econômico global, com a evolução do comércio internacional, junto às estratégias dos operadores do sistema marítimo portuário e às demandas das populações podem contribuir para fazer do porto em simples nó de trânsito. Contudo, algumas cidades portuárias logram desenvolver lógicas de fixação local/regional de valor agregado aos fluxos de mercadorias no cruzamento de redes multilocalizadas do transporte e do sistema produtivo (BAUDOUIN, 1999; COCCO; SILVA, 1999; MONIÉ, 2011). Em Antuérpia, Rotterdam, Hamburgo, Barcelona ou Valência, distritos de serviços logísticos permitem superar as funções tradicionais da economia dos transportes gerando, “sinergias entre fluxos de origem e de destino diferentes (efeitos de redes), entre as etapas de elaboração de um produto (efeitos de cadeias) ou a mercantilização deste produto (efeitos de mercado)” (GUILLAUME, 2008, p. 16). A despeito das lacunas metodológicas permitindo avaliar de forma precisa e numa perspectiva comparativa sua contribuição ao PIB local, os “portos-logística” comprovam que a mobilização das competências de um denso tecido de atividades comerciais e de serviços consolida trajetórias desenvolvimentistas específicas em contextos de reaproximação funcional e gerencial do território urbano e do espaço portuário (BAUDOIN, 1999; COLLIN, 2003). Nas cidades marítimas brasileiras as políticas públicas são essencialmente voltadas para a modernização dos nós portuários mediante seu equipamento em tecnologias modernas de manuseio, adoção de padrões de gestão empresariais e investimentos na acessibilidade terrestre e náutica. A qualidade dos serviços prestados, a fluidez das operações de transbordo e o nível das tarifas definem a competitividade do porto empenhado em captar volumes crescentes de mercadorias (COCCO; SILVA, 1999; MONIÉ, 2011). As inovações no campo da governança se limitam a algumas experiências isoladas. Em Santos/SP, por onde transita 25% do comércio exterior, a criação da Secretaria de Assuntos Portuários e Marítimos promove interações crescentes entre atividade portuária, indústria e serviços logísticos (Gonçalves, Nunes, 2008). Em Itajaí/SC, a mobilização em prol da municipalização do porto (1995/97) redefiniu as formas de articulação entre espaço portuário, território urbano e hinterlândia regional. Se, por um lado, o aumento da produtividade garantiu a expansão regular da atividade graças a uma inserção competitiva nos circuitos mundiais da circulação; por outro, lógicas de fixação local de valor aos

31

32

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

12 de 18

http://confins.revues.org/7685

fluxos de mercadorias transformaram o porto em ator fundamental do desenvolvimento local e regional (GOULARTI FILHO, 2008; GRAND Jr, 2009). 33 A promoção de políticas inovadoras se depara, no entanto, com graves entraves estruturais. As modalidades da inserção histórica do Brasil na divisão internacional do trabalho, regras do comércio mundial favorecendo o processamento de determinados produtos primários (grãos de café, cacau etc.) nos países centrais, vantagens competitivas na mercantilização das cargas gerais historicamente construídas por praças portuárias europeias e as próprias orientações macroeconômicas nacionais incentivando as exportações de bens primários, limitam as estratégias de beneficiamento das mercadorias nos espaços retroportuários. Entraves de ordem institucional prejudicam ainda mais a transformação das cidades portuárias em “regiões ganhadoras” cuja chave de sucesso reside na mobilização dos atores locais para definição de trajetórias produtivas territorializadas (BENKO; LIPIETZ, 1994; PECQUEUR; GUMUCHIAN, 2007). A baixa densidade institucional e a precariedade dos mecanismos de cooperação penalizam a construção de estratégias de governança articulando transversalmente as escalas de ação do espaço portuário, do tecido econômico local e da sociedade urbana (MONIÉ, 2011). A constituição de laços produtivos entre porto e cidade em consonância com as demandas da “economia industrial de serviços” (VELTZ, 2002) continua sendo um desafio maior para as cidades marítimas brasileiras.

Projetos de waterfronts: um potencial de desenvolvimento para a cidade? 34

As intervenções urbanísticas que acompanham o “recuo da frente marítima” levantam questionamentos semelhantes. A problemática da reconstrução de laços produtivos entre o porto e a cidade aplica-se também aos projetos de refuncionalização dos friches portuários. As primeiras iniciativas norte-americanas foram pautadas em objetivos modestos num contexto marcado por mudanças nas práticas espaciais e temporais do lazer, sugerindo a disponibilização de espaços recreativos permanentes para as populações urbanas. No entanto, nos anos 1970, a crise estimulou as autoridades locais a lançarem projetos mais ambiciosos no intuito de gerarem receitas fiscais, criarem emprego e abrirem fronteiras de acumulação suficientemente rentáveis para atrair investimentos para os centros urbanoportuários. 35 Apesar do predomínio do terciário comercial, as novas intervenções adquirem uma feição polifuncional. Além dos centros comerciais, surgem alguns objetos urbanísticos e arquitetônicos chamados a difundirem-se nos “cais em crise” das metrópoles do mundo: museus, aquários, marinas ou centros de convenção (CHALINE, 1994; FERREIRA, 2011). Porém, apesar da reprodução de métodos e artefatos urbanísticos, não há linearidade nas operações de waterfronts e o mix de atividades e equipamentos adquire com o tempo uma feição mais complexa e diversa (COLLIN, 2003; LEMARCHAND, 2011). 36 Para além das tendências à homogeneização, a diversidade dos contextos urbanos produziu formas específicas de articulação do local e do global. A ambiciosa operação Docklands foi assim concebida para marcar a saída definitiva de Londres da era industrial e o ingresso da metrópole na era do capitalismo neoliberal centrado nas atividades financeiras e nos serviços superiores (CHALINE, 1994; COLLIN). A refuncionalização das áreas portuárias de Barcelona e Cape Town foi, por sua parte, associada à organização de grandes eventos. Ambas participaram de projetos de transformação urbanística por parte de cidades em busca de visibilidade global em contextos geopolíticos nacionais muito peculiares (redemocratização na Espanha e fim do regime do apartheid na África do Sul).

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

37

38

http://confins.revues.org/7685

As operações de refuncionalização dos friches diferenciam-se também quanto ao grau de incorporação da identidade local nos novos usos. Cidades, como Bilbao, desenvolveram estratégias de marketing urbano centradas num investimento âncora sem relação com a história local – o museu Guggenheim –, mas, aos olhos dos seus promotores, suficientemente espetacular para resolver os problemas de atratividade de um território em crise e iniciar uma trajetória de renascença urbana (LEMARCHAND, 2011, p.79). Em nome da “memória marítima”, outras aglomerações preservam e valorizam um patrimônio industrial e portuário – gruas, armazéns, silos, etc. – anteriormente rejeitado por razões estéticas e simbólicas. A interface portuária é assim transformada em lugar pitoresco “cuja paisagem funcional é transformada em espetáculo cultural” (PRELORENZO, 2011, p.18) pelas operações urbanísticas pós-modernas. A memória social e cultural do lugar pode, em certos casos, representar um desafio maior. É o caso do projeto carioca Porto Maravilha, executado numa região portuária marcada pelo negócio de escravos africanos. As (re)descobertas do patrimônio relacionado a este comércio e a forte influência africana na construção dos lugares que margeiam o porto carioca questionam a capacidade de mobilizar conjuntamente recursos culturais e humanos à serviço da construção da cidadania e como vetores de desenvolvimento para o turismo e a “indústria cultural”. A atual intervenção na área portuária do Rio de Janeiro questiona a capacidade das cidades marítimas de superarem as estratégias de marketing urbano e pensarem em um “working waterfront”, definidocomo “dispositivo construído para habitar e transitar, animado por residentes permanentes e temporários, conectado a navios de todos os tipos e produzindo bens e serviços diversificados e globalizados” (LE MARCHAND, 2011, p.79). A não exclusão da logística portuária da cidade constitui um primeiro passo neste sentido. Algumas cidades decidem, por razões estratégicas, preservar parte da atividade portuária, de pesca e/ou de reparo naval próximos dos centros urbanos e de waterfronts requalificados. No Brasil, Santos e Itajaí refuncionalizaram e/ou reabilitaram espaços próximos ao porto sem, no entanto, prejudicar a função portuária que ainda constitui a espinha dorsal da economia local. Em Hamburgo, os Bauforuns, centros cidadãos de reflexão, debateram propostas que desempenharam um papel fundamental no processo de requalificação dos espaços portuários da área central. Também apostaram na construção de um sistema porto/cidade associando atividades portuárias tradicionais, serviços soft da logística moderna, espaços residenciais para classes médias e populares, equipamentos de consumo e recreativos etc. Nos working waterfronts da metrópole hanseática - como também em Barcelona, Rotterdam, Amsterdam, Antuérpia ou Cape Town - o porto e os bairros adjacentes oferecem um amplo leque de atividades e funções que qualificam uma via de desenvolvimento articulando recursos territoriais locais e lógicas da circulação global. Foto 2: Cape Town: um waterfront multifuncional

13 de 18

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

14 de 18

http://confins.revues.org/7685

Fonte : Fotografia de Frédéric Monié

Conclusões Após um longo período de imbricação física, socioeconômica e humana, portos e cidades seguiram, a partir do século XX, trajetórias cada vez mais autônomas. A coerência do tradicional sistema porto-cidade foi progressivamente questionada pelas transformações produtivas e espaciais do capitalismo, pela massificação dos fluxos e pela evolução das tecnologias do transporte marítimo. Estes aspectos, acompanhados dos desenvolvimentos na logística e na manipulação das cargas, estimularam a relocalização da atividade portuária em direção a lugares cada vez mais distantes dos centros urbanos. A retirada física do porto deixou áreas contíguas ao porto abandonadas e degradadas, imagem que ilustra a dinâmica de distanciamento e divórcio entre porto e cidade. 40 A fase atual da globalização questiona, no entanto, a linearidade deste processo. Mutações maiores incidem sobre a malha global das mobilidades, redefinindo a paisagem institucional, as modalidades operacionais e a organização espacial do sistema portuário mundial. 41 A situação dos portos pelos quais transita o essencial do comércio internacional de mercadorias é hoje muito complexa e paradoxal. A cidade-porto, que durante muito tempo foi uma praça de negócios e um lugar obrigatório para valorização das mercadorias, está submetida à pressões conjuntas dos horizontes terrestre e marítimo e corre o risco de ser transformada em simples espaço de trânsito no tabuleiro da circulação mundial organizado por atores logísticos cujas estratégias funcionais e territoriais frequentemente ignoram a escala local. Neste contexto, os portos competem pela atração de fluxos de mercadorias que, após transitarem pelos terminais de contêineres, são redistribuídas para corredores que interiorizam parte da atividade portuária. A problemática da atratividade preside também a definição dos projetos de reconversão dos friches portuários; estes são considerados trunfos estratégicos pelas metrópoles marítimas na competição para atrair eventos, turistas, executivos e investimentos. 42 Porém, as forças das redes de circulação global e do imperativo de fluidez não se aplicam de forma homogênea em escala mundial. Regiões e cidades portuárias desenvolvem estratégias alternativas voltadas para a valorização de sua renda de situação no bojo dos circuitos mundiais do transporte e da produção. A fixação local de valor agregado aos fluxos globais torna-se um imperativo nos espaços 39

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

15 de 18

http://confins.revues.org/7685

retroportuários e nos working waterfronts, onde a diversidade das funções e das atividades alimenta-se das competências materiais e imateriais do território local.

Bibliografia Benko G., Lipietz A. As regiões ganhadoras. Oeiras: Celta Editora, 296p., 1994. Borja J., Castells M. Local y global. La gestíon de las ciudades en la era de la informacíon. Madrid: Taurus, 288 p., 1998. Braudel F. Civilisation matérielle, économie et capitalisme, XVe-XVIIIe siècle. Paris: Armand Colin, vol. 3, 606 p., 1979. Castells M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 698p., 1999. Bird J.H. The major seaports of the United Kingdom. Londres: Hutchison, 454p., 1963. Cocco G. e Silva G. (dir.) Cidades e Portos. Os espaços da globalização. Rio de Janeiro: DP&A, 280p.1999. Chaline C. «La reconversão des espaces fluvio-portuaires dans les grandes métropoles». Paris, Annales de Géographie, n.544, pp.695-715, 1988. Chaline C. (dir.), Malta Rodrigues R. (coord.). Ces ports qui créèrent des villes. Paris: L’Harmattan, 299p., 1994. Collin M. Ville portuaire, acteur du développement durable. Paris: L’Harmattan, 200p., 2003. Contois, C. e Slack, B. «Innover l´autorité portuaire au 21eme siécle: un nouvel agenda de gouvernance». Les Cahiers Scientifiques du Transport, Montréal, n.44, p. 11-24, 2003. Droulers M. Brésil: une géographie. Paris: PUF, 308p, 2001. Ducruet, C. «Spatial structures and trends in port cities: from the local to the global», Mappemonde, 77(1) 2005: http://mappemonde.mgm.fr/num5/articles/art05106.html Ferreira A. A cidade no século XXI. Segregação e banalização do espaço. Rio de Janeiro: Consequência, 286 p., 2011. Foulquier, É. «Le déficit de maritimité du littoral portuaire sud-américain» In: Guillaume J. (dir.) Les transports maritimes dans la mondialisation. Paris: L´Harmattan,2008, pp. 211-229. Gonçalves A., Paula Nunes L. A. O grande porto. A modernização do porto de Santos. São Paulo: Editora Realejo, 328 p., 2008. Goularti Filho, A. «As respostas do Porto de Itajaí à dinâmica da economia catarinense.Revista de Economia», Curitiba, n.1, pp. 25-49, 2008. Grand Jr., J. Novos cenários para a competitividade portuária em tempos de reestruturação da economia mundial: uma análise sobre a dimensão produtiva da relação cidade-porto através da experiência de Itajaí, SC. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação de mestrado (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Geografia. Guillaume J. (org.) Les L´Harmattan,282 p., 2008.

transports

maritimes

dans

la

mondialisation.

Paris:

Gumuchian H., Pecqueur B. La ressource territoriale, Paris: Economica-Anthropos, 254 p., 2007. Harvey D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 352p., 1989. Harvey D. «Do Gerenciamento ao Empresariamento: A Transformação da Administração Urbana no Capitalismo Tardio». Espaço e Debates, n.39, 1996, pp. 48-64. Hayuth, Y. «The port-urban interface: an area in transition». Area, Londres, n.3, pp. 219-224, 1982. Henry, M. Villes portuaires en mutation - Les nouvelles relations ville-port à Marseille dans le cadre du programme de renouvellement urbain Euroméditerranée. Mémoire de Master. Lausanne: Université de Lausanne, Institut de Géographie, 2006. Hoyle, B. S. «Development Dynamics at the Port-City Interface». In: Hoyle B. S.; Pinder D. A.; Husain M.S. (Ed.). Revitalising the Waterfront. London: Belhaven Press, 1988, pp 3-19. Hoyle B. «The port-city interface: trends, problems, and examples». Geoforum, Amsterdã, n.4, pp. 429-435, 1989. Lavaud-Letilleul V.«Ports: la tentation du tout-réseau face aux pesanteurs du territoire?», XLIIIème colloque de l’Association de Science Régionale de Langue Française (ASRDLF). Grenoble-Chambéry, 2007.

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

16 de 18

http://confins.revues.org/7685

Laxe F.G. Los puertos en el nuevo milênio. Voz de Galícia, Espanha,18 jan. 2004. Le Marchand, A. «De la requalification spectaculaire au “working waterfront”». Rives Méditerranéennes, n.39, pp. 65-80, 2011. Monié, F. e Vidal, S. M. do S.C. «Cidades, portos e cidades portuárias na era da integração produtiva». Rio de Janeiro, Revista de Administração Pública, n.6, pp. 975-995, 2006. Monié, F. «Transporte e expansão da fronteira da soja na BR-163 – Estado de Mato Grosso». In: Gonçalves P. Zamparoni C.A., Tomasini Maitelli, G (org.). Expansão da soja na Pré-Amazônia Mato-Grossense. Impactos socioambientais. Cuiabá: Entrelinhas e EdUFMT, pp. 153-170, 2007. Monié,F. «Globalização, modernização do sistema portuário e relações cidade/porto no Brasil».In:Silveira, M R. (org.). Geografia dos transportes, circulação e logística no brasil.São Paulo: Outras Expressões, pp. 229-330, 2011. Notteboom, T., Rodrigue, J. P. «Port regionalization: towards a new phase in port development». Maritime Policy and Management, n°3, 2005, p. 297-313. Pavón, B. S. ?Un futuro común para puertos y ciudades? La Opiníon de a Coruña, Espanha, 6 fev. 2004. Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2010. Pavón, B. S. El futuro de las relaciones puerto-ciudad. Instituto Universitario de Estudios Marítimos, Universidade da Coruña, 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2010. Prelorenzo, C. e Rodrigues-Malta, R. «La ville portuaire, un nouveau regard. Évolutions et mutations». Rives Méditerranéennes, n.39, pp. 13-22, 2011. Ribeiro D. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 433 p., 1995. Rodrigue, J-P et al. The Geography of Transport Systems. Hofstra University, Department of global Studies & Geography, 2009. Disponível em: . Acesso em 14 nov. 2010. Sànchez, F. «A reinvenção das cidades na virada do século: Agentes, estratégicas e escalas de ação política». Revista de Sociologia Política, n.16, pp. 31-49, 2001. Santos, Milton. A Natureza do Espaço. São Paulo: EDUSP, 2008. Seassaro, L. «O sistema portuário italiano. Privatização, operadores transnacionais e recomposição da relação porto-cidade». In: Cocco G, Silva G. (Org.). Cidades e portos Os espaços da globalização. Rio de Janeiro: DP&A, 1999, pp. 133-170. Slack, B. «Terminalisation of ports: an academic question?». Proceedings of the international workshop on New generation of port-cities & their role in global supply chains, Hong-Kong, 2005, pp. 20-30 Slack B. «Pawns in the game: Ports in a Global Transportation System». Growth and Change, pp. 579-588, 1994. Smith N. «New globalism, new urbanism: gentrification as global urban strategy», Antipode, n.º 3, pp. 427-450, 2002. Vainer, C. «Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva doplanejamento estratégico urbano». In: Arantes O., Maricato E., Vainer C. A cidade do pensamento único: desmanchando consenso. Petrópolis: Vozes, 192 p., 2002. Veltz P. Mundialización, ciudades y territórios. Barcelona: Ariel, 254 p., 1999. Veltz P. Des lieux et des liens. Politiques du territoire à l´heure de la mondialisation. Paris: Editions de l´Aube, 160 p., 2002. Vidal, L. «Le littoral brésilien à l´âge de la vapeur (1870-1920)» In: Musset A. (coord.). Les littoraux latino-américains. Paris: Editions de l´IHEAL, 1998, pp. 71-83. Vigarié A. «Maritime industrial development areas: structural evolution and implications for regional development». In Hoyle B.S., Pinder D.A. (eds.). Cityport. Industrialization and Regional Development. Oxford: Pergamon Press, pp. 429-435, 1981. Vigarié A. Ports de commerce et vie littorale. Paris: Hachette, 492 p., 1979. Wang, J. J., Olivier, D. «La gouvernance des ports et la relation ville-port en Chine». Les Cahiers Scientifiques du Transport, Lyon, n. 44, pp. 25-54, 2003.

Tabela das ilustrações

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

Título Créditos URL Arquivo

Título

Créditos URL Arquivo Título Créditos URL Arquivo

Título Créditos URL Arquivo

Título

Créditos URL Arquivo Título Créditos URL Arquivo

http://confins.revues.org/7685

Figura 1: O modelo Anyport de J. Bird Fonte: Rodrigue et al (2009). http://confins.revues.org/docannexe/image/7685/img-1.png image/png, 72k

Figura 2: Evolução temporal da cidade portuária industrial ocidental Fonte: Hoyle (1989). http://confins.revues.org/docannexe/image/7685/img-2.jpg image/jpeg, 116k Foto 1 – Zona Industrial-Portuária de Antuérpia Fonte: Fotografia de Frédéric Monié http://confins.revues.org/docannexe/image/7685/img-3.jpg image/jpeg, 72k

Figura 3. Uma circulação segmentada, interfaces rugosos Fonte: Elaborado por Frédéric Monié. http://confins.revues.org/docannexe/image/7685/img-4.jpg image/jpeg, 32k

Figura 4 – Integração e fluidificação da circulação, terminalização dos portos organizados e interiorização das funções portuárias Fonte: Elaborado por Frédéric Monié http://confins.revues.org/docannexe/image/7685/img-5.jpg image/jpeg, 60k Foto 2: Cape Town: um waterfront multifuncional Fonte : Fotografia de Frédéric Monié http://confins.revues.org/docannexe/image/7685/img-6.jpg image/jpeg, 242k

Para citar este artigo Referência electrónica

Frédéric Monié e Flavia Nico Vasconcelos, « Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogeneizantes e dinâmicas de diferenciação », Confins [Online], 15 | 2012, posto online em 18 Junho 2012, Consultado o 25 Junho 2012. URL : http://confins.revues.org/7685 ; DOI : 10.4000/confins.7685

Autores

17 de 18

25/06/2012 14:13

Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogenei...

18 de 18

http://confins.revues.org/7685

Frédéric Monié Doutor em Geografia – Professor Adjunto, Departamento de Geografia, Programa de Pós Graduação em Geografia – PPGG, Universidade Federal do Rio de [email protected] Artigos do mesmo autor

Portos, cidades e regiões: novas problemáticas, abordagens renovadas [Texto integral] Publicado em Confins, 15 | 2012

Flavia Nico Vasconcelos Doutora em Ciências Sociais - Professora Titular, Curso de Graduação em Relações Internacionais, Universidade Vila Velha – ES, [email protected] Artigos do mesmo autor

Portos, cidades e regiões: novas problemáticas, abordagens renovadas [Texto integral] Publicado em Confins, 15 | 2012

Direitos de autor © Confins

25/06/2012 14:13

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.