Evolução do altruísmo e da cooperação nos grupos humanos

November 22, 2017 | Autor: M. Lencastre | Categoria: N/A
Share Embed


Descrição do Produto

[Evolution of altruism and cooperation in human groups]. In In Cunha, P. et al (Orgs.). Construir a Paz: Visões Interdisciplinares e Internacionais sobre Conhecimentos e Práticas, 59 - 62. ISBN: 978-989-643107-5. Portugal: e-Book UFP.

Evolução do altruísmo e da cooperação nos grupos humanos

Marina Prieto Afonso Lencastre Professora Catedrática 50% da Universidade Fernando Pessoa

Resumo: A origem do altruísmo social e da cooperação é discutida no contexto da teoria dos jogos e da biologia evolutiva. Os seus fundamentos emocionais e cognitivos são apresentados a partir de precursores animais como a empatia social e a teoria da mente. Discutem-se as relações entre a intencionalidade partilhada, a linguagem e os grupos altruístas estabilizados. Num mundo globalizado, abordam-se as condições etológicas e psicológicas para a experiência do altruísmo, da cooperação e da paz em contextos expandidos. Palavras-chave: Altruísmo, cooperação, teoria dos jogos, biologia evolutiva

Abstract: The origin of altruism and cooperation is discussed in the context of game theory and evolutionary biology. Its emotional and cognitive aspects are related to social empathy and theory of mind. The relation of shared intentionality, language and stabilized altruistic groups is presented. In a globalized world, the ethological and psychological conditions for the experience of altruism, cooperation and peace in expanded social contexts is approached. Key-words: Altruism, cooperation, game theory, evolutionary biology

1. Evolução do altruísmo e da cooperação A cooperação é um fenómeno corrente no mundo animal que só recentemente encontrou uma explicação biológica satisfatória. Contradizendo aparentemente a ideia darwiniana de competição egoísta por recursos alimentares e sexuais, a cooperação e o «altruísmo»1 biológico, genericamente definido como o sacrifício de um animal em favor de outros, coloca um sério dilema à biologia: como pode ser evolutivamente 1

O altruísmo biológico aparecerá entre aspas, seguindo a recomendação de Ruse (1996) quanto à distinção entre a etologia do “altruísmo” nos animais socialmente menos complexos, e o verdadeiro altruísmo motivado por emoções, como nos primatas superiores, ou por obrigações, como no ser humano.

adaptativo sacrificar-se em favor de outros e assim correr o risco de condenar o seu próprio potencial reprodutivo? O trabalho moderno sobre cooperação e “altruísmo» resolveu esta questão através da introdução em 1963 por W.D.Hamilton do conceito de vantagem inclusiva. Este autor, que está na origem não só da investigação contemporânea sobre cooperação e “altruísmo», como também da ecologia comportamental e da sociobiologia, argumentava que os comportamentos cooperativos e altruístas tinham evoluído com mais probabilidade entre animais aparentados do que entre animais sem parentesco. Os parentes partilham mais genes semelhantes do que os não aparentados, o que significa que uma acção beneficiando um parente reverte a favor do altruísta, na medida em que as chances de reprodução dos genes comuns foram aumentadas pelo acto altruísta. Assim, o “altruísmo» biológico consiste num egoísmo genético. A teoria de Hamilton baseia-se numa modelo matemático complexo que prevê que a cooperação deverá ser mais frequente entre animais aparentados do que entre os não aparentados, e que o grau de “altruísmo» dependerá do grau de parentesco genético. A sua teoria, associada ao trabalho de E.O.Wilson sobre os insectos sociais, forneceram um contexto muito favorável para o desenvolvimento da sociobiologia e das suas hipóteses sobre a origem filogenética do “altruísmo». O poder explicativo do modelo de Hamilton para o “altruísmo» genético não conseguiu no entanto resolver o problema dos comportamentos “altruístas” entre animais não aparentados. Como compreender, à luz do modelo da vantagem inclusiva, que um animal ajude ou se sacrifique por outro com o qual não tem nenhuma ligação genética? Foi Trivers quem, em 1971, ofereceu uma explicação para estes comportamentos: os genes para o comportamento “altruísta” poderão ser seleccionados se os indivíduos forem diferencialmente “altruístas” com aqueles que foram “altruístas” consigo próprios. Os morcegos-vampiro, por exemplo, partilham o alimento recolhido durante a noite com os congéneres que não tiveram oportunidade de sugarem a sua ração de sangue. Regurgitam uma parte do sangue recolhido, de maneira a evitarem que o animal beneficiado morra de inanição. Como este comportamento é comum ao grupo, o indivíduo pode contar que, em situação análoga, será igualmente alimentado e poderá assim sobreviver. O receptor pode ser um parente, mas pode ser também um adulto não aparentado. Observou-se que os grupos de morcegos são estáveis, e que há um reconhecimento individualizado entre os seus membros, o que faz com que o receptor seja identificado e, mais tarde, solicitado por sua vez para uma dádiva de sangue. Este tipo de “altruísmo» foi chamado de “altruísmo» recíproco e foi conceptualizado para os humanos em termos da teoria dos jogos; iremos apreciar particularmente o dilema do prisioneiroe o jogo do ultimato . O dilema do prisioneiro apresenta o seguinte cenário: dois suspeitos de um crime são interrogados pela polícia em salas separadas. Podem cooperar ou desertar. Desertar significa dizer às autoridades que o outro é culpado e cooperar significa não acusar o outro. A polícia tem provas suficientes para prender os dois durante um ano, mesmo sem confissão. Se os dois acusarem o outro, vão presos 3 anos; se só um acusar e o outro se calar, o acusador sai livre e o acusado irá preso durante 5 anos. O dilema está em que, apesar do comportamento egoísta oferecer a possibilidade de ir livre, a ignorância sobre o comportamento do outro faz com que os dois prisioneiros tenham mais interesse em cooperar do que em desertar. O dilema do prisioneiro foi desenvolvido por Hamilton e Axelrod nos anos 1980 e aplicado à previsão dos comportamentos de cooperação em populações de indivíduos: quando a probabilidade de um dado indivíduo encontrar outro num futuro próximo ultrapassa um limiar crítico, então é grande a probabilidade de que apresente um comportamento cooperativo. Segundo Axelrod, esta estratégia

cooperativa condicional chamada de Olho por Olho (Tit for Tat) deve o seu sucesso evolutivo a três características: ser simpático – nunca ser o primeiro a desertar -, ser rápido a retaliar e saber perdoar, se o parceiro só tiver desertado uma vez. Recentemente, a modelização da cooperação nos humanos evoluiu no sentido de integrar factores sociais mais complexos como a reputação social, os comportamentos pró-sociais, a influência das crenças e da religião, a promoção social da conformidade, etc. Estes foram alguns dos factores indicados para tentar explicar os comportamentos aparentemente irracionais dos jogadores do jogo do ultimato (Gale et al, 1995). Este jogo consiste na interacção entre dois jogadores a um dos quais foi dada uma soma de dinheiro. Esse jogador líder propõe a divisão do dinheiro pelos dois e o jogador receptor pode aceitar ou rejeitar a soma que lhe foi atribuída. No caso de aceitar a soma de dinheiro, os dois jogadores ficam com a soma total de acordo com essa divisão; mas no caso em que o receptor rejeita a soma, os dois perdem todo o dinheiro dado no início do jogo. A escolha racional seria a de o jogador líder dar o mínimo possível e, mesmo assim, o jogador receptor aceitar esse mínimo, uma vez que é melhor ficar com alguma coisa do que partir sem nada. Mas o que se passa na realidade é que as ofertas excedem sempre o mínimo aceitável e são generosas na maior parte das vezes. Resultados idênticos são encontrados em diversas culturas (Henrich et al, 2004), mesmo nos casos em que o líder sabe que propostas injustas seriam igualmente aceites. Uma hipótese para explicar este comportamento consiste na ideia de que os humanos desenvolveram selectivamente uma «aversão à injustiça» ou uma «preferência pela equidade», que encontramos já esboçadas nos chimpanzés (de Waal, 2006), e que estariam igualmente na base da punição dos desertores egoístas. Zak, Stanton & Ahmadi (2007) mostraram que a generosidade no jogo do ultimato depende de dois factores importantes: a empatia emocional e a empatia cognitiva, que sustenta a tomada de perspectiva do outro. Variaram os níveis de empatia emocional através da administração de oxitocina intranasal e de um placebo, tendo a oxitocina aumentado em 80% as ofertas generosas, comparadas com o placebo. Estes resultados mostram que a generosidade é motivada por emoções positivas de ligação ao outro. Por outro lado, estudos em neuroimagem mostraram que a antecipação de uma oferta mesquinha, por parte do jogador líder, activa o seu córtex insular, uma região associada com a aversão visceral, o que pode ter como efeito aumentar a sua generosidade (Stanfey et al, 2002). O nível de serotonina também parece influenciar a resposta à oferta, com o níveis mais baixos tendendo a estar associados com uma rejeição mais frequente das ofertas injustas (Crockett et al, 2008). Os trabalhos sobre o que se apelidou de altruísmo forte mostraram que os humanos tendem a cooperar com os outros, mesmo quando os custos da cooperação não são sempre recuperados. Este modelo funciona sobretudo quando os contextos de troca são sólidos e previsivelmente estáveis. A confiança na estabilidade contratual dos contextos alargados promove a cooperação, como é o caso dos estudos sobre altruísmo e cooperação de mercado (Gintis et al, 2007). Os humanos comportam-se altruistamente, mesmo quando parecem não retirar benefícios imediatos disso. O altruísmo forte depende dos contratos assumidos pelos humanos, e estes assentam na capacidade para criar responsabilidades e obrigações recíprocas. A perspectiva coevolutiva sobre o altruísmo (Boyd, 2003) propõe que a capacidade dos humanos para cooperarem em grupos de grandes dimensões deriva da evolução conjunta dos genes altruístas e de uma cultura institucional da cooperação que tende a punir os comportamentos egoístas. Deste modo, os egoístas não terão oportunidade para

disseminar o seu padrão de sobrevivência, e o grupo tenderá a ser altruísta e cooperativo.

2. Empatia emocional e cognitiva: a teoria da mente Fundamentando o que aparece como uma «irracionalidade» (emocional) da escolha nestes modelos, as observações etológicas mostraram que nos animais parentais (as aves e os mamíferos), a vantagem inclusiva e o “altruísmo» recíproco se complexificaram com a entrada em cena evolutiva das emoções ligadas à vinculação e ao abandono. Nestes animais, as emoções de ligação e de abandono adquiriram uma autonomia e níveis motivacionais próprios. Os animais comportam-se de forma genuinamente pró-social (de Waal, 2006) e não é de esperar que, em situações complexas e urgentes, se dediquem a uma complicada matemática de investimentos, custos e benefícios. É provável que algumas das dificuldades encontradas pelos modelos evolutivos do altruísmo e da cooperação na análise destes comportamentos complexos resida na emancipação neurofisiológica das respostas cognitivas e emocionais destes animais. De facto, tanto nos antropóides como no ser humano, a motivação pró-social parece depender mais dos circuitos neurofisiológicos e etológicos das emoções sociais, do que da lógica selectiva dos genes. Este é o caso da empatia emocional e cognitiva que, nos chimpanzés mas também noutros primatas, decide qual o comportamento a apresentar. Uma vez que a selecção se faz ao nível dos fenótipos e não directamente sobre os genes, é de esperar que um organismo complexo apresente mais níveis de organização neurofisiológica e epigenética para a expressão do comportamento, do que um organismo simples. Este tipo de organização por níveis desloca a motivação original para outros níveis motivacionais através de processos de emancipação motora e emocional que foram descritos por Tinbergen (1951) para a ritualização. Para alguns primatólogos, o comportamento pró-social dos primatas é acompanhado de experiências emocionais genuínas que são precursoras da experiência emocional da bondade e da compaixão, nos humanos. Na evolução, raramente se perdem traços biológicos; as estruturas são transformadas, modificadas, co-optadas para outras funções (de Waal, 2006). Assim, é de esperar que os comportamentos dos primatas obedeçam em parte às leis mais antigas da selecção de parentela e do “altruísmo» recíproco. Mas como são animais socialmente mais sofisticados, que vivem em grupos individualizados fundados na existência de núcleos familiares e de amizades, é também de esperar que apresentem comportamentos pró-sociais mais elaborados e mais diversificados do que os outros mamíferos. O ser humano herdou muitas destas tendências comportamentais e acrescentou-lhes outras que lhe são específicas. A bondade e a compaixão, e a disposição moral que delas deriva, são traços especificamente humanos; mas importa compreender que carregam dimensões filogenéticas que inscrevem a raiz da bondade e da moralidade na natureza e não só, como se costuma pensar, nas leis e normas das culturas. A bondade, a compaixão e a moralidade estão provavelmente tão enraizadas em nós como outros comportamentos sociais espontâneos e intuitivos do dia a dia. À empatia emocional acresce a empatia cognitiva, que é a capacidade para avaliar as razões para a emoção dos outros. Este tipo de empatia, que se encontra presente nos primatas capazes de elaborarem uma teoria da mente, é mais avançada do que a empatia emocional e pressupõe a sua existência. Permite avaliar a situação e

prestar uma ajuda adequada. É um dos fundamentos para o discernimento moral humano e adquiriu, com a linguagem, a possibilidade de se elaborar através de normas e de narrativas morais. A velha questão de saber se o que preside às escolhas morais é o afecto ou a razão, encontra novas evidências com estes trabalhos: são os impulsos genuinamente generosos e a compreensão da situação do outro que nos motivam a agir em favor dele, e só depois intervém a razão, para organizar a acção de forma argumentada.

3. Atenção e intencionalidade partilhadas nos humanos: efeitos

selectivos sobre a linguagem e a cooperação nos grupos expandidos Wyman & Tomasello (2007) propõem que a capacidade dos bébés humanos para partilharem a atenção (shared attention) e para partilharem a intencionalidade, é possível por causa da maior cooperação e confiança, que acontece no interior dos grupos altruístas estabilizados. Assinalar um foco de atenção conjunta pelo simples prazer de o partilhar com outro (e não por uma razão instrumental) indica um alto nível de protecção contra a competição social e talvez uma capacidade alargada para cooperar. É possível que haja co-evolução entre cooperação e linguagem: a capacidade simbólica surgiu associada à partilha e à transmissão de estados mentais (estados do mundo) no interior de grupos altruístas estabilizados. Como consequência da capacidade para partilharem estados mentais e os traduzirem em linguagem, os humanos desenvolveram complexas formas de cooperação que resultaram nas organizações culturais humanas modernas. Segundo estes autores, os chimpanzés carecem de atenção partilhada e de partilha de informação mental, não podem portanto partilhar estados do mundo nem desenvolveram uma linguagem simbólica que os exprima2. Nos humanos, o sentido da empatia e a preocupação com os outros desenvolvese muito cedo e depende da herança filogenética mas também, em grande medida, de condições ontogenéticas que implicam a proximidade e a constância da figura de vinculação, o acesso ao afecto e à benevolência adulta, a tradução das emoções positivas na linguagem. É particularmente durante o primeiro ano de vida que a criança desenvolve a capacidade para interagir intencionalmente com o adulto, passando progressivamente de uma compreensão diádica das emoções e objectivos para uma compreensão triádica e depois para a acção cooperativa, que implica a adopção de um objectivo conjunto. São estas actividades colaborativas que estão na origem de formas únicas de aprendizagem cultural, comunicação simbólica e representação cognitiva. A cooperação, dentro dos grupos altruístas humanos, permite que a criança aprenda a internalizar as perspectivas dos adultos e a utilizá-las para mediar a sua compreensão emocional, cognitiva e simbólica do grupo social e de si própria, no seu seio (Fonagy et al, 2004; Wyman & Tomasello, 2007). A empatia, o altruísmo e a cooperação apresentam-se primariamente como um fenómeno familiar e intra-grupal. Além de necessitarem de uma base ontogenética sólida para se desenvolverem – o que só se consegue num pequeno grupo familiar – os humanos tenderam ao longo da história a desenvolver uma moralidade grupal, muitas vezes com exclusão dos outros. A etologia humana e a psicologia mostraram que os 2

Contrariando esta afirmação, F. de Waal mostra, numa obra de 2009, que os chimpanzés utilizam o olhar e apontam para chamar a atenção dos humanos para objectos cobiçados. Parecem mesmo monitorizar os efeitos do gesto do mesmo modo que as crianças.

humanos tendem a tratar os de fora muito pior do que os membros do seu próprio grupo. Eibl-Eibesfeldt (1989) por exemplo, mostrou que a socialidade afiliativa (laços de pertença ao grupo) que governa em grande parte as relações grupais humanas, decresce à medida que o grupo aumenta. Parece haver um tamanho adequado para o funcionamento espontâneo dos laços de empatia, da reciprocidade e do altruísmo benevolente ou bondade. Mas, como vimos mais acima, os trabalhos utilizando a teoria dos jogos e sobre altruísmo forte mostraram também que os humanos tendem a ser generosos em condições de interacção, mesmo desconhecendo os parceiros, e que a cooperação, em contextos expandidos, tende a estabelecer-se quando os contratos sociais estabelecem condições de confiança e de honestidade. O instrumento essencial destes contratos é a linguagem. De facto, a evolução humana acrescentou algo de essencial às emoções sociais e à capacidade cognitiva. A linguagem e a possibilidade de partilhar e de desenvolver argumentos racionais sobre as nossas acções, e as acções dos outros, faz de nós a única espécie verdadeiramente moral. À medida que o grupo humano cresceu e se complexificou, a territorialidade, a hierarquia e as normas sociais tácitas ligadas à cooperação tornaram-se insuficientes para realizarem a coordenação grupal. A linguagem, com os seus objectos mentais (conceitos), permitiu uma coordenação mais poderosa à distância, permitindo também a enunciação e o reconhecimento de normas sociais e morais que passaram a impor-se como realidades mentais e sociais (Gibbard, 1996). As emoções associadas a comportamentos com valor social passaram a ser coordenadas por conceitos que, por sua vez, se organizaram em narrativas justificativas desses sentimentos sociais. Os sentimentos sociais elaboraram-se deste modo em trajectórias culturais que os tornaram próprios a essas culturas e distintos de culturas diferentes. Os sistemas de normas de conduta impostos por um conjunto de instituições para regular as relações sociais e, em certas culturas, para promover a cooperação (o direito, p.ex.) resultam da trajectória histórica dos conceitos e das suas justificações, que tendem a definir o que é desejável para a vida em sociedade. Há alguma evidência de que a justificação para o nosso agir moral é frequentemente post hoc (de Waal, 2006): reagimos emocionalmente e depois justificamo-nos pela linguagem. Mas também sabemos que as narrativas morais são dinâmicas e permitem-nos remodelar a acção. Como somos criaturas imaginativas e narrativas, podemos configurar as nossas vidas de novas maneiras. É dentro da narrativa e das suas vias de argumentação que emerge o sujeito moral. Algumas investigações actuais apontam para a ideia de que uma parte da actividade conceptual presente nas narrativas se baseia em imagens que partem da experiência emocional para fundar domínios mais abstractos e menos estruturados. No caso da ética, experiências básicas como a dor, o prazer, o prejuízo, o bem-estar, a empatia, o sofrimento, a alegria, a bondade, a compaixão, poderão fornecer uma base universal para a construção da ideia abstracta de direitos humanos e animais (M. Johnson, 1993). A compreensão dos conceitos mostra que estes carregam as dimensões cognitivas e emocionais da experiência, permitindo ao mesmo tempo a sua extensão imaginativa para fora dos contextos em que nasceram, de maneira a suportar deliberações colectivas mais abstractas.

Conclusão: implicações evolutivas para uma cultura de cooperação e de paz Vivemos num mundo em que as questões éticas estão globalizadas, mas as condições etológicas e psicológicas para a experiência da bondade e do altruísmo ainda são hoje muito parecidas com as que caracterizaram um mundo humano de mais pequena escala. Em geral, continuamos a escolher pertencer a pequenos grupos e as nossas tendências altruístas tendem a beneficiar, em primeiro lugar, os nossos familiares, de seguida o nosso grupo e só depois a comunidade mais alargada. Em termos evolutivos, os nossos comportamentos pró-sociais associaram-se estreitamente com as nossas tendências agressivas para com outros grupos (Gintis e tal, 2007). A pressão evolutiva que seleccionou a cooperação e o altruísmo para a sobrevivência do grupo associou-se à que levou a discriminar contra aqueles que não pertencem a esse grupo e são potencialmente inimigos (Eibl-Eibesfeldt, 1989). No entanto, a situação da humanidade actual modificou drasticamente o cenário evolutivo dos milénios anteriores. Confrontamo-nos hoje com um mundo globalizado que nos é apresentado quotidianamente através dos meios de comunicação social. O grupo de pertença alargou-se e identificamo-nos hoje com os humanos que vivem nos antípodas quase tanto como nos identificamos com os vizinhos que vivem ao nosso lado. Todos passaram a fazer parte do grupo alargado da humanidade. Os movimentos de solidariedade colectiva a que assistimos com frequência e a reflexão contemporânea sobre a aldeia global reflectem essa identificação. É claro que, nestas comunidades expandidas, o altruísmo e a cooperação, o exercício da bondade e o vínculo moral são muitas vezes frágeis. Falta-lhes o reconhecimento individual, a constância e a potencial reciprocidade dos pequenos grupos. Mas a compreensão das condições etológicas e psicológicas da cooperação e do altruísmo poderão ajudar a criar as condições para que a motivação pró-social se mantenha nas comunidades expandidas. Como vimos, essas condições incluem a compreensão da cooperação e do altruísmo enquanto forças biológicas de promoção dos grupos sociais, a ontogénese partilhada do afecto e da cognição e a experiência precoce da bondade, que se encontram sobretudo activa nos grupos individualizados, a capacidade de identificação expandida com outros que consideramos moralmente semelhantes a nós, a possibilidade de instituir um sistema de normas e de penalizações derivadas, a capacidade de imaginar argumentos narrativos que justifiquem uma cultura cada vez mais alargada da cooperação e da paz.

Bibliografia: Axelrod, R. & Hamilton, W.D. (1981). The evolution of cooperation. In: Science, 211, pp. 1390-96. Crockett, M. J., Clark, L., Tabibnia, G., Lieberman, M. D., Robbins, T. W. (2008). Serotonin modulates behavioral reactions to unfairness. In: Science, 320, pp. 5884. Boyd, R. (2003). Cultural evolution of human cooperation. In: Hammerstein, P. (ed.). Genetic and cultural evolution of cooperation. MIT Press.

Eibl-Eibesfeldt, I. (1989). Human ethology. N.Y., A de Gruyter. Fonagy, P., Gergely, G., Jurist, E. & Target, M. (2004). Affect regulation, mentalization and the development of the self. N.Y., Other Press. Gale, J., Binmore, K.G. & Samuelson, L. (1995). Learning to be imperfect: the ultimatum game. In: Games and Economic Behavior 8, pp. 56–90. Gibbard, A. (1996). Moralidade e evolução humana. In: Changeux, J. P. (ed.). Fundamentos naturais da ética. Lisboa, Instº Piaget, pp.61-81. Gintis, H., Bowles, S., Boyd, R. & Fehr, E. (2007). Explaining altruistic behavior in humans. In. Dunbar, R.I.M., Barrett, L. The Oxford Handbook of Evolutionary Psychology. USA, Oxford Un. Press, pp. 605-619. Henrich, J., Boyd, R., Bowles, S., Gintis, H., Fehr, E., & Camerer, C. (2004). .Foundations of Human Sociality: Ethnography and Experiments in 15 small-scale societies. Oxford University Press. Hamilton, W.D. (1964). The evolution of altruistic behavior. In: Am. Nat., 97, pp. 354-56. Johnson, M. (1993). Moral imagination. Implications of cognitive science for ethics. U.S.A., University Chicago Press. Sanfey, A. G., Rilling, J. K, Aronson, J. A., Nystrom, L. E., Cohen, J. D. (2002). The neural basis of economic decision-making in the ultimatum game. In: Science 300 (5626), pp. 1755– 1758. Tinbergen, N. (1951).T he study of instinct. London, Oxford University Press. Trivers, R. (1971). The evolution of reciprocal altruism. In: Q. Rev. Biol. 46, pp. 35-57. Waal, F. de (2006). Primates and philosophers. How morality evolved. Princeton Un. Press. Waal, F. de (2009). The age of empathy. Nature’s lessons for a kinder society. U.S.A., Three Rivers Press. Wyman, E. & Tomasello, M. (2007). The ontogenetic origins of human cooperation. In: Dunbar, R.I.M., Barrett, L. (ed.). The Oxford handbook of evolutionary psychology. Oxford Un. Press.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.