EVOLUÇÃO DO SISTEMA JURÍDICO: A PROBABILIDADE DO IMPROVÁVEL EVOLUTION OF THE LEGAL SYSTEM: THE PROBABILITY OF THE IMPROVABLE

May 26, 2017 | Autor: P. Vilela Berbel | Categoria: Teoria dos Sistemas. Niklas Luhmann .Direito como Sistema Social
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BERBEL, Vanessa Vilela. Evolução do Sistema Jurídico: a Probabilidade do Improvável.

EVOLUÇÃO DO SISTEMA JURÍDICO: A PROBABILIDADE DO IMPROVÁVEL EVOLUTION OF THE LEGAL SYSTEM: THE PROBABILITY OF THE IMPROVABLE Vanessa Vilela Berbel1

Resumo: A partir de uma estreita colaboração interdisciplinar entre sociologia do direito e teoria do direito, Niklas Luhmann propõe a renovação das observações do princípio evolutivo do direito, afastando-se das perspectivas naturalistas e historicistas. A perspectiva apresentada neste artigo se embasa na abordagem luhmanniana, segundo a qual a evolução vem concebida como acréscimo de complexidade, em outros termos, incremento da diversidade de situações e dos eventos possíveis. Expor o caminhar desta perspectiva evolutiva e os efeitos para a compreensão da formação do sistema jurídico moderno são os objetivos deste artigo. Ao final, chega-se à conclusão de que, apesar de não se poder compreender a evolução como um caminho sem volta, a formação do sistema jurídico moderno dependeu de condições sociais pelas quais o direito especificou suas próprias estruturas. São apresentadas ao leitor as “conquistas evolutivas” conferidas pelo desenrolar histórico ao sistema jurídico para que se chegasse à configuração hodierna. Palavras-chave: Evolução; sociedade; sistema; direito. Abstract: From a close interdisciplinary collaboration between sociology of law and theory of law, Niklas Luhmann proposes the renewal of the observations of the evolutionary principle of the legal system, away from the naturalistic and historicist perspective. The outlook presented in this article was grounded on luhmannian approach, according to which the development is designed as an increase in complexity, in other words, increase the diversity of situations and possible events. Present the path covered for the formation of the modern legal system according to this evolutionary perspective are the objectives of this article. At the end, one concludes that, despite not being able to understand evolution as a path of no return, the formation of the modern legal system depended on social conditions in which the right has specified its own structures. The “evolution achievement” conferred by the historical unfolding of the legal system in order to come to today's configuration is presented to the reader. Keywords: Evolution; society; system; law. Sumário: 1. Introdução; 2. Evolução da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann; 3. Evolução como probabilidade do improvável; 4. Evolução do sistema jurídico; 4.1 direito nas sociedades arcaicas; 4.2 direito das culturas antigas; 4.3 direito na sociedade moderna; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas

1. INTRODUÇÃO A afirmação de que o direito se transforma a partir das modificações sociais é rotineira na ciência jurídica, de modo que o processo de mudança social e evolução do sistema jurídico passam a ser tratados como correlatos. Afinal, a evolução da sociedade implica na evolução de seus sistemas parciais, como a economia, o direito, a política? É possível haver evolução 1

Doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) na área de Filosofia e Teoria Geral do Direito (Bolsista - CAPES), com estágio doutoral perante o Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos (IGC) da Universidade de Coimbra; Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (FADUSP/USP) na mesma área de concentração (2012); Pós-graduada em Direito e Processo Tributário pelo IBET/SP e graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (2006). Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 77-100, outubro de 2016.

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autônoma dos sistemas parciais, por sua vez? O que é, então, “evoluir” para a teoria dos sistemas autorreferenciais e autopoiéticos? A resposta a esta pergunta depende, primeiramente, da observância de alguns pressupostos teóricos. Primeiramente, há de se entender que evolução da sociedade não pode ser vista como resultado da natureza humana; na perspectiva de Niklas Luhmann, sequer este pode ser satisfatoriamente descrito a partir da sociologia clássica de Marx, Maine, Durkheim ou Weber por se vincularem a perspectivas naturalísticas ou observações historicistas que maculam a análise2. Há, na visão da teoria luhmanniana, a necessidade do ressurgimento de uma análise que tome a observação da evolução a partir do esquema variação/seleção/estabilização, partindo de um conceito teórico da diferença para, na esteira de Darwin, investigar as “condições de possibilidade das mudanças estruturais não planejadas e a explicação da diversificação ou do aumento da complexidade”3.

Aplicado à compreensão do sistema

jurídico, haverá uma visão interdisciplinar entre sociologia do direito e teoria do direito capaz de observar o objeto a partir de uma teoria universal da sociedade e, a partir daí, se referir ao direito enquanto estrutura do sistema social4. Retorna ao centro de interesse teórico, a partir desta análise, a questão relativa ao relacionamento entre estrutura do sistema e evolução, na medida em que a estrutura do sistema guia tanto a evolução quanto o processo de aprendizagem sistêmico, sendo certo afirmar que teoria da evolução e teoria do aprendizado tornam-se, assim, paralelas. Especificamente em relação ao sistema jurídico, percebe-se que, a partir desta perspectiva de análise, direito evoluído é sinônimo de sistema capaz de aprender; com isso, abre-se a possibilidade de investigar a relação existente entre direito e evolução da sociedade. Como a evolução social traz modificações ao sistema jurídico? Evoluir é sinônimo de melhoria contínua, de percorrer um caminho sem volta para um futuro de excelência? Sistema jurídico evoluído, capaz de aprender, é também capaz de esquecer o aprendido e, assim, reformular suas decisões? Estas são algumas indagações possíveis de serem levantadas e respondidas a partir da perspectiva luhmanniana sobre a evolução sistêmica. Conhecer o conceito de evolução a partir do pensamento luhmanniano e como este campo de observação permite identificar algumas estruturas que conduziram à formação do sistema jurídico atual é a proposta apresentada por este artigo, elaborado a partir de uma revisitação à obra do autor (Niklas Luhmann) e alguns de seus comentaristas atuais.

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LUHMANN, N. La differenziazione del diritto. Milano: Società editrice il Mulino, 1990, p. 36. LUHMANN, N. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 320. 4 LUHMANN, N. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 36. 3

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2. EVOLUÇÃO DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN No início do século XVII, a humanidade focava-se na crença de que era possível alcançar a felicidade plena, o que vem a ser convertido, no século XIX, no ideal de solidariedade como meio para se alcançar a justiça universal. No século XX, designou-se à política a tarefa de alcançar os padrões universais de felicidade e solidariedade, por meio da formulação de metas de desenvolvimento e democratização dos povos. Chegado o século XXI, verifica-se que se está longe de alcançar esses ideais, sendo necessário renovar os esforços de descrição da sociedade, ou seja, formular uma nova teoria da sociedade, agora pautada não mais nas demandas ético-políticas, mas, sim, pela contingência que emerge dos diversos sistemas funcionais que a formam. Para isso, Niklas Luhmann propõe que se analise a sociedade pela observação dos limites externos dos diversos sistemas parciais que a compõem e se observe as inferências que esta fragmentação sistêmica possibilita. É sobre essa perspectiva, então, que se passa a analisar a evolução da sociedade, a fim de discutir se é possível saber de onde vem e para onde vai a modernidade5. Os elementos caracterizadores da teoria dos sistemas podem ser compreendidos, de forma sintética, pela análise do binômio sistema-ambiente, a partir da observação da existência de sistemas funcionais autônomos – cognitivamente abertos e operacionalmente fechados – no interior da sociedade enquanto macrossistema social6. Esta perspectiva sistêmica da sociedade encontra-se delineada no conjunto da obra de Luhmann em duas fases distintas, que podem ser definidas como antes e depois do contato do autor com as perspectivas teóricas dos biólogos Maturana e Varela, que gerou a inserção do conceito de autopoieses. Antes de tratar da perspectiva luhmanniana sobre “evolução”, importante notar que seu pensamento também se modificou, evoluiu, ao longo de suas análises. É possível conceber, então, a existência de duas etapas da teoria luhmanniana: (i) a primeira, em que os sistemas são vistos como abertos e, portanto, possuem uma relação com os elementos que se encontram em seu entorno, ou seja, com o ambiente 7; e (ii) a segunda fase, oriunda da forte influência das pesquisas no campo biológico desenvolvidas por Humberto Maturana e Francisco Varela, em que os sistemas são percebidos como dotados de uma clausura operativa – encerramento operativo – que permite sua organização exclusivamente com as unidades que estão dentro do seu próprio “corpo sistêmico”, revelando os dois pontos mais discutidos da teoria dos sistemas, a saber: auto-organização e

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LUHMANN, N. El arte de la sociedad. Ciudad de México: Universidad Iberoamericana; Herder, 2005, p.12 NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: O Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 60 7 LUHMANN, N. Introdução à Teoria dos Sistemas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 59-79. 6

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autopoiesis8. As duas etapas da teoria dos sistemas de Luhmann, dividas entre pré e pósinserção do conceito de autopoiese em sua obra, não tornam incoerente sua análise ou desprestigiam seus argumentos, ainda que tragam diferença na observação de alguns sistemas sociais, dentre eles o sistema jurídico9. Especificamente em relação ao sistema jurídico, é possível demarcar a evolução do pensamento luhmanniano em três fases. A primeira engloba as obras de um Luhmann jurista, que escreve para um leitor também versado na ciência do direito, denominadas como “obras decorrentes da auto-observação do sistema jurídico”. Na segunda fase, encontram-se as obras que podem ser catalogadas como observações da sociologia sobre o direito, ou seja, decorrentes de uma observação externa do fenômeno jurídico; neste período, estão inseridas as obras Sociologia do Direito (I e II) e Legitimação pelo procedimento. Por fim, tem-se a terceira fase, que se encontra balizada por uma teoria geral da sociedade e demarcada pela inserção do conceito de autopoiese, a qual possui a vicissitude de promover o acoplamento estrutural entre teorias autorreflexivas do direito e as descrições externas da sociologia10. Há notas iniciais a se fazer sobre a abordagem luhmanniana a respeito do tema “evolução” ao longo destas etapas. As primeiras manifestações de Luhmann a respeito de uma teoria da evolução são notadas, por Pilar Giménez Alcover11, ainda com a qualificação de “complexo temático” – e não “teoria”- em suas obras Soziologische Aufklärung I und II. Desde aí o autor não vincula sua teoria a um processo causal, unilinear e irreversível; sequer há a vinculação a qualquer ideia de moralização do progresso. O que há é uma perspectiva de evolução como combinação de trocas sistêmicas que permitem que se diferenciem as funções de variação, seleção e estabilização, potencializando a complexidade sistêmica na medida em que haverá “aumento del número y la variedade de estádios, de sucesos o de acciones que son posibles en el sistema social”12. Todavia, em relação ao “primeiro Luhmann”, Gunther Teubner condena a diferenciação a respeito de uma evolução endógena e exógena no interior da sociedade, atribuindo esta perspectiva à influência da concepção de sistemas abertos, que possibilitaria uma interferência direta da evolução do sistema social nos sistemas parciais que o compõem13. Luhmann, em sua obra intitulada Das Recht der Gesellschaft (1993) – traduzida 8

VILLAS BÔAS, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 129. Id. Ibid., p. 129. 10 VILLAS BÔAS, op. cit., p. 130. 11 ALCOVER, Pilar Giménez. El derecho en la teoria de la sociedade de Niklas Luhmann. Barcelona, España: Instituto de Criminologia de la Universidad de Barcelona, 1993, p. 131, nota 01. 12 Id. Ibid., p. 132. 13 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 20. 9

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para o português como O direito da sociedade –, ou seja, pós inclusão do conceito de autopoiesis, defende a possibilidade de dissociação dos processos evolutivos; admite, portanto, que haja uma evolução autônoma dos sistemas sociais parciais, a par da evolução do macrossistema social. Isso se torna possível em razão do conceito de evolução não poder ser tratado como um processo gradativo de interrupção da complexidade, mas sim “um modo de mudanças estruturais inteiramente compatíveis com convulsões bruscas (“catástrofes”) e amplos período de estancamento (“stasis”)”14. Apesar da crítica formulada, Teubner se utilizada da perspectiva evolutiva elaborada por Luhmann, e, ao responder às críticas formuladas por Blankenburg, sintetiza o que deve ser compreendido por evolução: In my view, however, socio-legal evolution should not be understood as a developmental universal that necessarily unfolds to reveal higher and higher stages of law and society. Rather, we have to see it both as the product of the interaction among a number of mechanisms of variation, selection, and retention (Campbell, 1969: 69) that can be identified within the legal system and as the product of the interaction of these mechanisms with similar mechanisms in other social subsystems (Luhmann, 1981b: 11)15.

Perpassa as três fases do pensamento luhmanniano citadas acima a ideia de que a evolução do direito encontra-se eminentemente atrelada ao aumento da complexidade social. Nesse sentido, torna-se cabível a exploração, com acuidade, da referida perspectiva.

3. EVOLUÇÃO COMO PROBABILIDADE DO IMPROVÁVEL “A sociedade é o resultado da evolução”16 é a afirmação empregada por Luhmann para iniciar suas exposições a respeito do tema no livro Teoria della Società. Esclarece, o autor, que o termo “evolução” deve ser tomado apenas como um fio condutor para a compreensão do paradoxo da “probabilidade do improvável” i. Luhmann percebe que a literatura especializada sobre o tema conceitua o termo evolução de modo vago, por carecer de uma estrutura teórica clara. Deste modo, propõe que seja empregado um norte para a compreensão do tema e escolhe, para tanto, a perspectiva da diferença, analisada a partir da perspectiva evolucionista de Darwin. O autor explica os motivos de sua escolha, situada na possibilidade de emprego da teoria geral da evolução

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LUHMANN, 2016, op. cit., p. 325. TEUBNER, G. Autopoiesis in Law and Society: A Rejoinder to Blankenburg. Law & Society Review, v. 18, n. 2, 1984, p. 295. 16 LUHMANN, N.; DE GIORGI, Raffaele. Teoría della Società. Milano, Italy: Franco Angeli, 2003, p. 169. 15

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darwinista para a aplicação do esquema de observação que considere a diferença e adaptação entre sistema e ambiente para a compreensão da ocorrência de uma evolução sistêmica: Damos preferência a essa teoria porque ela parte de um conceito teórico diferença. Seu tema não é a unidade histórica como desenvolvimento de princípio dos primórdios até hoje, mas algo mais restrito: as condições possibilidade das mudanças estruturais não planejadas e a explicação diversificação ou aumento da complexidade 17.

da um de da

Evolução significa, acima de tudo, que cresce o número de pressupostos sobre os quais uma certa ordem pode se reger; portanto, na perspectiva da teoria dos sistemas, não se deve entender o conceito com qualquer carga moralista ou progressista como só ocorrer com a compreensão do desenrolar do tempo que conduz a um presente melhor. Evolução não é sinônimo de progresso, não possui qualquer conotação valorativa. Abandona-se, com isso, a percepção de evolução como decorrente de uma relação de causa e efeito que conduza ao melhoramento, para então se compreender o relativismo da assimilação social de cada conquista evolutiva. Essa perspectiva é corroborada por exemplos históricos, tais como: Os nômades domam o cavalo e com isso ganham uma mobilidade e uma superioridade guerreira de tal monta que podem fazer com que outros povos construam fortalezas e aceitem uma organização política. Os povos agrícolas aprendem a organizar a produção de excedentes e o armazenamento de estoques, o que pode tornar-se, para povos montanheses, um atrativo objeto de pilhagem. Ilustrando com um exemplo mais moderno, os meios de comunicação de massa, altamente desenvolvidos, noticiam escândalos e violências, de tal forma que uma oposição política nova, que ainda não possa comprar a imprensa, vislumbre a possibilidade de ganhar publicidade através de escândalos e violências 18.

Luhmann nega a ideia de um processo macro-histórico, bem como a perspectiva de uma necessidade e unilinearidade do processo evolutivo, ou seja, a ideia de continuidade e irreversibilidade; a evolução não é, de nenhum modo, um processo. Nesta perspectiva sistêmica, evolução se encontra amparada em dois eixos principais: (i) o aumento de complexidade promovido pela diferenciação sistema/ambiente e (ii) os mecanismos intrasistêmicos que possuem como função a criação de “variação”, “seleção” e “estabilização”19. A sociedade é composta por comunicações; assim, o aumento das comunicações – e com isso dos comportamentos possíveis – obrigam a criação de mecanismos que absorvam esta complexidade, sob pena de gerar a paralisação da evolução social. A solução consiste na criação de sistemas parciais da sociedade, que se tornam funcionalmente diferentes, 17

LUHMANN, 2016, op. cit., p. 321. LUHMANN, 1983, op. cit., p. 170-171. 19 ALCOVER, P. El derecho en la teoría de la sociedad de Niklas Luhmann. Barcelona, Espanha: J.M Bosch Editor, 1993, p. 132. 18

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delimitando-se frente ao meio. Com isso, os sistemas parciais da sociedade diferenciam-se funcionalmente, demarcando um âmbito próprio de complexidade operante na sociedade, com o objetivo de reduzi-la; a especialização funcional é essencial para a evolução social, sendo certo afirmar que somente assim a sociedade poderá evoluir, pois somente assim poderá se fazer mais complexa. O fator que possibilita a diferenciação funcional dos sistemas parciais da sociedade é o sentido (Sinn), o qual permite ao sistema identificar um setor da complexidade do meio, tomando-o como função e identificando os demais como diferença. O tratamento setorial da complexidade do meio pelos sistemas parciais, ao mesmo tempo em que reduz, aumenta a complexidade, uma vez que cada (sub)sistema formará o ambiente dos demais. “A diferenciação funcional aumenta a superprodução de possibilidades e com isso as chances e a pressão no sentido da seleção. Ela é a forma na qual a alta complexidade social torna-se organizável.”20 A ampliação de possibilidades (complexidade) sobrecarrega o fator seletivo, gerando consequências importantes, tais como a incapacidade de gerar consenso absoluto sobre as expectativas e a indiferença dos processos de seleção. Deste modo, evolução, para teoria dos sistemas, refere-se à análise da relação entre a complexidade dos sistemas sociais e suas relações com o ambiente; ou seja, “[…] ocorre evolução, portanto, quando aquilo que é desviante passa a integrar a estrutura do respectivo sistema.”21. Nas palavras de Luhmann: “O princípio do desenvolvimento são as crescentes complexidades e contingências da sociedade. É a partir daí que as estruturas da sociedade, entre elas o direito, sofrem pressões no sentido de mudança” 22. A partir do momento em que há o aumento da complexidade do ambiente, os sistemas sociais podem reagir de duas formas: (i) manter sua diferenciação em relação ao meio ou (ii) adequar-se por meio do desenvolvimento de formas próprias que permitam adaptação e autoconservação. Essas operações dependem das estruturas que permitem a seletividade dos sistemas; assim, sistemas mais simples requerem uma necessidade estrutural menor que a de sistemas mais complexos, porém estarão menos propensos a manter estruturas relevantes. Pode-se dizer, então, que a função da estrutura de um sistema social consiste na regulação de sua complexidade; contudo, o surgimento e manutenção destas estruturas também são dependentes do grau de complexidade sistêmica. Em outros termos, […] a complexidade de um sistema é sempre a complexidade estruturalmente possibilitada (contingente), mas, por outro lado, também a estrutura do sistema

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LUHMANN, 1983, op. cit., p. 177. Id. Ibid., p. 175. 22 Id. Ibid., p. 172. Grifo nosso. 21

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BERBEL, Vanessa Vilela. Evolução do Sistema Jurídico: a Probabilidade do Improvável. depende de sua complexidade, pois improváveis estruturas arriscadas, como a mutabilidade legal do direito, já pressupõem uma alta da complexidade do sistema 23.

Em suma, diante do aumento das possibilidades que tornam o mundo complexo, as estruturas surgem como forma de redução desta complexidade, em razão de sua função seletiva que reduzem as possibilidades existentes. Alguns sistemas sociais, tais como os sistemas religiosos da sociedade moderna, mostraram-se capazes, ao longo da evolução histórica, de resistir mais bravamente à pressão do ambiente em razão de uma crescente indiferença, de modo que esta interferência não os obrigou a se tornarem relevantemente mais complexos. Outros, porém, foram impulsionados, de forma mais radical, a uma reconstrução evolutiva de suas instalações já existentes, como ocorre com o sistema jurídico. As afirmações acima nada mais fazem do que levantar questionamentos: qual o limite de adaptação do sistema jurídico aceitável para que este não perca sua diferenciação, ou seja, para que não se confunda com o ambiente ou passe a ser submisso a outros subsistemas sociais, tais como a política e a economia? Como um sistema adapta suas estruturas a uma complexidade crescente, de tal modo que não impeça uma evolução posterior? O direito, visto como uma estrutura social, enfrenta o dilema entre adaptar-se às irritações do meio, tornando possível a estabilização das conquistas evolutivas ou criar estruturas que igualmente possibilitam a rejeição de expectativas em desconformidade com as expectativas normativas, mantendo seu caráter contrafático24. Para entender a dinâmica destas operações, faz-se necessário as funções evolutivas dos mecanismos de variação, seleção e reestabilização, cuja função pode ser sintetizada como sendo, respectivamente: (1) mecanismos de geração da variedade no sentido de uma superprodução de possibilidades; (2) mecanismos de seleção das possibilidades aproveitáveis; (3) mecanismos de manutenção e estabilização das possibilidades escolhidas, apesar do campo de escolha permanecer complexo e contingente. 25

A variação, por si só, não produz a evolução, a qual apenas se consolida ao final da reação dos outros dois mecanismos expostos. Por variação entende-se “[…] a emergência de elementos que se afastam do modelo de reprodução então existente”26. A partir da constatação da variação, o sistema pode optar por manter-se indiferente, respondendo negativamente ao desvio, ou pela seleção de estruturas que reproduzam dentro do sistema a diferença, dando continuidade à reprodução do elemento inovador. Caso haja a opção pela seleção das possibilidades aproveitáveis, estas devem ser estabilizadas por meio de mecanismos de 23

Id. Ibid., p. 15. LUHMANN, N. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 06. 25 LUHMANN, 1983, op. cit., p. 175. 26 NEVES, 2008, op. cit., p. 02. 24

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reestabilização, os quais asseguram a duração e resistência da estrutura inovadora. Porém, como variação, seleção e reestabilização ocorrem nos sistemas sociais? Os sistemas sociais são compostos por comunicações – diversamente dos sistemas psíquicos, formados pela consciência. Há variação quando há ruídos na comunicação, ou seja, quando a comunicação desvia-se do modelo estrutural de reprodução social. Apenas a partir da seleção, o sistema poderá decidir internalizar a comunicação desviante, construindo, para tanto, estruturas que permitam a condensação de expectativas que sirvam de diretrizes para as comunicações futuras ou refutá-las.

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Caso opte pela assimilação, após a seleção, o processo evolutivo deverá seguir para um novo ciclo, a reestabilização, a qual importa na compatibilização da estrutura nova ao complexo de estruturas então vigorantes. O problema da reestabilização consiste, portanto, em promover uma integração sistêmica, evitando a rejeição da estrutura inovadora; deste modo, certo é que a inovação deverá ser incorporada como parte de uma unidade de reprodução autorreferencial de comunicações, seja esta a sociedade como um todo ou os seus sistemas parciais, obrigando as estruturas já existentes a se adaptarem às novas então criadasii. Veja-se, exemplificativamente, o surgimento dos computadores e a recepção desse instrumento pela comunidade científica; os estímulos formados pela tecnologia motivaram a ciência a absorvê-lo como ferramenta educacional, criando o ensino à distância, a biblioteca digital, dentre outros recursos. Contudo, junto a isso, também se possibilitou a criação de plágios, impulsionando a reagir com uma nova resposta sistêmica, tal como a obrigatoriedade de realização de trabalhos manuscritos ou a reprovação em massa. O direito visto enquanto estrutura do sistema social que se baseia na generalização congruente de expectativas normativas exerce função decisiva na manutenção da complexidade mais alta e estruturada dos sistemas sociais e na garantia de segurança das expectativas. O sistema jurídico é visto, pela teoria dos sistemas (segunda fase), como uma estrutura socialiii, cujos limites e formas de seleção são definidos pelo próprio sistema social. Ainda que não seja a única estrutura social – compartilhando espaço com as estruturas cognitivas, os meios de comunicação como a verdade e o amor, dentre outros –, o direito, nas sociedades complexas, possui o mister de realizar a generalização congruente de expectativas comportamentais através das normas, orientando, com isso, o comportamento humano 27. Ou seja, é o sistema jurídico que possibilita a criação de “expectativas da expectativa”, conferindo segurança às comunicações sociais. Assume, o sistema jurídico, papel fundamental na manutenção do sistema social ao promover a redução da complexidade ante a seleção estratégica de um campo de 27

LUHMANN, 1983, op. cit., p. 170. Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 77-100, outubro de 2016.

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possibilidades que, ao mesmo tempo em que exclui ou limita modos comportamentais não compatíveis, amplia o rol de possibilidades para uma escolha mais sensata (complexidade estruturada). Assim, o sistema jurídico reduz a totalidade das possibilidades de experiência e ações, ao mesmo tempo em que eleva a complexidade do sistema social, ao permitir a construção de novas possibilidades que pressupõem a seleção realizada. Portanto, desenvolvimento social impõe ao direito que se abra crescentemente, adquirindo elasticidade conceitual-interpretativa para abranger situações heterogêneas, tornando-se modificável através de decisões; “ou seja: tem que tornar-se direito positivo.”28 Para adquirir a elasticidade necessária às irritações do meio sem perder sua natureza contrafática, o direito depende da utilização dos três mecanismos evolutivos acima descritos. Essas três etapas da mudança são realizadas pela (i) diferenciação funcional dos sistemas parciais da sociedade; (ii) diferenciação de processos; e (iii) abstração. Estas etapas merecem ser analisadas pormenorizadamente. A seleção, seguinte à variação, importa na internalização sistêmica da comunicação ruidosa (projetos normativos dos sistemas parciais); ou seja, “[…] a conduta inicialmente desviante passa a ser prevista no plano das expectativas normativas”29. A ativação desta função seletiva é desempenhada, no sistema jurídico, pela diferenciação de processos, ou seja, pela diferenciação de sistemas (processos) especiais de interação, específicos ao direito, os quais se tornam sustentáculos sociais, crescentemente autônomos, das decisões jurídicas imperativas. Por processo, não deve ser compreendido apenas o processo legislativo ou judicial, tal como comumente tratado este signo. Na concepção da teoria dos sistemas, processo, enquanto conquista evolutiva do direito, é tido como sistema social orientado em curto prazo, marcado pela incerteza em sua conclusão, a qual é solvida através de suas próprias estruturas. A manutenção da complexidade do sistema e a estabilização dos processos como forma de solução da complexidade requerem que o sistema jurídico realize seu fechamento operativo ao nível da sociedade, distinguindo claramente as expectativas cognitivas das expectativas normativas; há a necessidade do sistema responder à complexidade do meio através de operações que mantenham sua identidade sistêmica. Este fator gera a criação de um direito mais abstrato, que não decorre da indiferença em relação aos demais sistemas, mas da possibilidade de que outras esferas possam tornar-se objeto de decisões jurídicas, reclamando a confirmação de sua diferenciação funcional. Passemos à análise de como se realiza a evolução neste nível do sistema. 28 29

LUHMANN, op. cit., p. 15. NEVES, 2008, op. cit., p. 19. Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 77-100, outubro de 2016.

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4. EVOLUÇÃO DO SISTEMA JURÍDICO

A investigação histórica do direito por meio do instrumental teórico da teoria dos sistemas é possível, na medida em que abandona a intenção de buscar semelhanças entre os ordenamentos ao longo do tempo. Sequer almeja encontrar um rol de normas válidas em qualquer comunidade, tal como ocorre no direito natural. Parte-se, portanto, da diferença como elemento de investigação e sua aplicação ao problema básico do direito: a generalização congruente das expectativas normativas. Ressaltou-se, anteriormente, a possibilidade de uma distinção entre evolução endógena e exógena, a qual, apesar de rechaçada por Gunther Teubner, é defendida por Marcelo Neves, que entende cabível esta diferenciação para a compreensão da conexão problemática dos mecanismos evolutivos do direito, da sociedade e dos demais sistemas sociais; por este olhar, às sociedades, em que prevalece a diferenciação segmentária (diversos sistemas iguais ou semelhantes, tais como a família, tribos e clãs), corresponde o direito arcaico; às sociedades em que prevalece a diferenciação hierárquica, o direito das culturas pré-modernas; e, por fim, às sociedades em que prevalece a diferenciação funcional, o direito positivo (moderno)30. Apesar das críticas já apresentadas a respeito deste modo de análise, é com base neste fator que serão divididos os momentos evolutivos em: (i) direito arcaico; (ii) direito das altas culturas antigas; e (iii) direito positivo da sociedade moderna. Importante é notar que o critério de análise não é o cronológico, mas funcionalista, respeitando-se os diversos níveis evolutivos dos sistemas sociais. Com isso, reduz-se a importância do difícil problema da divisão de períodos históricos (épocas) em si insolúvel31. Faça-se um parêntese, antes de adentrar a está divisão evolutiva, para se responder à dúvida do leitor a respeito de como se mantêm fixas as estruturas do sistema jurídico para que se tornem acessíveis à evolução. A resposta está eminentemente vinculada ao papel da escrita enquanto memória social. Antes da escrita, havia a memória social realizada a partir da conservação tradicional dos conhecimentos. Todavia, a linguagem alfabética permitiu que a escrita se desenvolvesse e aumentasse exponencialmente o grau simbólico da comunicação, tornando-a ainda mais independente da memória dos indivíduos concretos. A escrita possibilitou que a comunicação se tornasse independente do momento da comunicação e das intenções de seu emissor, ou seja, permitiu abstrair o sentido do contexto interacional, sendo agora assegurado pela própria 30 31

NEVES, op. cit., p. 19-20 LUHMANN, 1983, op. cit., p. 183 Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 77-100, outubro de 2016.

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sociedade. A linguagem escrita, ao permitir o armazenamento de conhecimento, “facilita o permanente acesso ao teor do sentido e dificulta o esquecimento (que em si é de todo benéfico)”32. A escrita, inicialmente empregada no sistema jurídico, não teve o condão de dispensar a linguagem oral, mas a de tornar reconhecíveis os desvios que poderiam ser desconsiderados com a emoção do litígio. Mais tarde, a escrita também passou a ser empregada para a publicização e manifestação do direito a todos os envolvidos, dando ensejo ao que Jan Assman chamou de “passagem do domínio da repetição para o domínio da representação, e da coerência ritual para a coerência textual”33. A escrita, ao tornar os comunicadores (Alter e Ego) ausentes e afastar a comunicação da presença interacional concreta, amplia o nível de complexidade que se possa alcançar; “na comunicação entre ausentes – porque escrita – a contingência é o preço a ser pago pelo ganho de complexidade”34. Deste modo, a escrita amplia fortemente o risco do dissenso e, para compensar a ampliação da contingência, a sociedade transpassa a diferenciação segmentária a uma estratificada. A partir da escrita, os textos legais podem se diferenciar de outros tipos de textos, permitindo que o direito se torne autônomo na medida em que identificável a partir de uma determinada classe de textos que se destacam dos demais, permitindo-se a ocorrência da diferenciação funcional. Nas palavras de Bachur: “(...) a diferenciação funcional de sistemas sociais nada mais é que o desenvolvimento de formas próprias de emprego da comunicação escrita, de acordo com a função a ser desempenhada na sociedade (...)”35. É também a partir da escrita que a compreensão se torna uma prática individual e, com isso, se permite uma maior variedade e redundância na geração do sentido. Segue-se que todo o direito, a partir da escrita, se torna direito a partir de uma interpretação, passando a ser dependente das regras a respeito de quem poderá interpretá-lo e de que modo. Assim, para compensar a insegurança gerada pela escrita, os meios de comunicação simbolicamente generalizados se desenvolveram e toda a evolução do direito tornou-se possível pela diferença entre texto e interpretação36. A escrita apresenta-se, portanto, como condição de evolução do sistema jurídico, devendo ser entendido pelo termo condição o impulso evolutivo necessário à ocorrência de mudanças estruturais não planejadas. Da mesma forma, ver-se-á que cada etapa do

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LUHMANN, 2016, op. cit., p. 329. Apud LUHMANN, 2016, op. cit., p. 333. 34 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p.57. 35 Id. Ibid., p. 69. 36 LUHMANN, 2016, op. cit., p. 342. 33

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pensamento evolutivo apresentado é demarcada, portanto, por uma conquista evolutiva, enquanto produto da concretização da condição de evolução necessária ao prosseguimento do processo evolutivo, que alcança seu limiar no fechamento operativo do sistema. Ou seja, empregamos o conceito de conquista evolutiva para designar o fato da reestabilização – que assegura à estrutura inovadora duração e capacidade de resistência – vir a se tornar motor da própria variaçãoiv.

4.1 DIREITO NAS SOCIEDADES ARCAICAS

As sociedades arcaicas são marcadas pela impossibilidade de distinção entre variação e seleção, na medida em que aquilo que se pode entender por expectativas normativas é dependente de uma série de condições situacionais e socioestruturais. As sociedades arcaicas, dentre elas as sociedades primitivas, fundamentam todas as funções sociais no elemento parentesco. Este fator é responsável pela sustentação da sociedade, e também do direito, de modo que “[…] nenhuma competência de decisão jurídica surge independentemente do parentesco. Inicialmente, todas as funções sociais encontram sua base natural, sua sustentação social e sua legitimação na proximidade do parentesco”37. Assim, economia, poder político, poder jurídico e até as funções mágico-religiosas são regidos por um elemento comum, baseado em referências naturais e concretas do modelo do parentesco. Deste modelo adotado pelas sociedades arcaicas decorre a ausência de alternativas, na medida em que estas já se encontram pré-delimitadas de acordo com o grau – próximo ou distante – de parentesco de seus componentes; com isso, as sociedades tornam-se menos complexas, impossibilitando a diferenciação funcional dos sistemas. O direito destas sociedades encontra-se ainda em sua forma elementar de constituição, não sendo possível instituir a “vigência” das normas jurídicas como ato suficiente para impô-las, uma vez que “a ‘vigência’ neutra é um símbolo para a imposição do direito neutro em relação aos papéis” 38, e esta diferenciação não existe nas sociedades arcaicas. O direito não pode reivindicar sua vigência absoluta, faltando-lhe um caráter obrigatório abstrato, surgindo da reação imediata à frustração das expectativas, ou seja, as expectativas normativas surgem imediatamente à autodefesa da vítima ou do clã ao constarem desapontamento das expectativas39. Por isso, certo é que a pacificação e a composição amigável por meio da arbitragem não encontram espaço nestas sociedades; a partir do momento em que a imposição do direito se dá mediante a ação de um membro e a reação do ofendido, o direito passa a ser verificado e 37

LUHMANN, 1983, op. cit., p. 184. LUHMANN, 1983, op. cit., p. 185. 39 NEVES, op. cit., p. 20. 38

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confirmado apenas no presente, com a reação do frustrado e eclosão imediata da cólera. Este fato potencializa o recurso à força física (por exemplo, a pena de morte), sem que haja qualquer procedimento institucionalizado para sua aplicação; ou seja, “[…] a generalização congruente de expectativas normativas nas dimensões temporal, pessoal e material manifestase através da represália e da reciprocidade, não mediante procedimentos”40. Notório, portanto, que nas sociedades arcaicas o direito é “direito presente”, sem abertura para o futuro e vínculos com o passado. Seu grau reduzido de abstração impossibilita que as soluções fornecidas aos conflitos sejam transferidas para casos diferentes, tornando-se ainda mais dependente do uso da força em cada caso concreto. Portanto, o direito arcaico é caracterizado pela síntese dos elementos: imediatismo dos casos, concretude e pobreza em alternativas. Esta pobreza de alternativas que mantém o direito unicamente como presente é fortalecida, ainda, pela presença do elemento sacral, o qual, ao considerar a ordem existente como representação de uma vontade divina, torna plausível a inexistência de alternativas no presente. A ordem existente passa a ser a única ordem possível, cega à possibilidade de integração de desacertos e inovações. Nesse sentido, esclarece Luhmann: O centro de gravidade da consciência arcaica reside, portanto, em seu presente constantemente arriscado e pobre em possibilidades, o qual logo se obscurece na penumbra de um horizonte temporal indeterminado do passado e que quase não tem futuro; pois só no presente existem vida e comunicação 41.

Em razão deste “direito presente”, o procedimento jurídico existente nas sociedades arcaicas aparece como concretização do direito, sem qualquer intenção de esclarecimento de uma disputa do passado ou como seleção de um futuro almejado. A constituição do direito se encontra, portanto, no paradoxo da temporalidade. O direito das sociedades arcaicas está fechado no presente e exatamente por isso é arcaico. Apesar de as ações humanas serem direcionadas com vista a uma dimensão temporal, no mundo arcaico, o direito toma o tempo enquanto dimensão constituidora; falta-lhe “aquele segundo plano de observação, a partir do qual poderia ser concluído, no presente, o que o passado foi e que o futuro deverá ser; para tanto, falta o processo que poderia esclarecer o passado e assegurar a persistência no futuro das seleções atualmente executadas”42.

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NEVES, op. cit., p. 20. LUHMANN, 1983, op. cit., p.187. 42 Id. Ibid., p. 190. 41

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4.2 DIREITO DAS CULTURAS ANTIGAS

A continuidade no desenvolvimento evolutivo do direito da sociedade implica: (i) institucionalização de processos regulares de decisão; (ii) deslocamento da dominação política das relações de parentesco e sua constituição relativamente autônoma; e (iii) a criação de diferenciação funcional incompleta do direito que impulsione para os passos seguintes da positivação. Os dois primeiros requisitos são encontrados ainda nas formas arcaicas evoluídas43; apenas o último requisito é identificado como próprio dos direitos das culturas antigas. O desenvolvimento econômico e ampliação das relações comerciais para além das fronteiras das estruturas segmentárias da família ou tribo amplia a complexidade social, na medida em que surgem disputas jurídicas entre pessoas pertencentes a diferentes camadas sociais. Assim, a solução das disputas jurídicas por meio da violência torna-se indesejada, urgindo sua substituição por um sistema de composições e a criação de processos regulares que tornem previsível sua solução. Diante destas exigências, a alternativa das sociedades arcaicas mais evoluídas consiste na formação de decisões jurídicas vinculativas, que não dependam de concordância; contudo, não encaminham um entendimento entre as partes e servem apenas para liquidar determinadas disputas jurídicas, deixando para o indivíduo o encargo da correspondente acomodação de si mesmo e de suas relações sociais44. A transposição da sociedade arcaica para as culturas antigas passa pela criação de uma jurisdição rudimentar, capaz de atuar diretamente sobre o indivíduo. Este fator implica na criação de uma diferenciação de papéis político-administrativos de geração e imposição das decisões coletivamente acatadas, mesmo que ainda se mantenha atrelada e legitimada a partir de um contexto familiar. Assim, as funções político-administrativas continuam desprovidas de diferenciação funcional, mantendo sua vinculação com as relações de parentesco e hierarquia: “as funções político-administrativas podem ser assumidas por homens fortes, anciãos, conselhos tribais, chefes de família proeminente ou até mesmo individualmente por variadas pessoas, sem qualquer designação institucional e conforme as necessidades” 45. O passo evolutivo necessário à criação do direito das culturas antigas é o descolamento desta instância decisória das relações de parentesco. Assim, o direito já não se expressa mediante a afirmação concreta das partes, mas passa a ser aplicado e executado por decisão de um terceiro com base em normas e valores abstratos 46. Com isso assegura-se que 43

LUHMANN, op. cit., p.196-200. Id. Ibid., p. 197. 45 Id. Ibid., p. 198 46 NEVES, 2008, op. cit.. p. 22. 44

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as decisões das disputas jurídicas sejam realizadas com base em certa margem de seletividade, criando-se processos que realizem esta seleção. É o embrião do surgimento do princípio “alguns no lugar de todos”, que administra o dissenso a partir da atribuição da competência a alguns (juízes, legisladores, etc) para dizerem para todos quais expectativas são juridicamente válidas47. O direito das culturas antigas caracteriza-se por sua incompleta diferenciação funcional. Isso porque, apesar da existência de autoridade religiosa, dominação política e econômica desvinculadas dos antigos laços de parentesco, certo é que, fora dos centros urbanos, a massa da população ainda é regulada pelo vínculo parental nas casas, aldeias ou oikias, mantendo o tradicional modo de vida das sociedades arcaicas. Em algumas dessas sociedades antigas, apesar dos sistemas político e religioso terem-se destacado da ordem de parentesco, o direito permanecia vinculado à religião, sem poder ser suficientemente controlado e desenvolvido processualmente. Outro modelo produzido pelas culturas antigas surge quando o sistema político é capaz de distanciar-se do sistema religioso, ainda que se encontrassem em estreita vinculação. Este modelo é observado na Grécia de Homero, reinos africanos, na Rússia antiga, no Egito após retrocesso temporário do sistema político diferenciado e, principalmente, após a queda do Império Romano. Nesses casos, a prática jurídica limitava-se à definição do direito conforme a decisão de cada caso, estando ausente o impulso à elaboração do sistema jurídico funcionalmente diferenciado. O direito, para prosseguir a evolução rumo à autopoiese sistêmica, necessitou se desvencilhar da religião, dos vínculos de parentesco e da casa do senhor, possibilitando sua construção por meio do processo jurídico que garantisse sua existência e obrigatoriedade tãosó pela “vigência” normativa. Esta conquista foi possibilitada em razão do primado social do centro funcional da política. A desvinculação do direito dos laços de parentesco é uma das provas da improbabilidade da evolução jurídica, pois, como bem posicionou Luhmann, é pouco comum que um regulador de conflito prive o indivíduo de qualquer apoio social de seus aliados, familiares e amigos, vinculados ao círculo social a que pertence e que o dotariam de prestígio e mérito. Contudo, em relação ao direito, apenas a partir deste isolamento é que se tornou possível o caminhar evolutivo, pois o indivíduo passou a enfrentar sozinho os tribunais a partir de uma dissociação dos laços sociais e somente quando esta dissociação se tornou

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LUHMANN, 2016, op. cit., p. 349. Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 77-100, outubro de 2016.

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plenamente sedimentada é que se pode perceber influências diretas sobre os julgadores como corrupção48. Outrossim, o refinamento da semântica jurídica apenas torna-se possível quando a política assume o controle sobre a violência física, restando claro que a evolução do direito é eminentemente vinculada à evolução do sistema político. “Em uma formulação positiva, isso significa que o direito deve pressupor que a paz esteja assegurada, se é que sua resposta pretende algo mais do que mero condicionamento à violência física.” 49 A incorporação da violência ao direito que ocorreu até a Alta Idade Média, inicia sua relativização quando a política assume o controle da violência por meio da proteção normativa dos bens jurídicos, tornando o Estado o único legitimado a responder à violência com violência. O bloqueio ao acesso direto ao uso da violência impõe a criação de processos judiciais. Com isso, a ordem jurídica obtém sua primeira conquista evolutiva, na medida em que extravasa os limites das disputas entre linhagens e consegue impor-se aos indivíduos em suas relações fora da relação parental. A segunda conquista evolutiva do direito dá-se pela diferenciação hierárquica, construída gradativamente a partir do primeiro modelo piramidal de sociedade; a gradativa passagem do status social para o cargo permite a diferenciação funcional que, mais tarde, nas sociedades modernas, se estabilizará pela diferenciação sistêmica. Contudo, até chegar a este patamar evolutivo máximo, devem ser realizados estágios gradativos de evolução, marcados pela: (i) diferenciação generalizada de prestígio entre “superior” e “inferiores”, fundamentando a diferença de categorias sociais, que é assegurada por uma série de símbolos, tais como, comunicação diferenciada entre “iguais” e “desiguais”, trajes distintos para os superiores, dentre outros; (ii) divisão de tarefa correspondente à distinção hierárquica, alcançando maior prestígio aquelas desenvolvidas por categorias superiores; (iii) instituição de uma estrutura assimétrica de comunicação, cabendo aos hierarquicamente superiores ditarem os comandos e aos inferiores obedecerem à ordem transmitida; (iv) por fim, a fixação de papéis correspondentes no sentido de um potencial permanente de ação, capaz de assegurar um desempenho decisório expectável e não ocasional. A concretização das etapas acima, nas sociedades antigas, permite a distinção entre cargo e pessoa, de modo que a atividade do cargo possa ser desenvolvida independentemente de características exclusivas do ser humano que a desempenha. Contudo, o grau de evolução não se encontra plenamente completo, na medida em que esta hierarquia é estabilizada, tornando-se impossível uma inversão na relação piramidal; não se é possível conceber outra 48 49

LUHMANN, 2016, op. cit., p. 390. LUHMANN, 2016, op. cit. p. 375. Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 77-100, outubro de 2016.

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ordem de ocupação, permanecendo a liderança política e a administração da ordem social vinculada a uma pequena classe dirigente, sem possibilidades de alternância. Em síntese, o direito das sociedades antigas baseia-se em uma sociedade já bastante complexa, marcada pela institucionalização de certas possibilidades (liberdades) de opção, pela realização de processos decisórios de cunho jurídico, e na existência de uma hierarquia de cargos independente de situações, capaz de decidir e impor suas decisões, sem depender dos vínculos parentais. É, assim, pela existência de processos e cargos, que o direito consegue exercer sua função de generalização congruente de expectativas comportamentais em um plano mais elevado em termos de complexidade e abstração; dessa forma, as decisões jurídicas são capazes de criar uma expectativa comportamental nos membros da sociedade, sendo reconhecido como válido por ser emanado por uma ordem jurídica previamente estatuída. “O processo decisório regulado realiza agora aquela seleção entre possíveis projeções normativas, aqueles processos institucionalizantes e aquelas identificações de expectativas que tornam o direito congruente na dimensão temporal, social e objetiva” 50. A institucionalização do procedimento judicial, com a inserção do terceiro comunicador (juiz), que possui a atribuição de institucionalizar expectativas, consiste na conquista evolutiva decisiva das sociedades antigas. Como visto, as comunicações humanas são sempre conflituosas, marcadas pela existência sempre presente da desilusão, em razão da presença da dupla contingência, “[…] que implica numa rejeição de ofertas de seleções comunicadas […]”51. Portanto, o conflito social, sempre potencial, deve ser controlado juridicamente, o que é feito, em sociedades mais evoluídas, pelo terceiro comunicador; este possui a atribuição de emitir mensagens normativas (normas jurídicas), as quais irão institucionalizar o conflito social existente entre os receptores sociais. A diferenciação do processo jurídico como sistema relativamente autônomo, capaz de estabelecer a generalização congruente de expectativas pela inserção da figura do terceiro comunicador – sempre mais poderoso que qualquer das partes em disputa – motiva a participação ativa das partes em conflito para a comprovação da compatibilidade de suas expectativas. Deste modo, a luta física e a reação vingativa são substituídas por processos jurídicos capazes de retratar os conflitos de forma mais complexa. Com a criação do processo como mecanismo de solução de conflito, a identidade do indivíduo deixa de estar atrelada aos vínculos do parentesco, afirmando-se, agora, na pertença a uma organização territorial, cuja unidade é referida ao soberano. Porém, na diferenciação 50

LUHMANN, 1983, op. cit., p. 207. OLIVEIRA, M. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre o poder, obediência e subversão. Rio de Janeiro: Corifeu, 2006, p. 93. 51

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funcional do sistema jurídico resta, ainda, a formação de algumas conquistas, principalmente: (i) especificação do sistema de interação, resultante da pré-fixação de critérios que formarão a decisão jurídica prescritiva; (ii) neutralização da personalidade individual do juiz de preferências individuais e demais relações pessoais; (iii) isolamento de outros papéis sociais, sempre que estes não constituam tema da decisão, ou seja, caso o réu seja uma figura hierárquica importante – porém, este fator não compõe uma circunstância relevante do conflito –, sua superioridade deverá ser desconsiderada na formação da decisão judicial; (iv) não consideração das reações do público, enquanto condição ou empecilho à execução das decisões; e (v) separação entre tribunal e processo, no sentido de que um tribunal pode realizar diversos processos diferentes sobre temáticas diferentes, podendo adequar-se propriamente a estas mutações52. Daí que o processo judicial das culturas antigas é formado pela combinação de diversas conquistas evolutivas, realizadas paulatinamente através de realizações graduais que se apoiam e impulsionam reciprocamente. A diferenciação funcional incompleta da sociedade permanece como marca das culturas antigas, as quais veem o direito como uma amálgama entre expectativas normativas (dever-ser) e expectativas cognitivas (ser). Deveras, as expectativas normativas poderiam ser diferenciadas apenas no âmbito da técnica jurídica, contudo, em suas bases, permaneciam vinculadas ao conceito de verdadeiro, absoluto e imutável, em razão de sua vinculação a uma ordem moral. Inobstante, certo é que suas conquistas evolutivas, surgidas em níveis diferentes nas diversas comunidades existentes (anglo-saxônica, greco-romana, chinesa, etc.), iluminaram o desenvolvimento social propulsor de uma nova era, a sociedade moderna.

4.3 DIREITO NA SOCIEDADE MODERNA

O conceito de modernidade, na esteira da advertência feita por Orlando Villas Bôas Filho, não possui uniformidade conceitual, sendo descrito de maneira polissêmica pelos mais variados estudiosos53. Adotando-se o cabedal da teoria dos sistemas – método de análise desta pesquisa –, a sociedade moderna deve ser caracterizada, portanto, pela intensificação da complexidade e da diferenciação funcional. A intensificação da complexidade da sociedade promove novos problemas a serem absorvidos para todas as esferas de sentido, dentre elas o direito; deste modo, tornam-se obrigadas a criar novas formas de assimilação desta complexidade, ou seja, a estabilização de novas estruturas.

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LUHMANN, 1983, op. cit., p. 209. VILLAS BÔAS, 2009, op. cit., p. 54-58. Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 77-100, outubro de 2016.

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Os sistemas parciais da sociedade começam a se diferenciar pela inexistência de um vínculo comum, tais como as crenças. “Não só a ciência, mas também a arte, a moral e o direito desprendem-se, com o desenvolvimento da sociedade moderna, do âmbito sacro” 54. A sociedade moderna é marcada pela diferenciação de sistemas funcionais, dentre eles o sistema do direito, cuja seletividade passa a ser regulada pelo processo de positivação. Esta clausura operativa é proporcionada pela ruptura com a diferenciação segmentária como critério único de diferenciação social, bem como pela complexidade alcançada pelo sistema político e o encerramento operativo do sistema econômico55. O impulso inicial para a formação dos sistemas parciais advém do meio, ou seja, do aumento da complexidade do sistema social; porém, ao se tornarem autônomos, os sistemas conseguem se autoestruturar; tornam-se autopoieticos, na medida em que “alimentam por si mesmos o fogo de sua própria existência”56. Com isso, os sistemas devem responder às pressões do meio, cada vez mais complexo, seja através da crescente indiferença ou aumentando sua autoirritabilidade. A diferenciação funcional acarreta o aumento dos projetos normativos nos demais subsistemas, obrigando-o a suportar o crescimento de seu encargo decisório em todos os planos de generalização. Cria-se uma sensível instabilidade da arte conceitual e domínio do direito pelo próprio direito; nascem figuras novas, ainda indeterminadas, como direito do trabalho, direito do trânsito, direito econômico, dentre outras. Para que esta instabilidade seja resolvida dentro do próprio sistema jurídico, tronou-se cada vez mais necessário o recurso à atividade legiferante. É, então, pelo processo de positivação que a norma jurídica passa a ser caracterizada como estatuída, modificável e de vigência condicionada, garantindo-se a racionalidade do direito57. Daí porque, diversamente do que ocorria nas sociedades arcaicas e nas culturas antigas, o direito passa a ser obrigatório pela sua simples “vigência”; além disso, a ideia de hierarquia assimilada no processo evolutivo anterior é transposta para o direito, de modo a garantir um escalonamento da ordem normativa e canalizar as reações a insuficiências, ambivalências e ausência de normas. O destacamento do direito da ordem religiosa tornou-se possível pela criação da ideia de direito natural, que considerava a ordem jurídica como fruto de uma vontade divina através da ideia de justificação religiosa do direito; contudo, esta invariância de conteúdos normativos

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NEVES, 2008, op. cit., p. 44. DE GIORGI, Raffaele. Direito, Democracia e Risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p.75. 56 LUHMANN, 2004, op. cit., p. 314. 57 LUHMANN, 1983, op. cit., p. 230. 55

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tornou-se, com o aumento da complexidade, insustentável, na medida em que a realidade social não esgotava as possibilidades de variação do direito. Disso decorre que o direito precisava ser visto como mutável para a sociedade moderna. Porém, para que o direito se apresente como mutável, não bastava a instauração formal de um processo; necessitou-se fornecer condições para a possibilidade de alteração do mesmo. Com isso, tornou-se necessário que o cargo do legislador se diferenciasse do senhor, ou seja, “[…] o senhor não podia mais ser o ‘Estado’, mas apenas possuía um papel no Estado”58. É, portanto, a criação da figura jurídica do Estado que possibilita a institucionalização do processo de alteração do direito diversamente dos papéis. Além disso, seguindo a história jurídica ateniense, Luhmann59 ressalta que a instauração juridicamente formal do processo também deveria servir para diferenciar entre desobediência e desejo de mudança. Portanto, as modificações legislativas passam respeitar as normas jurídicas em vigor, não constituindo mero ato de rebeldia, um protesto contra o direito vigente; os desejos de mudança precisam, agora, ser canalizados e selecionados por um sistema político suficientemente diferenciado funcionalmente. O elemento basilar das sociedades modernas consiste na conquista da estabilização do direito positivo, marcado pelo fato de que sua vigência se baseia exclusivamente na decisão também modificável por outra decisão. Este fator eleva a complexidade e a contingência do direito, adaptando-o às mudanças de seu ambiente igualmente complexo. O direito moderno decorre da sobrecarga de expectativas que requisitam uma seletividade intensificada do sistema, de modo que ele deve ser hábil na realização de seleções por meio de suas próprias estruturas; com isso, o direito deve definir suas próprias margens. A positividade do direito moderno torna-o aberto para o futuro, na medida em que vige não em razão de uma ordem superior ou sobrenatural, mas porque sua seletividade preenche a função do estabelecimento de congruência. “Instabilidade controlada” torna-se, portanto, sua característica; cada seleção realizada pelo direito corresponderá à ampliação da contingência. Isso, pois, a positividade permite que o direito decorra da seleção promovida pelo sistema, de modo que sua vigência se encontra atrelada a um ato de escolha (decisão) entre outras possibilidades existentes, demonstrando sua revogabilidade e mutabilidade. Assim, “o fator historicamente novo da positividade do direito é a legalização de mudanças legislativas, com todos os riscos que isso acarreta”60. Portanto, pode-se afirmar que o elemento definidor da modernidade não está na aquisição de um consenso, mas sim na possibilidade sempre presente do dissenso e na incrível 58

Id. Ibid., p. 233. Id. Ibid. 60 LUHMANN, 1985, op. cit., p. 09. 59

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capacidade de revogabilidade e mutabilidade das seleções do sistema normativo, que lhe permite a elasticidade necessária à adaptação das mudanças sociais sem que, com isso, ocorra sua desdiferenciação.

5. CONCLUSÃO

A partir da presente abordagem torna-se possível ao leitor vislumbrar os elementos que diferenciam a perspectiva de Niklas Luhmann sobre o tema “evolução” das teorias que o precedem, observando-se que, neste campo de observação, não há qualquer elemento valorativo conducente a uma perspectiva de caminhar rumo ao bem-estar social. Ao contrário, observou-se que evoluir é aumentar a complexidade social – e, com isso, dos sistemas que a compõe – pondo-se em relevo a abertura constante para a mudança e, assim, também para o dissenso. Assim, quanto mais complexo for um sistema, mais evoluído será. A análise dos três fatores de evolução dos sistemas sociais permite a percepção de que o motor exógeno da evolução social é justamente um desequilíbrio constante entre complexidade sistêmica e complexidade do ambiente, o qual força o sistema a responder à complexidade do ambiente sempre maior que sua complexidade interna. A partir disso, notase que, com a evolução social, as estruturas de expectativas necessitam ampliar seu número de tal forma que já não se torna mais possível o consenso absoluto, mas sim um dissenso controlado. Parte-se, então, para a criação de estruturas sociais que possam abarcar a ampla complexidade do ambiente e reduzi-la a um nível que permita a orientação das ações em um marco de complexidade mais limitado; neste contexto insere-se a diferenciação sistêmica do direito. Nesta toada, passou-se à demonstração de como os níveis de complexidade do direito acompanharam o igual aumento de complexidade do sistema social, diferenciando seus marcos evolutivos em três etapas: (i) direito da sociedade arcaica, cujas funções sociais se embasam no elemento parentesco; (ii) direito da sociedade clássica ou antiga, em que se inicia um processo de diferenciação do sistema jurídico, a partir da criação de papéis e procedimentos; e, por fim, (iii) direito das sociedade moderna, em que a superprodução de normas, criação de processos e abstração são conquistas evolutivas do sistema jurídico. Podese, concluir, por fim, que a crescente complexidade da sociedade é o motor da evolução dos sistemas parciais, dentre eles, o sistema jurídico, que percorreu um longo e improvável caminho até se chegar à configuração moderna.

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Redação original “il paradosso della probabilità dell’improbabile”. Um exemplo possível de variação dentro do sistema do direito que obrigou a adaptação de suas estruturas é o reconhecimento do direito de greve do trabalhador pela Constituição Federal Brasileira de 1988, regulamentado pela Lei 7.783/89. Esta prática, antes entendida como ilícita, após ser reconhecida como direito constitucionalmente garantido, implicou na reestruturação do sistema até então vigente, a fim de compatibilizar as demais normas jurídicas à aquisição evolutiva. Ainda, aplicando esses conceitos ao estudo do direito, o respeitado catedrático da Universidade de São Paulo, professor Samuel Barbosa, em aula ministrada em 23/10/2010, para o curso “Direito como sistema”, promovido pela Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP, correlacionou os elementos da seguinte maneira: (i) variação – refere-se às comunicações discrepantes dos comandos normativos; (ii) seleção – ato realizado pelas estruturas do sistema jurídico, tais como as normas constitucionais e infraconstitucionais; e (iii) estabilização – adaptação da variação recepcionada pelo sistema por ii

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BERBEL, Vanessa Vilela. Evolução do Sistema Jurídico: a Probabilidade do Improvável.

meio da elaboração de conceitos pela dogmática jurídica. iii Essa terminologia foi posteriormente modificada, passando o direito a ser considerado enquanto sistema social. Sobre esta mudança de terminologia, vide Capítulo III “O Direito como estrutura da sociedade” in: LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983; e LUHMANN, N. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004. iv O conceito de conquista evolutiva acima formulado parte de uma interpretação própria do emprego do vocábulo na obra de N. Luhmann (2016, p. 342), bem como dos apontamentos realizados por Marcelo Neves em: NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 02.

Recebido em: 11 de outubro de 2016. Aceito em: 1 de novembro de 2016. 100

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