EVOLUÇÃO HISTÓRICA E ESTILÍSTICA DOS VASOS GREGOS, in VASOS GREGOS EM PORTUGAL. AQUÉM DAS COLUNAS DE HÉRCULES (LISBOA 2007)

May 29, 2017 | Autor: Rui Morais | Categoria: Greek Vases, Greek Art, History of Greek vases
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EVOLUÇÃO HISTÓRICA E ESTILÍSTICA DOS VASOS GREGOS “No entanto, Simónides chama à pintura poesia muda, e à poesia pintura falante” (Plutarco, De gloria Atheniensium, 3)

Como ficou demonstrado no texto anterior da autoria de Ribeiro Ferreira, a par da inigualável evolução cultural do mundo metropolitano e colonial grego, e não menos da amplitude de comércio que daí derivou, a colonização grega representou um fenómeno transcendental na evolução do Mediterrâneo antigo: o conhecimento do ferro, do alfabeto, da moeda, do urbanismo, da arte, e de tantos outros elementos culturais. De entre estes elementos, destacamos os vasos gregos que permitem testemunhar a existência de comércio entre as pól

eis

num

momento

de

procura de novas terras e de matérias primas, necessárias para compensar a crise que se fazia sentir nas metrópoles gregas do século VIII a. C., condicionadas por excendentes populacionais e sujeitas a um regime de propriedade fundiária que impedia um desfrutar racional da agricultura. São disso testemunho os vasos proto-geométricos e geométricos que passaram a designar o período histórico entre o século X a. C. e os inícios do século IX a. C. até à 1ª metade do século VIII a. C. A periodização da cerâmica apresenta assim alguma correspondência com os termos sócio-políticos da transição do período micénico para o altoarcaísmo. Até meados do século VIII a. C., isto é, durante todo o período geométrico acima referido, a cerâmica grega apresenta fortes influências das produções áticas. Na História da Arte, e como consequência, em boa parte, das produções de vasos gregos, o domínio de Atenas coincide com o final do geométrico e o florescimento de estilos locais. Iniciavam-se então contactos permanentes com o Oriente, em simultâneo com as primeiras fundações de carácter colonial.

A par de Atenas, temos a cidade de Corinto, onde floresce o estilo orientalizante no último quartel do século VIII a. C., assinalando a passagem do tardo-geométrico ao proto-coríntio. Este período, historicamente coincidente com as datas das fundações das colónias gregas na Sicília, e, como tal, testemunho das primeiras gerações de colonos, vai atingir o auge da produção e qualidade nos períodos coríntio médio e, sobretudo, coríntio tardio, entre o início do século VII a. C. e 635/620 a. C. Corinto desenvolve assim um estilo novo e requintado, com decorações e figuras de inspiração oriental, com a aplicação de uma nova técnica, as “figuras negras”, talvez inspirada, dado o uso característico das incisões, em modelos da torêutica oriental (Boardman, 1986, p. 10). Foi dada preferência aos vasos de pequenas dimensões, como as olpai, os alabastra e os aryballoi, presentes nesta exposição. Atenas conhece então, entre meados do século VIII a. C. e os finais do século VII a. C., um período de torpor e isolamento, que historicamente é apenas o prelúdio de uma retoma hegemónica que se inicia no primeiro quartel do século VI a. C., em data coincidente com as primeiras produções das cerâmicas áticas de figuras negras. Das poucas referências aos vasos áticos nas fontes antigas, destacamos as palavras de Ateneu (séc. II/III d. C.) quando cita o poeta Crítias (ateniense da 2ª met. séc. V a. C.) na sua obra Deipnosophistae, I, 28 c: Mas a filha veloz da terra e do forno, a cerâmica mui gloriosa, a prestimosa governante do lar, descobriu-a o povo que em Maratona erigiu os belos trofeus. Ateneu depois comenta: A cerâmica ática é, efectivamente, objecto de elogio (trad. Rocha Pereira, 1997, p. 9). No início do século VI a. C., os artesãos atenienses começam também a demonstrar interesse pelos vasos de dimensões contidas. De entre as várias produções que começam a fazer concorrência à cerâmica de Corinto destacam-se os trabalhos dos artistas do Grupo dos Komastai que,

directamente inspirados nas produções coríntias, ornamentam os seus vasos com figuras de dançarinos ébrios, dançarinos em cortejo que açoitam as nádegas uns aos outros, nus ou vestidos com túnicas vermelhas, por vezes acompanhados por figuras femininas. Esta inspiração perdura no segundo quartel do século com as taças de tipo “Siana”, magnificamente representadas nesta exposição por uma taça atribuída ao Pintor do Grifo-Abutre, em cuja decoração exterior estão representadas danças de Komastai (foliões). O momento era coincidente com a Atenas do legislador Sólon, que se preparava para fornecer à cidade o primeiro código de leis sério. De entre outras medidas de longo alcance, destaque-se o encorajamento de Sólon às actividades comerciais e industriais, designadamente a concessão de cidadania a artesãos estrangeiros que se fixaram permanentemente na Ática, alguns dos quais mestres de olaria oriundos de Corinto e Egina. Esta medida, aliada à obrigação de os pais ensinarem um ofício aos filhos, irá, definitivamente, lançar as bases da hegemonia comercial de Atenas nos mercados ocidentais e orientais, invadindo-os com os vasos de figuras negras, muitos dos quais certamente difundidos pelo seu próprio valor artístico. O estilo de figuras negras, como estilo disciplinado que é, enquadra-se então neste período (sobre as reformas de Sólon e seu alcance consulte-se Ribeiro Ferreira 1988 e Delfim Leão 2003). No terceiro quartel do século VI a. C., durante a época do tirano Pisístrato, dá-se um novo impulso às actividades comerciais e artesanais que se traduz numa renovação dos motivos decorativos e formais e na definitiva afirmação da cerâmica ateniense nos mercados ocidentais. São dois os artistas de renome: o Pintor de Âmasis e Exékias, o último dos quais (simultaneamente oleiro), um dos mais importantes artistas deste período. No século V a. C. continuaram a produzir-se vasos de figuras negras, mas na sua fase final ocupam um lugar secundário, excepto no caso de alguns vasos tradicionais que, por motivos religiosos, perpetuam a velha técnica, as ânforas panatenaicas, oferecidas aos vencedores nos jogos panatenaicos, os grandes jogos atenienses em honra de Atena. No lado principal destas ânforas representa-se a deusa, com os seus atributos, à qual se associava a inscrição ton Athenesin athlon, ou seja, prémio da competição de Atenas, e no lado secundário, o motivo da competição em questão. No século IV a. C.

acrescentar-se-á a esta inscrição o nome do arconte epónimo, o magistrado que dava o nome ao ano ático, permitindo uma datação precisa dos vasos. Tal foi o sucesso destas ânforas entre os atenientes que foi sistemática a sua imitação, motivo pelo qual muitos dos exemplares que perduraram até aos dias de hoje não correspondem ao prémio original. Tal é o caso do único (ao que sabemos) e belo exemplar de ânfora panatenaica conhecida em Portugal, presente nesta exposição, outrora da Colecção Palmela (Rocha Pereira, 1962, p. 47-48, Pl. XII-XIV) e recentemente adquirida pelo Museu Nacional de Arqueologia. Um outro vaso de figuras negras de excepcional qualidade de que podemos usufruir nesta exposição, corresponde a uma ânfora de colo da colecção Manuel de Lancastre (nº 10), datada de c. de 500 a. C. e atribuída ao Pintor da Linha Rubra. A propósito deste pintor passamos a reproduzir as elucidativas palavras do Professor John Boardman, na sua obra Athenian Black Figure Vases (1988, p. 150): “A very few standard neck amphorae were still being decorated in black figure after the Persian wars…Several painters and classes have been distinguished, most of which require no mention. I name only one of the earliest, the Red Line Painter, who sometimes outlines the pattern band below his pictures in red”. Mas nem sempre os vasos são motivo de destaque pela sua excelência artística. Dignos de destaque são também os temas neles representados e o seu significado à luz da Paideia grega. A comprová-lo, uma bela ânfora de figuras negras, de c. de 510 a 500 a. C., da colecção Lancastre (nº 7), cujo tema retratado é sobejamente conhecido na literatura ocidental por se tratar de um dos passos mais célebres da Ilíada: a morte de Sarpédon (vide, neste catálogo, tradução e estudo do vaso por Rocha Pereira). Seleccionamos, para ilustrar este vaso, um poema do célebre poeta grego Konstandinos Kavafis, intitulado O Funeral de Sarpédon: Grave pesar tem Zeus. A Sarpédon Pátroclo matou; e agora lançam-se o filho de Menécio e os aqueus para arrebatar e vilipendiar o corpo.

Mas Zeus nada disso consente. Ao seu filho amado – a quem deixou perder; era assim a lei – irá ao menos honrar morto. E eis que manda Febo abaixo à planície instruído para tomar conta do corpo. O corpo morto do herói com devoção e com tristeza Febo levanta-o e leva-o para o rio. Lava-o do pó e do sangue; fecha as feridas horríveis, sem deixar que se veja nenhum traço; aromas de ambrosia despeja sobre ele; e com esplêndidas roupagens olímpicas o veste. A sua pele branqueia; e com um pente de pérolas penteia os cabelos todos negros. Seus belos membros aforma e deita. Agora parece um jovem rei guiador de carro – com vinte e cinco, vinte e seis anos – em repouso após ter ganho, com um carro todo em ouro e cavalos velocíssimos, o prémio em célebre competição. Quando Febo acabou assim a sua ordem, convidou os dois irmãos Hypnos e Thánatos e logo que chegaram à porta da casa real entregaram o corpo glorioso, e regressaram aos seus trabalhos e tarefas. Mal aí o receberam, em casa, começou com cortejos, com honras, com lamentações,

e com abundantes libações de cráteres sagrados, e com tudo o que é devido, a triste inumação; e de seguida operários experimentados da cidade, e famosos trabalhadores da pedra vieram e fizeram o túmulo e a estela. (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, 1994, p. 91; 93) Por volta de 530 a. C. foi introduzida uma nova técnica, a técnica de figuras vermelhas, possivelmente pelo Pintor de Andócides. Esta técnica consistiu em cobrir de negro todo o fundo do vaso, com excepção do espaço ocupado pelas figuras. O período de apogeu desta técnica dá-se por volta dos anos 530-475 a. C., conhecido pelo estilo severo (530-475 a. C.), cujas fases serão descritas no texto seguinte. É na segunda que se destacam alguns dos maiores artistas de vasos gregos. Para nossa surpresa, nesta exposição, um dos vasos da colecção de Manuel de Lancastre, está assinado por um destes grandes artistas: trata-se da pelike assinalada com o número 16, do Pintor de Brygos (Brygos epoiesen, “Brygos modelou”), um pintor que decorou a maior parte das suas obras com cenas mitológicas ou de tema dionisíaco. Neste vaso, o tema representado parece inspirar-se em cortejos de deuses, à semelhança de uma conhecida Taça de Berlim atribuída ao Pintor de Sósias, decorada exteriormente com a assembleia dos Olímpicos a receber Hércules (vide, neste catálogo, o estudo deste vaso por Rocha Pereira). A este período áureo, segue-se, em c. de 475-420 a. C., o designado estilo livre, depois das Guerras Medo-Persas. Entrava-se então num novo período, historicamente coincidente com a hegemonia e riqueza da cidade, e que se traduzia, sob os desígnios de Péricles, numa Atenas Democrática e num programa de reconstrução e embelezamento da cidade, eternizado com a construção do Pártenon. De entre os melhores representantes deste estilo têm especial relevo o Pintor de Pã, o Pintor de Pentesileia e o Pintor de Aquiles. E, mais uma vez, na colecção Manuel de Lancastre, uma surpresa: com o número 19 neste catálogo figura uma pequena hýdria, atribuível ao último daqueles pintores, o Pintor de Aquiles. Trata-se de um dos grandes discípulos do Pintor

de Berlim (o pintor preferido do maior especialista de vasos gregos, Sir John Beazely), cujo período de actividade se situa entre 460 e 430 a. C., conhecido por não compor cenas complexas e por hesitar na representação das figuras singulares, de aspecto alongado, todas no mesmo plano, quase ignorando as inovações do período precedente. Ainda neste período, no segundo quartel do século V a. C., sob a euforia da vitória contra os Persas, surgem novas tentativas, que parecerem decorrer de inovações criadas na arte da grande pintura. Uma das soluções mais interessantes é-nos dada pelo Pintor dos Nióbidas, que representa em vários níveis uma série de figuras, e pelo Pintor de Pentesileia, que exemplifica, com soberba mestria, a expressividade do olhar humano. A estes acrescente-se o Calyx-kratêr presente nesta exposição, encontrado em Agrigento e atribuído ao Pintor de Coghill (c. 440 a. C.), adquirido pelo Senhor Calouste Gulbenkian, e agora uma das joias do Museu da Fundação com o seu nome. Trata-se do mais belo exemplar que possuímos em Portugal, em cujo registo superior se representa o rapto das Leucípides e no inferior uma cena dionisíaca, com sátiros e ménades (um estudo pormenorizado deste vaso em Rocha Pereira, 1962, p. 66-72; Pl. XXVIII-XXXII). Nesta apreciação não podemos deixar de fazer referência a um outro belo

exemplar,

mais

uma

vez

da

colecção

Manuel

de

Lancastre,

correspondente a um kratêr-de-colunas, datado de c. de 450 a 425 a. C. e atribuído ao Pintor de Nausícaa. Os motivos figurativos são simples: saída a cavalo de dois jovens (lado A) e uma figura feminina com tochas acessas entre dois homens (lado B). O declínio do estilo de figuras vermelhas nos finais do século V a. C., designado por estilo florido (420-390 a. C.), está directamente associado ao período da Guerra do Peloponeso (431-404 a. C.), que, de um modo nefasto, iria afectar a vida económica e o comércio. Não obstante essa dificuldade, continuam as pesquisas técnicas e expressivas, quebrando-se o equilíbrio clássico em benefício de uma maior riqueza de movimento, com destaque para o Pintor de Erétria e para o Pintor de Mídias. De modo a alcançar o mesmo nível das conquistas da pintura mural, os pintores de vasos gregos adoptam novas soluções técnicas recorrendo à tecnica do fundo branco que permite uma rica policromia e a representação de

corpos, roupas e outros adereços, com expressividade e transparência. A forma preferida para este tipo de decoração é a lêkythos de forma cilíndrica, recipiente de óleos perfumados, com uma utilização quase exclusivamente funerária e raramente exportadas para fora da Ática. Neste catálogo, nas diferentes colecções, podem ser apreciados vários exemplares deste tipo, quer no estilo de figuras negras, quer no estilo de figuras vermelhas, com destaque para aqueles atribuídos ao Pintor de Beldam, um dos últimos e importantes pintores de figuras negras que produziu em grande quantidade lêkythoi de pequenas dimensões, de tipo “chaminé” (cf. Boardman, Athenian Black Figure Vases, 1988, p. 149-150). Paralelamente à decadência desta técnica ao longo do século IV a. C., assiste-se ao seu florescimento nas colónias gregas da Itália do Sul, para o qual, teria certamente contribuído a imigração de oleiros e pintores de origem ática já a partir de meados do século precedente. A criação de novas escolas na Magna Grécia são uma prova da vitalidade desta arte, sendo lícito falar-se de diversos estilos especiais, como se pode constatar no artigo seguinte. A par da cerâmica pintada, desenvolve-se um novo tipo de vasos exclusivamente pintados de negro. De entre um vasto repertório de formas, associadas à vida quotidiana e ao consumo de vinho e rituais, desenvolve-se a produção de formas peculiares, como os gutti, recipientes destinados para óleo que poderiam ter o medalhão central em relevo ornamentado. A fechar a unidade expositiva da Colecção Lancastre podemos apreciar três destas peças, ornamentadas com o sugestivo tema das Amazonas, a cabeça de um homem de farta cabeleira e a cabeça de um leão. O estudo dos vasos da colecção Manuel de Lancastre e de alguns dos vasos da colecção do Museu Nacional de Arqueologia e de outras instituições portuguesas, que agora se apresentam no catálogo da exposição, é, por si só, testemunho da importância que os gregos atribuíam à cerâmica e da sua propensão para as mudanças das modas decorativas. É esta circunstância que valoriza o estudo aqui apresentado, fazendo com que as argumentações baseadas na análise estilística tenham um peso determinante na apreciação dos vasos gregos; se para as sequências estilísticas usadas nas diferentes

produções inserirmos qualquer elemento de cronologia absoluta, obtemos um sistema que permite datar a cerâmica decorada por quarteis ou mesmo por decénios. Em parte este discurso é válido para as cerâmicas com início nos meados do século VIII a. C., com tendência a uma melhor contextualização cronológica à medida que se caminha para os finais do período arcaico e período clássico, com os estilos de figuras negras e vermelhas. Como iremos constatar, não se trata apenas da possibilidade de os situar cronologicamente, mas, também de os atribuir aos diversos centros de produção e, em alguns casos, distinguir, inclusivamente, as suas oficinas, pintores ou ceramistas. Outro aspecto não menos importante da questão é a difusão destas obras em locais alcançáveis pelos antigos navegantes que, inequivocamente, testemunham, “contactos” (para utilizar um dos termos centrais da obra de John Boardman, The Greeks overseas, London, 1964), que de forma directa ou intermediária helenizaram os jardins ocidentais “à beira-mar plantados”, situados “Aquém das Colunas de Hércules”.

Rui Morais

J. Boardman, The Greeks overseas (Londres, 1964, 21980). Trad. Ital.: I Greci sui Mari. Traffici e Colonie (Firenze, 1986). J. Boardman, Athenian Black Figure Vases. London, Thames and Hudson, 2nd ed., 1988. D. Leão, Sólon. Ética e Política. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. J. Ribeiro Ferreira, Da Atenas do século VII a. C. às reformas de Sólon. Coimbra, 1988. M. H. da Rocha Pereira, Greek Vases in Portugal. Coimbra, 1962.

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