Excertos Clínicos do Diálogo com um Psicopata

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Um perverso pode ser um sujeito muitíssimo atento aos sinais de carência e/ou "fraqueza" dos outros. Ele sabe os pontos a explorar, para seduzir e subjugar outrem. O psicopata encontra as brechas para desfrutar do prazer de violar tais fraquezas ou vulnerabilidades, sem qualquer culpa, mas com gozo agressivo-reivindicativo-triunfante. Sistematicamente. Há alguns humanistas ou desavisados que supõem um "psicopata com culpa, ainda que recôndita". Essa frágil teoria é para quem nunca esteve com um. Não existe tal figura. Como não existe alguém que procure um psicólogo ou psiquiatra com o seguinte dilema clínico ou ético: "acho que sou um psicopata, doutor; sou frio, performático, simulo emoções que não sei se sinto, etc, etc." Um psicopata jamais teria esse dilema, ou qualquer dúvida a respeito. Esse pode ser um sujeito esquizoide que entrou em crise depressiva, o tipo "falso self" de Winnicott em crise ou perto de um colapso. Falo bastante de esquizoides e tipologias narcísicas no meu ensaio O Olho Que Nos Olha Nos Olhos, portanto não farei nesse curto artigo qualquer esboço de nosografia comparada. Minha intenção é descrever um excerto de diálogo com um psicopata [não com um esquizoide ou com um esquizoide em crise depressiva, pelo fracasso de suas defesas de encapsulamento-solidão].


O sujeito me chega encaminhado pelo Conselho Tutelar e pelo juiz. Seus filho, um bebê de poucos meses, deu entrada no hospital engasgado com esperma. O pai ofereceu ao corpo clínico a versão de que o garoto engasgara com "a sopinha da mamadeira, enquanto assistia a um programa de TV sozinho, enquanto ele [o pai] arrumava seu carro no quintal". Na versão soft do progenitor, ele deixara o bebê assistindo a um programa de TV enquanto tomava sua mamadeira com sopinha. O tal bebê teria seis meses de idade, mais ou menos. Minha intenção aqui é expor alguns elementos do discurso deste sujeito, enquanto tentava vender uma boa imagem de si mesmo ao profissional encarregado de diagnosticá-lo. No caso, eu. Ele já havia passado por uma psiquiatra que inclusive "se enojara de seu discurso" e ela aceitou que eu fizesse com ele uma entrevista mais longa, ao término da qual confeccionaria e assinaria um laudo para o juiz, ao qual ela leria e subscreveria, caso concordasse com o mesmo.


A psicopatia é um transtorno de caráter, não é um neurose nem uma psicose. É estrutural e não afeta em nada o juízo de valor sobre o que seja "realidade" ou "ilusão", por exemplo. Vamos a um caso "menor" [ou menos gravoso, comparativamente ao estupro de um bebê] de um psicopata clássico. Ele é culto, um "alfa bem sucedido", vai a restaurantes, a exposições de arte e coisas assim: não é um "mecânico a consertar o carro no quintal enquanto seu filho engasga sozinho com a sopinha assistindo ao Domingão do Faustão" [sic]. Não. Este psicopata vai a bons restaurantes e exposições sofisticadas. Nos bons restaurantes, ele sistematicamente pede, só para si, modificações nos pratos oferecidos: quer outros molhos, mudanças sutis só para ele, chama o gerente, faz reclamações sistemáticas de tudo que lhe é oferecido. É contumaz nisso. Estaciona onde não pode e quer reclamar com as autoridades. Obstrui a saída de carros em estacionamentos ou na garagem de seu prédio e comparece para brigar ou chantagear os descontentes. E quanto às exposições de arte, há algo interessante no seu comparecimento: ele diz à sua mulher, depois de sair de uma dessas exposições – "a segurança da exposição não é bem feita, pois eu risquei um dos quadros com a chave do meu carro". Ele o diz com visível satisfação. E por que ele o fez? Porque gosta. Deixou sua marca autoral-transgressiva na exposição de arte: riscou/triscou/tisnou/contaminou a obra de outro com um "símbolo de sua autoridade": a chave do seu carro.


Voltemos ao mecânico. Ele diz pérolas para mim, porque não consegue se conter numa conversa longa e quando provocado. Diz coisas assim: "olha doutor, na minha família, eu sou o melhorzinho, todos são piores que eu"; "catei minha mulher na rua e ela deveria ser muito grata a mim"; "ainda que eu tivesse feito o que elegam, a Bíblia diz que razões para separação são outras, como o adultério, por exemplo"; "seria de bom tom o senhor fazer um relatório acabando logo com toda essa maledicência: pode ligar para o meu pastor, se quiser; ele falará bem de mim"; "meu sogro e outros me perseguem e me querem mal: eu tenho anotada cada ofensa que me fizeram num caderninho e, no tempo certo, eles terão o troco".


Comento um detalhe sobre o ocorrido: sua vizinha teria pulado o muro de sua casa ao vê-lo sob o carro e ouvir o bebê chorando, antes do fato consumado. Ele a expulsara com violência, "por ela se meter na educaçção que só a ele caberia sobre seu próprio filho".

Falta de empatia? Imagem narcísico-grandiosa sobre si mesmo? Catalogação milimétrica das ofensas que desmerece a auto-imagem para ulterior [e igualmente milimétrica] vingança? Destruição impessoal [ou suprapessoal] de patrimõnio, bem ou direito alheio só para "deixar seu registro autoral" [o que inclui corpos de outros]? Tudo isso e muito mais. A psicopatia é um transtorno de caráter que se manifesta em "cachos sintomatológicos" [em clusters], jamais num "fetiche" isolado. O psicopata mimetiza a empatia, por conhecer a fundo o que "o outro gostaria de ouvir" numa carência oiu fraqueza que, a ele, no fundo, causa só nojo e repulsa. A falta de segurança da exposição de arte só eliciou no psicopata culto sua necessidade de "denunciá-la [a fraqueza ou falta de vigilância/segurança] com sua digital", assim como ele desejaria modificar todo o menu dos restaurantes bons que frequenta. Na verdade, ter um menu só para si, para depois depreciar o fruto de suas imperiosas exigências, ofendendo o cozinheiro, o garçom, o gerente e talvez saindo da sua exclusiva refeição com a promessa de indenização, em vez de pagar a conta.








Marcelo Novaes


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