Experiência de Ensino: Redação de Ensaios Filosóficos no Ensino Médio

July 7, 2017 | Autor: Lucas Melz | Categoria: Metodologia do Ensino de Filosofia, Direitos dos Animais
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Experiência de Ensino: Redação de Ensaios Filosóficos no Ensino Médio Lucas Werle Melz 1 Resumo O presente trabalho visa registrar parte das situações de aprendizagem referentes à proposta de realização de um ensaio filosófico por alunos de uma turma de segundo ano do ensino médio. Pretende-se refletir sobre algumas das discussões filosóficas que foram apresentadas aos alunos. Os ensaios deveriam ser escritos individualmente. Ética aplicada foi o tema escolhido pelos professores orientadores do PIBID e pelos bolsistas. Considerando o tema de ética aplicada, os alunos poderiam escolher um tópico dentre cinco opções disponíveis: ecologia; feminismo; desigualdade social; direitos dos animais; preconceito racial. De acordo com a escolha dos estudantes, dividiu-se a turma em pequenos grupos para fins de pesquisa e para facilitar o trabalho de orientação dos bolsistas. O relato de experiência se restringirá ao trabalho desenvolvido com os alunos que escolheram escrever sobre direitos animais, visto que o bolsista orientou apenas estes alunos. Palavras-chave: Ensaio. Ética. Direitos. Animais. Introdução O objetivo deste trabalho é relatar as experiências de uma turma de ensino médio diante da proposta de escrever um ensaio filosófico e refletir acerca do aprendizado resultante dessa prática. A atividade realizada procurou auxiliar no desenvolvimento das habilidades de escrita dos alunos de modo integrado ao ensino de filosofia. Ética aplicada foi o tema determinado pelos professores e bolsistas, de modo que os alunos escolheram um subtópico entre cinco opções disponíveis para a realização do ensaio: ecologia; desigualdade social; feminismo; direito dos animais; preconceito racial. O presente trabalho visa identificar algumas das curiosidades e reflexões filosóficas dos alunos, expressas em aula ou escritas. O relato de experiência se limitará às atividades desenvolvidas com os alunos que escolheram escrever sobre direito dos animais. Notamos a importância do tema dos direitos animais ao observar o impacto prático do pensamento de alguns filósofos, isto é, o esforço destes teóricos culminou na criação de mecanismos legais para garantir a proteção de animais. Quando Peter Singer publicou o 1

O presente trabalho foi realizado na Escola Estadual Senador Ernesto Dornelles, localizada em Porto Alegre – RS. Os responsáveis pela atividade pertencem ao PIBID Filosofia da UFRGS. Cada bolsista se responsabilizou a orientar um grupo pequeno de alunos, de modo que este trabalho se refira às experiências de um único bolsista conduzindo a atividade com estudantes interessados na elaboração de um ensaio filosófico que aborde os direitos dos animais. O bolsista pode ser contatado através do email: [email protected]

livro “Libertação Animal” em 1975, iniciou-se uma crescente mobilização de ativistas, de modo que as reivindicações criaram a necessidade do Estado regular os direitos dos animais. Por exemplo, em 1988 a Suécia proibiu a criação de animais em pequenos espaços, estabelecendo um prazo de dez anos para acabar definitivamente com o sistema de “fazenda industrial”. O objetivo da discussão filosófica acerca de problemas morais é avaliar as justificativas que sustentam as nossas crenças mais comuns, e aperfeiçoar as préconcepções filosóficas que todos possuímos em algum nível. Quando os alunos procuram argumentos para justificar suas posições acerca do problema discutido, é possível encontrar argumentos parecidos em escritos filosóficos. Neste caso, o professor deve mostrar como a perspectiva daquele aluno se reflete nas investigações de alguns filósofos. A reflexão do estudante deve ser complementada ou confrontada com os resultados da investigação de pensadores que se dedicaram ao tema discutido. Apresentação A escrita de textos filosóficos é algo diferente das redações que os alunos de ensino médio estão acostumados a escrever. Portanto, o desafio do educador é duplo, a saber, ensinar noções gerais acerca da estrutura de um ensaio filosófico e orientar os alunos sobre temas de filosofia incentivando o registro de suas reflexões pessoais. A elaboração de um ensaio argumentativo sobre ética aplicada exige tempo, pois lidar com a abstração de um problema filosófico através de uma escrita clara e coerente é um desafio até para alunos de graduação. Deste modo, a atividade foi desenvolvida gradualmente de acordo com as seguintes etapas: introdução à ética; escolha do subtópico a ser discutido no ensaio; etapa informativa acerca do assunto escolhido pelo aluno; apresentação de diferentes concepções filosóficas sobre o problema em questão; leitura de um texto filosófico acerca do tema; orientações sobre a estrutura de um ensaio filosófico; atividade de escrita; revisões e correções (tantas vezes quanto for necessário). De acordo com as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), publicadas pelo Ministério da Educação em 2006, o ensino de filosofia deve desenvolver “competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que podem fixar-se igualmente à luz de conteúdos filosóficos”2 Neste sentido, a prática de redação de um ensaio filosófico abrange o ensino de ambas as competências, isto é, comunicativas e cívicas. O aluno deve se posicionar acerca de um problema filosófico e elaborar uma defesa argumentada de sua tese, obedecendo a uma estrutura textual mínima. Para fortalecer a tese defendida, o aluno é encorajado a suscitar objeções ao 2

Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Volume 3 - Ciências Humanas e suas Tecnologias. Secretaria de Educação Básica, Brasília, 2006, página 30.

próprio argumento e a responder a tais objeções. Caso a objeção seja irrefutável, o aluno deve perceber que a proposta inicial de seu texto não pode ser concretizada. Sendo assim, o professor deve orientar o estudante a mudar de posição, isto é, defender uma tese mais fraca do que a original ou defender a tese que suporte as objeções suscitadas (ou escolher outro assunto para abordar no ensaio). Ao procurar falhas em seus próprios argumentos os alunos estão sendo introduzidos ao pensamento crítico, e estão desenvolvendo uma habilidade discursivo-filosófica ao expressar as possíveis dificuldades de sustentar uma determinada posição, antecipando os possíveis contraargumentos de modo a buscar uma resposta coerente ao problema filosófico discutido. A redação de um ensaio filosófico exige certa familiaridade com o tema discutido, visto que o objetivo deste tipo de atividade é que o aluno atinja uma perspectiva mais elevada sobre o assunto, isto é, espera-se que o estudante defenda algo mais do que uma opinião irrefletida. Ao discutir assuntos relacionados à ética, os alunos costumam se prolongar na análise de casos particulares, esquecendo-se de dar o próximo passo: abordar o tema a partir de uma perspectiva mais ampla, investigando se existem princípios éticos gerais que esclareçam todos os casos especificados e indicando quais seriam esses princípios. Ao discutir o assunto dos direitos animais com os alunos, verificou-se que os estudantes insistem em elencar um grande número de exemplos, casos particulares extraídos de suas vivências ou de notícias veiculadas pelos meios de comunicação. Por exemplo, os estudantes tendem a discutir exaustivamente se é correto punir um animal que feriu um ser humano em determinadas circunstâncias, cabendo ao professor introduzir a discussão sobre as condições necessárias para que haja responsabilização moral em quaisquer circunstâncias. Deste modo, para tornar possível a escrita acerca de temas relacionados à ética aplicada, os bolsistas PIBID e o professor de filosofia consideraram necessária uma introdução ao tópico discutido. Primeira Aula: Introdução à Ética O texto escolhido para servir de introdução ao estudo de ética foi um capítulo do livro de Fernando Savater intitulado “Ética para meu Filho”. O livro de Fernando Savater utiliza uma série de exemplos cotidianos para tratar de noções gerais de ética, estimulando as reflexões dos alunos através de uma linguagem de fácil entendimento. No excerto escolhido, Fernando Savater alega que existe grande discordância entre as opiniões acerca do que é bom e do que é mau. Contudo, existe consenso acerca de que “certas coisas nos convêm e outras não.”3 Somos capazes de escolher quais são aquelas coisas que nos parecem boas ou vantajosas e de recusar aquilo que aparenta ser mau ou desvantajoso. Os animais irracionais não são capazes de realizar escolhas deste tipo, pois são “programados” pela natureza a sempre agir de acordo com seus instintos, isto é, os animais têm as suas ações determinadas por leis naturais (que eles não podem compreender), tais como garantir a sobrevivência da espécie ou buscar o prazer e evitar a dor. Deste modo, o homem se considera livre, pois suas ações não são 3

Savater, Fernando. Ética para meu Filho. Capítulo 1, “O que é ética?”. Tradução de Monica Stahel, São Paulo: Martins Fontes, 1996, página 20.

absolutamente inevitáveis, determinadas ou necessárias. Sempre teremos mais de um caminho a seguir, visto que podemos optar pelo curso de ação que parecer mais sensato dentre uma série de alternativas. Fernando Savater não quer dizer que o homem é absolutamente livre, mas que o homem é “livre para responder ao que nos acontece de um ou de outro modo”4 e ainda suscetível ao fracasso de seus propósitos. O ser humano é suficientemente livre para que possa ser responsabilizado pelos seus atos. O texto extraído do livro “Ética para meu Filho” serviu para introduzir a discussão sobre os direitos dos animais, afinal, que tipo de responsabilidade o homem possui em relação aos animais com que interage? Existem ações incorretas ou corretas no que diz respeito às diversas atividades humanas em que os animais são incluídos? Os animais têm direitos? Quais são? Segunda Aula: Etapa Informativa O objetivo desta aula foi estimular os alunos através de uma série de materiais impressos, fornecendo os elementos anteriores e necessários à reflexão filosófica, isto é, situações e casos particulares acerca do tema discutido. No caso do grupo de alunos que escolheu escrever sobre direitos dos animais, foi entregue em aula: uma notícia que trata sobre experimentos científicos realizados com animais; uma reportagem sobre a reivindicação de ativistas pela preservação das baleias; uma reportagem sobre as legislações que regulam os crimes contra animais em diferentes países. As reportagens foram extraídas do site do Greenpeace e do site Brasil Escola. Discutiu-se brevemente sobre cada notícia, e foi explicado que os casos particulares devem ser utilizados como exemplos para defender a tese apresentada no ensaio. Deste modo, os alunos foram alertados sobre o excesso de particularismo que poderia ocorrer em seus textos, e encorajados a encarar o tema de uma perspectiva filosófica. A partir do contato e da análise de situações particulares o bolsista sugeriu os seguintes questionamentos: o que são direitos? Quem tem direitos, tem deveres? Os seres humanos possuem direitos e deveres, mas e os animais? Após essas perguntas, foi entregue um resumo introdutório sobre direitos dos animais com o objetivo de apresentar as respostas de alguns filósofos aos questionamentos anteriores. O resumo foi escrito pelo bolsista. O resumo introdutório sobre direitos dos animais visava fornecer os primeiros elementos filosóficos referentes ao tema, contemplando brevemente quatro diferentes teses acerca da existência de direitos dos animais (três negativas e uma positiva). As primeiras três concepções filosóficas negam a existência de direitos para animais não humanos, Michael Tooley da Universidade do Colorado resume as três posições: “alguns filósofos defendem, por exemplo, que só os agentes morais podem ter direitos, sendo um agente moral alguém que pode escolher entre cursos de ação alternativos baseando-se em considerações morais. (Pode-se exprimir a mesma perspectiva de uma maneira ligeiramente diferente através da tese de que os direitos e os deveres 4

Savater, Fernando. Ética para meu Filho. Capítulo 1, “O que é ética?”. São Paulo. Martins Fontes, 1996. Página 28.

andam sempre a par, e de que as únicas coisas que podem ter direitos são as coisas que podem ter deveres.) Outros filósofos sustentaram que os direitos estão vinculados a reivindicações, e que só as coisas que podem reivindicar direitos podem realmente ter direitos. Ainda outros filósofos adotaram uma abordagem contratualista aos direitos, e defendem que os direitos surgem de acordos entre indivíduos que vêem a concessão mútua de direitos como uma alternativa desejável à vida num estado da natureza — vida esta que é, segundo as palavras de Thomas Hobbes, "terrível, selvagem e curta".5 Considerando as três perspectivas mencionadas por Michael Tooley, os animais não poderiam ter direitos, pois não são agentes morais, não são capazes de reivindicar direitos, e tampouco são capazes de realizar acordos que prescrevam direitos e obrigações. Para que os alunos pudessem vislumbrar uma atitude positiva em relação aos direitos animais, o resumo introdutório ao assunto se encerrou com a oposição de Peter Singer às três concepções mencionadas. Não é necessário que animais sejam agentes morais para que lhe sejam conferidos direitos, afirma Singer, pois somos capazes de reconhecer nos animais interesses comuns aos seres humanos. Deste modo, ao perceber que um animal está sofrendo, somos impelidos a relacionar a experiência do sofrimento daquele animal a uma experiência pessoal de sofrimento. Por este motivo sentimos pena ou remorso. Peter Singer denomina isto de “princípio da igual consideração de interesses”, e para o filósofo todos os avanços nos direitos humanos são uma consequência da aplicação deste princípio. Não é relevante para a legitimação de direitos que os animais possam reivindicá-los, visto que as demonstrações de dor e sofrimento já constituem reivindicações suficientes para justificar os direitos animais. Quando vemos uma criança cair e machucar o joelho, não é necessário que ela saiba falar para que reivindique a sua dor, basta observar o seu comportamento. Por último, a aptidão de participar de um contrato não parece ser um critério determinante para a concessão de direitos aos animais, pois “o fato de que os seres não pertencem à nossa espécie não nos dá o direito de explorá-los, nem significa que, por serem os outros animais menos inteligentes do que nós, possamos deixar de levar em conta seus interesses.”6 Terceira Aula: Apresentação do Texto “O porco que quer ser comido” Julian Baggini foi o filósofo que escreveu esse texto de nome curioso, publicado em seu livro “O Porco Filósofo” 7. O início do texto de Baggini se trata de um excerto de um livro de ficção científica escrito por Douglas Adams, intitulado “O restaurante do fim do universo”. A história relata uma situação bizarra: Max Berger é vegetariano há quarenta anos, e está prestes a comer uma porquinha geneticamente modificada que é 5

Tradução e adaptação do texto de Michael Tooley por Pedro Galvão, extraído do site criticanarede.com/tooley_lesson19.html. O texto original se encontra em spot.colorad.edu/~tooley/Lecture19.html 6 Singer, Peter. Ética Prática, Capítulo 3 Igualdade para os animais? Tradução de Jefferson Luiz Camargo, Martins Fontes, 2002, página 66. 7 Baggini, Julian. O Porco Filósofo – 100 Experiências de Pensamento para a Vida Cotidiana, Editora Dumara, 2006.

capaz de falar e expressa o seu desejo de ser devorada. O prato com porco (que foi abatido em um matadouro humanizado) acompanha carne de frango que viera de um aviário futurista que produz aves acéfalas, “sem consciência de seu eu, do ambiente, da dor ou do prazer.”8 O protagonista da série de livros publicados por Douglas Adams é Arthur Dent, um humano que conseguiu escapar da Terra momentos antes do planeta ser destruído para a construção de uma rota espacial alienígena. Arthur Dent se espantou com a refeição de Max Berger, descrevendo como a coisa mais revoltante que já tinha ouvido falar, e então um alienígena chamado Zaphod Beeblebrox contestou Arthur: “melhor do que comer um animal que não quer ser comido”. Ora, Arthur Dent ficou horrorizado porque a porquinha geneticamente modificada possuía a principal característica que diferencia os seres humanos de animais nãohumanos: a linguagem. Desde a antiguidade o homem se define enquanto o único ser capaz de linguagem, isto é, dotado de logos (em grego antigo significa “palavra, escrita ou falada” e “razão”). Aristóteles foi o primeiro a defender a ideia de uma hierarquia natural entre os seres, que do grau inferior ao superior se define assim: seres inanimados; plantas; animais irracionais; homem. A supremacia do homem sobre os outros animais por muito tempo se justificou baseada neste princípio, e é por isso que Arthur Dent se sentiu desconfortável diante da possibilidade de comer uma porca falante. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma: “a vida parece ser comum até as próprias plantas, mas estamos agora buscando saber o que é peculiar ao homem. Excluamos, pois, as atividades de nutrição e crescimento. A seguir, há a atividade de percepção, mas dessa também parecem participar o cavalo, o boi e todos os animais. Resta, portanto, a atividade do elemento racional do homem.”9 Outro ponto interessante do texto de Douglas Adams é que ele testa os limites de duas doutrinas morais que defendem os direitos dos animais: a doutrina utilitarista de Peter Singer e a doutrina deontológica de Tom Regan. Os primeiros teóricos que defenderam a corrente filosófica denominada utilitarismo foram Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Trata-se de uma teoria ética consequencialista, que considera corretas as ações que produzem bons efeitos no mundo (ou mais efeitos bons do que ruins), isto é, uma boa ação deve causar mais prazer do que dor. O utilitarismo abriu espaço para a discussão sobre os Direitos Animais, visto que a capacidade de ser senciente passa a substituir a capacidade racional ou linguística como critério de consideração moral. Deste modo, Jeremy Bentham defendeu que um dia reconheceremos a imoralidade de nossas práticas envolvendo animais, assim como hoje reconhecemos que a escravidão é uma violação dos direitos humanos. Peter Singer, bastante influenciado por Bentham, assume os conceitos de “interesse” e “preferência” como critérios para realizar um juízo moral das ações humanas envolvendo animais. Singer defende que as interações humanas com animais devem ser reguladas pelo princípio da igual consideração de interesses, isto é, não existe razão para crermos que o sofrimento dos outros animais é distinto do 8 9

Adams, Douglas. O Restaurante do Fim do Universo. Pan Books 1980. Aristóteles. Ética a Nicômaco (Livro I, 1098a). Martin Claret, 2004, página 27.

nosso. Porém, a partir do conceito de preferência Singer sustenta que o sofrimento animal é justificável se evitar sofrimento humano, por exemplo, se alguns macacos devem ser sacrificados para a criação de uma vacina contra o câncer, então parece correto sacrificar os macacos. Douglas Adams em seu livro afirma que o abatedouro onde os animais são mortos é humanizado, isto é, os abates são realizados de modo a não causar qualquer dor. Se a capacidade da senciência (compartilhada entre humanos e animais) e a possibilidade de sofrimento justifica o princípio de igual consideração de interesses, poderiam ser justificados os abates que comprovadamente não causassem dor? De acordo com Tom Regan, os critérios que fundamentam a noção de direito são as seguintes capacidades psicológicas: memória; sentido biográfico de si; capacidade de criar expectativas quanto ao futuro; capacidade de adotar crenças. Neste sentido, Douglas Adams ironiza a doutrina moral de Regan ao relatar em sua ficção a ideia de um aviário que produz aves descerebradas, que não possuem nenhum dos atributos listados acima. Regan propõe uma teoria crítica ao utilitarismo de Peter Singer, visto que nega a possibilidade de justificar o sofrimento animal por um “bem maior”. Gabriela Dias de Oliveira considera a teoria dos direitos dos animais de Regan superior à teoria de Singer: “Isto posto, tornam-se mais preciosos os argumentos de Tom Regan para afirmar a superioridade de sua teoria dos direitos frente às teorias do contrato e às teorias utilitaristas: ao contrário do contratualismo, a teoria dos direitos nega tolerância moral a toda e qualquer forma de discriminação; ao contrário do utilitarismo, a teoria dos direitos nega a justificação a bons resultados que empreguem meios que violem direitos individuais.”10 Quarta Aula: A Estrutura de um Ensaio Filosófico O objetivo desta aula foi orientar os alunos acerca da formatação de um ensaio filosófico, apontando para as características que o diferenciam de outros modelos de redação. Foi entregue um material impresso com uma compilação de orientações sobre a escrita de um ensaio de filosofia. Para construir o material didático foram selecionadas as informações mais importantes e de fácil entendimento de dois diferentes manuais universitários para a redação de um ensaio filosófico: "Como Escrever um Ensaio Filosófico" de Artur Polónio (Sociedade Portuguesa de Filosofia), e “Filosofia: Textos fundamentais comentados.” Bonjour, L. & Baker (A. Porto Alegre, Artmed, 2010).` Aos alunos foi esclarecido que a prática do "fazer" filosófico exige um tipo diferente de redação, que envolve: "estabelecer distinções, esclarecer tantos os termos e conceitos, quanto o conjunto das reivindicações, argumentar a favor e contra essas assertivas, levar em consideração as objeções a tais argumentos, responder a tais objeções e assim por diante. Um bom ensaio filosófico envolve a expressão escrita de

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OLIVEIRA, Gabriela Dias. A Teoria dos Direitos Animais Humanos e Não-Humanos de Tom Regan. Revista Ethic@, Florianópolis, versão 3, número 3, página 289.

todas essas coisas."11 Foi explicado aos alunos que um ensaio é constituído de três partes principais, a saber, introdução, desenvolvimento (corpo do ensaio) e conclusão. Artur Polónio em seu manual fornece algumas dicas importantes sobre o que escrever em cada parte do texto, estabelecendo nove etapas para a construção da estrutura de um ensaio. As três primeiras etapas dizem respeito à introdução, da quarta à oitava etapa são consideradas as características do corpo do ensaio, e a nona etapa se refere à conclusão. Eis as nove regras para a construção de um ensaio filosófico: “1. Formule o problema. 2. Diga qual o objetivo do ensaio. 3. Mostre a importância do problema. 4. Identifique as principais teses concorrentes. 5. Apresente a tese que quer defender. 6. Apresente os argumentos a favor dessa proposição. 7. Apresente as principais objeções ao que acabou de ser defendido. 8. Responda às objeções. 9. Tire as suas conclusões.” 12 Um ensaio filosófico é caracterizado pela pretensão dar uma resposta a um problema da filosofia. Para que os alunos adquiram uma mínima compreensão sobre o processo de construção do texto se faz necessário uma breve introdução à natureza dos problemas filosóficos. Explicou-se que os problemas discutidos pelos filósofos são conceituais, isto é, dizem respeito à investigação sobre a caracterização e definição de conceitos. Ao contrário das ciências naturais (empíricas) e da ciência matemática (formal ou abstrata), não existe consenso absoluto entre os filósofos sobre a natureza dos problemas discutidos. Existe um consenso mínimo, que perdura entre a maioria dos filósofos, pelo menos até que alguém considere conhecer razões suficientes para contestar o consenso teórico vigente. Por exemplo, a maior parte dos filósofos aceita o argumento de René Descartes, expresso na Segunda Meditação do seu livro publicado em 1641. O famoso argumento ficou conhecido pelo nome em latim: “cogito, ergo sum”, que significa “penso, logo existo.” Descartes quer dizer que é razoável duvidar sobre a natureza do mundo exterior, porém, não é razoável duvidar sobre a própria existência. Deste modo, se algo nos engana, devemos existir para estarmos sendo enganados. Nunca teremos certeza se as aparências correspondem à realidade, mas se algo aparece em nossa experiência, então necessariamente existimos. Ora, os filósofos têm razão em discutir sobre a natureza da realidade, o que não faz sentido é duvidar da própria existência. Penso, logo existo. Porém, um filósofo alemão do século XVIII chamado Georg Christoph Lichtenberg questionou a teoria de Descartes. Lichtenberg defendeu que a existência de um pensamento não implica na existência de um indivíduo, isto é, a palavra “penso” pressupõe um sujeito pensante. Deste modo, Lichtenberg afirma que Descartes apenas provou que existem pensamentos, mas não provou a existência de um ser pensante. Conclui-se que, em geral, não há resposta definida para a maior parte dos 11

Bonjour, L. & Baker. Filosofia: Textos fundamentais comentados. Porto Alegre, Artmed, 2010, Apêndice I, página 753. 12 Polónio, Artur. Como Escrever um Ensaio Filosófico, Sociedade Portuguesa de Filosofia, página 4.

problemas filosóficos, isto é, ainda existe espaço para muita discussão. Aos alunos foi explicado que um ensaio filosófico deve ser escrito a partir de uma perspectiva investigativa, isto é, os alunos devem se colocar na posição de quem ainda está procurando por uma resposta. Últimas Aulas: Etapa de Revisão, Correção e Orientação Desde a primeira aula ficou explicitado que a redação de um ensaio filosófico exige um processo de revisão contínua, de modo que se torne necessário refazer o mesmo texto mais de uma vez. Os alunos começaram a escrever em casa a partir da segunda aula, e foi recomendado que eles entregassem o primeiro esboço tão cedo quanto possível. A razão disto é possibilitar uma orientação personalizada, de maneira que o aluno tenha mais tempo para refazer seu texto considerando os comentários do professor e o material auxiliar recomendado. Esta etapa do processo de aprendizagem envolve: correção gramatical e ortográfica; consideração de objeções suscitadas pelo educador; orientação sobre a estrutura mínima de um ensaio; recomendação de textos filosóficos ou informativos relativos ao posicionamento do aluno. Para compreender melhor a etapa final da produção de um ensaio, relatarei alguns casos de interação entre o bolsista PIBID e os alunos a partir do momento que foram entregues os primeiros textos. Um dos alunos escolheu abordar o tema dos direitos animais priorizando a discussão sobre a experimentação científica. O aluno defendeu que muitos dos avanços da medicina e da ciência foram originados a partir de experimentos realizados com animais. Porém, em sua defesa o aluno assumiu que “ainda não há como substituir o animal”. Neste caso, cabe ao educador informar que existem métodos alternativos para que se testem toxinas potencialmente perigosas, tais como a cultura artificial de células e tecidos humanos. Ao aluno foi entregue uma reportagem impressa sobre os métodos de substituição de experimentos científicos realizados em animais, e também foi recomendado um trecho do livro de Peter Singer, “Ética Prática”, que aborda a questão do especismo nestes casos. Outro aluno escolheu abordar o mesmo tema: direitos dos animais e os experimentos científicos. Porém, o estudante escolheu defender que os testes realizados em animais são imorais, visto que são desnecessários (este aluno pesquisou sobre os métodos de substituição). O texto do aluno não debatia diretamente a questão dos direitos animais, isto é, defendeu-se que os testes em animais são imorais, mas não foi explicado se a imoralidade se justifica a partir da tese de que os animais têm direitos. Ou seja, o aluno não se posicionou sobre a existência de direitos animais. Cabe ao educador perguntar: o que torna os testes imorais? Os direitos dos animais? Se sim, quais direitos dos animais são violados na prática da experimentação científica? Quais os critérios que fundamentam os direitos dos animais? Na introdução foi mencionada a possibilidade de “lapidar” as pré-concepções filosóficas dos alunos. O que são pré-concepções filosóficas? São alegações defendidas por qualquer indivíduo que, embora não esteja plenamente ciente do caráter filosófico

de seu argumento, abrange uma possibilidade de resposta a um problema filosófico. Por exemplo, um aluno escreveu em sua redação: “todo animal tem direito à vida, à liberdade e ao não sofrimento como humanos , seres mais evoluídos, líderes da cadeia alimentar, devemos cuidar e nos responsabilizar moralmente pela vida de outros animais.” Ora, em 1965 a escritora inglesa Brigid Brophy expressou um ponto de vista muito semelhante ao do aluno: “Não sustento serem os animais superiores ou equivalentes aos humanos. Toda a questão de nos comportarmos decentemente com relação a eles resulta precisamente do fato de que somos superiores. Somos a espécie capaz da imaginação, da racionalidade e das escolhas morais – e é isso que justifica o porquê de estarmos obrigados a reconhecer e respeitar os direitos dos animais.” 13 No que diz respeito à estrutura formal de um ensaio, as orientações aos alunos foram baseadas no material entregue na quarta aula. Além disso, ensinou-se que citações devem ser colocadas entre aspas, e que se o documento for escrito no computador, a letra deve ser escrita em itálico. Citações não podem ser utilizadas sem uma justificação razoável, isto é, não se deve citar sem explicar a função daquela citação. Todos os alunos que utilizaram citações em seus textos foram avisados que elas devem ser explicadas, de modo que o aluno expresse o seu entendimento sobre o trecho selecionado.

Conclusão Conclui-se que é possível realizar a prática da redação de ensaios filosóficos no Ensino Médio, porém, é necessário um constante e dedicado trabalho de revisão e orientação. O atendimento individual é fundamental para o desenvolvimento das habilidades de escrita, e o PIBID torna possível a realização de um trabalho desse tipo. A disponibilidade de quatro bolsistas e um professor para uma única turma permite a criação de grupos menores, que se reúnem tendo em vista um interesse comum. Deste modo, torna-se possível um trabalho incessante de correção, revisão e orientação. A divisão da turma em pequenos grupos facilita o atendimento personalizado do educador, que pode recomendar materiais específicos tendo em vista a perspectiva individual de cada aluno sobre o assunto. Possibilitar que o aluno escreva sobre um tema de sua preferência colabora para o interesse dos estudantes na realização da tarefa.

Referências: 1. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Volume 3 - Ciências Humanas e suas Tecnologias. Secretaria de Educação Básica, Brasília, 2006, página 30.

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Brophy, Brigid. The Rights of Animals. Sunday Times, 1965.

2. SAVATER, FERNANDO. Ética para meu Filho: Capítulo 1, “O que é ética?”. Tradução de Monica Stahel, São Paulo: Martins Fontes, 1996, página 20. 3. SAVATER, FERNANDO. Ética para meu Filho: Capítulo 1, “O que é ética?”. São Paulo. Martins Fontes, 1996. Página 28. 4. TOOLEY, MICHAEL. Os Direitos dos Animais. Tradução e adaptação de Pedro Galvão. Disponível em: Acesso em: 01 dezembro 2014. O texto original está disponível em: 5. SINGER, PETER. Ética Prática: Capítulo 3 “Igualdade para os animais?” Tradução de Jefferson Luiz Camargo, Martins Fontes, 2002, página 66. 6. Baggini, Julian. O Porco Filósofo – 100 Experiências de Pensamento para a Vida Cotidiana, Editora Dumara, 2006. 7. Adams, Douglas. O Restaurante do Fim do Universo. Pan Books 1980. 8. Aristóteles. Ética a Nicômaco (Livro I, 1098a). Martin Claret, 2004, página 27. 9. OLIVEIRA, Gabriela Dias. A Teoria dos Direitos Animais Humanos e NãoHumanos de Tom Regan. Revista Ethic@, Florianópolis, versão 3, número 3, página 289 10. Bonjour, L. & Baker. Filosofia: Textos fundamentais comentados. Porto Alegre, Artmed, 2010, Apêndice I, página 753. 11. Polónio, Artur. Como Escrever um Ensaio Filosófico, Sociedade Portuguesa de Filosofia, página 4. 12. Brophy, Brigid. The Rights of Animals. Sunday Times, 1965.

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