Experiência de vitimação e medo do crime em população da cidade do Porto (2013)

July 25, 2017 | Autor: Ana Sani | Categoria: Criminologia, Segurança Pública
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EXPERIÊNCIA DE VITIMAÇÃO E MEDO DO CRIME EM POPULAÇÃO DA CIDADE DO PORTO ANA SANI PROFESSORA ASSOCIADA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DA UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA, PORTO · PORTUGAL

CARLA NUNES Mestre em Psicologia Jurídica FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DA UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA, PORTO · PORTUGAL

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Resumo

Abstract

A insegurança e o medo do crime afectam negativamente a qualidade de vida dos indivíduos. Neste estudo em que participaram 288 indivíduos, de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os 17 e os 74 anos, concluímos através da Escala de Índice de Medo do Crime (IMC) de Brites, Miranda e Baptista (2004) que o grupo de indivíduos que teve experiência prévia de vitimação criminal apresentava níveis mais elevados de medo do crime.

Insecurity and fear of crime adversely affect the individual’s quality of life. In this study involving 288 individuals of both genders, aged between 17 and 74 years, we concluded by use the Crime Fear Index scale of Brites, Miranda and Baptista (2004) that the group of individuals who had previous experience of criminal victimization had higher levels of fear of crime.

Introdução

tenha assistido nas últimas décadas a um agravamento da criminalidade, principalmente dos crimes contra o património, alguns autores (Chesnais, 1981; Roché, 1993) encaram este aumento como uma das consequências mais perceptíveis das profundas e complexas mudanças sociais que distinguem as sociedades provocando um clima generalizado de ansiedade. A maioria dos estudos sociológicos insiste na distinção que deve ser operada entre insegurança e sentimento de insegurança. Se de um lado se tem demonstrado através da história que a violência física para com os indivíduos tem vindo a diminuir, numerosos indícios levam a constatar que o sentimento de insegurança, este continua bastante presente, com tendência a reforçar-se cada vez mais (Duprez, 1991). Robert (2007) após estudo acerca dos sentimentos descobriu que a insegurança e a vitimação mantêm uma relação complexa, passando o sentimento de insegurança a ser considerado como um objecto de estudo autónomo. Segundo o autor a percepção do crime, varia em função do grau de vulnerabilidade percepcionado por cada sujeito. A possibilidade de vir a ser agredido em certas idades, consideradas mais frágeis, bem como a possibilidade de uma agressão sexual causam em certos sujeitos graus de vulnerabilidade mais elevados.

A insegurança e o crime estão presentes no nosso dia-a-dia. Não nos é possível ignorar este facto, evidenciado pelos meios de comunicação através de notícias sensacionalistas. De um modo geral todos os cidadãos já foram vítimas de algum tipo de crime, ou conhecem alguém que já o foi. Dessa forma, o medo do crime afecta negativamente a qualidade de vida dos indivíduos e da sociedade. O crescimento do crime a partir dos anos 80 tem desencadeado vários estudos no sentido de medir os níveis de medo e estudar as características dos grupos sociais que apresentam níveis mais elevados (Machado & Agra, 2002). O medo do crime é um problema que prevalece na nossa sociedade. Pode delimitar actividades sociais de um indivíduo, afecta deslocações e outras actividades, causa stress psicológico e por vezes limita a liberdade individual de cada um se deslocar consoante a sua vontade. 1. Insegurança e Medo do Crime 1.1. Insegurança Podemos considerar o sentimento de insegurança como um problema maior do que a criminalidade em si, uma vez que este afecta um número bastante mais extenso de cidadãos. O sentimento de insegurança tem assumido uma relevância cada vez maior, devido a aspectos como o discurso social (Machado, 2004) e o sentimento de perda de controlo, associado muitas vezes à experiência de crime e respectivas consequências (Cusson, 1986). Todavia o crime não deve por si só ser percebido como motivo único do sentimento de insegurança e embora se

1.2. Medo do crime Desde 1960 têm sido desenvolvidas pesquisas sobre vitimização com o intuito de tentar medir o nível e a extensão do medo do crime. Tais pesquisas têm evidenciado que o medo do crime é um fenómeno generalizado e que está a aumentar em vários países europeus. Constatou-se que a percepção do crime tem relação com o risco objectivo de vitimação, pelo que o medo do crime passou a ser considerado como um problema em si mesmo (Hale, 1996). Esta problemática tem chamado a

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Construir a Paz: Visões interdisciplinares e internacionais sobre conhecimentos e práticas

atenção de numerosos autores de ciências comportamentais, criminais ou sociais, tornando-se uma das pesquisas mais exploradas em criminologia (Hale, 1996). Agra (2002) define o medo do crime em três teses: a tese objectivista, a tese construtivista e a tese subjectivista. A objectivista considera um nexo de causalidade entre medo e o crime, e nesse sentido, o aumento da criminalidade levaria ao aumento do medo. A tese construtivista considera o medo irracional atribuindo-o ao discurso sócio-político. A tese subjectivista designa uma associação entre os sinais de erosão físico-social do espaço urbano e o medo do crime. No seguimento desta evolução, nas últimas duas ou três décadas o “medo do crime” tornou-se num tema político com grande significância (Jackson, 2004). Como conceito, emergiu nos Estados Unidos no início dos anos 70. Foram a partir daí desenvolvidos diversos estudos, a fim de se perceber o porquê de certos indivíduos apresentarem maiores níveis de medo do crime do que outros (Cornelli, 2003). Numa perspectiva clássica, o medo pode ser encarado como uma resposta a algo, ou seja uma reacção do organismo a um objecto. Perante esta definição, o medo pode então ser entendido como algo que impede o sujeito de agir. Neste sentido, o medo pode ser considerado como uma reacção ao perigo, uma situação de causa e reacção a uma situação ameaçadora, sendo assim considerado como a causa e o objecto de estudo (Dias, 2006). O significado de “medo do crime” é explorado em psicologia e em diversas outras ciências sociais. A emoção de medo é considerada como uma experiência quotidiana comum para a maioria dos seres humanos. Por sua vez os criminologistas continuam a apresentar uma tendência ao isolamento ou segmentação de “medo do crime”, supondo que este difere de alguma forma elementar de outros medos comuns, tais como o medo de acidentes de viação, medo de cair ou medo de doenças. Não existem contudo provas de que o medo do crime é qualitativamente diferente de outras formas de medo, sendo apenas o objecto ou estímulo que o diferencia (Warr, 2000). 1.3. Medo do crime e experiência directa de vitimação Os indivíduos não são todos afectados da mesma forma pela violência, contudo essas diferenças podem estar relacionadas com algumas características prévias da vítima (Sani, 2002). Diversos estudos alertam para uma estreita relação entre vitimação e sentimento de insegurança. Frias (2004) verificou no seu estudo que os inquiridos que já tinham sido vítimas adoptavam mais comportamentos cautelares do que os que não o tinham sido, particularmente no espaço exterior. Cada indivíduo pode reagir de forma diferente, após ter sido vítima de um crime. Na origem dessa diferença encontram-se alguns factores, nomeadamente a natureza do crime, as características pessoais do autor e da vítima (idade, género, local de habitação e personalidade), entre outros. Os efeitos de um determinado episódio traumático variam em função da gravidade e tipo de crime (Dantas, Persijn, & Silva Júnior, 2006). Outros estudos adiantam que o género é delimitador, quer do tipo de exposição quer da experienciação de violência ou tipo de crime. De facto, os estudos têm evidenciado que quer as vítimas directas quer as vítimas indirectas, sofrem devido ao acontecimento traumático (Sani, 2002). Os criminologistas têm vindo a reconhecer a vitimação como sendo uma variável que influencia o medo do crime. Deste modo, ao nível da vitimação teremos que lidar não apenas com as vítimas de crime em geral (ex. assalto, roubo, furto…)

como similarmente com as vítimas do medo do crime, independentemente de já terem experienciado ou não algum tipo de crime. Estas últimas evidenciam um potencial de dano mais elevado, do que as vítimas do crime em geral, por causa do efeito de stress a longo prazo associado às mudanças de comportamento que afectam a qualidade de vida (Williams, McShane, & Akers, 2000). Duprez (1991) faz depender o impacto da vitimação no medo de outros factores, nomeadamente do tipo de crime, ou seja o medo aumentaria com a violência. Assim, a vitimologia veio clarificar que a intervenção sobre as vítimas ou eventuais vítimas, é ao mesmo tempo uma forma eficiente de prevenir a criminalidade, e consequentemente entender porque é que certas pessoas ou grupos sociais são vitimados com maior frequência do que outros (Gonçalves, Machado, Sani, & Matos, 1999). No entanto, a expansão do medo do crime pode ser associada, a questões acerca da vitimação mostrando ao longo do tempo a necessidade de demarcar os episódios “on-off” de um amontoar de incidentes. Existe ainda, a indispensabilidade, do reconhecimento do possível choque de longo prazo, de um único acontecimento traumático, no qual um indivíduo se sentiu singularmente débil. Nesse ponto de vista as primeiras experiências na vida são responsáveis pelas consequências das condutas delas decorrentes. Outra grande dificuldade com pendências de vitimação, refere-se às pesquisas quantitativas, as quais não exploram o sentido da experiência para a vítima. Assim, a vítima pensará poder afastar-se da vitimação imediata ou combate-la no futuro (Pain, 1995). O medo demonstrado após uma situação de vitimação em ansiedade e sentimentos de insegurança não são nem devem ser considerados como uma emoção ou percepção privada e idiossincrática, mas sim como um fenómeno com um impacto importante na sociedade e na qualidade de vida de todos os indivíduos (Berta et al., 2007). A diferença analisada entre a experiência real e o medo experimentado, tornou-se progressivamente numa questão de investigação independente (Robert, 2002). Contudo a apreensão com a avaliação do medo do crime é recente, não existindo ainda unanimidade sobre a forma mais correcta de medir essa variável. Os estudos existentes são na sua maioria qualitativos pretendendo esclarecer a definição do medo do crime e as dimensões por ele caracterizadas (Williams, McShane, & Akers, 2000). Os níveis de criminalidade têm subido e quanto mais espreita o medo do crime, mais se procura encontrar estratégias para o prevenir e evitar. A vitimação estende-se e a sua extensão é directamente proporcional à frequência dos crimes, bem como à insuficiência demonstrada pelas instituições para os combaterem. O medo por sua vez alcança uma expressão particular num mundo de incerteza profunda e uma vez instalado podese manifestar de diversas formas (Fernandes, 2002). Assim e apesar de décadas de investigação e debates, os pesquisadores ainda tentam esclarecer a definição de medo do crime. Este conceito tem sido comparado ao longo dos anos a uma multiplicidade de estados emocionais, atitudes e percepções (incluindo-se a desconfiança pelos outros, ansiedade, percepção de risco, o medo de estranhos, preocupação com a deterioração dos bairros e a preocupação com o decadência moral nacional) (Warr, 2000).

Vol 1. Família, Justiça, Social e Comunitária

2. Metodologia da Investigação

2.2. Instrumentos

Tendo em consideração o exposto, pretende-se apresentar um estudo empírico que teve como principal objectivo avaliar o medo do crime, focando três dimensões, nomeadamente as reacções fisiológicas, o sentimento de insegurança e vulnerabilidade e a sensibilidade diferencial e risco (variáveis dependentes), analisando ainda estas dimensões em função da experiência prévia de vitimação (variáveis independentes). O objectivo geral da investigação consistiu em avaliar o medo do crime numa amostra significativa da população da cidade do Porto. A análise focou três dimensões, a saber, reacções fisiológicas, o sentimento de insegurança e vulnerabilidade e a sensibilidade diferencial e risco. Posteriormente pretendeu-se analisar se poderão existir diferenças nas variáveis supracitadas em função da experiência de vitimação criminal dos indivíduos., tendo sido formuladas três hipóteses: 1) Prevêem-se diferenças estatisticamente significativas em função de já terem sido vítimas de algum crime ao nível das respostas fisiológicas. 2) Prevêem-se diferenças estatisticamente significativas em função de já terem sido vítimas de algum crime ao nível do sentimento de insegurança e vulnerabilidade. 3) Prevêem-se diferenças estatisticamente significativas em função de já terem sido vítimas de algum crime ao nível da sensibilidade diferencial e risco.

Para este estudo foi construído um questionário sócio-demográfico que pressupôs uma recolha de elementos que caracterizariam o participante, relativos à idade, ao género, ao local de trabalho, ao local de residência e à experiência prévia de vitimação, a qual seria posteriormente analisada em termos de distribuição demográfica para as variáveis sexo e grupos etários, tipologia de crime, o contexto espacio-temporal da agressão, a relação ofensor-vítima e atitude de denúncia face ao crime. A avaliação dos aspectos relacionados com a insegurança e medo do crime foi realizada através da Escala de Índice de Medo do Crime (IMC) de Brites, Miranda e Baptista (2004). Esta escala constituída por 24 itens, distribuídos por três componentes principais: factor 1 designado de Reacções Fisiológicas e composto por oito itens (1, 4, 7, 10, 13, 16, 19, 22); factor2 intitulado de Sentimento de Insegurança e Vulnerabilidade, constituído por nove itens (2, 5, 8, 11, 14, 17, 20, 23, 24); e Factor 3 nomeado de Sensibilidade Diferencial ao Risco e que inclui sete itens (3, 6, 9, 12, 15, 18, 21). A escala IMC é de tipo likert com 4 opções de resposta que variam entre Ø (Nunca ou quase nunca) e 3 (Sempre). A nota total da escala apresenta uma consistência interna, avaliada pelo Alfa de Cronbach de .89, assim como valores de consistência interna igualmente satisfatórios de .85 na dimensão Reacções Fisiológicas, .82 na dimensão Sentimento de Insegurança e Vulnerabilidade e de .76 na dimensão Sensibilidade Diferencial ao Risco (Brites, Miranda, & Baptista, 2004).

2.1. Participantes Os indivíduos participantes deste estudo foram reunidos de forma aleatória entre aqueles que residindo ou trabalhando na cidade do Porto, tivessem idades superiores a 16 anos. Assim constituiu-se uma amostra composta por 288 indivíduos, de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os 17 e os 74 anos, com média de 37 anos e desvio padrão de 14.71.No que concerne ao local de trabalho verificámos que 84% dos sujeitos (n=242) têm o seu emprego localizado na cidade do Porto, sendo que somente 16% dos participantes (n=46) trabalham fora da cidade. Porém, estes últimos têm residência na cidade em conjunto com muitos outros que no total perfazem 151 pessoas (52.4%). A restante percentagem de 47.6% correspondem a um total de 137 indivíduos que não residem na cidade do Porto. Paralelamente pareceu-nos relevante questionar, desde já, se tais sujeitos poderiam ter sido ou não vítimas de crimes em algum momento das suas vidas, tendo-se concluindo que 25% do total da amostra já foi vítima de algum tipo de crime. Podemos concluir assim que ¼ da nossa amostra já teve uma experiência directa de vitimação. Tabela 1. Distribuição dos participantes por local de trabalho e residência em função da experiência de vitimação (n=288) Experiência de vitimação

Local de Trabalho

Sim

%

Não

%

Total

%

No Porto

60

24.8

182

75.2

242

84

Fora do Porto

12

26.1

34

73.9

46

16

Total

72

25.0

216

75.0

288

100

No Porto

34

22.5

117

77.5

151

52.4

Local de Fora do Porto residência Total

38

27.7

99

72.3

137

47.6

72

25.0

216

75.0

288

100

Resultados Sendo a nossa amostra composta por 288 sujeitos, dos quais 145 são homens e 143 são mulheres, com uma média de idade à volta dos 37 anos e que trabalham ou habitam na cidade do Porto, percebemos que 72 indivíduos desta amostra tinham já experienciado a vitimação criminal. Nesta caracterização das vítimas de crime podemos ainda acrescentar que 49.7% (n=43) são indivíduos do sexo masculino e que 40.3% (n=29) são do sexo feminino. Em termos etários verificámos que o grupo que mais se evidencia na nossa amostra com experiência de vitimação é o grupo com idades compreendidas dos 26 aos 35 anos 29.2% (n=21), e o que menos se evidencia é o grupo com idades entre os 16 e 25 anos 8.3% (n=6) (Cf. Tabela 2). Relativamente aos crimes mais apontados pelos participantes, verificámos que 31.94% dos participantes vítimas de crime, foram vítimas de assalto (n=23), seguindo-se o assalto a viaturas 11.1% (n=8), e a agressão 8.33% (n=6) e o roubo 8.33% (n=6) como sendo os crimes mais participados.

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Tabela 2. Caracterização da amostra vítima de crime (n=72) S/resposta

Experiência de vitimação

Sexo

Grupos Etários

Quando ocorreu crime

Onde ocorreu crime

Como se encontrava Quem o agrediu Participou o crime

Tabela 3. Teste não paramétrico de Mann-Whitney para a variável relativa à experiência de vitimação criminal

n

%

Masculino

43

49.7

Feminino

29

40.3

16 aos 25 anos

6

8.3

26 aos 35 anos

21

29.2

36 aos 45 anos

17

23.6

46 aos 55 anos

11

15.3

56 aos 65 anos

9

12.5

Maiores de 66 anos

8

11.1

De dia

36

50.7

De noite

32

44.4

De dia e de noite

3

4.2

Em casa

5

7.4

Na rua

45

66.2

Outro

18

26.5

Sozinho

27

41.5

Acompanhado

38

58.5

Conhecido

3

4.8

Estranho

60

95.2

Sim

49

69.5

Não

22

30.6

n

-

Experiência de vitimação criminal

F1 - Reacções Fisiológicas F2 - Sentimento de Insegurança e Vulnerabilidade

-

F3 - Sensibilidade Diferencial ao Risco

Total 1

Sim (n=72)

Não (n=216)

U

p

177.58

133.47

5394.500

.010*

Sim (n=72)

Não (n=216)

U

p

169.90

136.03

5947.000

.015*

Sim (n=72)

Não (n=216)

U

p

174.79

134.40

5595.000

.008**

Sim (n=72)

Não (n=216)

U

p

176.97

133.68

5438.500

.012*

*p < .05 ** p
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