Experiência urbana através de Walter Benjamin e o conto \"A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro\" de Rubem Fonseca

July 3, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Walter Benjamin, CIDADE, Rio de Janeiro, Rubem Fonseca, RUBEM FONSECA LITERATURA CUENTOS
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Experiência urbana através de Walter Benjamin e o conto "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro" de Rubem Fonseca

Abraao Carvalho abraaocarvalho.com

RESUMO Pretendemos articular breves noções a respeito da figura do flanêur em Walter Benjamin, e a partir deste olhar acerca da vida urbana nas grandes cidades, promovemos um exercício interpretativo do conto "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro", do escrito brasileiro Rubem Fonseca. Neste movimento de interpretação do conto de Fonseca, procuramos nos fixar em alguns traços do personagem protagonista Augusto-Epifânio, e suas vivências urbanas em suas caminhadas pela cidade do Rio de Janeiro, como o trapeiro Benevides, e o mendigo radical Zumbi do Jogo da Bola. Palavras-chave: Rubem Fonseca, Rio de Janeiro, Cidade, Walter Benjamin, Filosofia, Literatura

“A televisão e a música pop tinham corrompido o vocabulário dos cidadãos, das prostitutas principalmente” Rubem Fonseca

Inicialmente, nosso horizonte de reflexão, se refere às condições históricas de sociabilidade, percepção sensível e memória, próprias àqueles que na cidade, quase não se vêem em outra condição histórica, desde a ótica de Benjamin, senão enquanto “devedores e credores, ...vendedores e clientes,...patrões e empregados”1. Sendo a sociedade capitalista moderna 1

Benjamin, “O flanêur”, p. 68.

1

assentada na permanência e na continuidade de privilégios para poucos e na exclusão2 de um grande contingente da comunidade humana, sobretudo à margem de tais relações que têm como centro aglutinador e intermediador, a mercadoria, ora enquanto força de trabalho, ou mesmo como produto resultante do trabalho alienado, possível historicamente desde a divisão técnica do trabalho.3 Ora, isto resulta no fato de que o homem urbano, crescentemente, encontra a efetivação da possibilidade de estar em meio à multidão desde o momento em que este é também um consumidor, é por entre as mercadorias que o passante urbano estabelece vínculos fragmentados e aparentes com os demais passantes do solo urbano. O tempo que marca o passo do andarilho urbano, ou mesmo o flâneur, na leitura

do

filósofo

Walter

Benjamin,

que

possui

seus

modos

de

ser

diferenciados, vai na direção contrária ao ritmo que marca a circulação de mercadorias e capitais. Desde a ótica de Benjamin, brada o andarilho que atravessa a cidade com o seu olhar interessado e distraído: “que os outros se ocupem dos seus negócios”4. À medida que atravessa a cidade, não sem desvios que irrompem abruptamente, o andarilho urbano do conto de "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro", de Rubem Fonseca, o personagem Augusto-Epifânio, que não se livra em nenhum momento de seu “Casio Melody”, vislumbra o aparecer e o mostrar-se do outro, deste ou daquele modo, que assim como no conto de Edgard Allan Poe “O homem da multidão”: “não se deixa ler”.

2

Por exclusão entendemos qualquer forma de negação, despotencialização, desrealização, ou mesmo ruína da existência humana, uma vez que a condição histórica da cidade moderna é atravessada por desigualdades sociais radicais.

3

Paradoxalmente, esta divisão técnica do trabalho, que em sua efetivação se torna cada vez mais especializado, com as bruscas transformações técnicas, ao invés de orientar uma perspectiva de maneira a reduzir a carga horária dos trabalhadores, sem redução de salário, enquanto alternativa de inclusão dos que estão à margem do mundo do trabalho, funciona como intensificador dos abismos sociais no mundo capitalista urbano, pois os dirigentes do capital optam pela perspectiva de demissão em massa e não redução das horas de trabalho. O que resulta em uma perspectiva, pré-ocupação, abertura ou interesse, de apropriação da ciência e da técnica, neste aspecto, enquanto meio de acumulação do capital.

4

Benjamin, “Sobre alguns temas...”, p. 122.

2

Nesta direção, encontramos na ótica do andarilho Augusto do conto de Fonseca, traços da perspectiva do “passeador solitário e pensativo”, que aparece em um poema em prosa de Baudelaire. Sobretudo, a ótica deste “passeador”, consiste em criar um fio de continuidade no raio histórico do que nomeamos

experiência

urbana

do

ocidente

contemporâneo.

Fio

de

continuidade este assentado em uma determinada reciprocidade entre solidão e multidão. É o que lemos no pequeno poema em prosa “As multidões”: “Aquele que desposa facilmente a multidão conhece gozos febris, de que estarão privados para sempre o egoísta, fechado como um cofre, e o preguiçoso, encaramujado feito um molusco. Ele adota como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que as circunstâncias lhe deparam.”5 Deste modo, o que é narrado no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de janeiro”, em nossa compreensão/apreensão, o que pode nos parecer paradoxal, consiste desde o olhar de Benjamin acerca de Baudelaire, nos “estilhaços da verdadeira experiência histórica”6. Pois, na tentativa de criar uma relação de reciprocidade com a cidade brasileira – “Augusto quer encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade.”- , o andarilho urbano de Rubem Fonseca conhece e se deixa conhecer pelo outro, que aparece e mostra-se deste ou daquele modo, não de outra maneira senão em fragmentos que irrompem desde o súbito acontecimento criado pelo gesto mesmo de caminhar e dialogar com modos de vida distintos. Algumas das possíveis alegorias do mundo urbano, que aparecem como o outro para o andarilho Augusto do conto de Rubem Fonseca, tal como Benevides, o trapeiro, e Zumbi do Jogo da Bola, partícipe da União dos Desabrigados e Descamisados, a UDD, consistem nos emblemas históricos de determinados aspectos da sociedade brasileira, que mesmo estando diante de 5 6

Baudelaire, “Pequenos Poemas em Prosa”, As multidões, p. 39. Em certa altura da sessão X acerca de alguns temas possíveis em Baudelaire, lemos a seguinte enunciação: “Baudelaire ainda dispõe dos estilhaços da verdadeira experiência histórica”, Benjamin, p. 137.

3

tempos modernos, ou mesmo pós modernos, não se vê livre da atuação de forças arcaicas, que ainda perduram com todo o seu vigor, maturado durante estes cinco séculos de exploração extremada e predatória do ser humano e dos recursos naturais. Benevides, “um preto que está sempre embriagado” 7 e vive em caixas de papelão “sob a marquise do Banco Mercantil do Brasil”, consiste no modo de vida tomado e afetado historicamente pela necessidade de sobrevivência que encontra na situação extrema de recolher os detritos materiais jogados ao lixo por uma cidade e seus subúrbios de grandes dimensões, a possibilidade de perdurar no espaço urbano atravessado por desequilíbrios habitacionais extremados, criados pela ocupação desordenada da cidade, possível desde a ausência do poder público no planejamento urbano. É o modo de vida que perdura em condições contrárias à vida. A embriaguez do trapeiro que sobrevive dos detritos “que vomita” a cidade, na expressão de Baudelaire no poema “O vinho dos trapeiros”, consiste na maneira encontrada por Benevides para ocupar o seu tedioso tempo, assim como, resistir e perdurar no mundo urbano, que no decorrer da história criou homens, segundo Baudelaire, “Roídos pelo trabalho e as tormentas dos anos”8. “Eu lhe disse. Quero conversar. E você só precisa me dizer o que quiser dizer”, diz Augusto na tentativa de criar algo da ordem da reciprocidade junto ao outro habitante urbano que subitamente mostra-se nas suas perambulações com a prostituta Kelly pela cidade carioca, no intuito de escrever o seu livro “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, redigido no período noturno após o dia

ocupado

pelo

caminhar

nas

ruas

distraído

e

interessado.

Reage

abruptamente o trapeiro embriagado, em um tom de desespero afetado pela cólera e pela desconfiança: “Presta atenção, bacana, a cidade não é mais a mesma, tem gente demais, tem mendigo demais na cidade, apanhando papel, disputando o ponto com a gente, um montão vivendo 7

Fonseca, Contos Reunidos, p. 612.

8

Baudelaire, “As flores do mal”, O vinho dos trapeiros, p. 120-121.

4

debaixo da marquise, estamos sempre expulsando vagabundo de fora, tem até falso mendigo disputando o nosso papel com a gente. Todo o papel jogado fora na Cândido Mendes aí em frente é meu, mas já tem nego querendo meter a mão” 9

O emblema do lugar onde sobrevive o embriagado trapeiro Benevides, a saber, em caixas de papelão embaixo de uma marquise em frente do Banco Mercantil do Brasil, na Rua Cândido Mendes, situada na cidade carioca, ecoa e evoca, uma situação histórica que atravessa a experiência brasileira, a saber, a coexistência recíproca entre extremidades opostas, que sobretudo ecoa a situação do cinema- templo. A arquitetura da Rua Cândido Mendes, mais precisamente, do local onde o trapeiro Benevides dorme diariamente, remete à situação histórica de traços e faces da cidade brasileira, atravessada por desequilíbrios habitacionais levados ao extremo. Assim como no cinema-templo, na Rua Cândido Mendes encontramos a mesma cumplicidade entre extremos opostos, que ao invés de estarem dispostos desde um confronto, coexistem harmoniosamente e reciprocamente. De um lado, as caixas de papelão que servem de moradia para o trapeiro Benevides, do outro, o reluzente e blindado Banco Mercantil do Brasil. Um consiste no emblema da ruína histórica da cidade brasileira, atravessada por desigualdades sociais radicais, o outro, consiste no emblema, em certa extensão, da acumulação e da especulação financeira capitalista. Neste sentido, os opostos aparecem e mostram-se na Rua Cândido Mendes, desde uma cumplicidade e reciprocidade comum ao cinema-templo. Mas de que reciprocidade estamos falando? Ora, quando o trapeiro Benevides afirma que “Todo papel jogado fora na Cândido Mendes aí em frente é meu”, indica, em certa extensão, a relação de reciprocidade e cumplicidade entre opostos, uma vez que é também na Cândido Mendes que se situa o Banco Mercantil do Brasil, que é responsável, não somente, por grande parte dos papéis recolhidos na Rua por Benevides para a comercialização. Essa perspectiva ecoa quando lemos esta fala do trapeiro: “Tem muito relatório 9

Idem, p. 613.

5

contínuo de computador, relatórios, coisas assim”. Continuando a sua travessia pela cidade carioca, no intuito de escrever o seu livro nomeado “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, Augusto encontra Zumbi do Jogo da Bola, do qual falamos há pouco. A sua reação, a um mundo assentado em abismos sociais, consiste em um risco mais elevado do que o de Benevides. Entretanto, cabe ressaltar, que assim como o trapeiro do conto de Rubem Fonseca, que no poema de Baudelaire aparece “movendo a fronte inquieta/ Ei-lo posto a jurar, ditando lei sublime/ Exaltando a virtude, abominando o crime”, ambos consistem nos emblemas do modo de vida que perdura na cidade brasileira em condições extremas de negação mesmo da vida. Neste sentido, Zumbi do Jogo da Bola, um dos pretensos organizadores da re-ação política coletiva nomeada UDD, consiste no modo de vida que caminha na direção contrária ao esfacelamento de uma possível linguagem e memória coletiva comum entre as gerações. A perspectiva ou o interesse de Zumbi, tal qual o de Zumbi dos Palmares que resistiu junto às comunidades negras quilombolas à violenta e extremada escravidão no Brasil, vai de encontro à fragmentação sócio-cultural própria ao raio histórico do que nomeamos experiência urbana brasileira. A perspectiva de Zumbi do Jogo da Bola consiste na necessidade da lenta efetivação e maturação na memória coletiva, através de uma possível ação política, na qual sejam emblemas valores sociais e culturais que possam ir de encontro à lógica que orientou e continua a orientar o alargamento dos desequilíbrios sociais e habitacionais. Corremos o risco, em certa medida, de nesta passagem criar uma leitura acerca do aparecimento de Zumbi do Jogo da Bola, que não encontre ecos no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, no entanto, o que nos abriu a possibilidade de encontrar esta interpretação foi a passagem no conto de Rubem Fonseca, onde acontece o diálogo entre Augusto e o pretenso organizador dos mendigos. Afirma Zumbi do Jogo da Bola:

6

“ ‘...É preferível a gente roubar do que pedir esmola’. ‘Vocês não têm medo da polícia?’ ‘A polícia não tem lugar para botar a gente, as cadeias estão repletas e somos muitos. Ela prende e tem que soltar. ...Eles tiram a gente da rua e a gente volta. E se matarem alguns de nós, e acho que isso vai acontecer a qualquer momento, e é até bom que acontece, a gente pega o corpo e exibe a carcaça pelas ruas como fizeram com a cabeça do Lampião.’ ‘Você sabe ler?’ ‘Se não soubesse ler estava morando feliz dentro de uma caixa de papelão apanhando restos’ ”(Rubem Fonseca, Contos Reunidos, p. 624).

Augusto,

o

andarilho-escritor,

tomando

conhecimento

através

de

Benevides, de um certo “sujeito que estava organizando os mendigos” 10, caminha até a Rua do Jogo da Bola, tendo como interesse dialogar com o tal sujeito, na sua tentativa em “estabelecer uma melhor comunhão com a cidade”. Após se apresentar enquanto escritor de um livro nomeado “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” e ser revistado por um dos homens que acompanhavam Zumbi do Jogo da Bola, este subitamente o leva até o beco “Escada da Conceição” para que possa enunciar a perspectiva da UDD para o andarilho pacífico. “Nós não pedimos esmola, não queremos esmola, exigimos o que tiraram da gente...É preferível roubar do que pedir esmola”, afirma Zumbi com veemência. Assim como lemos nesta passagem do conto de Rubem Fonseca, "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro": “‘Nós não pedimos esmolas, não queremos esmolas, exigimos o que tiraram da gente. Não nos escondemos debaixo das pontes e dos viadutos ou dentro de caixas de papelão como esse puto do Benevides, nem vendemos chiclete e limão nos cruzamentos’. ‘Correto’, diz Augusto. ‘Queremos ser vistos, queremos que olhem a nossa feiúra, nossa sujeira, que sintam o nosso bodum em toda parte; que nos 10

Contos Reunidos, Fonseca, p. 612.

7

observem fazendo nossa comida, dormindo, fodendo, cagando nos lugares bonitos onde os bacanas passeiam ou moram. Dei ordem para os homens não fazerem a barba, para os homens e mulheres e crianças não tomarem banho nos chafarizes, nos chafarizes a gente mija e caga, temos que feder e enojar como um monte lixo no meio da rua. E ninguém pede esmola. É preferível a gente roubar do que pedir esmola’”(FONSECA,Contos Reunidos, p. 623).

Referências



BENJAMIN, W. Obras escolhidas v. I: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.



__________ Obras escolhidas v. III: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994.



OLIVEIRA, B. “A ótica da rua carioca: lendo Rubem Fonseca através de Benjamin e Baudelaire.” In Alea: Estudos Neolatinos. Rio de janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2000.



BRITO, B. Lógica do Disparate. Vitória: Edufes; CCHN Publicações, 2001.

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