Experiências práticas na utilização da Arte (Palhaço, Teatro e Fantoche) para a diminuição da violência e construção de Cultura de Paz
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Experiências práticas na utilização da Arte (Palhaço, Teatro e Fantoche) para a diminuição da violência e construção de Cultura de Paz1 Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann2 Luís Eduardo Souza Oliveira Ramos3 Suerda Gabriela Ferreira de Araújo4 RESUMO A prática artística como instrumento de pacificação e de viabilização de Cultura de Paz pode ser vista, teoricamente, em diversos textos, que tem se tornado mais visíveis recentemente. Apesar disso, é uma conexão vista com estranheza, especialmente por parte dos acadêmicos de Relações Internacionais, ainda mais se as ações se dão em contexto local aproximado. Por outro lado, os Estudos para a Paz têm dado ênfase a essa abordagem, de forma às vezes metafórica e indireta, às vezes nem tanto, principalmente devido à chamada Virada Local, abordagem com o nível de análise na comunidade e que vem ganhando importância na área. Assim sendo, esse estudo visa apresentar alguns aspectos da teoria dos Estudos para a Paz, indicando a necessidade de preparação da atuação, por meio da observação mais aprofundada, identificando as formas possíveis e desejáveis de atingir a Cultura de Paz por meio da Arte, diminuindo a violência. Por fim, como estudo de caso, será abordada a atuação de um projeto de extensão universitária que tem buscado essas dimensões – focado numa escola há duas quadras do local da Universidade –, explanando as dificuldades, formas de atuação (principalmente por meio do palhaço, do teatro e do fantoche), bem como erros, acertos e a receptividade da comunidade escolar. Palavraschave: Arte. Construção de Paz. Palhaço. Teatro. Fantoche. ABSTRACT The artistic practice as a peacemaking tool and as an enabling culture of peace can be seen theoretically in several texts, which has become more visible recently. Nevertheless, it is 1
Apresentado pela primeira vez no IX Encontro da Associação Brasileira dos Estudos de Defesa, no Painel Estudos de Paz e Estudos Críticos de Segurança: análises transversais sobre violência e conflito, no dia 08 de Julho de 2016, em Florianópolis, SC. Foi aprimorado tanto na parte teórica como prática por Suerda e Luís e Suerda. 2 Doutor em Ciência Política (USP), Coordenador Adjunto do Programa de PósGraduação em Relações Internacionais da UEPB, Coordenador do Projeto de Extensão PUA e do Grupo de Estudos de Paz e Segurança Mundial (GEPASM), membro da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos em Segurança (PCECS), clown Mancada Obom, manipulador e confeccionador de mariotes. Atua na Escola Municipal Santa Ângela, com projetos lúdicos e artísticos com as crianças, sensibilizações para a Cultura de Paz com os profissionais, inserindo ferramentas como o círculo de diálogo, e futuramente a mediação, e a justiça restaurativa, dentre outros métodos, principalmente a cultura de paz por meio da arte. 3 Mestre em Sociologia (UFPB), Bacharel em Relações Internacionais (UEPB), Exbolsista do PUA, membro do GEPASM, professor de artes, membro da Trupe Arlequim, clown Bam Bam. 4 Mestranda e Bacharela em Relações Internacionais (UEPB). Exbolsista do PUA, membro do GEPASM e da Rede PCECS, clown Sussa. Atua na Escola Municipal Santa Ângela.
observed as an accord connection, especially by the International Relations scholars, even if the actions are given in approximate location context. On the other hand, the Peace Studies have emphasized this approach, metaphorically and indirect sometimes so, sometimes not so much, mainly due to call Local Turn, approach the level of analysis in the community and that has gained importance in area. Therefore, this study aims to present some aspects of the theory of Peace Studies, indicating the need for preparation of the operation, through further observation, identifying the possible and desirable ways of achieving a Culture of Peace through Art, decreasing the violence. Finally, as a case study, it will be addressed the role of a university extension project which has sought these dimensions focused in a school two blocks from the site of the University , explaining the difficulties, forms of action (mainly through the clown, theater and puppet), and errors, successes and the receptivity of the school community. Summary: Art. Peacebuilding. Clown. Theater. Puppet. Introdução A conexão de arte com Construção de Paz, ou Resolução de Conflitos pode ser considerada como recente, já que um livro de referência, de Ramsbotham, Hugh e Miall, só acrescentam um capítulo incluindo essa temática no ano de 2011. A edição anterior, de 2005, nem se referenciava a isto. Curiosamente, o assunto é tratado juntamente com Esportes, e o capítulo é reduzido. Da mesma forma, a abordagem da emancipação humana (tema de grande relevância para o desenvolvimento da presente pesquisa) por autores como Paulo Freire e Augusto Boal , que buscam este caminho pelo desenvolvimento da expressão autônoma do sujeito, muitas vezes é visto com estranheza, no meio dos estudos de Relações Internacionais, Estudos de Segurança e Estudos de Paz, mesmo que o assunto seja tema de pesquisas de grandes Escolas como a Escola de Frankfurt, entre pensadores de áreas como Filosofia ou Sociologia, mas também dentro das Relações Internacionais no campo da Segurança Internacional. O que torna a ligação entre arte e cultura de paz um assunto sensível é o âmbito que as artes tem de empolgar corações: no geral, a arte apenas alcança um grande público através da indústria cultural em manifestações como os filmes hollywoodianos, por exemplo, ou produções musicais e/ou televisivas que alcançam muitas pessoas de diversas partes do mundo.
Portanto, o nível de análise condiciona a exclusão da temática da arte como parte dos campos de estudo, mas na verdade, depende de que linha teórica cada vertente de estudo, ou os estudiosos, dentro dela, se encaixam. Se pensar as relações humanas em âmbitos locais como parte da lógica dos Estudos para a Paz e de Segurança Internacional, por meio dos Estudos Críticos de Segurança, com as abordagens galesas (Ken Booth, principalmente), e as abordagens dos Estudos para a Paz (já focadas no âmbito local, e mais ainda depois dos estudos de Construção de Paz pela Base (Peacebuilding from below) e da Virada Local (Local Turn)), teremos então tranquilidade teórica em apresentar essas abordagens. Sendo assim, considerar, em particular, o movimento epistemológico oriundo da Virada Local, facilita a análise, posto que assume o local não como uma lacuna, que precisa ser preenchida, mas o observa a partir do que já possui, do que já se tem, seja no âmbito das relações de poder, culturais, sociais, conflitivas (negativas e positivas), de linguagens, e outras, no intuito de, nesta perspectiva questionar ‘o que é que dá pra fazer’ em lugar de ‘o que é que falta naquele local específico’. A construção da paz baseada numa abordagem local faznos mudar a pergunta norteadora das ações concretas em campo, de modo a reconhecer a não neutralidade do espaço, seus movimentos, dinâmicas vivas e seu papel de agência. Da mesma forma, e ainda mais especificamente, imaginando que os Estudos de Paz, preferencialmente chamados por alguns (como Pureza e Cravo) de Estudos Para a Paz, significam um olhar ético, direcionado, e que procura atingir algo mais além de tinta em papel, ou discussões em salas de aula. O objetivo de buscar a emancipação das comunidades locais necessita de prática, ensaio e erro, tentativas de abordagem de visões de mundo diferenciadas, ainda que essas comunidades estejam a duas quadras do local da universidade. Portanto, tratar de problemáticas de violência em âmbito local próximo faz parte dos Estudos de Paz, e se houver necessidade, para os mais “tradicionais” dos Estudos de Segurança, de justificar o estudo e a aplicação em comunidades próximas, podese questionar como alunos, graduandos, mestrandos, acadêmicos, irão falar de aplicação de atividades artísticas transformadoras, ressiginificadoras, reparadoras e emancipadoras em comunidades africanas, se esses aplicadores nem sequer sabem abordar pessoas de classes, bairros, religiões e visões de
mundo diferentes das suas, ainda que vivam em localidades muito próximas à sua moradia ou local de estudo? Para este trabalho será discutida, inicialmente, a importância e o protagonismo do uso da arte em contextos sociais para associálo a algumas perspectivas teóricas que, de forma resumida, serão apresentadas e que servem como base para a atuação do Projeto Universidade em Ação – PUA, sendo eles os Estudos de Paz; Virada Local e Emancipação Humana. Em seguida, será relatado experiências práticas do grupo que utilizam a arte do palhaço, o teatro e fantoches como ferramentas lúdicas de atuação.
Além disso, ou melhor, indo mais a fundo, esse estudo visa ser uma abordagem que aumente o escopo dos estudos de Segurança e Paz, tanto teórica como praticamente, já que conceitos são significados em confronto (BOOTH, 2005, p. 101), e aqui vamos nós para aumentar o espaço desses estudos de abordagem local e artística. Arte e construção de paz na localidade A arte tem um potencial tremendo, tanto é que nos países de regimes autoritários ou totalitários, os artistas são um dos grupos que ficam na mira da repressão política. Textos, músicas e peças de teatro são censurados, artistas são enclausurados ou exilados, já que, junto com os pensadores, representam um perigo pelo lado simbólico e impactante que tem na sociedade.
Portanto, é até engraçado pensar que há dificuldades em se entender como a arte pode ser
relevante na construção de paz, já que a arte tem sido utilizada para exaltar ânimos e levar pessoas à guerra ou à revolução. O filme Encouraçado Potemkin mostra o cinema a serviço de uma ideologia de Estado, com vistas a inocular, nos assistentes da película, sentimentos de ódio e de mudança de pensamento.
Por outro lado, parece que é mais fácil pensar a arte na utilização para despertar o ódio, o
desprezo ao outro, ou para assumir um ponto de vista revolucionário do que utilizála como transformadora de comunidades em crise, capaz de trabalhar entre os afetados e seus adversários a sua realidade interdependente, a partir da representação dos eventos e não dos eventos reais em si (COHEN, 2003). A arte, o marketing, as imagens e o cinema, como ditos acima, também servem às ideologias e aos Estados. É fácil perceber as campanhas xenófobas e nacionalistas, que
compunham o adversário como animalesco e desprezível, por meio de representações gráficas. Atuar no imaginário da população e dos soldados, com o intuito de desumanizar e possibilitar a criação do desejo de destruir o inimigo, são constantes na lógica dos conflitos entre Estados (interestatais). Todavia, como afirma Lederach (1997), a construção da paz tem âmbitos, que vão desde as elites até as estruturas locais. Desprezar isto é imaginar que um pacto negociado por líderes estatais, ou por lideres de facções em confronto no interior de Estados (intraestatal), resolverá os problemas de animosidade. Isto faz parte de uma visualização simplificadora da realidade, que despreza as comunidades humanas, de onde, muitas vezes, foi que surgiu o conflito. De outra forma, ainda que a lógica dos pactos seja fundamental, e os acertos entre as elites influenciem na vida cotidiana comunitária, observase que, muitas vezes, entre o caos vivido pelos países extremamente violentos, algumas ilhas de paz, espaços regulados, âmbitos pacíficos, são criados, independente de estruturas hierárquicas, ou de grandiosos tratados ou pactos. Pensar estas e outras localidades no processo de construção da paz é um desafio profundamente difícil. Isso é compreendido não a partir de possíveis críticas ortodoxas, descrentes ou questionadoras, a cerca do papel do local na área das Relações Internacionais e Estudos sobre Paz e Segurança, mas pela tentativa de entendimento sobre o que vem a ser ‘local’, uma vez que “a perspectiva de que ‘o local’ não pode ser local em tudo, mas transnacional ou global, baseado [não só] em relações de parentesco” (HUGHES; ÖJENDAL; SCHIERENBECK, 2015, p.821, tradução livre), mas também por dinâmicas comerciais e relações de “ocupação, religião ou lazer, mediados pela interação direta entre os organismos móveis, ou através de vários tipos de mídia” (idem, grifos nossos) problematiza o conceito ainda mais, rompendo com a limitação geográfica, costumeiramente, a ele atribuído. Logo, não apenas a forma como o ‘local’ se apresenta importa, mas sobretudo, como dáse a interação capaz de construir ‘locais’. Dada a multiplicidade de atores possíveis, não seria errôneo, portanto, considerar contatos interativos, mediados pela arte e comunicação criativa em localidades aproximadas, uma ‘estratégia concreta’ e um exercício ‘socialmente produtivo’, que “produz reflexos na vida
social, política, econômica e cultural das sociedades” (PUREZA; CRAVO, 2015, p. 8). Isso reverberase, em certa medida, aquilo que é por função prática dos Estudos Para a Paz, e, ao mesmo tempo, subverte os ideais liberais de democracia e das economias de mercado pensadas, em meados dos anos 1990, a cerca da promoção da paz (LEONARDSSON; RUDD, 2015; PAFFENHOLZ, 2015), a qual muniase de uma limitada caixa de ferramentas, quais sejam: diplomacia formal, mediação e implementação de acordos, estratégias militarizadas e topdown, ofertadas especialmente pela Organização das Nações Unidas (ONU). Esta, conforme utilizada, demonstrouse insatisfatória ao se observar os resultados das operações de paz que negligenciavam o poder de agência e sabedoria local (idem; LEDERACH, 1997; RAMSBOTHAN; WOODHOUSE; MIALL, 2005), a fim de efetivar um modelo de construção da paz normativamente liberal (PAFFENHOLZ, 2015). Nessa perspectiva, estamos certos de que “o melhor recurso para manter a paz a longo prazo está sempre enraizado no local, no povo e sua cultura” (LEDERACH, 1997, p.94, tradução livre). Tamanha é a verdade que, tornase perceptível que os atores locais são “os principais arquitetos, proprietários e partes interessadas a longo prazo” (RUPESINGHE, 1995, p.81, tradução livre) do processo da transformação do conflito, demonstrando assim, a necessidade de se desenvolver ‘pacificadores locais’ (WOODHOUSE, 2010; LEONARDSSON; RUDD, 2015), capazes de influir positivamente em suas estruturas e dinâmicas socioculturais, alterando as já estabelecidas ou construindo novas, inclusive por meios não tradicionais e criativos. É possível traçarmos um paralelo entre a importância atribuída aos atores locais como principais agentes transformadores da realidade com a forma de pensar emancipatória. A ação dos agentes locais busca a transformação dos conflitos internos para que se tenham maiores possibilidades de desenvolvimento de vida livre de ameaças ou constrangimentos. Neste sentido, existe uma correlação entre segurança e emancipação que é traduzida por essa ausência de impedimentos sociais para que um indivíduo possa se desenvolver. Para Booth, a emancipação humana: é a libertação das pessoas (como indivíduos e grupos) a partir desses constrangimentos físicos e humanos que lhes impedem a realização de que eles iriam escolher livremente fazer. Guerra e ameaça de guerra é uma dessas restrições, juntamente com a pobreza, a educação deficiente, opressão política e assim por diante. Segurança e emancipação são dois lados da mesma moeda. Emancipação, não o poder ou ordem, produz a verdadeira segurança. Emancipação, teoricamente, é a segurança [Tradução do autor] (BOOTH, 1991, p. 319)
Portanto, a construção da paz em âmbitos locais é fundamental, e podese valer, para sua estruturação, de representações artísticas que criem novas formas de humanizar o inimigo demonizado, criar conexões entre anteriores beligerantes, reconciliar partes cindidas, não importa se por etnias, religiões, ou quaisquer outras divisões existentes. Dessa maneira, imaginar formas diferentes de construção de paz nas localidades são fundamentais, e a experimentação é algo necessário, pois a cultura de paz tem que atingir antes o pacificador, suas lógicas, sua vida pessoal, bem como suas formas metafóricas de visualizar o mundo. Além disto, a “ciência” tem separado a mente do corpo, bem como também a razão das emoções, e é fácil entender que muitas vezes a arte na construção de paz é vista com desconfiança. Por isto, buscarseá, neste trabalho, desenhar práticas realizadas principalmente no ambiente escolar, de uma escola situada em ambiente violento, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Ângela, próxima ao Campus V da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) a qual o Projeto Universidade em Ação (PUA), cujos membros desenvolvem essas práticas lúdicas, está vinculado. Não à toa, entendemos a violência como influenciadora e limitadora das realizações efetivas, somáticas e mentais dos indivíduos, a tal ponto de dispôlos aquém de suas realizações potenciais (GALTUNG, 1969, p.168). Tal conceituação aplicada à alunos frequentadores do ensino fundamental (1º ao 9º ano) da escola, ora abordada, nos obriga a considerar a especificidade de sua capacidade potencial de ação, quer seja educacional, de aprendizagem ou relacional, a qual reside na atividade do brincar e do exercício lúdico do sujeito, haja vista seu uso frequente e influência comportamental dela derivada (VYGOTSKY; LURIA; LEONTIEV, 1994). Se por um lado, impedir, dificultar, ou negar a realização de necessidades humanas, motiva negativamente os conflitos e animosidades, por outro, saber lidar com elas é vital e, no âmbito escolar, contextualizálas é de fundamental importância. Isso que significa assumir a
brincadeira e ludicidade à ela inerente, como produto cultural e societal prevalente em dado espaço. A prática artística pode ser vista como algo que deve considerar as diferenças culturais, mas também muitas vezes se entende que algumas práticas tem aplicação universal. Como pensar o riso, e suas diferenças culturais, por exemplo? Mas a prática, em diversos ambientes, desde uma praça, a um picadeiro, um hospital, creche, asilo de idosos, bem como numa escola, providencia a flexibilidade na capacidade de atuação e de improvisação, que facilitará a atuação do artista construtor da paz em qualquer ambiente, continente, ou âmbito violento. Esta é nossa crença e nossa prática. Atuação dos Palhaços O início do grupo teve forte influência da linguagem clown, um palhaço formado na rua e no teatro, dentro da lógica de Jacques Lecoq. Alguns membros do grupo haviam participado como palhaços cuidadores, em hospitais, ainda que brevemente, e feito alguns cursos de palhaço. A proposta era trazer essa linguagem para o bairro, crendo, ainda empiricamente, que o clown poderia diminuir a violência e trazer a segurança humana. As primeiras atuações do grupo foram num asilo de idosos, a ASPAN (Associação Promocional do Ancião Dr. João Meira de Menezes). Ali, podese notar a dificuldade de entrar em contato com a velhice, o abandono, e o constante esperar pela morte, já que em um asilo, os próximos não têm idades diferentes, e encontramse todos sem atividade, olhando para seus companheiros, na fila para o final comum de todas as pessoas. Fazer rir sem poder chorar, animar pessoas às vezes em avançado nível de decrepitude, e muitas vezes, de falta de lucidez. Foi uma preparação muito importante, para trabalharmos a empatia, a escuta e a ludicidade para pessoas que só vivem esperando o tempo passar. Posteriormente, visitamos uma creche, e todo o grupo encontravase com medo, porque não estávamos acostumados a brincar com as crianças, que demonstram uma energia e vitalidade incríveis, o avesso da situação do asilo de idosos. Propusemos algumas brincadeiras, mas nos sentimos deslocados e desajustados, encontrávamos em ritmos e velocidades de respostas diferentes, apesar dos administradores da creche terem agradecido e elogiado nossa ação de
acordo com a sensação deles e das próprias crianças, como nos foi relatado ao término da intervenção. Fomos em diversos outros locais da comunidade (Mercado Público, Núcleo de Acolhida Especial, Escola Municipal Tiradentes, Unidade de Acolhimento InfantoJuvenil) e fora dela (Presídio Feminino, Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira, Asilo Vila Vicentina), todos eles nos surpreendendo de alguma forma. O presídio feminino foi uma atuação muito diferenciada, já que a apresentação se deu em frente a cada cela, ou seja, o “espetáculo”, ou a interação se dava em um espaço restrito, que separava palhaços do “público” com uma grade. Esse momento foi de grandes descobertas, e a criatividade de como interagir manifestavase como um grande desafio. Ainda pensávamos em realizar números para apresentar aos espectadores, e nesse caso, uns apresentaram pequenos “números”, e outros realizaram interações espontâneas na frente das celas. Em meados do ano de 2013, a Rede Crer Ser5, por intermédio de Teomary Alves, principal articuladora, orientounos a trabalhar na Escola Santa Ângela, que se encontra a duas quadras da universidade. A primeira apresentação também contou com o receio de todos os participantes, que buscaram apresentar números diversos aos alunos. A chegada na escola foi interessante, porque o som não funcionava, para começarmos a apresentação e a interação teve de ser improvisada diretamente com as crianças, independente do planejamento anterior. Foi
perceptível que, com alguns membros do PUA, muitos contatos iniciais eram de (i) afrontamento por parte das crianças na tentativa de demonstrar poder dominante, seja na socialização e busca por atenção, ou em relação ao objeto que o clown portava, inclusive o nariz; e quando não, de (ii) recompensa na esparança de obter um balão de ar, pirulito ou similar, a qual alguns clowns subvertiam a expectativa ofertando um abraço acalorado, costumeiramente aceito, alguns com fortes ressalvas na intensidade, outros nem tanto. Posteriormente a isto, um grupo de pessoas do PUA começou a visitar a escola, para ver como funcionava a recreação deles. Notouse que não haviam muitos recursos para brincar, muitas crianças ocupavam uma pequena quadra, e chutavam garrafas pet. Na verdade, a quadra
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Criada em 2005, é uma rede de articulação local que reúne e integra as escolas públicas dos bairros Cristo e Rangel, ONGs focadas no protagonismo juvenil, CRAS, Centros da Cidadania e de Juventude, Associações e lideranças religiosas.
ainda é um local de predominância masculina, onde se joga futebol e as meninas são excluídas do jogo, mas também os meninos que não gostam de futebol e não encontram outra possibilidade de utilização desportiva da quadra, ficando, assim, apenas sentadas nas arquibancadas. Após um período de inconformismo de algumas pessoas da escola, por não termos proposto nada de concreto, começamos a frequentar o recreio na condição de clown. Inicialmente, dos poucos que realizavam essa atividade, semanalmente, poucos tinham algum curso na área, mas a ideia era brincar, trabalhar o lúdico, nada muito estruturado. O que acabava acontecendo é que cada pessoa encontrava sua forma de interagir com as crianças, algumas agiam como clowns (interagiam como palhaços de rua, criando interações improvisadas a partir do contato e reação das crianças), outras como brincantes (brincadeira de roda, pular corda, carregar crianças nas costas, dentre outras), e algumas conversavam com as crianças mais tímidas, que ficavam nos cantos. Um fato inusitado foi observado pelos professores e gestores da escola: os alunos ficavam mais calmos, quando iam para classe após o recreio, e começaram a respeitar mais as normas, porque para brincar, tem que ter um pouco de organização. Além disso, tais intervenções clown, quando sofreram redução na frequência, passando de semanais para quinzenais, foi muito sentida pelas crianças, posto que, segundo a direção escolar, já aguardavam com ansiedade as “sextasfeiras dos palhaços”. Trabalhar com o lúdico fez com que ânimos internos da escola fossem suavizados: a princípio, as brincadeiras eram mal vistas por alguns funcionários da Escola que acreditavam que o excesso de liberdade (diversão) dada às crianças ao interagirem com os palhaços, as deixariam muito mais “incontroláveis”. Essa “manutenção da ordem” ainda é a grande preocupação de muitos funcionários da Escola. Trabalhar o lúdico permite que as crianças, além de gastarem grande energia que fica acumulada entre os confinados espaços da escola cercados por muros e grades, assimilem melhor questões como coletividade e raciocínio, o que reflete em seu desempenho nas salas de aula. Grande resultado também deste tipo de atividade é a nossa aproximação com as crianças, uma vez que estão acostumadas a interagir com os demais funcionários apenas por intermédio de ordens e regras, muitas vezes, agressivas de ambas as partes.
Além disso, os próprios jogos e brincadeiras propostas trazem consigo um grande exercício de entendimento e assimilaçao de regras, algo próximo à imporância dos jogos teatrais para Viola Spolin. Segundo a autora, No jogo teatral, por meio do processo de construção da forma estética, a criança estabelece com seus pares uma relação de trabalho em que a fonte da imaginação criadora o jogo simbólico é combinado com a prática e a consciencia da regra do jogo, a qual interfere no exercício artístico coletivo. O jogo teatral passa necessariamente pelo estabelecimento do acordo de grupo, por meio de regras livremente consentidas entre os parceiros. O jogo teatral é um jogo de construçao com a linguagem artística. Na prática, com o jogo teatral, o jogo de regras é o princípio organizador do grupo de jogadores para a atividade teatral.
Entretanto, a partir de uma certa idade, algumas crianças, não tão crianças, começam a ter vergonha das brincadeiras, porque já são préadolescentes. Algumas vezes, conseguimos quebrar essa resistência, e elas se traem, mostrando seu lado criança ainda existente. Uma possibilidade de trabalhar o lúdico com adolescentes é através de dinâmicas e jogos teatrais ou com a oferta de cursos de clown. Realizamos um curso com adolescentes, já no ensino médio, na Escola José Lins do Rego, onde a universidade está situada no momento, com quatro alunas do ensino médio, duas universitárias e um professor, como aprendizes, e foi muito proveitoso. Primeiro, porque elas perceberam que todos eram iguais, em passar pela dificuldade de fazer os outros rirem, depois, por descobrirem que elas eram maravilhosas do jeito que eram, com suas possibilidades e limitações, e que ver a vida pelo viés cômico pode ser libertador. Há ainda um grande campo de descobertas que será vasculhado. A nossa proposta de arte clownesca é de um palhaço diferenciado, voltado para o social, para o afloramento de novas habilidades relacionais, restaurador de um senso de humanidade comum que utiliza a arte de forma transformadora e libertadora. Teatro A experiência do teatro, com o PUA, foi marcante. A partir de um convênio com a Fundação Fulbright, foi possível trazer Cynthia Henderson, do Projeto Performing Arts for Social Change – PASC, em agosto de 2015. Uma pessoa muito querida, que ajudou na
formulação do PUA (Ana Carina Rodrigues) nos apresentou Cynthia, porque a conheceu no Equador. A partir disso, trouxemos ela para João Pessoa. A ideia de trabalhar o teatro com o grupo foi na busca de introduzir mais um tipo de expressão, ainda mais com a abordagem de explorar a mudança social e a construção da paz. Um pouco constrangedor trazer uma norteamericana para ensinar algo parecido com O Teatro do Oprimido desenvolvido pelo dramaturgo e diretor Augusto Boal (que, inclusive, é uma das referências de Henderson), mas que acabou sendo uma experiência enriquecedora em todos os sentidos. Para o curso, foi realizada uma pesquisa em que os membros do curso construíram personagens para serem encenados que eram as próprias vítimas da comunidade, o que fez com que estes, dentro do espaço cênico, tivessem voz para relatar suas versões de dor e sofrimento. Fazer um curso com alguém traduzindo o tempo todo, ter o grupo dirigido e conduzido na construção de monólogos que significavam algo de importante, em relação à violência e à comunidade circundante, e apresentar a peça em duas escolas, nos dois bairros próximos à universidade, as escolas Santa Ângela, municipal e de ensino fundamental, e a Dumerval, estadual e de ensino médio, trouxe uma grande dimensão de possibilidade de atuação artística relacionada à construção de paz. A peça tratava de diversos tipos de violência, escolhidas pelas pessoas que faziam o curso, que teve a duração de um mês. Tratouse de violência contra a mulher, de gênero, de tráfico de drogas, de presidiário, de uma chacina ocorrida na região, da sensação de insegurança, dentre outros temas. A abordagem foi dolorida, porque todos mexiam com temáticas que lhes eram caras, mas que ao mesmo tempo remexiam em dores profundas. Apresentar isto com verdade (truthfully, segundo a nossa diretora, Cynthia), não foi fácil. Mas foi muito gratificante, ainda mais porque a proposta é passar o conhecimento de teatro para as crianças das escolas, de forma que elas se empoderem e falem de temas que são importantes a elas. Fantoche
Após o coordenador do PUA ter realizado um curso de fantoche com Paul Zanon (mímico, palhaço, músico e bonequeiro, atuante da Cia Bonecos Urbanos), em São Paulo, em março de 2014, foi realizado um curso para membros do projeto, com o intuito de desenvolver mais uma forma de abordagem lúdica, a partir de contação de histórias, ou de interação improvisada com as crianças. Posteriormente ao curso, foi planejada uma atividade conjunta que realizaria uma apresentação, com intenção de passar uma ideiaforça. A ideia a ser trabalhada seria a de que cada pessoa é especial, individual, e as diferenças não impediriam a amizade. Inicialmente, dois bonecos (Latonilda e Meillin) interagiam e afirmavam suas diferenças. Seguidamente, acabavam fazendo amizade. Logo após, cantavam a música “Só eu sou eu” de Marcelo Jeneci, que depois foi cantada pelos componentes do PUA, que estimulou a todos os alunos da escola a cantarem juntos. Uma das formas foi a interação direta no momento da recreação, que se deu por várias vezes. Algumas delas, com fantoches menos elaborados, mas que as crianças cutucavam, para serem mordidas pelos fantoches. Essa interação da mordida foi muito surpreendente, porque todas as crianças queriam ser mordidas pelos fantoches. Além disso, elas mesmas queriam manipular os fantoches. Um relato de pessoas que manipularam bonecos numa das recreações foi de que as histórias eram contadas pelos membros do projeto, mas as crianças “assumiam” os bonecos e começavam a contar suas próprias histórias inventadas. Os fantoches criam uma atmosfera lúdica que imediatamente supera o real, mas possibilita a contar histórias que desencadeiem a expressão de emoções, de histórias sufocadas, mas de forma metafórica. Portanto, a busca futura seria de desenvolvimento da contação de histórias com fantoches, para as crianças e pelas crianças (SUNDERLAND, 2010). Indagações importantes Nesse sentido, há algumas indagações importantes, que cremos surgiram da prática com essas crianças: a adequação do lúdico a cada faixa etária, já que se pode pensar que a comunicação artística e lúdica deve conseguir acessar, de forma diferenciada, o mundo
metafórico e fantasioso, que todos possuímos. Se a forma de condução de qualquer um desses instrumentos não for adequado, tal como uma peça de teatro que trate da violência e impacte demais os alunos menores (que ainda não desenvolveram suficientemente recursos e estruturas internas para processar seus sentimentos e subjetividades a ponto de expressálos plena e claramente), ou então uma atuação de palhaço e fantoche que seja visto por eles como muito infantil e inadequado. Outra questão importante é a do protagonismo e da relação espectadorator. Não à toa, Augusto Boal (2013) chama de espectator, indicando que a relação não necessariamente precisa ser passiva, e que pode e deve ser quebrada, com espectadores sendo parte do fazer artístico, ou sendo envolvidos por ele. Na verdade, “o espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário reumanizálo, restituirlhe sua capacidade de ação em toda a sua plenitude” (BOAL, 2013, p. 162). Na primeira apresentação de palhaço, realizada na escola Santa Ângela, a ideia inicial foi de fazer um número, onde as crianças assistiriam a tudo passivamente. Entretanto, percebeuse, naquele mesmo momento, e com o passar do tempo, o quanto as crianças desejavam participar ativamente, quando retiravam de nossas mãos os objetos que utilizávamos, quando queriam realizar o que realizávamos, principalmente como palhaços ou manipuladores de bonecos, confirmando Boal, sem que o tivessem lido. Também na passagem do conhecimento, que foi visto no curso proporcionado por Cynthia Henderson ao PUA, é bastante difícil superar o ensino prescritivo, direcionado, para uma prática mais “elicitiva” (LEDERACH, 1995, p. 56, MAIESE, 2004), onde o “treinador” é mais um facilitador do que um expert. Isso se coaduna totalmente com a educação para a liberdade, de Paulo Freire, que indica um ensino compartilhado, um trocar de experiências, ao invés do ensino bancário. Uma educação problematizadora e dialógica (FREIRE, 1981). Portanto, como passar conhecimento, mas extraindo dos alunos sua essência? A partir da lógica de Boal há condições de entender as formas possíveis, o que não é fácil, efetivamente. Na experiência que tivemos com alunas do ensino médio da Escola Estadual José Lins do Rêgo, ensinando a arte da palhaçaria, buscamos instruir, desafiar, trazer a criatividade e a improvisação a partir da essência e identidade delas, sem castrações, comuns na educação
formal, nem mesmo repreensões rudes, comuns aos cursos de clown, pela figura de Monsieur Loyal, figura oriunda do propriétário do circo, que não queria gastar dinheiro com palhaços ruins, e que foi incorporada na lógica de Jacques Lecoq, a nosso ver, desencorajadora e desestimuladora. A abordagem mais suave, mas ainda assim assertiva e direta, foi tomada pelas estudantes como um aprendizado agradável, o que as estimulou6. Pensar a cultura de paz a partir do efeito de abordagens lúdicas e artísticas, tem promovido o afloramento de habilidades sociais diferenciadas no ambiente escolar, permitindo que aqueles, imersos na dinâmica, expressem sentimentos silenciados, configurem novas possibilidades relacionais não destrutivas, experimentem um reengajamento social criativo e empoderamento, conduzindo, entre si, à restauração de um senso de humanidade comum. Contudo, o modus operandi de tal reumanização não cessa uma questão prática incomodante: iniciativas artísticas semelhantes poderão ser replicadas em outros contextos escolares localizados? Acreditamos que sim, sublinhando que o foco norteador não seja a contenção emergencial dos conflitos negativos, mas, eminentemente, a construção de relacionamentos capazes de promover mudança social e cultural por meio de experimentos e abordagens artísticas combinadas. Outra questão importante é a escala do tempo de impacto, decorrente dos experimentos artísticos. As artes não se restringem ao pensamento racional e, uma vez que intervenções desse cunho não se atêm em tratar, em primeira instância, interesses ou problemas, mas as relações, notadamente seu efeito de impacto terá uma velocidade subjetiva. É claro que isso não significa que não há como avaliar sua repercussão e impacto, todavia, é preciso levar em consideração que a expressão artística, na construção de cultura de paz, perpassa por (i) uma experiência sensorial, que acessa o imaginário particular e coletivo, (ii) criação de um espaço emocional, baseado nas ‘representações’ do que é real , e (iii) promoção da coexistência (COHEN, 2003; LEDERACH, 2011; ROSOUX, 2007). Dessa maneira, mensurar seus resultados, por meios sistemáticos e “tradicionais”, e avaliar sua forma comunicacional requer envolverse num ato de interpretação
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Devemos isto a Karla Conká, uma palhaça incrível, após participarmos de sua oficina ‘Onde eu botei o meu nariz’, em junho de 2015.
de seus recursos (palhaço, teatro e fantoche) por parte da audiência, na minimização ou ausência de animosidades, e no fortalecimento de proximidades relacionais sustentáveis, quando houver.
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