Experiências práticas na utilização da Arte (Palhaço, Teatro e Fantoche) para a diminuição da violência e construção de Cultura de Paz

May 28, 2017 | Autor: Paulo Kuhlmann | Categoria: Peace and Conflict Studies, Peacebuilding and Arts
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Experiências práticas na utilização da Arte (Palhaço, Teatro  e Fantoche) para a diminuição  da violência e construção de Cultura de Paz1  Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann2  Luís Eduardo Souza Oliveira Ramos3  Suerda Gabriela Ferreira de Araújo4  RESUMO   A  prática  artística  como  instrumento  de  pacificação  e de viabilização de Cultura de Paz pode ser  vista,  teoricamente,  em  diversos  textos,  que  tem  se  tornado  mais  visíveis  recentemente.  Apesar  disso,  é  uma  conexão  vista com estranheza, especialmente por parte dos acadêmicos de Relações  Internacionais,  ainda  mais  se  as  ações  se  dão  em  contexto  local  aproximado.  Por  outro  lado,  os  Estudos  para  a  Paz  têm  dado   ênfase  a  essa  abordagem,  de  forma   às  vezes  metafórica  e  indireta,  às  vezes  nem  tanto,  principalmente  devido  à  chamada  Virada  Local,  abordagem  com  o  nível  de  análise  na  comunidade  e  que  vem  ganhando  importância  na  área.  Assim  sendo, esse estudo visa  apresentar  alguns   aspectos  da  teoria  dos  Estudos  para  a  Paz,  indicando  a  necessidade  de  preparação  da  atuação,  por  meio  da  observação   mais  aprofundada,  identificando  as  formas  possíveis  e  desejáveis  de  atingir  a  Cultura  de  Paz  por  meio  da Arte, diminuindo a violência. Por  fim,  como  estudo  de  caso,  será  abordada  a  atuação  de   um  projeto  de  extensão  universitária  que  tem  buscado  essas  dimensões  –  focado  numa escola há duas quadras do local da Universidade –,  explanando  as  dificuldades,  formas  de  atuação  (principalmente  por  meio  do  palhaço, do teatro e  do fantoche), bem como erros, acertos e a receptividade da comunidade escolar.     Palavras­chave: Arte. Construção de Paz. Palhaço. Teatro. Fantoche.       ABSTRACT  The  artistic  practice  as  a  peacemaking  tool  and  as  an  enabling  culture  of  peace  can  be  seen  theoretically  in  several  texts,  which  has  become  more  visible  recently.  Nevertheless,  it  is  1

 Apresentado pela  primeira  vez no IX Encontro da Associação Brasileira dos Estudos de Defesa,  no Painel  Estudos de  Paz e Estudos Críticos de  Segurança: análises transversais sobre violência e conflito, no dia 08  de  Julho  de 2016,  em  Florianópolis, SC.  Foi aprimorado  tanto  na parte  teórica  como  prática  por  Suerda e  Luís e Suerda.  2   Doutor  em  Ciência  Política  (USP),  Coordenador  Adjunto  do  Programa  de  Pós­Graduação  em  Relações  Internacionais  da  UEPB,  Coordenador  do  Projeto  de  Extensão  ­  PUA  e  do  Grupo  de  Estudos  de  Paz e  Segurança  Mundial  (GEPASM),  membro  da  Rede   de  Pesquisa  em   Paz,   Conflitos  e  Estudos  Críticos  em  Segurança  (PCECS),  clown  Mancada  Obom,  manipulador  e  confeccionador de  mariotes.  Atua  na Escola  Municipal  Santa  Ângela,  com  projetos lúdicos  e  artísticos  com  as crianças, sensibilizações  para  a  Cultura  de  Paz com  os  profissionais, inserindo ferramentas como o círculo de diálogo, e futuramente a mediação, e  a justiça restaurativa, dentre outros métodos, principalmente a cultura de paz por meio da arte.  3   Mestre  em  Sociologia  (UFPB),  Bacharel  em  Relações  Internacionais  (UEPB),  Ex­bolsista  do  PUA,  membro do GEPASM, professor de artes, membro da Trupe Arlequim, clown Bam Bam.   4  Mestranda  e Bacharela  em  Relações  Internacionais  (UEPB). Ex­bolsista do PUA, membro do  GEPASM e  da Rede PCECS, clown Sussa. Atua na Escola Municipal Santa Ângela.  

observed  as  an  accord  connection,  especially  by  the  International  Relations  scholars,  even if the  actions  are  given  in  approximate  location  context.  On  the  other  hand,  the  Peace  Studies  have  emphasized  this  approach,  metaphorically  and  indirect  sometimes  so,  sometimes  not  so  much,  mainly  due  to  call  Local   Turn,  approach  the  level  of  analysis  in  the  community  and  that  has  gained  importance  in  area.  Therefore,  this  study  aims  to  present  some  aspects  of  the  theory  of  Peace  Studies,  indicating  the  need  for  preparation  of  the  operation,  through  further  observation,  identifying  the  possible  and  desirable  ways  of  achieving  a  Culture  of  Peace  through  Art,  decreasing  the  violence.  Finally,  as  a  case  study,  it  will  be  addressed  the  role   of  a  university  extension  project  which  has  sought  these  dimensions  ­  focused  in  a  school  two  blocks  from  the  site  of  the  University  ­,  explaining   the  difficulties,  forms  of  action  (mainly  through  the  clown,  theater and puppet), and errors, successes and the receptivity of the school community.     Summary: Art. Peacebuilding. Clown. Theater. Puppet.      Introdução     A  conexão  de  arte  com  Construção  de  Paz,  ou  Resolução  de  Conflitos  pode  ser  considerada  como  recente,  já  que  um  livro  de  referência,  de  Ramsbotham,  Hugh  e  Miall,  só  acrescentam  um   capítulo  incluindo  essa  temática  no  ano  de  2011.  A  edição  anterior,  de  2005,  nem  se  referenciava  a  isto.  Curiosamente,  o  assunto  é  tratado  juntamente  com  Esportes,  e  o  capítulo é reduzido.  Da  mesma  forma,  a  abordagem  da  emancipação  humana (tema de grande relevância para  o  desenvolvimento  da  presente  pesquisa)  por  autores  como  Paulo  Freire  e  Augusto  Boal  ,  que  buscam  este  caminho  pelo  desenvolvimento  da  expressão  autônoma  do  sujeito,  muitas  vezes  é  visto  com  estranheza,  ​no meio dos estudos de Relações Internacionais, Estudos de Segurança e Estudos  de  Paz,  mesmo  que  o  assunto  seja  tema  de  pesquisas  de  grandes  Escolas  como  a Escola de Frankfurt,  entre  pensadores  de  áreas  como Filosofia ou Sociologia, mas também dentro das Relações Internacionais  no campo da Segurança Internacional.  O que torna a  ligação entre arte e  cultura  de paz  um assunto sensível é o âmbito que as artes tem  de empolgar  corações:  no  geral,  a arte apenas  alcança  um grande público através da indústria cultural em  manifestações como os filmes  hollywoodianos,  por exemplo,  ou produções musicais e/ou televisivas que  alcançam muitas pessoas de diversas partes do mundo. 

 

Portanto,  o  nível  de  análise  condiciona  a  exclusão  da  temática  da  arte  como  parte  dos  campos  de  estudo,  mas  na  verdade,  depende  de  que  linha  teórica  cada  vertente  de  estudo,  ou os  estudiosos,  dentro  dela,  se  encaixam.  Se  pensar  as  relações  humanas  em  âmbitos  locais  como  parte  da  lógica  dos  Estudos  para  a  Paz  e  de  Segurança  Internacional,  por  meio  dos  Estudos  Críticos  de  Segurança,  com  as  abordagens galesas (Ken Booth, principalmente), e as abordagens  dos  Estudos  para  a  Paz  (já   focadas  no  âmbito  local,  e  mais  ainda  depois  dos  estudos  de  Construção ​   de  Paz  pela  Base  (​Peacebuilding  from  below)  e  da  Virada  Local   (​Local  Turn)),  teremos então tranquilidade teórica em apresentar essas abordagens.  Sendo  assim,  considerar,  em  particular,  o  movimento  epistemológico  oriundo  da  Virada  Local,  facilita  a  análise,  posto  que  assume  o  local  não  como  uma  lacuna,  que  precisa  ser  preenchida,  mas o observa a partir do que já possui, do que já se tem, seja no âmbito das relações  de  poder,  culturais,  sociais,  conflitivas  (negativas  e positivas), de linguagens, e outras, no intuito  de,  nesta  perspectiva  questionar  ‘o que é que dá pra fazer’ em lugar de ‘o que é que falta  naquele  local  específico’.  A  construção  da  paz  baseada  numa  abordagem  local faz­nos mudar a pergunta  norteadora  das  ações  concretas  em  campo,  de  modo  a   reconhecer  a  não  neutralidade  do  espaço,  seus movimentos, dinâmicas vivas e seu papel de agência.    Da  mesma  forma,  e  ainda  mais  especificamente,  imaginando  que  os  Estudos  de  Paz,  preferencialmente  chamados  por  alguns  (como  Pureza  e  Cravo)  de  Estudos  Para  a  Paz,  significam  um  olhar  ético,  direcionado,  e  que  procura  atingir  algo  mais  além  de  tinta  em  papel,  ou  discussões  em  salas  de  aula.  O   objetivo  de  buscar  a  emancipação  das  comunidades  locais  necessita  de  prática,  ensaio  e  erro,  tentativas  de  abordagem  de  visões  de  mundo  diferenciadas,  ainda que essas comunidades estejam a duas quadras do local da universidade.  Portanto,  tratar  de  problemáticas  de  violência  em  âmbito  local  próximo  faz  parte  dos  Estudos  de  Paz,  e  se  houver  necessidade,  para  os  mais  “tradicionais” dos Estudos de Segurança,  de  justificar  o  estudo  e  a  aplicação  em  comunidades  próximas,  pode­se questionar como alunos,  graduandos,  mestrandos,  acadêmicos,  irão  falar  de  aplicação  de  atividades  artísticas  transformadoras,  ressiginificadoras,  reparadoras  e  emancipadoras  em  comunidades  africanas,  se   esses  aplicadores  nem  sequer  sabem  abordar  pessoas  de  classes,  bairros,  religiões  e  visões  de 

mundo  diferentes  das  suas,  ainda  que  vivam  em  localidades  muito  próximas  à  sua  moradia  ou  local de estudo?  Para este trabalho será  discutida, inicialmente,  a importância e  o protagonismo do uso da arte em  contextos  sociais  para  associá­lo  a  algumas  perspectivas  teóricas  que,  de  forma  resumida,  serão  apresentadas e que  servem como base para a atuação do Projeto Universidade em Ação – PUA, sendo eles  os Estudos  de  Paz;  Virada Local e Emancipação Humana.  Em seguida, será relatado experiências práticas  do grupo que utilizam a arte do palhaço, o teatro e fantoches como ferramentas lúdicas de atuação. 

Além  disso,  ou  melhor,  indo  mais  a  fundo,  esse   estudo  visa  ser  uma  abordagem  que  aumente  o  escopo  dos  estudos  de  Segurança  e  Paz,  tanto  teórica  como  praticamente,  já  que  conceitos  são  significados  em  confronto  (BOOTH,  2005,  p.  101),  e  aqui  vamos  nós  para  aumentar o espaço desses estudos de abordagem local e artística.    Arte e construção de paz na localidade       A  arte  tem  um  potencial  tremendo,  tanto  é  que  nos  países  de  regimes  autoritários  ou  totalitários,  os  artistas  são  um  dos  grupos  que  ficam  na  mira  da  repressão  política.  Textos,  músicas  e  peças  de  teatro  são  censurados,  artistas  são  enclausurados  ou  exilados,  já  que,  junto  com  os  pensadores,  representam  um  perigo  pelo  lado  simbólico  e  impactante  que  tem  na  sociedade.    

Portanto,  é  até  engraçado pensar que há dificuldades em se entender como a arte pode ser 

relevante  na  construção  de  paz,  já  que  a  arte  tem  sido  utilizada  para  exaltar  ânimos  e  levar  pessoas  à  guerra  ou  à  revolução.  O  filme  Encouraçado  Potemkin  mostra  o  cinema  a  serviço  de  uma ideologia de Estado, com vistas a inocular, nos assistentes da película, sentimentos de ódio e  de mudança de pensamento.    

Por  outro  lado,  parece  que  é  mais fácil pensar a arte na utilização para despertar o ódio, o 

desprezo  ao  outro,  ou  para  assumir  um  ponto  de  vista  revolucionário  do  que  utilizá­la   como  transformadora  de  comunidades  em  crise,  capaz de  trabalhar entre os afetados e seus adversários  a  sua  realidade  interdependente, a partir da representação dos eventos e não dos eventos reais em  si (COHEN, 2003).  A  arte,  o  marketing,  as  imagens  e  o  cinema,  como  ditos  acima,  também  servem  às  ideologias  e  aos  Estados.  É  fácil  perceber  as  campanhas  xenófobas  e  nacionalistas,  que 

compunham  o  adversário  como  animalesco  e  desprezível,  por  meio   de  representações  gráficas.  Atuar  no  imaginário  da  população  e  dos  soldados,  com  o  intuito  de  desumanizar  e possibilitar a   criação  do  desejo  de  destruir  o  inimigo,  são  constantes  na  lógica  dos  conflitos  entre  Estados  (interestatais).  Todavia,  como  afirma  Lederach  (1997),  a  construção  da  paz  tem âmbitos, que vão desde  as  elites  até  as  estruturas  locais.  Desprezar  isto  é  imaginar  que  um  pacto  negociado  por  líderes  estatais,  ou  por  lideres  de  facções  em confronto no interior de Estados (intraestatal), resolverá os  problemas  de  animosidade.  Isto  faz  parte  de  uma  visualização  simplificadora  da  realidade,  que  despreza as comunidades humanas, de onde, muitas vezes, foi que surgiu o conflito.  De  outra  forma,  ainda  que  a  lógica  dos  pactos  seja  fundamental,  e  os  acertos  entre  as  elites  influenciem  na  vida  cotidiana  comunitária,  observa­se  que,  muitas  vezes,  entre  o  caos  vivido  pelos  países  extremamente  violentos,  algumas  ilhas  de  paz,  espaços  regulados,  âmbitos   pacíficos,  são  criados,  independente  de  estruturas  hierárquicas,  ou  de  grandiosos  tratados  ou  pactos.    Pensar  estas  e  outras  localidades  no  processo  de  construção  da  paz  é  um  desafio  profundamente  difícil.  Isso  é  compreendido  não  a  partir  de  possíveis  críticas  ortodoxas,  descrentes  ou  questionadoras,  a  cerca  do  papel  do  local  na  área  das  Relações  Internacionais  e  Estudos  sobre  Paz  e  Segurança,  mas  pela  tentativa  de  entendimento  sobre   o   que  vem  a  ser  ‘local’,  uma  vez   que  “a  perspectiva  de  que  ‘o  local’  não  pode  ser  local  em  tudo,  mas  transnacional  ou  global,  baseado  [não  só]  em  relações  de  parentesco”  (HUGHES;  ÖJENDAL;  SCHIERENBECK,  2015,  p.821,  tradução  livre),  mas  também  por  dinâmicas  comerciais  e  relações  de  “ocupação,  religião  ou  ​lazer,  mediados  pela  ​interação  direta  entre  os  organismos  móveis,  ou  através  de  vários  tipos de mídia”  (idem, grifos nossos) problematiza o conceito ainda   mais,  rompendo  com  a  limitação  geográfica,  costumeiramente, a ele atribuído. Logo, não apenas  a  forma  como  o  ‘local’  se  apresenta  importa,  mas  sobretudo,  como  dá­se  a  interação  capaz  de   construir ‘locais’.   Dada  a  multiplicidade  de  atores  possíveis,  não  seria  errôneo,  portanto,  considerar  contatos  interativos,  mediados  pela  arte  e  comunicação  criativa  em  localidades  aproximadas,  uma  ‘estratégia  concreta’  e  um  exercício  ‘socialmente  produtivo’,  que  “produz  reflexos  na  vida 

social,  política,  econômica  e  cultural  das  sociedades”  (PUREZA;  CRAVO,  2015,  p.  8).  Isso  reverbera­se,  em  certa  medida,  aquilo  que  é  por  função  prática  dos  Estudos  Para  a  Paz,  e,  ao  mesmo  tempo,  subverte  os  ideais  liberais  de  democracia  e  das  economias  de mercado pensadas,  em  meados  dos  anos  1990,  a  cerca  da  promoção  da  paz  (LEONARDSSON;  RUDD,  2015;  PAFFENHOLZ,  2015),  a  qual  munia­se  de  uma   limitada  caixa  de  ferramentas,  quais  sejam:  diplomacia  formal,  mediação  e  implementação  de  acordos,  estratégias  militarizadas  e ​top­down,  ofertadas  especialmente  pela  Organização  das  Nações  Unidas  (ONU).  Esta,  conforme  utilizada,  demonstrou­se  insatisfatória  ao  se  observar  os  resultados  das  operações  de  paz  que  negligenciavam  o  poder  de  agência  e  sabedoria  local  (idem;  LEDERACH,  1997;  RAMSBOTHAN;  WOODHOUSE;  MIALL,  2005),  a  fim  de  efetivar  um  modelo  de  construção  da paz normativamente liberal (PAFFENHOLZ, 2015).  Nessa  perspectiva,  estamos  certos  de  que  “o  melhor  recurso  para  manter  a  paz  a  longo  prazo  está  sempre enraizado no local, no povo e sua cultura” (LEDERACH,  1997,  p.94,  tradução  livre).  Tamanha  é  a  verdade  que,  torna­se  perceptível  que  os  atores  locais  são  “os  principais  arquitetos,  proprietários  e  partes  interessadas  a  longo  prazo”  (RUPESINGHE,  1995,  p.81,  tradução  livre)  do  processo  da  transformação  do  conflito,  demonstrando assim, a necessidade de  se  desenvolver  ‘pacificadores  locais’  (WOODHOUSE,  2010;  LEONARDSSON; RUDD, 2015),  capazes  de  influir  positivamente  em  suas  estruturas  e  dinâmicas  socioculturais,  alterando  as  já  estabelecidas ou construindo novas, inclusive por meios não tradicionais e criativos.  É possível traçarmos um  paralelo entre a  importância  atribuída aos  atores locais como principais  agentes  transformadores  da  realidade  com  a  forma  de  pensar   emancipatória.  A ação dos agentes locais  busca  a  transformação  dos  conflitos  internos  para  que  se  tenham  maiores  possibilidades  de  desenvolvimento  de  vida  livre  de  ameaças   ou  constrangimentos.  Neste  sentido,  existe  uma  correlação  entre  segurança  e  emancipação  que é  traduzida por essa ausência  de  impedimentos  sociais  para  que um  indivíduo possa se desenvolver. Para Booth, a emancipação humana:    é  a  libertação  das  pessoas  (como  indivíduos  e  grupos)  a  partir desses constrangimentos  físicos  e humanos  que  lhes  impedem  a  realização  de que eles iriam escolher livremente  fazer.  Guerra  e  ameaça  de  guerra  é  uma  dessas  restrições,  juntamente  com a pobreza, a  educação  deficiente,  opressão  política  e  assim  por diante. Segurança e emancipação são  dois  lados  da  mesma moeda.  Emancipação, não  o  poder  ou ordem, produz a  verdadeira  segurança.  Emancipação,  teoricamente,  é  a  segurança  [Tradução  do  autor]  (BOOTH,   1991, p. 319) 

  Portanto,  a  construção  da  paz  em  âmbitos  locais é fundamental, e pode­se valer, para sua  estruturação,  de  representações  artísticas  que  criem  novas  formas  de  humanizar  o  inimigo  demonizado,  criar   conexões  entre  anteriores  beligerantes,  reconciliar  partes  cindidas,  não  importa se por etnias, religiões, ou quaisquer outras divisões existentes.  Dessa  maneira,  imaginar  formas  diferentes  de  construção   de  paz  nas  localidades  são  fundamentais,  e  a  experimentação é algo necessário, pois a cultura de paz tem que atingir antes o  pacificador,  suas   lógicas,  sua  vida  pessoal,  bem  como  suas  formas  metafóricas   de  visualizar  o  mundo.  Além  disto,  a  “ciência”  tem  separado  a  mente  do  corpo,  bem  como  também  a  razão  das  emoções,  e  é  fácil  entender  que  muitas  vezes  a  arte  na  construção  de  paz  é  vista  com  desconfiança.   Por  isto,  buscar­se­á,  neste  trabalho,  desenhar  práticas  realizadas  principalmente  no  ambiente  escolar,  de  uma  escola  situada  em  ambiente  violento,   a  Escola  Municipal  de  Ensino  Fundamental  Santa  Ângela,  próxima  ao Campus V da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)  a  qual  o  Projeto  Universidade  em  Ação  (PUA),  cujos  membros  desenvolvem  essas  práticas   lúdicas, está vinculado.  Não  à  toa,  entendemos  a  violência  como  influenciadora  e   limitadora  das  realizações  efetivas,  somáticas  e  mentais  dos  indivíduos,   a  tal  ponto  de  dispô­los aquém de suas realizações  potenciais  (GALTUNG,   1969,   p.168).  Tal  conceituação  aplicada  à  alunos  frequentadores  do  ensino  fundamental  (1º  ao  9º  ano)  da  escola,  ora  abordada,  nos  obriga  a  considerar   a  especificidade   de  sua  capacidade  potencial  de  ação,  quer  seja  educacional,  de  aprendizagem  ou  relacional,  a  qual  reside  na  atividade  do  brincar  e  do  exercício  lúdico  do  sujeito,  haja  vista  seu  uso  frequente  e  influência  comportamental  dela  derivada  (VYGOTSKY;  LURIA;  LEONTIEV,  1994).   Se  por  um  lado,  impedir,  dificultar,  ou  negar  a  realização  de  necessidades  humanas,  motiva  negativamente  os  conflitos  e  animosidades,  por  outro,  saber  lidar  com  elas  é  vital  e,  no  âmbito  escolar,  contextualizá­las  é  de  fundamental  importância.  Isso   que  significa  assumir  a 

brincadeira  e  ludicidade  à  ela  inerente,  como   produto  cultural  e  societal  prevalente  em  dado  espaço.  A  prática  artística  pode  ser  vista  como  algo  que  deve  considerar  as  diferenças  culturais,  mas  também  muitas  vezes   se  entende  que  algumas  práticas  tem  aplicação  universal.  Como  pensar  o  riso,  e  suas  diferenças  culturais,  por  exemplo?  Mas  a  prática,  em  diversos  ambientes,  desde  uma  praça,  a  um  picadeiro,  um  hospital,  creche,  asilo  de  idosos,  bem  como  numa  escola,  providencia  a  flexibilidade  na  capacidade  de  atuação  e  de  improvisação,  que facilitará a atuação  do  artista  construtor  da  paz  em  qualquer  ambiente,  continente,  ou  âmbito   violento.  Esta   é  nossa  crença e nossa prática.      Atuação dos Palhaços     O  início  do grupo teve forte influência da linguagem ​clown, um palhaço formado na  rua e  no  teatro,  dentro  da  lógica  de  Jacques  Lecoq.  Alguns  membros  do  grupo  haviam  participado  como palhaços cuidadores, em hospitais, ainda que brevemente, e feito alguns cursos de palhaço.  A  proposta  era  trazer  essa  linguagem  para  o  bairro,  crendo,  ainda  empiricamente,  que  o  clown  poderia  diminuir  a  violência  e trazer a segurança humana. As primeiras atuações do grupo  foram  num  asilo  de  idosos,  a  ASPAN  (Associação  Promocional  do  Ancião  Dr.  João  Meira  de  Menezes).  Ali,  pode­se  notar  a  dificuldade  de  entrar  em  contato  com  a  velhice,  o  abandono, e o  constante  esperar  pela  morte,  já  que  em  um  asilo,  os  próximos  não  têm  idades  diferentes,  e  encontram­se  todos  sem  atividade,  olhando  para  seus  companheiros,  na  fila  para  o  final  comum  de  todas  as  pessoas.  Fazer  rir  sem  poder  chorar,  animar  pessoas  às  vezes  em  avançado  nível  de  decrepitude,  e  muitas  vezes,  de  falta  de  lucidez.  Foi  uma  preparação  muito  importante,  para  trabalharmos  a  empatia,  a  escuta  e  a  ludicidade  para  pessoas  que  só  vivem  esperando  o  tempo  passar.  Posteriormente,  visitamos  uma  creche,  e  todo  o  grupo  encontrava­se  com  medo,  porque  não  estávamos  acostumados a  brincar com as crianças, que demonstram uma energia e vitalidade  incríveis,  o  avesso  da  situação  do  asilo  de  idosos.  Propusemos  algumas  brincadeiras,  mas  nos  sentimos  deslocados  e  desajustados,  encontrávamos  em  ritmos  e  velocidades  de  respostas  diferentes,  apesar  dos  administradores  da  creche  terem  agradecido  e  elogiado  nossa  ação  de 

acordo  com  a  sensação  deles  e  das  próprias  crianças,  como  nos  foi  relatado  ao  término  da  intervenção.  Fomos  em  diversos  outros  locais  da  comunidade  (Mercado  Público,  Núcleo  de Acolhida  Especial,  Escola  Municipal  Tiradentes,  Unidade  de  Acolhimento  Infanto­Juvenil)  e  fora  dela  (Presídio  Feminino,  Complexo  Psiquiátrico  Juliano  Moreira,  Asilo  Vila  Vicentina),  todos  eles  nos  surpreendendo  de   alguma  forma. O presídio feminino foi uma atuação muito diferenciada, já  que  a  apresentação  se  deu  em  frente  a  cada   cela,  ou  seja,  o  “espetáculo”,  ou  a interação se dava  em um espaço restrito, que separava palhaços do “público” com uma grade. Esse momento foi de  grandes  descobertas,  e  a  criatividade  de  como  interagir manifestava­se como um grande desafio.  Ainda  pensávamos  em  realizar  números  para  apresentar  aos   espectadores,  e  nesse  caso,  uns  apresentaram  pequenos  “números”,  e  outros  realizaram  interações  espontâneas  na  frente  das   celas.  Em  meados  do  ano  de  2013,  a  Rede  Crer  Ser5,  por  intermédio  de  Teomary  Alves,  principal  articuladora,  orientou­nos  a  trabalhar  na  Escola  Santa  Ângela,  que  se  encontra  a  duas  quadras  da  universidade.  A  primeira  apresentação  também   contou  com  o  receio  de  todos  os  participantes,  que  buscaram  apresentar  números  diversos  aos  alunos.  A  chegada  na  escola  foi  interessante,  porque  o  som  não  funcionava,  para  começarmos  a  apresentação ​e a interação teve de  ser  improvisada  diretamente  com  as  crianças​,  independente  do  planejamento  anterior.  Foi 

perceptível  que,  com alguns  membros do PUA, muitos contatos iniciais eram de (i) afrontamento  por  parte  das  crianças  na  tentativa  de  demonstrar  poder  dominante,  seja  na  socialização  e  busca  por  atenção, ou em relação ao objeto que o ​clown portava, inclusive o nariz;  e quando não, de (ii)  recompensa  na   esparança  de  obter  um  balão  de  ar,  pirulito  ou  similar,  a  qual  alguns  ​clowns  subvertiam  a  expectativa  ofertando  um  abraço  acalorado,  costumeiramente  aceito,  alguns  com  fortes ressalvas na intensidade, outros nem tanto.  Posteriormente  a  isto,  um  grupo  de  pessoas  do  PUA  começou  a  visitar  a escola, para ver  como  funcionava  a  recreação  deles.  Notou­se  que  não  haviam  muitos  recursos  para  brincar,  muitas  crianças  ocupavam  uma  pequena  quadra,  e  chutavam   garrafas  pet.  Na  verdade,  a  quadra 

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  Criada  em  2005,  é  uma  rede  de  articulação  local  que  reúne  e  integra  as  escolas  públicas dos bairros   Cristo  e  Rangel,  ONGs  focadas  no  protagonismo  juvenil,  CRAS,  Centros   da  Cidadania   e  de  Juventude,  Associações e lideranças religiosas. 

ainda  é  um  local  de  predominância  masculina,  onde  se  joga  futebol  e  as  meninas  são  excluídas  do  jogo, mas também os meninos que não gostam de futebol e não encontram outra possibilidade  de utilização desportiva da quadra, ficando, assim, apenas sentadas nas arquibancadas.  Após  um  período  de  inconformismo  de  algumas  pessoas  da  escola,  por  não  termos  proposto  nada  de  concreto,  começamos  a  frequentar  o  recreio  na  condição  de  ​clown.  Inicialmente,  dos  poucos   que  realizavam  essa  atividade,  semanalmente,  poucos  tinham  algum  curso na área, mas a ideia era brincar, trabalhar o lúdico, nada muito estruturado.   O  que  acabava  acontecendo  é  que  cada  pessoa  encontrava  sua  forma  de  interagir com as  crianças,  algumas  agiam  como  ​clowns  (interagiam  como  palhaços  de  rua,  criando  interações  improvisadas  a  partir  do  contato  e  reação  das  crianças),  outras  como  brincantes  (brincadeira  de  roda,  pular  corda,  carregar  crianças  nas  costas,  dentre  outras),  e  algumas  conversavam  com  as  crianças mais tímidas, que ficavam nos cantos.  Um fato inusitado foi observado pelos professores e gestores da escola: os alunos ficavam  mais  calmos,  quando  iam  para  classe  após  o  recreio,  e  começaram  a  respeitar  mais  as  normas,  porque  para  brincar,  tem  que  ter  um  pouco  de organização. Além disso, tais intervenções clown,  quando  sofreram  redução na frequência, passando de semanais para quinzenais, foi muito sentida  pelas  crianças,  posto  que,  segundo  a  direção  escolar,  já  aguardavam  com  ansiedade  as  “sextas­feiras dos palhaços”.  Trabalhar  com  o  lúdico  fez  com  que  ânimos  internos  da  escola  fossem  suavizados:  a  princípio,  as brincadeiras eram mal vistas por alguns funcionários da Escola  que acreditavam que  o  excesso  de  liberdade  (diversão)  dada  às crianças ao interagirem com os palhaços, as deixariam  muito  mais  “incontroláveis”.  Essa  “manutenção  da  ordem”  ainda  é  a  grande  preocupação  de  muitos  funcionários  da  Escola.  Trabalhar  o  lúdico  permite  que  as  crianças,  além  de  gastarem  grande  energia  que  fica  acumulada  entre  os  confinados  espaços  da  escola  cercados  por   muros   e  grades,  assimilem  melhor  questões  como  coletividade  e  raciocínio,  o  que  reflete  em  seu  desempenho  nas  salas  de   aula.  Grande  resultado  também  deste  tipo  de  atividade  é  a  nossa  aproximação  com  as   crianças,  uma  vez  que  estão  acostumadas  a  interagir  com  os  demais  funcionários  apenas   por  intermédio  de  ordens  e  regras,  muitas  vezes,  agressivas  de  ambas  as  partes. 

  Além  disso,  os  próprios  jogos  e  brincadeiras  propostas  trazem  consigo  um  grande  exercício  de  entendimento  e  assimilaçao  de  regras,  algo próximo  à imporância dos jogos teatrais  para Viola Spolin. Segundo a autora,     No  jogo  teatral,  por  meio  do  processo  de   construção  da  forma  estética,  a  criança  estabelece  com  seus  pares  uma  relação  de  trabalho  em  que  a  fonte  da  imaginação  criadora  ­  o  jogo  simbólico  ­  é  combinado  com   a  prática  e a  consciencia da  regra do  jogo,  a  qual  interfere  no  exercício  artístico  coletivo.  O  jogo  teatral  passa  necessariamente  pelo  estabelecimento  do  acordo  de  grupo,  por  meio  de  regras  livremente  consentidas  entre  os parceiros.  O jogo teatral é um jogo de construçao com a  linguagem  artística.  Na  prática,  com  o   jogo  teatral,  o   jogo  de  regras  é  o  princípio  organizador do grupo de jogadores para a atividade teatral. 

   Entretanto,  a  partir de  uma certa idade, algumas crianças,  não tão crianças, começam a ter  vergonha  das  brincadeiras,  porque já são pré­adolescentes. Algumas vezes, conseguimos quebrar  essa resistência, e elas se traem, mostrando seu lado criança ainda existente.  Uma  possibilidade  de  trabalhar  o  lúdico  com adolescentes é através de dinâmicas e jogos  teatrais ou com a oferta de cursos de clown. Realizamos um curso com adolescentes, já no ensino  médio,  na  Escola  José  Lins  do  Rego,   onde  a  universidade  está  situada  no  momento, com quatro  alunas  do  ensino  médio,  duas  universitárias  e  um  professor,  como  aprendizes,  e  foi  muito  proveitoso.  Primeiro,  porque  elas  perceberam  que  todos  eram  iguais,  em  passar pela dificuldade  de  fazer  os  outros  rirem,  depois,  por  descobrirem  que  elas eram maravilhosas  do  jeito que eram,  com suas possibilidades e limitações, e que ver a vida pelo viés cômico pode ser libertador.  Há  ainda  um  grande  campo  de descobertas que será vasculhado.  A nossa proposta de arte  clownesca  é  de  um  palhaço  diferenciado,  voltado  para   o   social,  para  o  afloramento  de  novas  habilidades  relacionais,  restaurador  de  um  senso  de  humanidade  comum   que  utiliza  a  arte  de  forma transformadora e libertadora.     Teatro     A  experiência  do  teatro,  com  o  PUA,  foi  marcante.  A  partir  de  um  convênio  com  a  Fundação  Fulbright,  foi  possível  trazer  Cynthia  Henderson,  do  Projeto  ​Performing  Arts  for  Social  Change  –  PASC,  em  agosto  de  2015.  Uma  pessoa  muito  querida,  que  ajudou  na 

formulação  do  PUA  (Ana  Carina  Rodrigues)  nos  apresentou  Cynthia,  porque  a  conheceu  no  Equador. A partir disso, trouxemos ela para João Pessoa.  A  ideia  de  trabalhar  o  teatro  com  o  grupo  foi  na  busca  de  introduzir  mais  um  tipo  de  expressão,  ainda  mais com  a abordagem de explorar a mudança social e a construção da paz. Um  pouco  constrangedor  trazer  uma  norte­americana  para  ensinar  algo  parecido  com  ​O  Teatro  do  Oprimido  desenvolvido  pelo  dramaturgo  e  diretor  Augusto  Boal  (que,  inclusive,  é  uma  das  referências  de  Henderson),  mas  que  acabou  sendo  uma  experiência  enriquecedora  em  todos   os  sentidos.  Para  o  curso,  foi  realizada  uma  pesquisa  em  que  os  membros  do  curso  construíram  personagens  para  serem  encenados  que  eram  as  próprias  vítimas  da   comunidade,  o  que  fez com  que  estes,  dentro  do  espaço  cênico,  tivessem  voz  para  relatar  suas  versões  de  dor  e  sofrimento.  Fazer  um  curso  com  alguém  traduzindo  o  tempo  todo,  ter  o  grupo  dirigido  e  conduzido  na  construção  de  monólogos  que  significavam  algo  de  importante,  em  relação  à  violência  e  à  comunidade  circundante,  e  apresentar  a  peça  em  duas  escolas,  nos  dois  bairros  próximos  à  universidade,  as  escolas  Santa  Ângela,  municipal  e  de  ensino  fundamental,  e  a  Dumerval,  estadual  e  de  ensino  médio,  trouxe  uma  grande  dimensão  de  possibilidade  de  atuação  artística  relacionada à construção de paz.  A  peça  tratava  de  diversos  tipos  de  violência,  escolhidas  pelas  pessoas  que  faziam  o  curso,  que  teve  a   duração  de  um  mês.  Tratou­se  de  violência   contra  a  mulher,  de  gênero,  de  tráfico  de  drogas,   de  presidiário,  de uma chacina ocorrida na região, da sensação de insegurança,  dentre  outros  temas.  A  abordagem  foi  dolorida,  porque  todos  mexiam  com  temáticas  que  lhes   eram  caras,  mas  que  ao  mesmo  tempo  remexiam  em  dores  profundas.  Apresentar  isto  com  verdade  (​truthfully,   segundo  a  nossa   diretora,  Cynthia),  não  foi  fácil. Mas foi muito gratificante,  ainda  mais  porque  a  proposta   é  passar  o  conhecimento  de  teatro  para  as crianças das escolas, de  forma que elas se empoderem e falem de temas que são importantes a elas.           Fantoche 

   Após  o  coordenador  do  PUA  ter  realizado  um  curso  de  fantoche  com  Paul  Zanon  (mímico,  palhaço,  músico  e  bonequeiro,  atuante  da  Cia  Bonecos  Urbanos),  em  São  Paulo,  em  março  de  2014,  foi  realizado  um  curso  para  membros  do  projeto,  com  o  intuito  de  desenvolver  mais  uma  forma  de  abordagem  lúdica,  a  partir  de  contação  de  histórias,  ou  de  interação  improvisada com as crianças.  Posteriormente  ao  curso,  foi  planejada  uma  atividade  conjunta  que  realizaria  uma  apresentação,  com  intenção  de  passar  uma ideia­força​. A ideia a ser trabalhada seria a de que  cada  pessoa  é  especial,  individual,  e  as  diferenças  não  impediriam  a amizade. Inicialmente, dois  bonecos  (Latonilda  e  Meillin)  interagiam e afirmavam suas diferenças. Seguidamente, acabavam  fazendo  amizade.  Logo  após,  cantavam  a  música  “Só  eu  sou  eu”  de  Marcelo  Jeneci,  que depois  foi  cantada  pelos  componentes  do  PUA,  que  estimulou  a  todos  os  alunos  da  escola  a  cantarem  juntos.  Uma  das formas foi a ​interação direta no  momento da recreação​, que se deu  por várias  vezes.  Algumas  delas,  com  fantoches  menos  elaborados,  mas  que  as  crianças  cutucavam,  para  serem  mordidas  pelos  fantoches.  Essa  interação  da  mordida  foi  muito  surpreendente,  porque  todas  as  crianças   queriam  ser  mordidas  pelos  fantoches.  Além  disso,  elas  mesmas  queriam   manipular  os fantoches. Um relato de pessoas que manipularam bonecos numa das recreações foi  de  que  as  histórias  eram  contadas  pelos  membros  do  projeto,  mas  as  crianças  “assumiam”  os  bonecos e começavam a contar suas próprias histórias inventadas.  Os  fantoches  criam   uma  atmosfera  lúdica  que  imediatamente   supera  o  real,  mas  possibilita  a  contar  histórias  que  desencadeiem  a  expressão  de  emoções,  de  histórias  sufocadas,  mas  de  forma  metafórica.  Portanto,  a  busca  futura  seria  de  desenvolvimento  da  ​contação  de  histórias com fantoches, para as crianças e pelas crianças (​SUNDERLAND, 2010).     Indagações importantes     Nesse  sentido,  há  algumas  indagações  importantes,  que  cremos  surgiram  da  prática  com  essas  crianças:  a  adequação  do  lúdico  a  cada  faixa  etária,  já  que  se  pode  pensar  que  a  comunicação  artística  e  lúdica  deve  conseguir  acessar,  de  forma  diferenciada,  o  mundo 

metafórico  e  fantasioso,  que  todos  possuímos.  Se  a  forma  de  condução  de  qualquer  um  desses  instrumentos  não  for  adequado,  tal  como  uma  peça  de  teatro  que  trate  da  violência  e  impacte  demais  os  alunos  menores  (que  ainda  não  desenvolveram  suficientemente  recursos  e  estruturas  internas  para  processar  seus  sentimentos  e  subjetividades  a  ponto  de  expressá­los  plena  e  claramente),   ou   então  uma  atuação  de  palhaço  e   fantoche  que  seja  visto  por  eles  como  muito  infantil e inadequado.   Outra  questão  importante  é  a  do  protagonismo  e  da  relação  espectador­ator.  Não  à  toa,  Augusto  Boal  (2013)  chama  de  espect­ator, indicando que a relação não necessariamente precisa  ser  passiva,  e  que  pode  e  deve  ser  quebrada,  com  espectadores  sendo  parte do fazer artístico, ou  sendo  envolvidos  por  ele.  Na  verdade,  “o  espectador,  ser  passivo,  é  menos  que  um  homem  e  é  necessário  reumanizá­lo,  restituir­lhe  sua  capacidade  de  ação  em  toda  a  sua  plenitude”  (BOAL,   2013, p. 162).   Na  primeira  apresentação  de  palhaço,  realizada  na escola Santa Ângela, a ideia inicial foi  de  fazer  um   número,  onde  as  crianças  assistiriam  a  tudo  passivamente.  Entretanto,  percebeu­se,  naquele  mesmo  momento,  e   com  o  passar  do  tempo,  o  quanto  as  crianças  desejavam  participar  ativamente,  quando  retiravam  de  nossas  mãos  os  objetos  que  utilizávamos,  quando  queriam  realizar  o  que  realizávamos,  principalmente  como  palhaços  ou  manipuladores  de  bonecos,  confirmando Boal, sem que o tivessem lido.  Também  na  passagem  do  conhecimento,  que  foi  visto  no  curso  proporcionado  por  Cynthia  Henderson  ao  PUA,  é  bastante  difícil  superar  o  ensino  prescritivo,  direcionado,  para  uma  prática  mais  “elicitiva”  (LEDERACH,  1995,  p.  56,  MAIESE,  2004),  onde  o  “treinador”  é  mais  um  facilitador  do  que   um  ​expert.  Isso  se  coaduna  totalmente  com  a  educação  para  a  liberdade,  de  Paulo  Freire,  que  indica  um  ensino  compartilhado,  um  trocar  de  experiências,  ao  invés do ensino bancário. Uma educação problematizadora e dialógica (FREIRE, 1981).   Portanto,  como  passar  conhecimento,  mas  extraindo  dos  alunos  sua essência? A partir da  lógica de Boal há condições de entender as formas possíveis, o que não é fácil, efetivamente.  Na  experiência  que  tivemos com alunas do ensino médio da Escola Estadual José Lins do  Rêgo,  ensinando  a  arte  da  palhaçaria,  buscamos  instruir,  desafiar,   trazer  a  criatividade  e  a  improvisação  a  partir  da  essência  e  identidade  delas,  sem  castrações,  comuns  na  educação 

formal,  nem  mesmo  repreensões  rudes,  comuns  aos  cursos  de  clown,  pela  figura  de  Monsieur  Loyal,  figura  oriunda  do  propriétário  do  circo,  que  não  queria  gastar  dinheiro  com  palhaços  ruins,  e  que  foi  incorporada  na  lógica  de  Jacques  Lecoq,  a   nosso  ver,  desencorajadora  e  desestimuladora.  A  abordagem  mais  suave,  mas  ainda  assim  assertiva  e  direta,  foi  tomada  pelas  estudantes como um aprendizado agradável, o que as estimulou6.  Pensar  a  cultura  de  paz  a  partir  do  efeito  de  abordagens  lúdicas  e  artísticas,  tem  promovido  o  afloramento   de  habilidades  sociais  diferenciadas  no  ambiente  escolar,  permitindo  que  aqueles,  imersos  na  dinâmica,  expressem  sentimentos  silenciados,  configurem  novas  possibilidades  relacionais  não  destrutivas,  experimentem  um  reengajamento   social  criativo  e  empoderamento,  conduzindo,  entre  si,  à  restauração  de  um  senso  de   humanidade  comum.  Contudo,  o  ​modus  operandi  de  tal  reumanização  não  cessa  uma  questão  prática  incomodante:  iniciativas  artísticas  semelhantes  poderão  ser  replicadas  em  outros  contextos  escolares  localizados?  Acreditamos  que  sim,  sublinhando  que  o  foco  norteador  não  seja  a  contenção  emergencial  dos  conflitos  negativos,  mas,  eminentemente,  a  construção  de  relacionamentos  capazes  de  promover mudança social e cultural por meio de  experimentos e abordagens artísticas  combinadas.   Outra  questão  importante  é  a  escala  do  tempo  de  impacto,  decorrente  dos  experimentos  artísticos.  As  artes  não  se  restringem  ao  pensamento  racional  e,  uma vez  que intervenções desse  cunho  não  se  atêm  em  tratar,  em  primeira  instância,  interesses  ou  problemas,  mas  as  relações,  notadamente  seu  efeito  de  impacto  terá  uma  velocidade  subjetiva.  É  claro  que isso não significa  que  não há como avaliar sua repercussão e impacto, todavia, é preciso levar em consideração que  a  expressão  artística,  na  construção de cultura de paz, perpassa por (i) uma experiência sensorial,  que  acessa  o  imaginário  particular  e  coletivo,  (ii)  criação  de  um  espaço  emocional,  baseado  nas   ‘representações’  do  que  é  real  ,  e  (iii)  promoção  da  coexistência  (COHEN,  2003;  LEDERACH,  2011;  ROSOUX,  2007).  Dessa  maneira,  mensurar  seus  resultados,  por  meios  sistemáticos  e  “tradicionais”,  e  avaliar  sua  forma  comunicacional  requer  envolver­se  num  ato  de  interpretação 

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 Devemos isto a Karla Conká, uma palhaça incrível, após participarmos de sua oficina ‘Onde eu botei o  meu nariz’, em junho de 2015. 

de  seus  recursos  (palhaço,  teatro  e  fantoche) por parte da audiência, na minimização ou ausência  de animosidades, e no fortalecimento de proximidades relacionais sustentáveis, quando houver.     

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