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May 29, 2017 | Autor: Heliana Conde | Categoria: Metodologias de Pesquisa
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EXPLICAR

Afaste-se do comum, monopolize! Esqueça qualquer perspectivismo, ocupe a
posição de onisciência! Deixe de lado tensões, oscilações e complicações,
seja neutro, estável e pleno de clareza! Explicitamente formulados ou não,
eis alguns dos enunciados (performativos) a que qualquer pesquisador se vê
hegemonicamente exposto no contemporâneo. Cumpre acrescentar que, nessas
injunções a EXPLICAR, pega carona a palavra de ordem EXPLICAR-SE. Responda,
pesquisador: quem é você?; respeita as regras do método?; delimita com
rigor seu objeto e sua posição correlata, a de sujeito do conhecimento
científico? Pois, se não confessa quem é, e se não responde afirmativa e
obedientemente às perguntas seguintes...nada feito! Alguns dirão exagerada
ou descuidada tal síntese dos governos da/pela explicação, alegando que
muito se têm transformado, ao menos a partir do século XX, as concepções de
pesquisa e cientificidade. Nessa direção, aos relutantes em conduzir-se
apoiados em decalques – aprioristicamente colocados como ordem necessária
do mundo e de si próprios –, oferecer-se-iam caminhos à primeira vista
menos policialescos: o pensamento da complexidade, o multidisciplinar, o
interdisciplinar, até mesmo o transdisciplinar (este, decerto, como algo de
cuja radicalidade só resta o nome). Mediante tantas ofertas-produtos,
todavia, uma vez mais se previne o descaminho rizomático: EXPLICAR,
inclusive nessas paragens em aparência libertárias, continua a ser o ato de
forjar transcendências, embora antigos monopólios se transmutem em pactos
de gestão liberal ou neo-liberal (DELEUZE e GUATTARI, 1995). Alguns
companheiros discursivos o viram ainda melhor, pois precisaram de menos
palavras do que as empregadas neste verbete. Roland Barthes (2004), por
exemplo, disse-o às secas: "Para se fazer interdisciplinaridade não basta
tomar um "assunto" (um tema) e convocar em torno duas ou três ciências. A
interdisciplinaridade consiste em criar um objeto novo que não pertença a
ninguém" (p.102). Se há algo a acrescentar, além de lembrar que aquilo que
Barthes designa por inter poderia abarcar o multi, o trans ou o complexo,
limita-se a observação também sucinta: tudo isso é admissível; inaceitável
é o indisciplinar (e o correlato indisciplinar-se). Há que escapar,
contudo, de vereditos totalizantes. Pois decerto houve (e há) quem
desejasse (e deseje), insubmisso e inventivo, mudar de verbo e de prática.
Em face do EXPLICAR, com suas conotações de mostrar, desenvolver,
facilitar, desembaraçar, expor e esclarecer, divisa-se então o IMPLICAR, o
qual remete a enlaçar, entrelaçar, embaralhar, embaraçar e ligar (Ardoino,
1983, p.20). Mesmo a força desse convite à análise de implicações, no
entanto, não está a salvo de atenuações docilizantes: à maneira de uma
nebulosa, uma série de virtudes quase teológicas passou progressivamente a
circundar o IMPLICAR, assemelhando-o ao interesse, à dedicação, ao
compromisso, ao esforço, à renúncia – como se estivessem eles, aliás,
ausentes do EXPLICAR. E eis-nos de volta ao sujeito do conhecimento, agora,
mais do que obediente, piedoso, crédulo e sobreimplicado, pronto para que
dele se extraia, sem dor, mais-valia subjetiva. Segue tal sujeito, a partir
de então, um mandamento supremo: implique-se, reimplique-se, mas jamais
analise suas implicações (Lourau, 2004). Porque, caso o faça, se perceberá
constituído por aquilo que EXPLICA, se verá condição de existência do que
afirma ser a realidade em si, se encontrará mergulhado em um plano de
imanência sem delimitações a priori – tornando-se, portanto, perigoso para
os guardiães da ordem do pensar, do agir, do subjetivar (Coimbra, 1995).
Algo de penumbra se anuncia com tudo isso; algo de obscuro, de árduo ao
enfrentamento, que sugere partir, uma vez mais, em busca de amigos-aliados.
Se pertencemos aos dispositivos e neles pensamos, agimos e somos – o que
nos desvia do Eterno para apreender o novo (Deleuze, 1989) –, cumpre
indagar o que é o contemporâneo, âmbito por excelência dessa recusa a
EXPLICAR e EXPLICAR-SE, desse obscuro ou desse escuro, em suma.
Paradoxalmente, certas explicações oriundas da neurofisiologia da visão e
da astrofísica contemporâneas, inventivamente retomadas por Giorgio Agamben
(2009), podem contribuir para que nosso reativo medo do escuro se transmute
em força de afirmação. Segundo a neurofisiologia, a ausência da luz
desinibe células periféricas da retina, ditas off-cells, que ao entrar em
atividade produzem uma espécie particular de visão a que chamamos,
justamente, escuro. Este não é, por conseguinte, mera ausência de luz, mas
um produto-invenção de nossa retina. Perceber o escuro, nesta linha, não
constitui inércia ou passividade, pois implica (e nos implica em) uma
atividade singular: a de neutralizar as luzes de nosso tempo para descobrir
suas trevas, seu escuro especial. Conforme a astrofísica, por sua vez,
aquilo que, no céu, percebemos como o escuro é uma luz que, oriunda de
galáxias que se distanciam de nós, viaja, velocíssima, em nossa direção –
sem nos alcançar jamais, pois a velocidade das galáxias é superior à da
luz. Não sendo separáveis o escuro e a luz, e exigindo a apreensão do
primeiro uma certa atitude, ser contemporâneo, habitar o contemporâneo –
como pesquisador, em nosso caso, embora não apenas – é menos uma questão de
EXPLICAÇÃO que de coragem: a coragem de "ser capaz não apenas de manter
fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma
luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda:
ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar" (p. 65). Dessa
coragem, que é coragem da verdade, nos fala igualmente Foucault (2009): não
se trata de EXPLICAR ou EXPLICAR-SE, na forma do cordato respondedor do
"que é o que é", e/ou do "que cada um de nós é", e sim de cuidar,
coletivamente, do que andamos fazendo, hoje, de nossas vidas.

Referências:
AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo. In: __________. O que é o
contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

ARDOINO, J. Polysémie de l'implication. Pour, (88) mar/avr, 1983.

BARTHES, R. Jovens pesquisadores. In:_________________. O rumor da língua.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.

COIMBRA, C.M.B. Guardiães da ordem. Algumas práticas psi no Brasil do
milagre. Rio de Janeiro: Oficina do autor, 1995.

DELEUZE, G. Qu'est-ce qu'un dispositif?. In: Michel Foucault philosophe.
Rencontre Internationale. Paris: Seuil, 1989.

DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Rizoma. In: _________________ Mil platôs, vol.1.
São Paulo: Editora 34, 1995.

FOUCAULT, M. Le courage de la verité. Le gouvernement de soi et des autres
II. Paris: Gallimard/Seuil, 2009

LOURAU, R. Implicação e sobreimplicação. In: ALTOE, S. (org.) René Lourau:
analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec, 2004.





Heliana de Barros Conde Rodrigues
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