Exploração madeireira em reservas extrativistas

July 18, 2017 | Autor: Pedro Abi-Eçab | Categoria: Direito Ambiental
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EXPLORAÇÃO DE RECURSOS MADEIREIROS EM RESERVAS EXTRATIVISTAS Pedro Abi-Eçab1 Como citar este trabalho: ABI-EÇAB, Pedro. “Exploração de recursos madeireiros em Reservas Extrativistas”. In RASLAN, Alexandre Lima (coord.) Direito Ambiental. Campo Grande: Editora da UFMS, 2010, p. 181-201. RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de analisar o regime jurídico da exploração dos recursos florestais em reservas extrativistas, em especial madeireiros, atentando para o progressivo desvirtuamento deste tipo de unidade de conservação com consequências danosas ao meio ambiente. PALAVRAS-CHAVE: Meio Ambiente. Unidades de Conservação. Reservas Extrativistas. Manejo madeireiro. ABSTRACT: This paper aims to analize the juridical regime of the forestry resources exploration in extractivist reserves, specially timber products, focusing the progressive misuse of this kind of Conservation Unit and its harmful consequences for the environment. KEYWORDS: Environment, Conservation Units, Extractivist Reserves, Timber Management

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Reservas extrativistas. 2.1. Histórico. 2.2. Regime jurídico. 2.3. As populações tradicionais. 2.4. Utilização dos recursos naturais. 2.5. Transfiguração cultural das populações tradicionais. 2.6. Situação atual. 3. Manejo florestal, manejo florestal comunitário e aspectos controversos. 4. Casuística. 5. Medidas judiciais cabíveis. 5.1. Ação popular e ação civil pública. 5.2. Responsabilização penal. 5.3. Responsabilização por ato de improbidade administrativa. 6. Conclusões. 7. Bibliografia. 1. Introdução Uma das formas de efetivação do direito fundamental ao meio ambiente, no ordenamento jurídico brasileiro, é o estabelecimento de espaços territoriais especialmente protegidos, sendo as unidades de conservação da natureza a modalidade mais expressiva destas áreas protegidas. As unidades de conservação, por sua vez, dividem-se em duas categorias, conforme a possibilidade ou não de seus recursos naturais. De um lado, as unidades de proteção integral ou de uso 1

Bacharel em Direito pela USP, Mestre e Doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, Promotor de Justiça no Estado de Rondônia.

indireto; de outro, as unidades de uso sustentável ou direto, das quais uma das modalidades é a das reservas extrativistas, unidades de conservação cujo uso dos recursos naturais será permitido de modo comunitário, sustentável e exclusivo às populações tradicionais nela residentes. Sendo uma área afetada com as finalidades tanto de garantir a conservação da natureza e como de permitir a exploração sustentável e comunitária dos recursos, e dada a dificuldade de concretização do abrangente conceito de desenvolvimento sustentável, somada à transfiguração cultural das populações extrativistas, é previsível o surgimento de conflitos decorrentes da dificuldade de ajuste das condutas ao marco legal estabelecido. Um dos conflitos que assume maior relevância na atualidade, seja pelos interesses econômicos envolvidos, seja pela ameaça de completo desvirtuamento do mencionado marco legal, inclusive com a ameaça de perda da qualidade ambiental, é o que diz respeito à exploração de recursos madeireiros no interior desta categoria de unidade de conservação. Este trabalho tem como objetivo analisar as diretrizes legais das reservas extrativistas, especialmente no que tange à exploração de seus recursos madeireiros, de modo a possibilitar a tanto a conservação da natureza como a garantia do desenvolvimento sustentável de suas populações, dando efetividade às normas existentes. Também serão analisadas as possíveis violações ao marco legal e respectivas consequências jurídicas. 2. Reservas extrativistas 2.1. Histórico As reservas extrativistas (RESEX) foram criadas “especialmente para tentar solucionar a questão das atividades seringueiras na Amazônia”, tendo dois objetivos primordiais: “proteção dos meios de vida e da cultura das populações extrativistas tradicionais e o uso sustentável dos recursos naturais” 2. Com efeito, o instituto é diretamente ligado à histórica luta dos povos seringueiros, cuja magnitude é reconhecida internacionalmente através da morte do sindicalista Chico Mendes, costumeiramente lembrado como um marco desta causa. É após sua morte que, em virtude da repercussão adquirida pelo tema, é editada a Lei 7.804/1989, dando nova redação ao inciso VI do art. 9º da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), ao inserir a figura das reservas extrativistas como nova categoria de espaços territoriais especialmente protegidos, vindo a regulamentação do dispositivo a ocorrer com o Decreto 98.897/1990. Inicialmente concebida como projeto de assentamento extrativista, no âmbito do Programa Nacional de Reforma Agrária (1987), como alternativa ao projeto de colonização do Instituto Nacional de Colonização Agrária (INCRA), estruturado em lotes de cerca de cem hectares, incompatíveis com as atividades de extrativismo, as quais pressupõem a dispersão natural dos recursos naturais a serem 2

José Eduardo Ramos Rodrigues, Sistema Nacional de Unidades de Conservação, p. 176-177.

coletados pela floresta, a proposta foi alterada de modo a conciliar a solução dos conflitos pela posse da terra com a gestão sustentável dos recursos naturais, aspirando a união entre políticas públicas geralmente divergentes: a de reformo agrária e a de meio ambiente3. Tais reservas foram idealizadas como forma de viabilizar a subsistência dos povos tradicionais da floresta, assegurando-lhes tanto o uso da terra (já que o domínio permanece sendo público) como a preservação de seus conhecimentos tradicionais, que implicavam um modo de vida em perfeita sintonia com a Natureza. Em resumo, busca-se unir vida digna à conservação da floresta, concretizando o binômio desenvolvimento sustentável. Objetiva-se, em resumo, propiciar a solução de dois problemas. De um lado fornecer aos povos tradicionais da floresta um meio de sobreviver segundo seus usos e costumes frente à expansão do capitalismo selvagem que depreda os recursos naturais na região amazônica. De outro, propiciar a preservação dos recursos naturais, pois estas populações tradicionais viviam em harmonia com a floresta, dela retirando apenas o necessário para sua sobrevivência digna. O Decreto 98.987/1990 definiu as reservas extrativistas como espaços territoriais destinados à exploração auto-sustentável e conservação dos recursos naturais renováveis, por população extrativista (art. 1º). Nos termos do art. 4º do Decreto federal nº 98.897/1990, a exploração auto-sustentável e a conservação dos recursos naturais será regulada por contrato de concessão real de uso. Ou seja, à exemplo do que ocorre com a terra indígena (Constituição da República, art. 231), o domínio é público, mas o uso é concedido à população específica, segundo seus usos e costumes tradicionais4. No ano de 2000, com a aprovação da Lei 9.985, as normas relativas às unidades de conservação, até então dispersas em inúmeros diplomas legais, são sistematizadas em um Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), racionalizando e unificando o marco regulatório destes espaços territoriais protegidos. Desse modo, o regime jurídico das reservas extrativistas não apenas se consolida como é inserido num sistema abrangente, dotando normas outrora esparsas de unidade e ordenação5. 2.2. Regime jurídico Além de estabelecer um regime específico para a categoria de unidade de conservação reserva extrativista (art. 18), a lei do SNUC, em caráter bastante didático, preliminarmente explica inúmeros conceitos, como no caso do extrativismo, atividade econômica das populações tradicionais das reservas extrativistas, definido como sendo o sistema de exploração baseado na coleta e extração, de modo sustentável, de recursos naturais renováveis (art. 2º, XII). Na Lei 9.985/2000, a reserva extrativista é definida como uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na 3

Juliana Santilli, in O Direito e o desenvolvimento sustentável, p. 180-182. A principal diferença em relação ao uso da terra indígena é que, nesta, não se exige o contrato de concessão de direito de uso. 5 O Decreto 98.897/1990 permanece vigente no que não foi implicitamente derrogado. 4

agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, tendo como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (art. 18). O § 1º do referido artigo expressamente dispõe que a Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais. No mesmo sentido, o art. 23, caput, dispõe que a posse e o uso das áreas ocupadas pelas populações tradicionais nas Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável serão regulados por contrato. A reserva extrativista será presidida por conselho deliberativo, presidido pelo órgão responsável por sua administração, e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme disposto em regulamento próprio e no ato de criação da unidade (§ 2º). É atribuição deste conselho a aprovação do plano de manejo da reserva (§ 5º). A visitação pública é permitida, desde que compatível com os interesses locais e de acordo com as disposições do plano de manejo da unidade (§ 3º). Também é permitida a pesquisa científica, desde que previamente autorizada pelo órgão gesto responsável e segundo as condições neste estabelecidas (§ 4º). Com relação ao uso direto dos recursos naturais da área, a lei proibiu expressamente a exploração de recursos minerais e a caça amadorística e profissional (§ 6º). Além disso, dispõe o § 7º a exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais atividades desenvolvidas na reserva extrativista, conforme disposto no regulamento e no plano de manejo da unidade. 2.3. As populações tradicionais Originado dos estudos de ciências sociais como a Antropologia, o termo “populações tradicionais” é de difícil conceituação, fato compreensível em razão de seu surgimento relativamente recente e da complexa realidade social a ser delimitada. Foi em razão desta dificuldade que o Poder Executivo vetou o dispositivo da Lei 9.985/2000 que definia população tradicional6, sob o correto argumento de que, com um pouco de imaginação, nele caberia toda a população do Brasil7, dada sua grande amplitude. Desse modo, embora a expressão figure em diversas passagens da Lei do SNUC, não há uma definição legal para esta. Também na doutrina não há consenso sobre a delimitação do conceito, e há juristas que propõem até mesmo a inclusão de “agricultores tradicionais ou familiares” no rol das populações tradicionais 8,

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Dispunha o vetado inciso XV do art. 2º que populações tradicionais seriam “grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável”. 7 Mensagem da Presidência da República n. 967, de 18.7.2000. 8 Juliana Santilli, Socioambientalismo e novos direitos, p.134.

evidenciando a ausência de parâmetros que pode redundar no absurdo de considerar-se quase toda a população rural brasileira como tradicional, desvirtuando-se o instituto. José Eduardo Ramos Rodrigues propõe de forma mais ou menos acertada ser preciso que fique claro que o modo de existência social das populações tradicionais não deve estar integrado às leis do mercado9. Embora seja impossível excluir peremptoriamente das leis do mercado alguma população humana não-isolada, as populações tradicionais não devem se pautar preponderantemente por tais leis (cuja sustentabilidade ambiental é altamente duvidosa), já que isto implicaria em descaracterização cultural que violaria de modo frontal justamente o bem jurídico que ensejou a criação das reservas extrativistas: uma identidade sociocultural tradicional. Com efeito, o termo “populações tradicionais” está relacionado ao uso de técnicas ambientais de baixo impacto e formas eqüitativas de organização social, o que possibilita que seus usos e costumes possam ser associados a um novo modelo de conservação da Natureza10. 2.4. Utilização dos recursos naturais Afora as possibilidades de uso indireto dos recursos naturais existentes nas reservas extrativistas (visitação pública e pesquisa científica, segundo as disposições contidas nos §§ 3º e 4º do art. 18 da Lei 9.985/2000), no que tange ao uso direto o SNUC proibiu expressamente a exploração de recursos minerais e a caça amadorística e profissional (§ 6º). Além disso, o § 7º do art. 18 dispôs que a exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais atividades desenvolvidas na reserva extrativista, conforme disposto no regulamento e no plano de manejo da unidade. Desse modo, é da redação do art. 18 que se extraem os princípios norteadores da exploração dos recursos madeireiros nas reservas extrativistas. Publicidade: a área das reservas extrativistas, assim como todo o conjunto de seus assessórios (recursos minerais, hídricos, florestais e faunísticos), é de domínio público, sendo o uso concedido às populações tradicionais, em regime de contrato de concessão real de uso, revogável no caso de danos ao ambiente. Tradicionalidade: a reserva extrativista possui como função primordial garantir a conservação da biodiversidade conjugada a um modo de vida tradicional, sendo que o art. 18 da Lei 9.985/2000 restringe a sua utilização às populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, o que implica em dize que as atividades econômicas nesta modalidade de unidade de conservação devem obrigatoriamente estar adstritas ao uso tradicional dos recursos naturais por populações extrativistas. Não se admite uso tradicional por população que não seja extrativista assim como não se admite uso que não

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Sistema Nacional de Unidades de Conservação, p 135. Juliana Santilli, Socioambientalismo e novos direitos, p. 128-129.

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seja tradicional por população extrativista. Uso tradicional são o extrativismo (definido no art. 2º, XII, da Lei 9.985/2000) e complementarmente, agricultura de subsistência e criação de animais de pequeno porte. Sustentabilidade qualificada: quando o SNUC estabelece que a exploração de recursos madeireiros neste tipo de unidade de conservação só se fará em bases sustentáveis, não está apenas reiterando o princípio do desenvolvimento sustentável acolhido na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente11 (ECO-92 ou Rio-92) e que deve orientar toda a atividade econômica, nos termos da Constituição da República (art. 170, VI, e art. 225, caput). Se o uso dos recursos naturais na propriedade privada comum já deve ocorrer de forma sustentável, seria ilógico que a exigência do § 7º do art. 18 da Lei 9.985 estabelecesse idêntico regime para a utilização dos recursos naturais em uma unidade de conservação da natureza. Com efeito, a intenção do legislador foi a de ressaltar que a base, ou seja, o alicerce do uso dos recursos naturais em reservas extrativistas é a sustentabilidade, o que, se é um objetivo a ser atingido nas atividades econômicas em bens privados, evidentemente (e infelizmente) ainda não é seu caráter preponderante. Ora, se o fundamento da utilização dos recursos é a sustentabilidade (conceito que deve ser interpretado em conjugação com o de tradicionalidade, até porque se trata de área destinada à preservação de um modo de vida próprio de populações tradicionais), não encontra amparo legal qualquer atividade econômica que se afaste desse princípio. Em relação ao uso da madeira, vigem dois princípio, extraídos do § 7º: excepcionalidade e complementaridade (ou subsidiariedade). Excepcionalidade: diz ainda o dispositivo legal em comento que a exploração dos recursos madeireiros só se fará em situações especiais, vale dizer, a exploração madeireira não deve se tornar atividade corriqueira, cotidiana, sob pena de desvirtuamento do instituto das reservas extrativistas, que não foram criadas com o objetivo de propiciar a exploração florestal (como no caso das Florestas Nacionais ou Estaduais). É claro a restrição legal volta-se para atos de caráter comercial, não incidindo sobre o uso da própria comunidade, como para a construção das suas habitações, de pequenas embarcações e infra-estrutura básica da reserva. Complementaridade ou subsidiariedade: ao final, o § 7º dispõe que a exploração dos recursos madeireiros é “complementar às demais atividades desenvolvidas na reserva extrativista”, isto é, a exploração madeireira, não deve se constituir em atividade econômica primordial das populações tradicionais, mas sim ser exercida de modo complementar às demais atividades, o que equivale a dizer que a vida econômica das reservas extrativistas deverá centrar-se em outras atividades que não a madeireira, tais como extrativismo e coleta, pesca artesanal, agricultura de subsistência, artesanato, turismo e exploração dos conhecimentos tradicionais.

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“Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste.”

Estes princípios são essenciais para a manutenção do contrato de concessão real de uso previsto no art. 4º do Decreto 99.987/1990, pois o § 2º do referido artigo prevê a existência de cláusula de rescisão quando houver quaisquer danos ao meio ambiente. 2.5. Transfiguração cultural das populações tradicionais Como já visto, o alicerce fundamental das reservas extrativistas é a interação positiva com o ambiente ou mesmo a baixa lesividade à biodiversidade decorrentes do modo de vida das populações tradicionais. Ocorre que nenhuma sociedade humana encontra-se estagnada no tempo e no espaço. Inexoravelmente “as sociedades tradicionais evoluem” 12, pois algumas facilidades tornadas disponíveis na vida em sociedade submetem os indivíduos a novas necessidades das quais não podem nem querem livrar-se13. O ser humano aspira ao bem estar, sintetiza Edgar Morin14. Assim, com a finalidade de obter bens (geralmente de maior valor agregado que os seus), as populações tradicionais tendem a especializar-se “numa lógica de produção e de exportação intensivas e pouco diversificadas, vergando-se às necessidades” da sociedade urbana. Dessa forma, o rural assume função de troca, organizando-se os transportes de matérias-primas num sentido e de objetos transformados no outro. Este fluxo forçado de matéria/energia e a “de-diversificação” provocam a desestruturação do seu sistema socioeconômico15. Ao comentar a Lei do SNUC e a figura das reservas extrativistas, José Eduardo Ramos Rodrigues já frisava a preocupação com a viabilidade de uma categoria de unidade de conservação criada essencialmente a partir de experiências de um único grupo social que pratica uma única atividade econômica16. Darcy Ribeiro, ao analisar o fenômeno da transfiguração étnica experimentado por uma modalidade específica de populações tradicionais, os indígenas, em decorrência do contato com a sociedade ocidental, conclui pela existência de um processo inexorável de mudança cultural resultante das situações de interação com as frentes de expansão, processo cuja causa reside no poder da sociedade envolvente, que atua como “uma força irresistível de desintegração” 17. Embora o antropólogo analise o resultado da interação entre os índios e uma sociedade envolvente, mutatis mutandi, o fenômeno é observável também com relação a outras populações tradicionais que, outrora relativamente isoladas, com contato apenas com pequenas cidades ou vilarejos e sem meios de comunicação, progressivamente têm acesso a cidades em crescimento, melhorias no

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Serge Frontier, Ecossistemas, p. 144. José Sávio Leopoldi. “Rousseau, estado de natureza, o ‘bom selvagem’ e as sociedades indígenas”, p. 162. 14 Terra-pátria, p. 35. 15 Serge Frontier, Ecossistemas, p. 147. 16 Sistema Nacional de Unidades de Conservação, p. 178-179. 17 Os índios e a civilização, p. 246. 13

transporte e nos meios de comunicação, tudo os colocando em contato com novos e mais valiosos bens de consumo. Desse modo, parafraseando Darcy Ribeiro, para as populações tradicionais, a sociedade urbana envolvente está armadas de força suficiente para subjugá-las e para desagregar suas estruturas sócioeconômicas, a fim de engajar na mão-de-obra regional os integrantes dela desgarrados, e para compelir, mesmo aqueles que permaneçam apegados à comunidade tradicional, a se integrarem no sistema econômico capitalista18. Isto porque o poder deculturativo da sociedade urbana manifesta-se mais forte e dissimulado sob as práticas corriqueiras da economia de mercado e da sociedade de consumo, através da sutil escravidão do “efeito demonstração”, fazendo com que o tradicional experimente a crescente necessidade de obter bens como, por exemplo, eletrodomésticos, eletroeletrônicos, veículos, embarcações motorizadas, roupas, cosméticos, móveis e brinquedos. O saber tradicional e sua pressuposta harmonia com a natureza, alicerce da estratégia legislativa de conservação das reservas extrativistas, dá lugar à assimilação dos valores econômicos da economia capitalista, adotando-se “atitudes racionalistas e competitivas nas relações intergrupais em prejuízo dos antigos sistemas de sanções e recompensas.” 19. Na lógica do mercado, as pessoas “são tratadas como coisas, valem pelo que produzem ou pelo que possuem” 20. De fato, ao contrário dos índios, as populações tradicionais nunca se estruturaram para si, mas sempre como um proletariado externo posto a serviço de seu centro reitor, lhe fornecendo os bens de que necessitava, no caso específico dos seringueiros, o látex para fabricação da borracha, dos castanheiros, a coleta de castanha, dos caiçaras, a pesca, dentre outros exemplos. Sua função básica sempre foi, por isto, a de fornecimento de mão-de-obra ou de bens naturais. Com o desmantelamento do comércio da borracha e de outras atividades tradicionais, somado à condições externas como a escassez de madeira no contexto amazônico, as populações tradicionais são instadas cada vez mais a participar da economia regional (que lhe oferece cada vez mais e mais valiosos bens de consumo), e seu sistema de provimento de subsistência – outrora ambientalmente sustentável – desorganiza-se, aumentando cada vez mais sua dependência em relação à sociedade externa. Em outras palavras, não se trata de colher látex e castanhas para possibilitar a aquisição de alimentos não perecíveis industrializados, mas sim para adquirir, por exemplo, eletroeletrônicos hoje tidos como essenciais, o que se fará através da alienação dos recursos naturais existentes nas unidades de conservação. Necessitando produzir bens de que necessite a sociedade externa, no aspecto econômico o tradicional se engaja na economia agropastoril, seja criando seu pequeno rebanho bovino, seja arrendando suas terras para pecuaristas, seja oferecendo-se como mão-de-obra para aqueles, ressaltando-se que nos dois primeiros exemplos desmata, se preciso for, os espaços necessários. Estas atividades, juntamente com as madeireiras, provocam progressivas (e agressivas) transformações na paisagem, criando condições 18

Idem, p. 27. Idem, p. 379. 20 Idem, p. 391. 19

econômicas e ecológicas novas em que o sistema adaptativo tradicional se torna inoperante e ambientalmente insustentável. Ora, o sistema adaptativo é justamente o alicerce da sustentabilidade ambiental, consistente na reposição da matéria/energia retirada do meio através do uso de recursos naturais. Os novos métodos de uso dos recursos operam de acordo com técnicas e procedimentos prescritos no exterior, absolutamente incompatíveis com os requisitos de tradicionalidade, sustentabilidade e complementaridade (em relação ao uso de recursos madeireiros). 2.6. Situação atual O contexto observado atualmente nas reservas extrativistas é de crise do modelo tradicional de vida. Conforme diagnosticado pelo WWF-Brasil, atualmente as associações representantes dos extrativistas, têm orientado sua estratégia de atuação nas reservas extrativistas para o desenvolvimento de experiências de geração de renda baseadas no manejo florestal de recursos madeireiros. Esta atividade econômica, conforme objetivos de criação da reserva, deveria ser complementar as demais atividades extrativistas tradicionais. Tendo em vista a atual crise econômica por que passa o movimento extrativista, muito em função dos baixos preços da borracha e da castanha, a madeira tem sido prioritariamente o principal produto explorado em algumas reservas21. Conforme aponta Georgheton Melo Nogueira, assiste-se na atualidade à mercantilização da visão sobre a Natureza por parte dos povos que nela vivem. “É o mundo e toda a sua diversidade reduzido à realidade do mercado”, anota o economista, que, ao indagar em reunião de extrativistas em qual atividade investiriam os recursos oriundos da venda de madeira extraída da reserva, recebeu como resposta majoritária que isto ocorreria na criação de bovinos22, concluindo acertadamente que “a extração da madeira é vista pelos manejadores comunitários como uma forma de capitalização suficientemente capaz de engendrar outras atividades, geralmente determinadas pela afinidade e pelas expectativas de retorno” 23

. Mercantilização da sociedade mundial, globalização e rompimento de barreiras através da

melhoria dos meios de comunicação, expansão desenfreada das fronteiras de povoamento, ausência de políticas públicas efetivas, enfim, inúmeras são as causas para o contexto de ampla transfiguração cultural das populações tradicionais, o que inevitavelmente acarreta alterações sobre os usos dos recursos naturais e, por sua vez, consequências jurídicas decorrentes da violação das normas do SNUC. 21

Diagnóstico da atual situação do manejo florestal comunitário nas reservas extrativistas estaduais de Rondônia, p. 3. A atividade pecuária em RESEX viola de modo frontal as normas no SNUC, já que a o art. 18, caput, da Lei 9.985/2000, determina que tal modalidade de unidade de conservação tem sua área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, tendo como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais. Ora, é claro que a criação de bovinos não faz parte do extrativismo, nem se trata de criação de animais de pequeno porte e nem pertence ao meio de vida e cultura das populações tradicionais, além de ser de duvidosa sustentabilidade. 23 “Manejo comunitário madeireiro: uma falha de concepção”. In Página 20, Rio Branco, 11.3.2007, p. 20-21. 22

3. Manejo florestal, manejo florestal comunitário e aspectos controversos A Lei 11.284/2006, que regula a gestão de florestas públicas, conceitua em seu art. 3º manejo florestal sustentável como a administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras, de múltiplos produtos e subprodutos não madeireiros, bem como a utilização de outros bens e serviços de natureza florestal (inciso VI)24. O manejo florestal sustentável tratado pelo referido diploma legal, recai sobre as florestas públicas, isto é, as florestas naturais ou plantadas, localizadas nos diversos biomas brasileiros, em bens sob o domínio da União, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal ou das entidades da administração indireta (inciso I). O art. 4o dispõe que a gestão de florestas públicas para produção sustentável compreende a criação de florestas nacionais, estaduais e municipais, nos termos do art. 17 da Lei 9.985/2000, e sua gestão direta (inciso I) e a destinação de florestas públicas às comunidades locais, nos termos do art. 6o desta Lei (inciso II). O art. 6º, por sua vez, dispõe que as florestas públicas ocupadas ou utilizadas por comunidades locais serão identificadas para a destinação, pelos órgãos competentes, por meio da criação de reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, observados os requisitos previstos da Lei 9.985/2000 (inc. I). No caso das reservas extrativistas, não se aplica o regime de concorrência previsto na Lei 11.284/2006, já que o uso dos recursos naturais já lhe foi concedido através de contrato de concessão real de uso. Valem, neste caso, as regras do SNUC. Para a exploração de recursos madeireiros se faz necessário prévio licenciamento ambiental, haja vista o caráter potencialmente degradado da atividade (Constituição da República, art. 225, § 1º, IV). Deverá ser elaborado plano de manejo florestal sustentado, custeado por ente público gestor da unidade ou pela entidade representativa da população tradicional (art. 12, “caput”, do Decreto 4.340/2002). Não existe ainda um delineamento seguro entre os conceitos de plano de manejo florestal sustentável (utilizado no caso de propriedades privadas e florestas públicas) e plano de manejo florestal comunitário (a ser utilizado em RESEX). Entretanto, é certo que este deve possuir como características: exploração em menor escala (ou seja, menor quantidade de madeira extraída), repartição de benefícios entre os membros da comunidade e emprego de mão de obra da comunidade local. O sistema exige uma base de operação extremamente complexa e de altíssimo custo, exigindo níveis elevados de subsídios, seja através do governo, seja através das organizações não governamentais, acarretando uma sugestiva eterna dependência dos extrativistas aos agentes externos. Aliás, em termos 24

Como se observa do texto legal, o manejo florestal é uma forma de exploração de recursos naturais que não se restringe à madeira. Entretanto, na atualidade a esmagadora maioria dos planos de manejo florestal sustentável tem por objetivo de fato a extração de toras de madeira. Por esta razão, inclusive, preferimos abordar o tema utilizando a expressão “exploração madeireira em reservas extrativistas”.

sociais, culturais, econômicos e, em parte, também ambientais, a base técnica do manejo comunitário madeireiro está para as comunidades de extrativistas assim como a base técnica da revolução verde (agricultura convencional) esteve e está para a agricultura camponesa. Sem a tutela do Estado e das entidades civis, dificilmente comunidades de extrativistas se empenhariam em realizar algo tão complexo25. Muitos são os argumentos contrários a exploração madeireira nas reservas extrativistas. Em primeiro lugar, existe o entendimento segundo o qual o extrativismo compreende apenas recursos nãomadeireiros, já que a madeira não é facilmente renovável em condições naturais. Além disso, segundo a origem da atividade extrativista e o “meio de vida e cultura das populações tradicionais”, a madeira não faz parte dos produtos extrativistas (exceto para o consumo próprio), provavelmente pelo reconhecimento intuitivo do seringueiro quanto ao alto impacto resultante de sua exploração, que afetaria a exploração da borracha, da castanha e dos demais produtos florestais 26. Por outro lado, Vandana Shiva e Wolfgang Sachs apontam como a exploração de madeira, atividade de caráter exógeno, termina por violentar as populações tradicionais, retirando delas, pouco a pouco, o direito a viver da floresta, devido aos impactos resultantes da exploração27. Afirmam que a exploração de madeira vem como uma proposta externa, de alguns órgãos técnicos, imbuída de um discurso dogmático e conservacionista, mas que, na verdade, representa um impacto cultural, por não respeitar o significado que a floresta tem para as populações tradicionais, nem seu meio de vida28. No âmbito da engenharia florestal, as árvores maiores e mais velhas, que são justamente as prioritárias na exploração, e que tem alta importância ecológica e significação cultural, não são renováveis. Não bastasse isso, não existem estudos mínimos, sistematizados, sobre a ecologia das espécies arbóreas, de forma que se questiona a renovabilidade das espécies exploradas nos ciclos de corte propostos de trinta anos29. Lembre-se, ainda, que a retirada da madeira encerra os serviços ambientais que a árvore abatida antes prestava. A legislação e a certificação da madeira manejada contemplam, basicamente, critérios sociais, sendo dispensada pouca ou nenhuma atenção ao critério ecológico. Por exemplo, os danos à fauna resultantes da operação das motosserras e da abertura de estradas e pátios não são estudados ou mitigados. Os critérios básicos do manejo são, e sempre foram desde a origem da engenharia florestal, ou seja, critérios econômicos. Todavia, a sustentabilidade a ser exigida, na extração de madeira de reservas extrativistas, deve ser a ambiental (ecológica) e não econômica. Estudos prévios recomendam maior cautela, com maiores zonas preservadas, monitoramento do impacto ecológico, menores índices de exploração e reflorestamento (plantio e acompanhamento de mudas no pós-exploratório)30. 25

Georgheton Melo Nogueira. “Manejo comunitário madeireiro: uma falha de concepção”, p. 20. Sculze et al, 2005; Souza, 2002; e Wilson, 1988, citados por Roberta Graf e Arlindo Gomes Filho. “Exploração comercial de madeira nas reservas extrativistas”. 27 Em países da América Central, África e Ásia o manejo madeireiro tem gerado grandes impactos ambientais e sociais. 28 Idem. 29 Schulze et al, 2005. Idem. 30 Idem. 26

No aspecto social, a exploração de madeira acaba sendo concorrente dos produtos nãomadeireiros, desestimulando a atividades extrativistas e de turismo, incrementando a transfiguração cultural de populações outrora tradicionais. Roberta Graf e Arlindo Gomes aduzem que os impactos socioambientais têm sido significativos nas áreas já sujeitas ao manejo madeireiro no Acre, ainda que na modalidade “comunitária”. Poucas famílias são incluídas em cada projeto, o que causa desagregação social. Ao redor das áreas manejadas, instaura-se um cinturão de crimes ambientais diversos, inclusive com acentuada venda ilegal de madeira, pela influência dos atrativos comerciais abertos na região. O manejo madeireiro também abre acesso a áreas protegidas, e dá margem à expansão da pecuária, tendo sido chamado de “desmatamento oculto”. Tem sido comum, no Acre, posseiros de áreas manejadas plantarem capim nas estradas, clareiras e pátios abertos31. Alem disso, deve-se destacar que, diante da incapacidade do Poder Público de fiscalização dos planos de manejo em propriedades privadas, seria muito pouco prudente autorizar tal espécie de atividade em áreas protegidas como as reservas extrativistas. Na verdade, o manejo florestal madeireiro pode servir para substituir práticas predatórias das empresas madeireiras, mas não para ser aplicado como política de desenvolvimento socioambiental em unidades de conservação. O atrativo econômico da madeira, aliado à lentidão do desenvolvimento do extrativismo nãomadeireiro enquanto fonte de renda consolidada, explicam o caminho adotado por governos e comunidades. Porém, é necessário ressaltar que a renda aliada à conservação da floresta tende, inevitavelmente, a aumentar no futuro próximo, dado o interesse mundial pela Floresta Amazônica. A tendência de desenvolvimento da cadeia produtiva de uma maior variedade de produtos não-madeireiros (incluindo beneficiamento local, certificação e agregação de valor), aliado ao ecoturismo e turismo cultural, à remuneração pelos serviços ambientais, à repartição de benefícios pelo conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, à bioprospecção e a biotecnologia, gerarão cada vez mais renda, e dependerão da floresta conservada32. 4. Casuística Como quase tudo que se produz no Brasil, a casuística da exploração madeireira nas reservas extrativistas é extremamente diversificada. No Acre, já se encontram em execução inúmeros planos de manejo, financiados por entidades sem fins lucrativos ou pelo Estado. Estes projetos têm de alguma forma gerado renda para as populações locais, embora estas reinvistam o capital em atividades de grande

31 32

Idem. Georgheton Melo Nogueira. “Manejo comunitário madeireiro: uma falha de concepção”, p. 21.

potencial degradador como pecuária extensiva33, que é proibida pelo art. 18 da Lei 9.985/2000, evidenciando total desestruturação do modo de vida tradicional. Já em Rondônia, como seria de se esperar, o grau da patologia é mais profundo. Há o exemplo da RESEX estadual do Rio Pacaás Novos, na qual o custoso plano de manejo florestal foi custeado pelas associações representativas de seringueiros, todavia mediante empréstimos tomados junto a empresários do setor madeireiro, e garantidos mediante compromisso de venda futura de madeira. Não bastasse isso, tudo licenciado pelo gestor estadual. De um modo geral, em Rondônia as entidades de seringueiros associara-se a madeireiros, consentindo com a exploração da madeira em padrões empresariais, recebendo pagamento da madeira in natura, tudo com a chancela do Estado. Felizmente tais condutas vem sendo combatidas pelo Ministério Publico através de ação civil publica, estando referido plano de manejo suspenso liminarmente por decisão judicial34. É reproduzido, desse modo, o modelo de servidão que sempre vigorou entre os seringueiros amazônicos. Se antes se endividavam com o seringalista ou com o comerciante do “regatão”35, os quais pagavam com o recurso natural do látex da seringa, agora estão endividados com madeireiros em milhões de reais (valor gasto em elaboração do plano de manejo florestal, construção de estradas para escoamento da produção, etc.) e pagarão com a preciosa madeira. Nasce uma servidão de longo prazo que será paga com recursos naturais da coletividade difusa. Em verdade, é fato notório que os madeireiros sempre zombaram da figura legal das Florestas (nacionais ou estaduais), haja vista a facilidade de exploração predatória e sem limites. Todavia, com a escassez de madeira e aumento da fiscalização, a pressão sobre os recursos naturais aumentou sobremaneira, levando autoridades públicas a chancelar a predação no interior de unidades de conservação, usando ainda o argumento pífio de que isto acarretará melhoras na condição social das populações tradicionais, lançadas à penúria pela ausência de política socioambiental governamental36. Em suma, ao arrepio da lei, o que se está pretendo implantar em inúmeras reservas extrativistas é, em poucas palavras, um projeto de bases empresariais que outorga a particular a exploração de recursos públicos. Para isso o SNUC prevê a figura da Floresta Nacional 37. De fato, empresas madeireiras, em conluio com entidades seringueiras construíram, em alguns casos com a chancela dos órgãos ambientais estaduais, um meio de burlar a necessidade de processo licitatório para a concessão do uso de Florestas Nacionais ou Estaduais, propiciando que particulares se apoderem de bem público (o patrimônio florestal) sem se submeterem à concorrência pública. 33

Georgheton Melo Nogueira. “Manejo comunitário madeireiro: uma falha de concepção”, p. 20. Referido autor atenta que, na verdade “a extração da madeira é vista pelos manejadores comunitários como uma forma de capitalização suficientemente capaz de engendrar outras atividades, geralmente determinadas pela afinidade e pelas expectativas de retorno”. 34 Autos da ação civil publica ajuizada pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual de nº 2008.41.00.004506-0, tramitando na 2ª Vara Federal da Seção Judiciária de Rondônia. 35 Na região amazônica, tal expressão significa o comerciante que vende as populações rurais gêneros industrializados. 36 De fato, inconcebível que a venda de madeira possa ser aceita como única ou principal fonte de renda de populações tradicionais. 37 Que, nos termos do art. 17 da Lei 9.985/2000, é uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas.

Para isso, associações representativas dos seringueiros concordam em serem utilizadas como “testas-de-ferro” para que empresas madeireiras possa explorar florestas intocadas das reservas extrativistas, mediante pagamento do valor da madeira bruta à lideranças, como se fosse a simples venda de madeira de uma propriedade privada. Entretanto, ainda que a ilegalidade não atinja tal magnitude, o problema não é exclusivo do Brasil e vivencia-se em toda a América Latina, na África, Austrália e Nova Zelândia. Na África, o sistema de manejo comunitário refletiu a adoção do paradigma socioambiental e tendeu a valorizar muito mais o aspecto humano, em detrimento da conservação, que passou a ser finalidade secundária. O mesmo sistema foi implantado na Austrália (a partir no modelo africano), porém sem êxito, assim como ocorreu no Zimbábue. Isto porque tanto na Austrália como na África as populações tradicionais demonstraram má-vontade em participar da conservação da vida silvestre, o que se verificou mais acentuadamente nas áreas mais pobres e nas áreas em que a natureza era considerada um empecilho à agropecuária38. Como constata Adrián Monjeau, “Ante las presiones sociales por el uso de recursos dentro de áreas protegidas, los manejadores se ven impulsados a bajar la categoría de protección en parte del área protegida”39. Em outras palavras, diante dos interesses imediatos de poucos, sacrificam-se os interesses presentes e futuros de muitos. Além do simples problema da exploração madeireira, a própria figura das reservas extrativistas encontra-se em discussão, dada a complexa problemática envolvida na gestão, que não agrada nem aos que buscam a conservação da biodiversidade e nem os que almejam a dignidade das populações tradicionais. De fato, se as populações não desenvolvem mais o extrativismo, mas atividades majoritariamente agropecuárias, não há sentido na existência desta modalidade de unidade de conservação. Chega-se a cogitar a transformação das reservas ou de parte destas em assentamentos, solução a absolutamente inconstitucional, porque viola o princípio da proibição da retrogradação ambiental. Nos termos da Lei 6.938/1981, degradação ambiental é a “alteração adversa das características do meio ambiente” (art. 3o, II), ou seja, é a resultante dos processos de danos ao meio ambiente, pelos quais se perdem ou se reduzem algumas de suas propriedades40. Como da degradação ambiental advém conseqüências negativas para a qualidade de vida, o princípio da proibição da retrogradação visa proteger os processo ecológicos e o respectivo equilíbrio, essencial à vida sadia nos termos do caput do art. 225 da Constituição. Neste caso, a melhor solução seria, especialmente em obediência ao art. 225, caput, e § 1º, III, da Constituição da República, o assentamento das populações em outros imóveis localizados fora da reserva extrativista e a transformação desta em unidade de conservação de proteção integral.

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Michael Jeffery Q. C. e Donna Craig. “Wildlife management in Australia: different perspectives on indigenous participation”, p. 235. 39 “Conservación de la biodiversidad, áreas protegidas y gente: escalas diferentes, problemas diferentes”. 40 Édis Milaré, p. 976.

5. Medidas judiciais cabíveis 5.1. Ação popular e ação civil pública A ação popular, nos termos do art. 5o, LXXIII, da Constituição da República, é passível de ser ajuizada por qualquer cidadão, visando a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, sendo o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. É regulamentada pela Lei 4.717/1965, sendo instrumento de extrema relevância, pois colocado à disposição de qualquer cidadão, embora infelizmente pouco utilizada na prática. Todavia, dentre os instrumentos processuais existentes na legislação para defesa do meio ambiente, sem dúvida destaca-se em primeiro plano a ação civil pública, introduzida em nosso ordenamento pela Lei 7.347/85. Tem por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer (art. 3o)41 e poderá ser ajuizada pelo Ministério Público, pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação civil que esteja constituída há pelo menos um ano, e inclua entre suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 5o)42. 5.2. Responsabilização penal Qualquer exploração de recursos naturais em reservas extrativistas fora dos parâmetros traçados no SNUC constitui dano à unidade de conservação, caracterizando o tipo penal do art. 40 da Lei 9.605/1998. Além disso, independendo da verificação do dano, em relação aos agentes públicos responsáveis pelo licenciamento da atividade de extração de madeira na unidade, deve-se analisar a incidência do art. 67 da referida lei. Também independente de dano, se for verificado descumprimento do contrato de concessão real de uso pelas comunidades locais, pode estar caracterizado o crime do art. 68. Tanto no caso do art. 67 como do art. 68, incide a agravante do art. 15, II “e” (pois o crime atinge unidade de conservação), e, se comprovada a intenção ao infrator em obter vantagem pecuniária, a agravante do art. 15, II “a”. 5.3. Responsabilização por ato de improbidade administrativa

41

Seja suspendendo o licenciamento ou execução da exploração madeireira ou condenando-os à reconstituição do ambiente lesado ou reparação dos danos causados. 42 Na esfera pré-processual, o Ministério Público tem à disposição com a exclusividade a utilização do inquérito civil (art. 8o, par. 1o, da Lei 7347/85), instituto que tem a finalidade de, através de atividade investigatória de natureza administrativa reunir elementos de convicção (provas documentais, orais ou periciais) para ajuizamento de ação civil pública ou formulação de termo de ajustamento de conduta (art. 5o, par. 6o, da mesma Lei).

Tem-se observado que em muitos casos hoje existentes de exploração madeireira em reservas extrativistas, existe a ação dolosa ou a omissão dos agentes públicos responsáveis pela gestão, licenciamento ambiental e fiscalização destas unidades de conservação. Certamente motivados por injunções políticas (já que a exploração de madeira agrada a todos: comunitários e madeireiros), servidores e agentes políticos têm agido de forma deliberada a fim de dotar tais procedimentos de um verniz de legalidade ou simplesmente fazer vista grossa à esta dilapidação do patrimônio público (lembrese que o patrimônio florestal pertence ao ente público, sendo apenas o uso tradicional concedido às populações extrativistas). Neste ponto, oportuno lembrar que o art. 38 da Lei nº 9.985/2000, dispõe que a ação ou omissão das pessoas físicas ou jurídicas que importem inobservância aos preceitos desta Lei e a seus regulamentos ou resultem em dano à flora, à fauna e aos demais atributos naturais das unidades de conservação, bem como às suas instalações e às zonas de amortecimento e corredores ecológicos, sujeitam os infratores às sanções previstas em lei. Verifica-se, assim, que tais condutas comissivas ou omissivas amoldam-se aos tipos civis previstos na Lei 8.429/1192 (Lei de Improbidade Administrativa). Em primeiro lugar, no art. 10, visto que, sendo tais florestas bens públicos, a exploração comercial ocorre à custa do erário, além do prejuízo ao patrimônio ambiental, violando-se dois direitos difusos: o direito ao meio ambiente e à probidade administrativa. Subsidiariamente, existe cabal violação dos princípios da legalidade, da lealdade e da moralidade (art. 11), sem falar no possível enriquecimento ilícito de terceiros (art. 9º, quando se provar que os proventos obtidos com a venda da madeira foram desviados da comunidade). 6. Conclusões Conforme ensina Jose Eduardo Ramos Rodrigues, ao analisar que a Constituição da República de 1988 determinou que o Poder Público, para assegurar a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, deveria definir em todas as unidades da federação espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos (art. 225, § 1º, III), o espaço territorial especialmente protegido é o instrumento jurídico para a garantia do direito constitucional das presentes e futuras gerações ao ambiente sadio e equilibrado43. As unidades de conservação são, portanto, instrumento para concretização do direito fundamental difuso ao meio ambiente, cujos titulares são as presentes e futuras gerações. As reservas extrativistas são, geneticamente, áreas protegidas com finalidade dupla: possibilitar a conservação da biodiversidade por meio do uso sustentável dos recursos naturais da unidade e a proteção do modo de vida (extrativismo) e cultura das populações tradicionais. Em se tratando de RESEX, o interesse da coletividade difusa é a concretização destes dois objetivos, e nenhum outro além destes. As atividades econômicas permitidas em reservas extrativistas são o extrativismo e, complementarmente, a agricultura de subsistência e a criação de animais de pequeno porte. O domínio da 43

Op. cit, p. 25.

área (nisso se incluindo todos seus recursos naturais) é público, sendo o uso concedido às populações extrativistas tradicionais (art. 18, § 1º), o que se dá em caráter revogável, no caso de danos ao meio ambiente. A exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais atividades desenvolvidas na Reserva Extrativista (art. 18, § 7º) Delineiam-se, assim, cinco princípios orientadores das reservas extrativistas: publicidade, tradicionalidade, sustentabilidade qualificada e, com relação ao uso de madeira, excepcionalidade e complementaridade (ou subsidiariedade). Atualmente, assiste-se a um processo de transfiguração cultural das populações tradicionais, que se inserem na economia de mercado e mercantilizam seu modo de vida. Para saciar seus desejos consumeristas, necessitam alienar os recursos naturais existentes nas reservas (sendo a madeira o mais valioso sob um prisma imediatista), o que, por outro lado, atende justamente à crescente pressão exercida pelo setor explorador de madeira. Sob o manto do manejo florestal comunitário consolida-se o uso de patrimônio público florestal com a finalidade de atender aos desejos destes dois setores, em prejuízo da conservação da Natureza. A banalização da exploração de madeira em reservas extrativistas viola as normas do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, acarretando tanto a alteração do modo de vida tradicional como danos à biodiversidade, ou seja, atingindo justamente os dois bens jurídicos tutelados. Os atos que importarem na exploração madeireira fora dos parâmetros do SNUC podem ser combatidos na esfera civil com o manejo da ação popular ou da ação civil pública, visando evitar ou suspender a atividade danosa ou, ainda obter a reconstituição do ambiente lesado ou a reparação dos danos. Na esfera penal, os agentes públicos ou privados podem incorrer nos tipos dos artigos 40, 67 e 68 da Lei 9.605/1998. Na esfera da defesa da probidade administrativa, os infratores podem ser responsabilizados nos termos da Lei 8.429/1992. 7. Bibliografia ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 6a ed., Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002. BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcelos et al. Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense, 2001. ______. “O regime brasileiro das unidades de conservação”. In Revista de Direito Ambiental. São Paulo. v. 21, p. 27-56, 2001.

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