Explorando a relação entre agrobiodiversidade e solos antrópicos no médio Rio Madeira, Amazonas, Brasil.

September 20, 2017 | Autor: Charles R. Clement | Categoria: Agrobiodiversity, Historical Ecology, Amazonian Dark Earths
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Métodos e Técnicas na Pesquisa Etnobiológica e Etnoecológica 2010 ISBN: xxxxx-xxxx-xxx-x

Explorando a relação entre

6

agrobiodiversidade e solos antrópicos no médio Rio Madeira, Amazonas, Brasil André Braga Junqueira1, Nicholas Charles Kawa2,3, James Angus Fraser4, Charles Roland Clement1,5

Apresentação Os solos antrópicos são ambientes muito particulares na paisagem Amazônica, pois surgiram a partir da intensa atividade humana nos tempos pré-Colombianos. Essa atividade, juntamente com a utilização e manejo desses ambientes pelas populações atuais, deu origem a uma agrobiodiversidade específica, que difere em vários aspectos da agrobiodiversidade associada a solos nãoantrópicos. Essas diferenças têm sido demonstradas por uma série de evidências de diversas disciplinas, porém muitos processos relacionados a esse assunto são ainda muito pouco conhecidos. Nesse capítulo, são apresentados e discutidos em detalhe alguns estudos recentes realizados na região do médio Rio Madeira, Amazonas, que têm contribuído para o conhecimento da relação entre solos antrópicos e a agrobiodiversidade. Correspondência: 1Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Coordenação de Pesquisas em Ciências Agronômicas. Av. André Araújo, 2936 – Manaus, Amazonas, Brasil. 69060-001. [email protected]; 2 University of Florida, Department of Anthropology, 1112 Turlington Hall, P.O. Box 117305, Gainesville, FL, 32611 USA. [email protected]; 3Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Programa de Pós-Graduação em Botânica. Av. André Araújo, 2936 – Manaus, Amazonas, Brasil. 69060-001. 4University of Sussex, Department of Anthropology. Falmer, Brighton, BN1 9SJ, Inglaterra. [email protected]; 5 [email protected].

Junqueira et al.

Introdução A visão da Amazônia como uma floresta primitiva, intocada e minimamente impactada pelas populações indígenas que a habitaram no passado tem sido gradualmente substituída pela idéia de que diversas regiões foram densamente habitadas, por sociedades relativamente complexas, e que promoveram alterações significativas na paisagem Amazônica (Heckenberger et al. 2003; 2007; Mann 2005). Existem diversas evidências que sustentam essa nova visão, e uma das mais marcantes é o fato de que, espalhados ao longo de toda a bacia Amazônica, ocorrem manchas de solos antrópicos chamados de Terra Preta, ou Terra Preta de Índio (TPI). As manchas de TPI são sítios arqueológicos, datados em sua maioria de 500 a 2500 anos antes do presente (Neves et al. 2003), e formados pela deposição intensiva de diversos tipos de matéria orgânica (em particular carvão) em áreas de habitação e de agricultura dos povos pré-Colombianos (Smith 1980; Lehmann et al. 2003; Glaser et al. 2004; Denevan 2004; Schmidt 2010). Como resultado desse processo, cujos detalhes ainda são objeto de estudo (Arroyo-Kalin 2010), foram formados solos de alta fertilidade, que contrastam dramaticamente com os solos pobres que predominam nas áreas não-alagáveis (terra firme) da bacia Amazônica (Chauvel et al. 1987; Lehmann et al. 2003). As características peculiares da TPI e sua histórica associação com a atividade humana fazem com que esses ambientes possuam uma relação particular com a agrobiodiversidade. Recentemente, estudos de diversas áreas têm sustentado que, desde o surgimento dos solos antrópicos na Amazônia, eles estiveram relacionados a formas particulares de uso e manejo de recursos resultando em padrões e processos específicos ligados à agrobiodiversidade. Cada vez que os habitantes da Amazônia préColombiana criavam assentamentos em determinado local, mesmo que temporários, eles criavam também uma lixeira, onde descartavam restos de alimentos, incluindo sementes e outros propágulos (Anderson 2005). Nos assentamentos temporários, essas áreas de lixeiras geravam concentrações de recursos, o que atraía o retorno de humanos para o local; nos assentamentos permanentes, as lixeiras gradualmente se transformavam em jardins e pomares caseiros (Lathrap 1977). Ao longo desse processo, que envolve o manejo e a transformação de solos e de plantas, não só surgiu a TPI como também foram domesticadas plantas anuais e arbóreas (Clement et al. 2009a). De fato, a criação de TPI na Amazônia é concomitante ao processo de domesticação de diversas plantas domesticadas na Amazônia (Arroyo-Kalin 2010). Desde a conquista européia, as TPI também se transformaram em laboratórios de adaptação de cultivos exóticos, pois estes freqüentemente possuem demandas nutricionais maiores do que os cultivos nativos adaptados a solos não antrópicos (Clement et al. 2003,

Agrobiodiversidade em Terra Preta de Índio

2009). Não é de se estranhar, portanto, que os solos antrópicos sempre tenham demonstrado uma relação tão estreita e particular com a agrobiodiversidade na Amazônia. A TPI tem sido considerada como um modelo de agricultura “sustentável” nos trópicos (Glaser et al. 2001), que tem norteado esforços conjuntos de instituições brasileiras e estrangeiras para a criação de solos de alta fertilidade na Amazônia (Terra Preta Nova). Nesse contexto, entender as relações entre TPI e agrobiodiversidade é fundamental para definir quais serão os cultivos e as formas de manejo mais adequadas da agrobiodiversidade nesses solos. Além disso, a TPI serve como um exemplo importante da forma que a ação humana pode concentrar agrobiodiversidade e agregar heterogeneidade à paisagem Amazônica como um todo (Junqueira et al. 2010). Nesse capítulo, partiremos de uma abordagem geral da relação da TPI com a agrobiodiversidade para discutir, de maneira mais detalhada, alguns estudos realizados recentemente na região do médio Rio Madeira que trataram dessa relação.

1. Agrobiodiversidade e solos antrópicos: uma relação ancestral Há pelo menos 12 mil anos as populações amazônicas vêm manejando a paisagem das mais diversas formas, em geral no sentido de torná-la mais produtiva e segura para humanos, num processo conhecido como domesticação da paisagem (Clement 1999). No entanto, esse processo não ocorre de maneira homogênea no espaço, mas é concentrado no entorno das áreas de habitação, agricultura e outras áreas de uso das comunidades (Bush & Silman 2007). Assim como nos sistemas de produção atuais, isso gera um gradiente de áreas mais domesticadas, sujeitas ao manejo intensivo e que apresentam modificações profundas na vegetação e nos solos (TPI), para áreas menos domesticadas, com intervenções mais sutis na paisagem. Esse gradiente é também determinante para a agrobiodiversidade: é justamente nas áreas mais habitadas, utilizadas e manejadas onde a criação, manutenção e transformação da agrobiodiversidade ocorrem de maneira mais intensiva, e a intensidade desses processos vai diminuindo à medida em que se distancia das áreas onde a domesticação da paisagem é mais evidente. As áreas de TPI são historicamente associadas às áreas onde o manejo da agrobiodiversidade ocorreu de maneira mais expressiva. Por serem próprias de quintais e pomares caseiros, onde a experimentação indígena é mais evidente, as áreas de TPI sempre funcionaram como um laboratório genético e agronômico (Hiraoka et al. 2003; Clement et al.

Junqueira et al.

2003), além do que seus altos teores de nutrientes as tornam ambientes propícios à diversidade vegetal como um todo (Lehmann et al. 2003). A discussão da relação entre TPI e agrobiodiversidade é relativamente recente na literatura. Desde o final da década de 90, foram publicados diversos estudos abordando diferentes aspectos relacionados à agrobiodiversidade em TPI, porém em muitos casos essa questão foi abordada apenas tangencialmente. Revisões dos trabalhos mais importantes acerca da agrobiodiversidade e da diversidade vegetal associada aos solos antrópicos da Amazônia foram publicadas por Clement et al. (2003) e Clement et al. (2009b). De maneira geral, esses trabalhos mostram que, em diferentes ambientes associados aos solos antrópicos (roças, quintais urbanos, pomares caseiros, florestas secundárias, etc.), existem padrões e processos específicos relacionados à agrobiodiversidade associada à TPI, porém o conhecimento a respeito deles ainda é bastante incipiente.

2. Agrobiodiversidade em solos antrópicos na região do médio Rio Madeira A bacia do Rio Madeira é uma região particularmente interessante quanto à sua ecologia histórica. O alto Rio Madeira, com cicatrizes nítidas da ocupação humana na forma de numerosos geoglifos (Pärssinen et al. 2009) e campos elevados (Erickson 2003), parece ter sido o berço da domesticação da mandioca (Manihot esculenta Crantz ), pupunha (Bactris gasipaes Kunth) e outras plantas de suma importância para as populações amazônicas (Clement et al. 2010; Clement & Junqueira 2008), e talvez tenha hospedado o surgimento da agricultura na Amazônia (Neves 2008). Além disso, as manchas de Terra Preta mais antigas já escavadas estão localizadas na região do Rio Jamari, em Rondônia, também na bacia do alto Rio Madeira (Miller 1992). Mesmo após a conquista européia e a dizimação de grande parte da população indígena na Amazônia, o Rio Madeira se manteve como uma região de relevante diversidade agrícola e sociocultural, além do que a depopulação do Rio Madeira ocorreu posteriormente a outras regiões da Amazônia (i.e., a região permaneceu “vazia” por menos tempo). A chegada massiva de imigrantes nos ciclos do cacau e da borracha transformou profundamente as relações sociais e também as formas de uso e manejo de recursos, resultando em novas transformações na paisagem. Com a herança do conhecimento indígena, das manchas de TPI, das florestas antropogênicas e de outros tipos de paisagens domesticadas pelas populações indígenas no passado, os caboclos do Rio Madeira desenvolveram conhecimentos, práticas agrícolas e formas de uso e manejo da agrobiodiversidade específicos para essas áreas (Fraser 2010).

Agrobiodiversidade em Terra Preta de Índio

` Recentemente, alguns estudos concluídos e outros em andamento têm investigado de maneira mais aprofundada as áreas de TPI no médio Rio Madeira (Figura 1) e a sua relação com a agrobiodiversidade. A seguir, apresentaremos uma síntese deles no intuito de analisar, de forma integrada, padrões e processos ligados à agrobiodiversidade nas áreas de TPI em diferentes ambientes: as roças, os quintais e as florestas secundárias. 61°20'0"W

61°0'0"W

60°40'0"W

60°20'0"W

60°0'0"W

59°40'0"W

59°20'0"W

4°20'0"S

4°20'0"S

R

Borba

4°40'0"S

4°40'0"S

5°0'0"S

5°0'0"S

Novo Aripuanã

R

5°20'0"S

R

5°20'0"S

Sede municipal Terreno sujeito a inundação

5°40'0"S

Manicoré

0

R

10 20

® 40

5°40'0"S

60

80 Km

61°20'0"W

61°0'0"W

60°40'0"W

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60°0'0"W

59°40'0"W

59°20'0"W

Figura 1. Mapa mostrando a região do médio Rio Madeira, onde estão localizados os municípios de Borba e Manicoré, Amazonas, Brasil.

2.1.

Roças e plantações anuais

Muitas comunidades no médio Rio Madeira estão localizadas total ou parcialmente sobre manchas de TPI. Essas áreas são reconhecidas pela sua alta fertilidade e, em muitos casos, estão associadas a formas específicas de agricultura. Entretanto, mesmo em áreas geograficamente próximas, como os municípios de Manicoré e Borba (Figura 1), existe muita heterogeneidade quanto aos sistemas de produção agrícola que envolvem a utilização de TPI. Fraser (2009) realizou um inventário das plantas cultivadas em 126 roças em TPI em 13 comunidades no município de Manicoré, e encontrou que, embora houvessem diferentes combinações de espécies, a

Junqueira et al.

maioria das roças era cultivada com mandioca (Tabela 1). Esses resultados vão contra o prévio consenso na literatura (German 2001; Hiraoka et al. 2003; McCann 2004) de que os agricultores preferem plantar cultivos como melancia (Citrullus lanatus (Thunb.) Matsum. & Nakai), mamão (Carica papaya L.) e milho (Zea mays L.) em TPI, e de que mandioca não produz bem em TPI. Os resultados de Fraser (2009) levantam duas questões importantes. Primeiro, quando o acesso ao mercado é difícil (e é esse o caso para a maioria dos agricultores que fizeram parte do estudo), pode fazer mais sentido cultivar mandioca, que é a base de subsistência e para a qual sempre há um mercado, do que outros cultivos como melancia, que podem ser lucrativos porém exigem um bom acesso ao mercado e são mais arriscados. Segundo, a idéia de que mandioca não produz bem em TPI é equivocada, pois é baseada em extrapolações de relativamente poucos exemplos em áreas com pouca agricultura, como o baixo Rio Negro (German 2001), ou com um predomino de agricultura comercial, como a região do médio Rio Amazonas (Hiraoka et al. 2003). Tabela 1. Espécies cultivadas em 126 roças em Terra Preta de Índio em 13 comunidades do município de Manicoré, médio Rio Madeira, Brasil. Cultivo Mandioca Milho Melancia Feijão Mandioca + milho Macaxeira Milho + feijão Milho + macaxeira Diversos cultivos misturados Pastagens Total

Número de roças

% do total

81 14 12 4 4 3 3 2 1 2 126

64,3 11,1 9,5 3,2 3,2 2,4 2,4 1,6 0,8 1,6 100

O cultivo da mandioca em TPI em Manicoré é baseado em teorias locais que orientam a prática de agricultura em diferentes solos e idades de capoeira. Fraser (2010) entrevistou 250 agricultores que cultivam mandioca em diferentes tipos de solo no município de Manicoré: TPI, Latossolos, Argissolos (todos esses na terra firme) e nos Gleissolos característicos das planícies de inundação (várzea). Na região estudada, os agricultores classificam as variedades de mandioca entre “fracas” ou “fortes” de acordo com seu tempo de maturação (i.e., o tempo necessário para que sejam

Agrobiodiversidade em Terra Preta de Índio

colhidas e processadas: menor nas variedades fracas e maior nas variedades fortes) e pela razão entre o volume de “massa” de mandioca (i.e., a mandioca ralada, mas não torrada) e o volume de farinha produzido após a torra: nas variedades fracas essa razão é bem maior do que nas variedades fortes (ou, de acordo com a terminologia local, as mandiocas fracas “quebram muito”, e as mandiocas fortes “quebram pouco”). Fraser (2010) demonstrou que agricultores plantam mais variedades fracas nos solos mais férteis da várzea e em TPI, e mais variedades fortes nos solos pobres (Latossolos e Argissolos; Tabela 2). Tabela 2. Tempo de pousio (i.e., o tempo de abandono das roças antes que sejam novamente utilizadas) e proporção média entre as variedades de mandioca classificadas como “fracas” e “fortes” cultivadas nas roças de 250 agricultores do município de Manicoré em solos antrópicos (TPI), Argissolos, Latossolos e Gleissolos de várzea. Tipo de solo

TPI

Latossolos

Argissolos

Gleissolos

(no. de roças)

(n= 71)

(n = 64)

(n = 55)

(n = 59)

média ± dp

média ± dp

média ± dp

média ± dp

Tempo de pousio (anos)

6,4 ± 8,1

21,3 ± 15,5

13,2 ± 6,8

1,6 ± 4,0

Mandioca forte (%)

32,6 ± 4,7

73,1 ± 10,8

67,1 ± 10,5

28,7 ± 5,9

Mandioca fraca (%)

67,4 ± 13,2

26,9 ± 3,5

32,8 ± 4,9

71,3 ± 5,5

Os sistemas de cultivo de mandioca são mais intensivos em solos férteis (TPI e várzea) do que em solos pobres (latossolos e argissolos). O tempo de pousio (i.e., o tempo de abandono das roças antes que sejam novamente utilizadas) é diferente entre os diferentes tipos de solo: mais curto em TPI e na várzea e mais longo em latossolos e argissolos (Tabela 2). Além disso, as áreas de TPI tendem a ser utilizadas por mais ciclos consecutivos do que os solos não-antrópicos adjacentes da terra firme: enquanto em TPI o número de replantios consecutivos chega a três, em Latossolos e Argissolos as áreas são replantadas no máximo uma vez. O cultivo de mandioca no médio Rio Madeira mostra que os agricultores dessa região adaptaram o cultivo dessa espécie às características peculiares da TPI, criando uma agrobiodiversidade associada ao manejo e ao conhecimento da mandioca nesses ambientes que é distinta de outros tipos de solo (Fraser 2010).

Junqueira et al.

Em contraste com o caso de Manicoré, Kawa (2008), comparando a produção agrícola em 13 propriedades localizadas em Latossolos e 14 propriedades localizadas (pelo menos em parte) em TPI no município de Borba, encontrou que 92,3 % de agricultores cultivando sobre Latossolos plantavam mandioca enquanto somente 35,7% de agricultores nas propriedades sobre TPI plantavam o cultivo. É provável que a maior parte dos agricultores que trabalham sobre Latossolos dediquem sua produção ao cultivo de mandioca porque ela tem relativamente bom rendimento em solos ácidos e é resistente aos altos teores de alumínio desses solos, além do fato que produz um dos alimentos mais importantes da região (i.e., farinha; Nassar 2000). Dos agricultores entrevistados em Borba, muitos comentaram que mandioca produzia bem em TPI, mas eles preferiam aproveitar a fertilidade da terra preta para plantar cultivos mais exigentes que têm maiores valores nos mercados regionais. Nas comunidades visitadas em Borba, melancia, maxixe (Cucumis anguria L.) e mamãohavaí eram os principais cultivos anuais ou semi-perenes que agricultores plantavam em TPI. Milho era outro cultivo anual que aparecia na TPI, às vezes plantado ao redor das roças de melancia e maxixe. Mamão era cultivado em metade das propriedades em TPI, mas foi encontrado em somente uma propriedade em Latossolos. Metade dos agricultores trabalhando em TPI também produzia melancia, enquanto nenhum dos agricultores trabalhando em Latossolos plantava o cultivo. Outros pesquisadores notaram que no município de Iranduba (localizada no Rio Solimões, próximo a Manaus), muitos agricultores aproveitam a fertilidade da TPI para cultivar mamão (Falcão & Borges 2006; Hiraoka et al. 2003) e melancia (German 2001) para o mercado de Manaus. A comunidade de Puruzinho, no município de Borba, tem produzido melancia por décadas em áreas de TPI. Residentes da comunidade relatam que nos anos 80 e 90, até 60 hectares eram dedicados à produção de melancia entre os meses de abril e julho e quase toda a plantação era feita em áreas de TPI. Embora a produção tenha diminuído na comunidade nos últimos anos devido à necessidade de grandes investimentos (e.g., agro-químicos e mão de obra) e à percepção do desgaste do solo depois de vários anos de produção, muitos agricultores continuam plantando melancia. A TPI continua sendo tão importante para produção de melancia na comunidade que donos de terrenos com TPI têm arrendado suas terras para outros residentes que dividem uma fração do lucro da produção com o dono. A colheita da melancia da TPI ocorre nos meses de junho e julho, bem antes da colheita da maior parte da melancia que vem da várzea. Dessa forma, a melancia da TPI chega aos mercados dos centros comerciais de Manaus e Itacoatiara quando a produção regional do cultivo ainda é relativamente baixa e a demanda é grande, o que permite

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maiores lucros. Os agricultores de Puruzinho também alegam que melancia da TPI é mais doce do que a melancia da várzea, e contam que atravessadores e compradores pagam um preço melhor para essa melancia. O acesso ao mercado a partir da comunidade do Puruzinho é relativamente fácil, uma vez que a comunidade está localizada nas margens de um lago de várzea próximo ao Rio Madeira, por onde transitam diariamente barcos em direção a Manaus. Além disso, os produtores de melancia também estabeleceram relações com atravessadores e compradores, que durante a época de colheita se deslocam através de um “furo” (canal) construído pelos moradores locais até a comunidade para comprar melancia. O caso de Borba demonstra que a TPI também representa um recurso importante na produção agrícola voltada para os mercados modernos, o que sugere que ela poderia ser um modelo para a agricultura sustentável, como proposto por Glaser et al. (2001). Os contrastes entre os casos de Borba e Manicoré refletem diferenças quanto ao acesso ao mercado. Diferenças tênues em acesso ao mercado podem determinar a opção dos agricultores locais entre o cultivo de mandioca e de outros cultivos voltados principalmente ao mercado (Fraser 2010). Para cultivos como melancia ou mamão, os agricultores precisam necessariamente de boas ligações com o mercado para garantir o transporte e a comercialização de sua produção. Para o cultivo da mandioca, boas ligações com o mercado não são estritamente necessárias, uma vez que existem outras demandas, tanto para consumo local (doméstico ou na comunidade) quanto para mercados locais e regionais. No caso de Borba, a maior proximidade de centros urbanos, como Manaus e Itacoatiara, e a integração histórica das comunidades dessa região com redes de comercialização centradas nessas cidades certamente barateiam os custos de transporte quando comparados com Manicoré e estimulam o plantio de cultivos voltados para o mercado. Ou seja, a razão benefício/custo de cultivos voltados para o mercado é melhor em Borba. Além disso, grande parte das comunidades estudadas por Fraser (2010) em Manicoré não estão situadas na calha principal do Rio Madeira, enquanto que as comunidades estudadas por Kawa (2008) em Borba estão bem próximas ao Rio Madeira, favorecendo o acesso dessas últimas ao mercado.

2.2.

Quintais

As áreas de TPI estão associadas com quintais e pomares caseiros há centenas ou milhares de anos, uma vez que esses solos foram provavelmente formados sob quintais Ameríndios (Andrade 1986; Hecht 2003; Schmidt 2010). Além disso, os quintais são a forma de uso da terra

Junqueira et al.

mais comum atualmente em áreas de TPI na Amazônia Central (Hiraoka et al. 2003; Fraser 2009). Fraser et al. (2010, no prelo) entrevistaram 63 moradores de TPI, Latossolos e na várzea em 16 comunidades em Manicoré, enfocando nas espécies (e na quantidade de indivíduos de cada espécie) que os moradores cultivavam em seus quintais. Os entrevistados mencionaram 86 espécies no total, sendo 58 em Latossolos, 52 na várzea, e 78 em TPI. Houve diferenças entre os solos quanto à densidade de indivíduos (maior em TPI do que nos Latossolos), riqueza de espécies (maior em TPI e Latossolos do que na várzea) e dominância (maior na várzea do que nos outros tipos de solo). A composição de espécies também foi claramente distinta entre os quintais nos três tipos de solo (Figura 2). Gleissolos Latossolos / Argissolos TPI

Figura 2. Análises multidimensionais não-métricas (NMDS) para a composição de espécies encontrada em quintais sobre TPI e sobre solos não-antrópicos (Latossolos /Argissolos e Gleissolos de várzea) em comunidades tradicionais na região do médio Rio Madeira. [adaptado de Fraser et al. (2010, no prelo)].

As espécies predominantes nos quintais em Latossolos foram café (Coffea arábica L.), castanha (Bertholletia excelsa Bonpl..), cupuaçu (Theobroma grandiflorum (Willd. ex Spreng) K. Schum), seringueira (Hevea brasiliensis (Willd.ex A.Juss.) Mull.Arg,) açaí (Euterpe oleracea Mart. e E. precatória Mart.), bacaba (Oenocarpus bacaba Mart.) e tucumã (Astrocaryum aculeatum G. Mey.). A ausência de outras espécies com importância econômica, como banana (Musa sp.), cacau (Theobroma cacao L.) e laranja (Citrus sinensis (L.) Osbeck), se deve às limitações nutricionais inerentes de solos pobres como os Latossolos. Os quintais na várzea, por sua vez, são dominados por duas espécies de importância econômica: cacau e banana. A elevada fertilidade dos solos da várzea permite o cultivo de espécies exigentes em nutrientes. Por outro lado, as

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várzeas estão sujeitas à inundação periódica, o que restringe a ocorrência de algumas espécies (isso pode explicar a ausência de espécies como tucumã e castanha nos quintais da várzea). Já os quintais em TPI combinam algumas das espécies mais populares nos Latossolos (castanha, café e açaí) e na várzea (banana e cacau), com outras espécies como abacate, laranja e mamão, que são mais comuns em quintais sobre TPI. Alguns estudos apontaram para o fato de que as áreas de TPI possuem mais espécies exóticas do que solos não-antrópicos (German 2001; Clement et al. 2003; Major et al. 2005; Klüppel 2006). Muitos cultivos exóticos parecem ser mais bem adaptados à TPI do que aos Latossolos e Argissolos da terra firme (Clement et al. 2003). Isso se deve ao fato que TPI frequentemente tem um pH mais alto e maiores concentrações de matéria orgânica e de nutrientes (Sombroek et al. 2002). Essas condições favorecem plantas exóticas que muitas vezes sofrem com os altos níveis de alumínio e o baixo pH característicos de Latossolos. No estudo de Fraser et al. (2010, no prelo), foram identificadas várias diferenças entre TPI, várzea e os Latossolos / Argissolos relacionadas ao cultivo de espécies exóticas nos quintais. Em geral, os quintais na várzea são os que apresentaram maior riqueza, abundância e dominância de espécies exóticas do Velho Mundo, enquanto que os quintais em TPI e em Latossolos ou Argissolos apresentaram maior riqueza de espécies nativas da América do Sul (Figura 3). No entanto, os quintais em TPI apresentaram maior abundância e dominância de espécies exóticas mesoamericanas quando comparados aos outros tipos de solo (Figura 3). Banana, coco (Cocos nucifera L.) e laranja foram muito mais abundantes em TPI do que em Latossolos. Outras espécies exóticas, como manga (Mangifera indica L.) e café, foram igualmente abundantes em quintais sobre TPI e sobre Latossolos / Argissolos. Quanto às espécies nativas da Amazônia, o cacau foi significativamente mais abundante em TPI do que em Latossolos ou Argissolos. Diferente de muitas frutíferas amazônicas, o cacaueiro é exigente em termos de nutrientes e por isso sua produção requer solos férteis ou adubados (Almeida & Valle 2007). Por outro lado, a castanha, espécie considerada indicadora de distúrbios antrópicos e que cresce mais em áreas abertas, foi mais abundante em Latossolos do que em TPI, sugerindo que a baixa fertilidade dos solos da terra firme não afeta o cultivo da castanha pelos moradores dessas comunidades do município de Manicoré em seus quintais.

Junqueira et al. 100

100

% da riqueza

b 60

Várzea Latossolos/Argissolos TPI

40

a

b b 20

% da área ocupada1

80 60

a,b b

América do Sul

Mesoamérica

b

b 20

b b a América do Sul

Velho Mundo

a

40

0

0

100

B

a % dos indivíduos

a a

80

A

Mesoamérica

Velho Mundo

a

C

a,b

80

b 60

a

40

b

20

b b b a

0

América do Sul

Mesoamérica

Velho Mundo

Figura 3. Proporção média de (a) riqueza, (b) número de indivíduos e (c) área ocupada1 por espécies que foram domesticadas na América do Sul, na Mesoamérica e no Velho Mundo cultivadas em quintais na várzea, em Latossolos e Argissolos e em solos antrópicos (TPI) na região do médio Rio Madeira, Amazonas, Brasil. Letras diferentes indicam diferenças significativas baseadas no teste post-hoc de Tukey (p < 0,05). As linhas verticais em cada coluna representam o erro padrão [Adaptado de Fraser et al. (2010, no prelo)]. 1 Esses valores foram assim apresentados para efeito de simplificação, mas referem-se realmente ao Índice de Cobertura do Quintal (HCI), cujos detalhes do cálculo podem ser encontrados em Fraser et al. (2010, no prelo).

No município de Borba, Kawa (2008) não encontrou diferença no número de espécies de plantas úteis manejadas em propriedades sobre TPI (19,6 ± 7,4) e em propriedades localizadas em Latossolos (18,3 ± 5,5). Com relação aos quintais, as propriedades localizadas em Latossolos possuíam em média 14,6 (± 4,9) espécies úteis enquanto propriedades localizadas em terra preta tinham em média 13,4 (± 5,6) espécies úteis, novamente sem diferença estatisticamente significativa. No entanto, existiam diferenças quanto às espécies cultivadas nesses diferentes tipos de solos. O cajueiro (Anacardium occidentale L.), por exemplo, que é bem adaptado a solos pobres, apareceu em 69,2 % dos quintais em Latossolos e somente em 35,7 % dos quintais em TPI. Em contraste, o coqueiro (Cocos nucifera), que é cultivado frequentemente em solos mais úmidos e férteis da várzea, foi encontrado em 50 % dos quintais em terra preta e somente

Agrobiodiversidade em Terra Preta de Índio

30,8 % dos quintais em Latossolos. Outro cultivo que se destacou nos quintais em TPI foi o cacau, sendo encontrado em 71,4 % das propriedades em TPI contra 30,8 % das propriedades em Latossolos. Das 80 espécies úteis identificadas nas 27 propriedades estudadas por Kawa (2008) em Borba, 53 (66,2 %) são consideradas nativas (i.e., presentes na Amazônia antes da colonização) enquanto 27 (33,8 %) são exóticas (i.e., originárias do Velho Mundo; Clement 1999). Nesse estudo, propriedades em TPI apresentaram uma maior proporção de espécies exóticas (39 %) quando comparadas com propriedades em Latossolos (26 %). Embora existam diferenças entre os casos de Manicoré e Borba quanto à agrobiodiversidade em quintais, algumas tendências gerais podem ser identificadas nos estudos de Fraser et al. (2010, no prelo) e Kawa (2008). De maneira geral, os quintais em TPI no médio Rio Madeira (1) apresentam uma maior contribuição de espécies exóticas, corroborando outros estudos que apontaram para essa mesma tendência, e (2) apresentam uma composição de espécies distinta dos quintais sobre outros tipos de solo. A elevada fertilidade dos solos de TPI, juntamente com o fato de que eles estão localizados em áreas não-alagáveis (i.e., não estão sujeitos ao pulso de inundação que limita a ocorrência de diversas espécies na várzea) parecem influenciar diretamente a agrobiodiversidade em quintais em TPI e em solos não-antrópicos.

2.3.

Florestas secundárias

As áreas de ocupação humana na Amazônia sempre estiveram associadas a áreas de florestas secundárias, originadas de atividades agrícolas ou de qualquer outra atividade que envolva a supressão da floresta madura. Embora não apresentem o porte e a diversidade exuberantes das florestas primárias, as florestas secundárias são cada vez mais reconhecidas como ambientes fundamentais como fonte de recursos para populações tradicionais da Amazônia. Alguns estudos demonstraram que florestas secundárias podem ser mais utilizadas do que florestas primárias (Toledo et al. 1995, Voeks 1996, Chazdon & Coe 1999, Toledo & Salick 2006). Ainda que possam parecer áreas de habitação ou de agricultura “abandonadas”, as florestas secundárias são fonte de diversos tipos de recursos, como lenha, frutas, plantas medicinais, madeira, etc. Ao longo do processo de sucessão, essas áreas também são constantemente manejadas por meio de atividades como capina, transplante, poda, que levam ao favorecimento de algumas espécies em detrimento de outras. Esse processo de manejo da sucessão secundária (Denevan & Padoch 1987; Irvine 1989) resulta em florestas secundárias “enriquecidas” com espécies úteis e/ou

Junqueira et al.

domesticadas, onde a composição de espécies e a estrutura da vegetação são muito influenciadas pela atividade humana. Na região do médio Rio Madeira, as áreas cobertas por florestas secundárias correspondem a uma porção significativa das áreas utilizadas pelas comunidades ribeirinhas atuais. Mapeamentos participativos realizados em três comunidades mostraram que a área de floresta secundária varia entre 3 e 5,9 hectares por habitante (média 4,8 ± 1,6; Junqueira & Clement 2009). Embora as áreas de TPI sejam muito valorizadas para agricultura na região e possam ser consideradas um recurso relativamente escasso [entre 0,2 e 0,5 hectares por habitante (média 0,4 ± 0,15); Junqueira & Clement 2009], parte das manchas de TPI são sempre recobertas por florestas secundárias em diversos estágios de sucessão. Grande parte dessas florestas secundárias é originária do sistema de corte-e-queima, porém ocorrem também florestas secundárias resultantes de formas de manejo mais agroflorestais (quintais, sítios, etc.), em geral nas áreas mais próximas às residências. As florestas secundárias sobre TPI costumam ser facilmente reconhecidas pelas populações tradicionais devido à sua composição de espécies e estrutura da vegetação. Algumas observações etnográficas já sugeriam que os moradores que habitam e utilizam atualmente áreas de TPI são capazes de reconhecê-las por meio de espécies indicadoras (Moran 1981; Sombroek et al. 2002; German 2003) e de características estruturais como dossel mais baixo, sub-bosque mais denso e uma maior abundância de cipós e lianas (Woods & McCann 1999; German 2003). Recentemente, dois trabalhos (Junqueira et al. 2010a, b) realizados na região do médio Rio Madeira abordaram especificamente aspectos ecológicos e etnobotânicos das florestas secundárias sobre TPI, e investigaram a relação dessas florestas com a agrobiodiversidade. Junqueira et al. (2010a) realizaram uma análise fitossociológica de 52 parcelas de 250 m2 localizadas em manchas de TPI e em solos nãoantrópicos (SNA) adjacentes, em três comunidades do município de Manicoré. Os autores mostraram que, apesar de apresentarem poucas diferenças quanto à estrutura da vegetação, as florestas secundárias sobre TPI e SNA apresentam uma composição florística claramente distinta, tanto para indivíduos arbóreos (Figura 4a) quanto para palmeiras do subbosque (Figura 4b). Algumas espécies são indicadoras desses ambientes, e entre as espécies indicadoras de TPI encontram-se espécies domesticadas e/ou muito utilizadas pelas populações tradicionais atuais e provavelmente do passado. Outras evidências também corroboraram a hipótese levantada por Clement et al. (2003) de que as áreas de TPI poderiam funcionar como reservatórios de agrobiodiversidade: as parcelas localizadas em TPI

Agrobiodiversidade em Terra Preta de Índio

apresentaram maior riqueza e abundância de espécies domesticadas quando comparadas às parcelas sobre SNA. Latossolos / Argissolos

A

B

TPI

Figura 4. Análises multidimensionais não-métricas (NMDS) para a composição de espécies de (a) indivíduos lenhosos com DAP ≥ 10 cm e (b) de palmeiras do subbosque encontradas em florestas secundárias sobre solos antrópicos (TPI) e sobre solos não-antrópicos (Latossolos e Argissolos) em comunidades tradicionais na região do médio Rio Madeira. [adaptado de Junqueira et al. (2010a)].

Nas mesmas três comunidades, Junqueira et al. (2010b, no prelo) realizaram um estudo etnobotânico quantitativo com base em dados obtidos em entrevistas com 62 moradores locais, no intuito de quantificar a utilidade das florestas secundárias sobre TPI e sobre SNA, e identificar as espécies reconhecidas localmente como indicadoras de TPI. As florestas secundárias sobre TPI apresentaram um Valor de Uso [Índice de Valor de Uso (VU), proposto por Phillips & Gentry (1999a, b) e com modificações sugeridas por Fraser & Junqueira (2010)] maior do que as florestas secundárias sobre SNA. Além disso, áreas de TPI apresentaram um VU significativamente maior dentro de cinco das sete categorias de uso definidas no estudo: alimento, tecnologia, caça/pesca “de espera”, caça/pesca oportunista, e alimento para animais domésticos. Onze espécies foram reconhecidas como indicadoras de TPI, dentre as quais três espécies de palmeiras: caiaué (Elaeis oleifera (Kunth) Cortés), urucuri (Attalea phalerata Mart.ex Spreng.) e murumuru (Astrocaryum murumuru Mart.), duas das quais com populações incipientemente domesticadas (caiaué e murumuru; Clement 1999). O taperebá (Spondias mombin L.), espécie também com populações semi-domesticadas (Clement 1999), foi reconhecida como uma espécie indicadora de TPI. A maioria das espécies consideradas indicadoras de TPI, no entanto, é composta por arbustos ou

Junqueira et al.

arvoretas, como o mata-pasto (Senna alata (L.) Roxb.) ou o marmeleiro (Acalypha brasiliensis Mull. Arg.), provavelmente porque essas espécies proliferam nas fases iniciais de sucessão em TPI nessa região (Junqueira et al. 2010b, no prelo). As florestas secundárias sobre TPI estudadas na região de Manicoré, portanto, são diferentes das florestas secundárias do entorno quanto à estrutura da vegetação e, principalmente, quanto à composição de espécies, caracterizada por uma elevada abundância e riqueza de espécies domesticadas e/ou úteis (Junqueira et al. 2010a). Além disso, os moradores locais que utilizam e manejam as florestas secundárias sobre TPI as reconhecem como uma importante fonte de recursos, pois atribuem a elas um alto Valor de Uso (Junqueira et al. 2010b). Interessantemente, das seis espécies consideradas indicadoras de TPI a partir de dados fitossociológicos (Junqueira et al. 2010a), cinco delas também foram reconhecidas por moradores locais como indicadoras de TPI com base nos dados das entrevistas: caiaué, murumuru, oicima, taperebá e urucuri (Junqueira et al. 2010b). Esses resultados mostram uma correspondência importante entre as características ecológicas das florestas secundárias sobre TPI e o conhecimento tradicional atual sobre elas, e sustentam a idéia de que moradores locais podem reconhecer áreas de TPI por meio de espécies indicadoras.

3. Conclusões A Amazônia possui uma agrobiodiversidade riquíssima, oriunda da sua enorme diversidade ambiental e sociocultural. A agrobiodiversidade associada aos solos antrópicos ainda é um assunto relativamente pouco explorado, apesar da histórica associação desses ambientes com a atividade humana e da possibilidade de que esta relação possa contribuir para o desenvolvimento de sistemas de produção sustentáveis na Amazônia. Os estudos desenvolvidos recentemente na região do médio Rio Madeira e aqui apresentados têm contribuído para o acúmulo de conhecimento sobre a agrobiodiversidade em TPI. Eles chamam a atenção para o fato de que, mesmo em uma região geográfica restrita, a agrobiodiversidade associada à TPI pode variar entre locais distintos, o que está relacionado a diversas variáveis sociais, econômicas ou ecológicas. Fica evidente também que muitos aspectos ligados à relação entre agrobiodiversidade e TPI permanecem muito pouco conhecidos e merecem ser investigados em detalhe. Finalmente, os estudos aqui apresentados mostram que em diferentes ambientes que integram o cotidiano e o modo de vida das populações tradicionais (as roças, quintais e capoeiras), a

Agrobiodiversidade em Terra Preta de Índio

agrobiodiversidade em TPI apresenta diversas peculiaridades, resultado tanto das características fisico-químicas quanto das formas de uso e manejo específicos desses solos. A interação entre esses ambientes e as populações tradicionais atuais deu origem a conhecimentos e sistemas de produção singulares, agregando ainda mais heterogeneidade à paisagem Amazônica e à sua agrobiodiversidade.

Agradecimentos Os autores agradecem a todos os moradores das comunidades que participaram dos diversos estudos desenvolvidos na região do médio Rio Madeira que deram origem a esse capítulo. André Braga Junqueira é bolsista do Programa de Capacitação Institucional do INPA, e sua pesquisa de campo foi financiada pelo CNPq (bolsa de Mestrado), pelo programa BECA (Instituto Internacional de Educação do Brasil / Fundação Moore) e pelo IdeaWild. Nicholas Charles Kawa realizou sua pesquisa de campo em Borba com uma bolsa do Centro de Estudos de América Latina e do Programa de Conservação e Desenvolvimento nos Tropicos (TCD) da Universidade da Florida (EUA), dentro de uma expedição científica do CNPq (EXC 007/07-C). A pesquisa de James Angus Fraser foi financiada pelo Leverhulme Trust (Grant F/00 230/W), dentro de uma expedição científica do CNPq (EXC 022/05).

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