Expressão - UFSM 2015-1

July 28, 2017 | Autor: Camila Cargnelutti | Categoria: Comparative Literature, Languages and Linguistics, Literature, Estudos Literários
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE ARTES E LETRAS ANO 19 • NÚMERO 1 • ISSN 1516-9340

EXPRESSÃO REVISTA DO CENTRO DE ARTES E LETRAS

EXPRESSÃO • CAL/UFSM • Santa Maria • Ano 19 • Nº 1 • Jan./Jun./2015

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA: Fone: (055) 3220-8262 FAX: (055) 3220-8004 Prédio 40 - Sala 1212 - Direção do Centro Campus Universitário Rodovia 509 - Km 9 - Camobi Santa Maria - RS CEP: 97.105-900

OS TEXTOS PUBLICADOS SÃO DE EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES, TANTO NO QUE SE REFERE AO CONTEÚDO QUANTO A QUESTÕES GRAMATICAIS.

PERMUTA Desejamos estabelecer permuta com revistas similares Pídese canje. Desideriamo cambiare questa revista com altri similari On désire établir l’échange avec les revues similaires We wish to establish exchange with all similar journals Wir wünschen den Austausch mit gleichartigen Zeitschriften Expressão / Universidade Federal de Santa Maria Centro de Artes e Letras – Vol. 1 (2015) ___________. – Santa Maria, 2015 Semestral Expressão - Revista do Centro de Artes e Letras Número 1 – Março/1996 1. Artes. 2. Letras. 3. Música. CDU: 7/8 (05)

Ficha catalográfica elaborada por Luzia de Lima Sant’Anna, CRB-10/728 Biblioteca Central da UFSM

Membros da CEPE-CAL: Adriana Jorge Machado Ramos Aline Sonego

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COMISSÃO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO (CEPE-CAL)

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SUMÁRIO AS CONTRUBUIÇÕES DA LINGUAGEM NA FORMAÇÃO DO SUJEITO E DA H(h)ISTÓRIA....................................... 7 Amanda Laís Jacobsen de Oliveira • Wellington Ricardo Fioruci

UM TREM PARA O PASSADO: UM ESTUDO DA MEMÓRIA EM AUSTERLITZ, DE SEBALD...................................... 17 Ana Paula Cabrera • Daniela Schwarcke do Canto

OS POEMAS NEGROS DE JORGE DE LIMA........................................................................................................................... 29 Anselmo Peres Alós

VIOLETA PARRA E O QUESTIONAMENTO À IGREJA NO CANCIONEIRO CHILENO DOS ANOS 60........................ 35 Camila Marchesan Cargnelutti • Maurício Marques Brum

PRÁCTICA DE ENSEÑANZA: UNA MIRADA MÁS CERCANA A LA PEDAGOGÍA DE LOS PROYECTOS................... 45 Eduardo Alves dos Santos • Lucas Sidnei Carniel

A EMERSÃO DO REAL NO CONTO FANTÁSTICO “MUJER DE CERA”, DE CARMEN MARTÍN GAITE...................... 53 Elenara Walter Quinhones

Hacia una clasificación de obras lexicográficas del español desde la perspectiva de su ­enseñanza.............................................................................................................................................................................. 65 Félix Bugueño Miranda • Laura Campos de Borba

POR UNA POESÍA SIN PUREZA: A LÍRICA HISPANO-AMERICANA MODERNA PARA ALÉM DO ROMANTISMO...... 77 Giulia Ribeiro Barão

a dominação masculina e a violência contra a mulher EM UM CÉU DE ESTRELAS, de FERNANDO ­BONASSI..................................................................................................................................................................................... 89 Graziela Inês Jacoby • Rosani Úrsula Ketzer Umbach

A RELAÇÃO DO “EU” E DO “OUTRO” EM DOIS CONTOS ­LATINO-AMERICANOS...................................................... 103 Juliana Prestes de Oliveira

COMPLICIDAD EN LA TRAMPA: JUEGOS FICCIONALES EN EL ASTILLERO................................................................ 113 Lucas Sidnei Carniel

O funcionamento das línguas enunciadas na fronteira e Sua relação com a história............ 119 Marilene Aparecida Lemos

IDENTIDADE SUL-RIO-GRANDENSE EM CONTOS G ­ AUCHESCOS................................................................................... 133 Sabrina Siqueira • Vera Lucia Lenz Vianna

ROMANCE, COSA IMPURA – SOBRE CRÔNICA DA CASA A ­ SSASSINADA, DE LÚCIO CARDOSO................................. 141 Renata Farias de Felippe • Xênia Amaral Matos

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AS CONTRUBUIÇÕES DA LINGUAGEM NA FORMAÇÃO DO SUJEITO E DA H(h)ISTÓRIA1 Amanda Laís Jacobsen de Oliveira2 Wellington Ricardo Fioruci3

RESUMO: A sociedade atual pode ser compreendida e explorada por inúmeros meios de comunicação e tipos diferenciados de mensagens e expressões. Dessa forma, estamos em um mundo no qual somos exaustivamente confrontados com milhares de informações. Consequentemente, pode ser difícil para alguns reconhecer a devida importância da linguagem na construção dos significados e, portanto, da sociedade e do próprio mundo em si. As grandes inovações fornecem ao homem uma infinidade de possibilidades que ultrapassam o que poderíamos imaginar para a evolução. Contudo, é primordial ressaltar que a linguagem está intrincada em todo desenvolvimento humano. É através dela que o homem se comunica, cria, reinventa e, acima de tudo, identifica-se como sujeito. Nesse sentido, o estudo da literatura é mais do que enriquecedor, é fundamental. Destarte, dedicar-nos ao estudo de obras como O ano da morte de Ricardo Reis (1984) e Vida e época de Michael K (1983) sob a estética do Pós-Modernismo, considerando-a primeiramente em sua atenção às construções linguísticas e à discussão acerca da metalinguagem, pode resultar em uma pesquisa prolífera em significados. Tendo em vista que essas narrativas trazem reflexões pertinentes no que diz respeito ao papel fundamental da linguagem na construção da verdade e da identidade dos sujeitos (fictícios e históricos). Sendo que o Pós-Modernismo, por si, nos impele a uma análise atenciosa que pretende investigar e revelar a intenção dos construtos linguísticos ao modificar a H(h)istória, dar voz aos marginalizados, alterar uma verdade e construir identidades. Palavras-chave: Linguagem. Identidade. Literatura comparada. Pós-modernismo. ABSTRACT: The current society can be understood explored by many media and different kinds of messages and expressions. This way, we are in a word in which we are always exposed to thousand of information. Thereafter, it might be hard to some people to recognize the language importance in the construction of meanings and, thus, in the construction of society and of the word itself. The great innovations give the man endless possibilities that exceed what we could assume about evolution. However, it is essential to highlight that language comprises all human development. It is through language that man communicates, creates, reinvents and identifies himself as subject. In this sense, literature study is more than fruitful, it is primordial. Thereby, when we turn to the study of works such as O ano da morte de Ricardo Reis (1984) and Vida e época de Michael K (1983) through the Post-modernist perspective – considering it by its attention to linguistic constructions and metalinguistic discussions – we might achieve plenteous research. Because these narratives bring relevant reflections about the essential role of language in the construction of truth and of the subjects’ identities (fictional and historical). And the Post-modernism itself pushes us to an eager analysis that intends to investigate and to reveal the intention of the linguistic constructs in 1 Este trabalho foi desenvolvido a partir de uma pesquisa vinculada a projeto de pesquisa que teve a intenção de rastrear o Pós-Modernismo através da análise comparativa de quatro romances – dentre esses os dois que aqui são objeto de estudo: O ano da morte de Ricardo Reis (1984) e Vida e época de Michael K (1983). 2 Amanda Laís Jacobsen de Oliveira graduou-se em Letras Português-Inglês, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Pato Branco. Atualmente participa de um projeto de pesquisa vinculado à mesma instituição. 3

Prof. Dr. Wellington Ricardo Fioruci é Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Pato Branco.

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modify H(h)istory, to give voice to the marginalized, to change a truth ant to make identities. Keywords: Language. Identity. Comparative Literature. Post-modernism.

RESUMEN: La sociedad actual puede ser entendida y explorada por medio de numerosos medios de comunicación, y diferentes tipos de mensajes y expresiones. De este modo, nos encontramos en un mundo en el que nos enfrentamos a fondo con miles de información. En consecuencia, puede ser difícil para algunos reconocer la debida importancia del lenguaje en la construcción de significados, y por lo tanto de la sociedad y el mundo en sí mismo. Las gran innovaciones dan al hombre una multitud de posibilidades más allá de lo que podríamos imaginar para la evolución. Sin embargo, es importante destacar que el lenguaje está intrincado en todo el proceso de desarrollo humano. Es a través del lenguaje que el hombre se comunica, crea, reinventa y, sobre todo, se identifica como sujeto. En ese sentido, el estudio de la literatura es más que enriquecedor, es fundamental. Por lo tanto, dedicarnos al estudio de obras como O ano da morte de Ricardo Reis (1984) y Vida e época de Michael K (1983) bajo la estética del posmodernismo, teniendo primero en cuenta su atención a las construcciones lingüísticas y la discusión sobre el metalenguaje, puede resultar en una investigación prolífica en significados. Teniendo en cuenta que estos narraciones ofrecen reflexiones útiles en lo que respecta al papel ­fundamental del lenguaje en la construcción de la verdad y la identidad de las personas (ficticias y históricas). Desde que o posmodernismo, por sí mismo, nos lleva a un análisis atento que tiene como objetivo investigar y revelar la intención de las construcciones lingüísticas para modificar el H(h)istória, dar voz a los marginados, cambiar una verdad y construir identidades. Palabras-clave: Lenguaje. Identidad. Literatura Comparada. Posmodernismo.

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INTRODUÇÃO

“A linguagem é (...) mais poderosa como experiência das coisas do que a experiência das coisas. Os signos são experiências mais potentes do que tudo o mais e, por isso, quando se lida com as coisas que realmente importam, então se lida com palavras. Elas têm uma realidade que excede, em muito, as coisas a que designam.” William Glass (apud Linda Hutcheon)

As palavras de William Glass não deveriam ser necessárias para que ao homem fosse possível perceber a importância que deve ser dedicada à linguagem. No entanto, em um mundo repleto de tecnologias, torna-se, às vezes, fácil ao ser humano acabar por esquecer que tudo o que ele é, fez, ou irá concretizar foi feito e será realizado por meio da linguagem. Sem a linguagem, qualquer das outras áreas de conhecimento se encontraria sem instrumento para a realização de suas mais básicas atividades. Desse modo, é necessário voltar nossa atenção ao seu estudo, mais do que apenas reconhecer o seu papel fundamental. De maneira a partir dessa perspectiva, podemos pensar na literatura, que nos fornece material imensamente fecundo, no que diz respeito à linguagem e à vivência humana. Ela é sensível ao ser humano e ao mundo em que esse vive, sendo, por isso, usada pelo homem como instrumento de expressividade. Portanto, ao observar e refletir a literatura contemporânea, surgem algumas divergências no que diz respeito a classificá-la. No entanto, é possível perceber claramente que a literatura atual já não é a mesma dos modernistas, sendo que passa por mudanças ao passo em que a própria sociedade se modifica. Isso posto, no trabalho aqui apresentado, opta-se por uma abordagem compreendida pelo Pós-Modernismo, considerando-o pertinente para as discussões, quando tido

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como estética subversiva, problematizafora e questionadora. O Pós-Modernismo caracteriza-se então por instigar uma postura crítica e reflexiva por parte do ser humano. Por se tratar de uma estética muito recente e contemporânea, pode causar alguma confusão e alguns equívocos, pois ainda não se tem, em relação a ele, um distanciamento temporal que nos permitiria (como em outros casos) uma observação mais objetiva e imparcial com relação às suas características e à sua fundamentação. No entanto, do mesmo modo, ele definitivamente não é nenhuma forma de movimento acrítico que deseja destruir a história, como podem afirmar alguns. Na verdade, o Pós-Modernismo trata da relatividade das verdades históricas e da fragmentação do sujeito no mundo contemporâneo. Assim, essa discussão nos é muito pertinente, tendo em vista que estamos em uma época na qual os sujeitos não conseguem mais definir facilmente quem são nessa sociedade multifacetada. As possibilidades e probabilidades são demasiadas de tal forma que o ser humano encontra-se fragmentado ao tentar definir a sua identidade. É como se ocorresse tudo ao mesmo tempo agora. Nesse sentido, podemos entender que esse contexto social e histórico se dá, também, em função das evoluções tecnológicas e ao desenvolvimento – salientando-se aqui a globalização – que aceleraram, cada vez mais, as mudanças ocorridas em uma rapidez antes inimaginável. E é esse o mundo dividido e plural em que se encontra o sujeito desconstruído, no sentido de que se torna mais difícil definir ou mesmo conceber nossa identidade. A partir dessa perspectiva, o PósModernismo, como estética problematizadora, tem a intenção de nos instigar a essas reflexões, pensando na construção do sentido da História, na relação entre realidade e ficção, no lugar dado ao excêntrico (marginalizado), a construção da identidade do sujeito e, salientamos aqui, o mérito da ­linguagem

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em todos esses processos. Destarte, a linguagem, no Pós-Modernismo, deixa de ser apenas ferramenta, passando a ser o próprio centro do objeto de discussão. Para isso, diversos autores, como John Maxwell Coetzee e José Saramago, se utilizam, em suas obras, da discussão metalinguística, ou seja, usam a literatura para inserir reflexões a respeito da própria linguagem. Assim, o trabalho aqui apresentado busca explorar as relações e considerações acima mencionadas através da análise literária comparativa entre o romance O ano da morte de Ricardo Reis (1984)4, de José Saramago, e Vida e época de Michael K (1983)5, de John Maxwell Coetzee. Entendendo que a análise comparativa é instrumento enriquecedor, tendo em vista que permite, ao aproximar as duas obras – tanto por suas semelhanças como por suas diferenças – uma crítica mais detalhista e repleta de sentidos. Além disso, a análise sob o viés Pós-Moderno nos impele a um olhar preparado para desvendar as minúcias do texto.

AS RELAÇÕES DE LINGUAGEM ENTRE OS ROMANCES DE SARAMAGO E COETZEE

Quando falamos em Pós-modernismo, estamos também falando de todas as mudanças operadas na sociedade, que não cessam seu curso. Por isso, torna-se difícil defini-lo e caracterizá-lo. O mais relevante é perceber que ele entende “que o mundo mudou de alguma maneira difícil de descrever, mas inconfundível” (LEMERT, 2000, p. 42), e, a partir disso, os escritores procuram instigar importantes reflexões em seus leitores, acerca da história, da verdade, da linguagem, da realidade, da ficção, entre outros – demonstrando, assim, a dificuldade e a angústia ao tentar ­representar esse mundo. 4 Para a elaboração deste trabalho foi utilizada a segunda edição do livro, publicada em 2010.

5 Para a elaboração deste trabalho foi utilizada a primeira edição publicada em português, pela editora Companhia das Letras, em 2003.

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A literatura, então, mostra a sua participação essencial no ato de tentar compreender a sociedade e o mundo, dado que, “[d]o ponto de vista da função [...] pode estar de acordo com a sociedade, mas também em desacordo; pode acompanhar o movimento, mas também precedê-lo”. Ela “confirma um consenso, mas produz também a dissensão, o novo, a ruptura” (COMPAGNON, 2012, p. 34). Ela é importante justamente devido ao fato de que ela “muda porque a história muda em torno dela” (COMPAGNON, 2012, p. 193). Essa dificuldade em representar está também implicada na discussão pós-moderna da metalinguagem, caracterizando a problematização da história e da verdade, que são reconhecidas como construtos linguísticos. O que pode ser observado nos dois romances que são objetos de estudo deste texto: O ano da morte de Ricardo Reis e Vida e época de ­Michael K. O ano da morte de Ricardo Reis é do escritor português José Saramago, e foi primeiramente publicado no ano de 1984. O romance nos traz o que teria sido o último ano de vida de Ricardo Reis, quando volta do Brasil para Portugal, após a morte do escritor Fernando Pessoa. A partir disso, inicia-se uma relação extremamente interessante, tendo em vista que, na realidade (na História não fictícia), Ricardo Reis se tratava apenas de um dos heterônimos do poeta Fernando Pessoa. Além disso, no livro, o último, como fantasma, faz visitas frequentes a Ricardo, que acaba por, finalmente, falecer também. Ao longo da história, Saramago nos mostra como a linguagem pode construir e destruir verdades, tratando-se, por exemplo, da própria existência de Ricardo Reis e Fernando Pessoa:

Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, sur-

preendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite, na

poesia não era só ele, Fernando Pessoa, ele

era também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis, pronto, já cá faltava

o erro, a desatenção, o escrever por dizer por ouvir dizer, quando muito bem sabemos, nós, que Ricardo Reis é sim este ho-

mem que está lendo o jornal com os seus

próprios olhos abertos e vivos, médico, de quarenta e oito anos de idade, mais um que

a idade de Fernando Pessoa quando lhe

fecharam os olhos, esses sim, mortos, não deviam ser necessárias outras provas ou certificados de que não se trata da mesma

pessoa, e se ainda aí houver quem duvide, esse vá ao Hotel Bragança e fale com o se-

nhor Salvador, que é o gerente, pergunte se não está lá hospedado um senhor chamado

Ricardo Reis, médico, que veio do Brasil, e ele dirá que sim [...], quem ousará duvidar agora da palavra de um gerente de hotel,

excelente fisionomista e definidor de identidades. (SARAMAGO, 2010, p. 32).

Esse excerto menciona a leitura que Ricardo Reis faz de um jornal que informa a morte de Fernando Pessoa. Ao mencionar o erro, o narrador reforça a ideia de que Ricardo Reis realmente existe. Do contrário, como estaria ele ali, lendo o jornal? E ainda complementa, dizendo que não deveriam ser necessárias outras provas mais. Um leitor desatento pode até mesmo chegar a acreditar que o narrador fala de algum personagem que verdadeiramente existiu. Contudo, ­sabemos que Ricardo Reis é apenas um construto linguístico que se deu tanto pela escrita do poeta Fernando Pessoa como, nesse caso específico, pela narrativa de Saramago. Já Vida e época de Michael K teve sua primeira edição publicada no ano 1983. Nele, o escritor sul-africano John Maxwell Coetzee explora a vida sofrida de um personagem que pode representar a trajetória de muitos sul-africanos durante o período de guerra civil no país. Michael K, o personagem principal, logo no início da narrativa, é constituído como um ser que está à margem, ou seja, é

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marginalizado, ou mesmo, excluído. Como se pode notar na repulsa constituída através dos seguintes trechos:

gem, como se pode observar nos trechos que exibem a metalinguagem:

ajudar Michael K a sair da mãe para den-

e calou-se repentinamente ao notar que

A primeira coisa que a parteira notou ao tro do mundo foi que tinha lábio leporino. O lábio enrolado como pé de caramujo, a

narina esquerda fendida. Escondeu a crian-

ça da mãe por um momento, enfiou o dedo no botãozinho de boca e ficou agradecida de ver que o palato estava inteiro. Para a

mãe, disse assim: ‘Devia ficar contente, eles dão sorte para a casa’. Mas desde o começo Anna K não gostou da boca que não fechava e da carne viva e rosada exposta para

ela. Estremeceu ao pensar no que havia

crescido dentro dela aqueles meses todos (­COETZEE, 2003, p. 9).

Dessa forma, percebemos como a linguagem nos permite constituir dois sujeitos significativamente diferentes. Sendo que, na leitura comparada dos romances, poderíamos acreditar que qualquer um dos personagens realmente existiu. Contudo, na verdade, alguns “Michael’s K” – ou seja, sujeitos que tiveram uma vida semelhante à do personagem – podem ter existido e passado pela mesma situação na África do Sul, ou mesmo em outras partes do mundo. No entanto, Ricardo Reis é apenas um personagem ficcional, tanto no livro como na criação do poeta Fernando Pessoa. Há, assim, a problematização do real, do verdadeiro, diante daquilo que é apenas um construto ­linguístico. Algumas vezes, podemos mesmo chegar a crer com mais consistência na existência de Ricardo Reis (sujeito totalmente fictício) do que de Michael K (personagem que poderia representar muitos outros sujeitos reais). Uma vez que, linguisticamente, Ricardo Reis tem um posicionamento bem mais ativo e contundente do que Michael. Ele, Ricardo, é um poeta, ou seja, um especialista da lingua-

A janela estava aberta, não dei por que a

chuva entrasse, está o chão todo molhado, formara, de enfiada, três versos de sete sí-

labas, redondilha maior, ele, Ricardo Reis, autor de odes ditas sáficas ou alcaicas, afinal saiu-nos poeta popular, por pouco não

rematou a quadra, quebrando-lhe o pé por

necessidade da métrica, e a gramática [...] (SARAMAGO, 2010, p. 44)

E ainda em:

Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele poema da Mensagem

que está dedicado a Camões, e levou tempo a perceber que não há na Mensagem

nenhum poema dedicado a Camões, pare-

ce impossível, só indo ver se acredita, de Ulisses a Sebastião não lhe escapou um, e não teve uma palavrinha, uma só, para o

Zarolho, e esta falta, omissão, ausência, fa-

zem tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe, Proquê, o in-

consciente não sabe que resposta dar [...] (SARAMAGO, 2010, p. 360).

Ou mesmo quando insere trechos de autoria do próprio Fernando Pessoa, quando Ricardo Reis e o fantasma daquele discutem um de seus dizeres poéticos:

Você disse que o poeta é um fingidor, Eu o

confesso, são adivinhações que nos saem pela boca sem que saibamos que caminho

andámos para lá chegar, o pior é que morri

antes de ter percebido se é o poeta que se

finge de homem ou o homem que se finge de poeta (SARAMAGO, 2010, p. 115).

Ao mesmo tempo em que Michael K, de forma totalmente distinta, usa raramente da linguagem, de modo que, ao longo do

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r­ omance, sabemos mais do personagem por conta dos seus pensamentos do que suas falas. Na realidade, é extremamente difícil conseguir que Michael, em algum momento, se expresse verdadeiramente de forma verbal. Como se pode notar quando o médico que o atende pede para que fale o que lhe aconteceu, pois sabe que Michael foi acusado injustamente por um crime: “Ainda enrolado, pronto para escapar de mim se eu fraquejasse, ele deu sua resposta. ‘Não sou bom com as palavras’, disse. Mais nada. Molhou os lábios com sua língua de lagarto.” (COETZEE, 2003, p. 162). E ainda quando o médico insiste:

lê nesses jornais de Prince Albert, e, francamente, o que eles dizem não faz sentido’” (COETZEE, 2003, p. 161). Ou como quando o narrador, em Saramago, reflete o gosto de Ricardo Reis pelos jornais, resultante do fato de que esses, com sua verdade duvidosa, o afastavam e distraíam do mundo real, ao contrário do que deveriam fazer em p ­ rincípio:

falar, agora fale. Me escute, escute como é

licitudes de Salvador, o jornal, por falar do

“Fale, Michaels”, resumi. “Sabe como é fácil

fácil encher esta sala com palavras. Conhe-

ço gente que consegue falar o dia inteiro sem se cansar, que é capaz de encher mun-

do inteiros falando.” Noel chamou minha atenção, mas insisti. “Faça alguma coisa

de importante, cara, senão vai passar pela

vida sem ninguém notar. Vai ser um dígito a mais numa coluna de dígitos no fim da guerra, quando eles fizeram a grande conta para calcular a diferença, mais nada. Quer

ser só mais um dos que se acabaram, quer? Quer viver, não quer? Bom, então fale, deixe a gente ouvir a sua voz, conte a sua his-

tória!” (COETZEE, 2003, p. 163, grifos do autor).

Através desses excertos, considerando a constituição da realidade do sujeito pela linguagem, percebe-se que “narrador pósmoderno sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções de linguagem” (SANTIAGO, 2002, p. 47). O que também pode ser observado através da relativização do discurso, sendo esse histórico, jornalístico ou fictício. Temos como exemplo, em Vida e época de Michael K, outro excerto que traz a fala do médico que toma conta do personagem principal, duvidando das informações contidas nos jornais: “‘Porque a gente só sabe o que

[...] Ricardo Reis já tinha aberto um dos jornais, passara todo aquele dia em ignorân-

cia do que acontecera no mundo, não que

por inclinação fosse leitor assíduo, pelo contrário, fatigavam-no as páginas grandes

e as prosas derramadas, mas aqui, não havendo mais que fazer, e para escapar às so-

mundo geral, servia de barreira contra este outro mundo próximo e sitiante, podiam

as notícias daquele de além ser lidas como

remotas e inconsequentes mensagens, em cuja eficácia não há muitos motivos para acreditar porque nem sequer temos a certeza de que cheguem ao seu destino (SARAMAGO, 2010, p. 48, grifo nosso).

Ainda expõe o fato de que

Contrariamente ao velho sonho positivista,

o passado, como repetiu à saciedade toda

uma série de teóricos da história, não nos é acessível senão em forma de textos — não

fatos, mas sempre arquivos, documentos, discursos, escrituras — eles próprios inse-

paráveis, acrescentam esses teóricos, dos textos que constituem nosso presente. [...]

Ora, hoje em dia, a própria história é lida

cada vez com mais frequência como se fosse literatura, como se o contexto fosse

necessariamente texto. [...] A história dos historiadores não é mais una nem unifica-

da, mas se compõe de uma multiplicidade de histórias parciais, de cronologias hete-

rogêneas e de relatos contraditórios. [...] A história ê uma construção, um relato que,

como tal, põe em cena tanto o presente

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como o passado; seu texto faz parte da lite-

Está no jornal, eu li, Não é do senhor doutor

E o faz ao inserir uma reflexão a respeito do texto bíblico:

nais escrevem, Eu não posso ir a Espanha

ratura (COMPAGNON, 2012, p. 219).

Por isso é duvidoso ter-se despedido ­Cristo da vida com as palavras da escritu-

ra, as de Mateus e Marcos, Deus meu, Deus

meu, por que me desamparaste, ou as de Lucas, Pai, nas tuas mãos entrego o meu

espírito, ou as de João, Tudo está cumpri-

do, o que Cristo disso foi, palavra de honra, qualquer pessoa popular sabe que é esta

a verdade, Adeus, mundo, cada vez a pior (SARA­MAGO, 2010, p. 56).

Esse estabelecimento dessa relação é possível porque “[...] mesmo que a teoria literária e história literária tenham sido [...] alérgicas uma à outra”, não se pode negar “[...] que a literatura tem, fatalmente, uma dimensão histórica” (COMPAGNON, 2012, p. 195). No entanto “ao afirmar que a história não existe a não ser como texto, o pós-modernismo não nega [...], que o passado existiu, mas apenas afirma que agora, para nós, seu acesso está totalmente condicionado pela textualidade. Não podemos conhecer o passado, a não ser por meio de seus textos” (HUTCHEON, 1991, p. 34). Pois, de acordo com Linda Hutcheon (1991) a ficção e a história são discursos que constituem sistemas de significação através dos quais damos sentido ao passado. Mas também “[s]e por um lado vemos o esgotamento da historiografia oficial, o esvaziamento do discurso autoritário de uma suposta verdade; por outro lado, vemos a literatura em um processo de revisão” (RAMOS, 1995, p. 16). O texto ainda põe em dúvida os discursos oficiais (de novo, especialmente o do jornais), a partir da fala de Lídia, a criada com quem Ricardo Reis tinha um complicado relacionamento:

que eu duvido, o que meu irmão diz é que não se deve fazer sempre fé no que os jor-

ver o que se passa, tenho que acreditar que é verdade o que eles me dizem, um jornal

não pode mentir, seria o maior pecado do mundo, O senhor doutor é uma pessoa instruída, eu sou quase uma analfabeta, mas

uma coisa eu aprendi, é que as verdades são muitas e estão umas contra as outras,

enquanto não lutarem não se saberá onde está a mentira (SARAMAGO, 2010, p. 400).

Nesse trecho, percebem-se também as distintas personalidades que se edificam a partir das diferenciadas apropriações da linguagem, pois a própria Lídia diminui a sua importância diante de Ricardo Reis por ser “quase uma analfabeta”, enquanto ele é um médico, “uma pessoa instruída”, e também um poeta, um especialista da linguagem. Essa comparação instaura novamente o paralelo entre a margem (Lídia) e o centro (Reis), que é discutido pelo fantasma de Pessoa em sua conversa com Ricardo, na qual comenta o relacionamento desse com a criada: Você não perde tempo, ainda não há três

semanas que chegou, e já recebe visitas galantes, presumo que serão galantes, Depende do que se queira entender por ga-

lante, é uma criada do hotel, Meu caro Reis,

você um esteta, íntimo de todas as deusas do Olimpo, a abrir os lençóis da sua cama a uma criada de hotel, a uma serviçal, eu que me habituei a ouvi-lo falar a toda a

hora, com admirável constância, das suas Lídias, Neeras e Cloes, e agora sai-me cati-

vo duma criada, que grande decepção [...] (­SARAMAGO, 2010, p. 115).

E a própria Lídia, entre outros momentos, desmerece a si mesma, diminuindo a sua importância ao dizer que não há muitos motivos para que Reis se interesse por ela e por

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sua vida: “Eu, senhor doutor, sou uma simples criada, mal sei ler e escrever, portanto não preciso de ter vida, e se a tivesse, que vida poderia ser a minha que a si lhe interessasse [...]” (SARAMAGO, 2010, p. 172). E é através desses trechos que chegamos à:

os parasitas da preguiça e os outros para-

dernismo: seus pressupostos psicológicos

parasita da cidade ou a cidade parasita do

[...] mais problemática faceta do pós-moquanto à personalidade, à motivação e ao

comportamento. A preocupação com a fragmentação e instabilidade da linguagem

e dos discursos leva diretamente [...] a cer-

sitas secretos do exército e da polícia, das escolas, fábricas e escritórios, os parasitas do coração? Será que os parasitas poderiam ser ainda chamados de parasitas? Parasitas também tinham carne e substância;

parasitas também podiam servir de presas.

Talvez, na verdade, o campo ser declarado campo, dependia, nada mais, nda menos,

de quem fizesse sua voz ser ouvida mais alto (COETZEE, 2003, p. 135).

em troca. Para K, porém deitado ocioso em

Assim, e também a partir da relativização do discurso oficial e histórico, se revela “a preocupação por parte de quaisquer que sejam as instâncias discursivas pós-modernas em relativizar conceitos e paradigmas, admitindo a possibilidade de todo e qualquer discurso ser provisório e historicamente condicionado” (FIORUCI, 2012, p. 150). Ainda, podemos observar os momentos em que se dá o convívio entre Michael K e o médico que cuida dele ao final do livro. Sendo que esses momentos são aprofundados ao lembrarmos que o primeiro, como comentado anteriormente, é a representação do excluído, e o último pode ser considerado como típico personagem do centro. No seguinte excerto, temos a narração do médico em primeira pessoa, considerando algumas coisas que desejava falar para K:

hospedeiro, quem o parasita, o campo ou a

ele. “Você pergunta por que é importante,

ta concepção da personalidade (HARVEY, 2011, p. 56).

Essas relações entre centro e margem são da mesma forma, exploradas por Coetzee, ao contar a história de Michael K, sendo o personagem principal a própria personificação do excluído. Nesse sentido, há inúmeras reflexões a respeito da coexistência do centro e da margem, mostrando como um é importante para a existência do outro, como pode ser observado no seguinte excerto: Parasita era a palavra que o capitão de po-

lícia havia usado: o campo de Jakkalsdrif,

um ninho de parasitas dependendo de uma linda cidade ensolarada, devorando sua substância, sem dar nenhuma nutrição

sua cama, pensando desapaixonadamente [...], não era mais tão evidente quem era o

cidade. Se o verme devorava a ovelha, por que a ovelha engolia o verme? E se houves-

se milhões de pessoas, mais milhões do que qualquer um pudesse imaginar, vivendo

em campos, vivendo de esmolas, vivendo da terra, vivendo de fraudes, se encolhen-

do pelos cantos para escapar de sua época. Espertos demais para levantar bandeiras e chamar atenção para si mesmos, para se-

rem contados? E se os hospedeiros fossem muito menos numerosos que os parasitas,

Tinha uma coisa que queria dizer para Michaels. A resposta é que você não é im-

portante. Mas isso não quer dizer que você

foi esquecido. Ninguém é esquecido. Pense nos pardais. Não se vendem cinco pardais por uma ninharia? E mesmo assim eles não são esquecidos” (COETZEE, 2003, p. 158).

Destarte, através da comparação entre as duas obras, verifica-se que, “o pensamento pós-moderno se preocupa menos com os fatos, preferindo deter-se sobre as

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i­ nterpretações destes”, tendo consciência de que também o fato é “uma verdade relativamente interpretada” (FIORUCI, 2012, p. 150). E esse é o seu modo de mostrar que “como relato narrativo, a história é inevitavelmente figurativa, alegórica e fictícia; ela é sempre já textualizada, sempre já interpretada” (­HUTCHEON, 1991, p. 185).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dessa pesquisa, ficou claro como o estudo comparativo, considerando tanto as comparações entre os textos, como as diferentes interpretações possíveis, torna os trabalhos realizados cada vez mais repletos de significados e reflexões pertinentes. Pois não só se evidenciam as semelhanças das obras, como também ressaltam as suas diferenças, visto que o trabalho do comparativista que apenas mostra o que as obras têm em comum acaba perdendo de vista “a determinação da peculiaridade de cada autor ou texto e os procedimentos criativos que caracterizam a interação entre eles” (CARVALHAL, 1998, p. 31). Além disso, percebemos a importância de realmente nos debruçar atenciosamente ao nosso objeto de estudo, sendo que, quanto maior o nosso envolvimento, mais significativos os resultados. Através desse estudo, em especial, percebe-se que devemos dedicar maior atenção à utilização da linguagem, pois ela é relevante não só na literatura, mas também em todas as demais áreas de conhecimento. Uma vez que “para o homem, não há pensamento, nem mundo (nem mesmo homem), sem linguagem, sem algum tipo de Representação” (SANTOS, 2004, p.15). Sendo assim, a literatura pode ser reconhecida como caminho para o melhor entendimento do relacionamento humano, da História e da sociedade. A partir disso, o prestígio da estética do Pós-modernismo se encontra, entre tantas outras coisas, no fato de que ele se constitui por “um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios

conceitos que desafia” (HUTCHEON, 1991, p. 19), “no mínimo, uma força problematizadora em nossa cultura atual” (HUTCHEON, 1991, p. 13). Ele deseja, então, que nos tornemos sujeitos mais críticos e reflexivos diante da sociedade fragmentada e multifacetada na qual estamos inseridos, para que, assim, “sejamos mais participativos e menos contemplativos como sujeitos históricos, tomando consciência de nossas expectativas em relação à interpretação da realidade que nos envolve” (FIORUCI, 2012, p. 159). Sendo que a “a narrativa pós-moderna funciona como uma confluência de olhares, de palavras, um convite à reflexão, e não uma mera exposição de ideias prontas” (FIORUCI, 2012, p. 155). E, para instaurar essa reflexão, é impossível não reconhecer a magnitude da linguagem, observando que, como afirma Saramago, através da voz de Ricardo Reis “provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver” (SARAMAGO, 2010, p. 58).

REFERÊNCIAS

CARVALHAL, Tania Franco. Literatura comparada. 3. ed. São Paulo: Ática, 1998. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

COETZEE, John Maxwell. Vida e época de Michael K. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

FIORUCI, Wellington Ricardo. O labirinto da escritura: ficção e memória nas poéticas de Ricardo Piglia e Umberto Eco. In: FIORUCI, Wellington Ricardo; FIORUCCI, Rodolfo. (Org.). Vestígios de memória: diálogos entre literatura e história. Curitiba, PR: CRV, 2012. p. 145-160.

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HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. RAMOS, T. R. O. Pode-se (não) falar de pós-modernidade?. Anuário de Literatura, 1995, n. 3, p. 13-20.

SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 44-60.

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004. SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LEMERT, Charles. Pós-modernismo não é o que você pensa. São Paulo: Loyola, 2000.

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UM TREM PARA O PASSADO: UM ESTUDO DA MEMÓRIA EM AUSTERLITZ, DE SEBALD Ana Paula Cabrera1

Daniela Schwarcke do Canto2

RESUMO: A proposta deste trabalho é analisar como Sebald trabalha com a memória nesse romance publicado em 2001, poucos meses antes de sua morte. Iniciaremos com uma rápida introdução da obra em si, colocando o momento do primeiro encontro do narrador com Austerlitz em uma estação de trem (os trens, aliás, que aparecem constantemente no livro e na memória de Austerlitz, quase como uma obsessão). A seguir analisaremos o papel do narrador neste romance, para em seguida, discutir a importância das imagens na obra. Finalizaremos com uma breve análise do personagem Austerlitz e sua história que nos remete aos horrores do Holocausto e da Segunda Guerra mundial. Usaremos como referencial crítico autores como: Walter Benjamin, Maurice Halbwachs, Pierre Nora e Eurídice Figueiredo entre outros. Palavras-chave: Memória, Austerlitz, Segunda Guerra Mundial.

ABSTRACT: The purpose of this study is to analyze how Sebald works with memory in this romance published in 2001, a few months before his death. We begin with a fast introduction on the book, focusing on the moment of the first encounter between the narrator and Austerlitz at a train station (the trains appear constantly in the book and in Austerlitz’s mind, almost as an obsession). Then, we will analyze the role of the narrator in this romance, and after that, we will discuss the importance of the images in the book. We will end with a brief analysis of the character Austerlitz and his history, which brings us back to the horrors of the Holocaust and Second World War. We will use as critical reference authors as: Walter Benjamin, Maurice Halbwachs, Pierre Nora and Euridice Figueiredo, among others. Keywords: Memory, Auterlitz, Second World War.  

INTRODUÇÃO Em 1967, em uma estação de trem em uma cidade chamada Antuérpia, na Bélgica, um escritor se aproxima de um homem com aparência quase juvenil, de cabelos loiros e ondulados que - diferentemente das demais pessoas que estavam ali, esperando o trem – se ocupa em analisar cuidadosamente a arquitetura do lugar, traçando apontamentos e tirando fotos. O escritor lhe pergunta sobre seu interesse na sala de espera onde se encontravam, e sem qualquer tipo de hesitação, Austerlitz e o escritor começam a conversar. A conversa parte do detalhamento arquitetônico da estação, o que leva ao assunto do recente passado europeu e às catástrofes do século XX. Essa conversa, que durou até quase meia-noite, foi a primeira de muitas e o início de uma insólita e estranha amizade que atravessaria décadas e desvendaria inúmeros segredos, os quais o escritor nos revela, mesmo que parcialmente, no romance escrito por W.G. Sebald. De início, os encontros entre narrador e personagem 1 2

Mestranda em Letras no PPGL da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista CAPES/DS. E-mail: [email protected]. Mestranda em Letras no PPGL da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected].

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nada contam do passado de Austerlitz, ou de sua vida pessoal. Os dois personagens mantêm uma ­amizade forte e livre, sem os laços convencionais. Tanto que se encontram, ao longo dos anos, algumas vezes por acaso, outras previamente combinadas através de um bilhete, algumas com um hiato enorme entre elas. À medida que Austerlitz vai contando episódios de sua vida para o narrador, seu passado vem à tona, e se torna impossível fugir das ­lembranças que lhe atormentam e que ele havia, por muitos anos, tentado esquecer. Inicia-se, então, uma busca ao passado, à memória, à família e à vida que ele havia deixado para trás, perdidos em um canto obscuro de sua mente. Esse trabalho tem por objetivo analisar como a questão “memória” é abordada no romance Austerlitz, de W.G. Sebald. Passaremos pela figura do narrador, pelas fotografias e outras imagens existentes no livro e finalizaremos com o uma breve análise do personagem Jacques Austerlitz.

O NARRADOR

Utilizando uma narrativa semelhante a um documentário, observamos que no texto de Sebald, o narrador busca descobrir suas origens através da memória de Austerlitz. A narrativa que tem início nos anos 60 na estação ferroviária de Antuérpia, Bélgica relata neste primeiro momento a escuridão que é a primeira sensação que o narrador traz deixando claro o “sentimento de mal-estar”. O narrador conta como a história relembrada toma vida através das palavras de Austerlitz, remete a imagens de fabricação de espelhos, “as superfícies de cintilação”, “a morte de muitos trabalhadores, durante a fabricação dos espelhos, malignas atribuições fatais após a inalação do vapor de mercúrio e cianureto” (SEBALD, 2008, p.17). Nessas imagens que referem-se certamente ao Holocausto, podemos observar a sutileza do autor e a maneira como ele sai das sombras da noite e retoma no dia seguinte apontando

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para libertação da água, “as águas amplas”, e a luz, “fulgurantes do sol da manhã”, nos levando a um ­passeio pelo quadro do pintor Lucas von Valckenborch, pintor renascentista, holandês, que foi embora da Bélgica em 1566, na época do “beeldenstorm”, conhecido por suas pinturas de paisagens e natureza morta. Austerlitz, faz a transcrição minuciosa da tela como se aquele instante tivesse ficado congelado em sua memória, registrando-o como a lente de sua câmera. Presente durante todo o livro, esse misterioso e enigmático narrador é um viajante que, uma vez na Antuérpia, em meados dos anos 60, conhece Jacques Austerlitz em uma estação de trem, onde iniciam um diálogo muito peculiar sobre história da arquitetura. Ele não nos diz seu nome, mas pode, segundo Almir de Freitas (2008), ser o próprio Sebald. Apesar de ficar evidente que o romance não é autobiográfico, também fica claro que não se trata de pura invenção. O romance é todo contado na primeira pessoa e o uso de descrições ajuda-nos a entender a história e a fazer uma “imagem mental” dos personagens e dos locais citados. Por ocasião do primeiro encontro, o narrador descreve ­Austerlitz: (...)um homem que então, em 1967, tinha uma aparência quase juvenil, com cabelos

loiros curiosamente ondulados, tais como eu vira apenas no herói alemão Siegfried no filme de Lang sobre os nibelungos (...) Austerlitz usava pesadas botas de caminhada e um tipo de calça de operário feita de chita azul desbotada, bem como uma jaqueta talhada por alfaiate, embora há

tempos fora de moda, e, além da aparên-

cia exterior, ele se distinguia também dos

demais viajantes por ser o único que não mirava apático o vazio, mas se ocupava em traçar apontamentos e esboços que se relacionavam obviamente à sala onde ambos estávamos sentados. (2008, p. 11)

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O que sabemos de Austerlitz é apenas o que nos é contado pelo narrador. Esse ­procedimento resulta em um discurso secundário, uma narrativa dominada pelo mise-em-abyme, onde fatos históricos, leituras, documentos e lembranças se misturam, seja pelas palavras ou pela memória da personagem fazendo com que o livro tenha um ar quase de documentário. Em nível linguístico, há o uso do inquit, descrito por Douglas Pompeu (2012) como “recurso discursivo que se faz por meio da reprodução do relato de uma terceira pessoa, marcada no texto com “ele disse”, “ele dizia”, que funde narrador e personagem de tal maneira que fica difícil delimitar as fronteiras da voz de quem está narrando”. Para Pompeu (2012), essa forma de escrever do autor pode significar uma incredulidade, uma descrença na possibilidade de narrar, o que nos remeteria à hipótese de Walter Benjamin (1987), apresentada em O Narrador, na qual ele diz que, após as catástrofes da primeira grande guerra, não seria mais possível fazer uso de uma concepção linear e total de eventos e testemunhos na reconstrução do passado. Austerlitz viveu a Segunda Grande Guerra, e podemos notar em Sebald um possível “novo caminho” para a narrativa pós-catástrofe, recorrendo à voz do outro e às imagens e objetos antigos, exibindo, dessa forma, um conjunto de evidências do que está sendo narrado. A forma de escrever de Sebald com o uso insistente de frases iniciando com “ele disse”, “ele disse que ela disse” colocam o narrador desde o início como um mediador entre o leitor e o protagonista, como transmissor da memória traumática de Austerlitz. Pomepeu (2012) coloca que a forma de escrever de Sebald resulta em um texto performático, permeado de memórias “costuradas” com as imagens, e que nos é apresentado por meio de relatos, falhas de memória e lembranças vindas à tona após muitos anos.

O que resulta desse procedimento, no caso de Austerlitz, é uma emulação ou uma ­escrita performática de processos mnêmicos costurados em uma montagem de texto e ima-

gem. Esses processos são emulados por meio de relatos ricos em detalhes, lacunas, falhas e furos de memória, e mais frequentemente, seja ao nível do texto, ou da imagem, através de associações e correspondências. (Pompeu, 2012)

É possível afirmar, portanto, que texto e imagem não podem ser tomados de forma isolada no romance. É preciso que sejam analisados conjuntamente para que se possa entender o papel da fotografia em Austerlitz. A amizade e a confiabilidade entre Austerlitz e o narrador foi sendo construída aos poucos. Austerlitz exige do narrador deslocamentos ao longo das décadas em que seus encontros acontecem. Aos poucos, o narrador ganha a confiança do misterioso amigo, e recebe, além de vários relatos orais, documentos pessoais do protagonista, cartas e diários, além do material pesquisado por Austerlitz para um livro sobre a arquitetura europeia que ele acabou não escrevendo e que seriam mais tarde organizados e relatados pelo narrador. Os encontros têm um formato curiosos e, na maioria das vezes, o narrador apenas escuta os relatos, agindo mais como um “ouvinte” do que participante ativo na conversa. Ele age quase como um psicólogo ou analista, que ouve seu paciente sem julgá-lo, em repetidas sessões clínicas. No que diz respeito a arte de narrar lembramos de Walter Benjamin que defende a ideia que “a arte de narrar estaria em vias de extinção”, estava se tornando raro encontrar pessoas capazes de narrar histórias devido ao “individualismo do mundo, onde o lado épico da verdade está em extinção.” (1987, p. 201). Segundo Gatti (2012) nada poderia estar mais longe da figura tradicional do narrador descrita por Benjamin, que ouvia histórias

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da tradição oral -como os contos de fadas- e às transmitia às futuras gerações. O narrador em Austerlitz, de Sebald, não é alguém que estava presente no momento em que os fatos ocorreram para depois relatá-los, mas alguém que se debruça sobre histórias alheias e, num gesto de amizade e cumplicidade, recolhe fragmentos contados pelo amigo, fotos antigas e alguns relatos de terceiros e tenta montar o “quebra-cabeças” que é a vida de Austerlitz.

AS IMAGENS EM AUSTELITZ

O texto de Austerlitz é costurado por uma série de imagens quase enigmáticas: objetos, cartões-postais e lugares não identificados não são meras ilustrações da história. Elas sugerem algo mais e dão veracidade aos fatos e às lembranças de Austerlitz. Austerlitz desperta, através das imagens, memórias vividas registradas ao longo dos anos. Mostra a possibilidade de aproximarnos de uma projeção silenciosa do que foi. Ao passo que tendemos a acreditar em uma imagem, confiamos na veracidade dos fatos nela contidos como se a imagem pudesse contar o fato nela evocado. As imagens que permeiam as páginas do livro, entrelaçam-se ao texto, dando-lhe uma maior veracidade. Juntando -as à escrita densa e enigmática de Sebald, se estabelece no romance uma linha muito tênue entre o ficcional e o real. Barthes explica que o processo de representação da imagem e o conteúdo de sua mensagem tem dois aspectos: um de cunho conotativo no qual a imagem seria portadora de um saber cultural e de um determinado sistema simbólico, e um aspecto denotativo, no qual a imagem tem um poder de representação do real. Para Freitas (2008), o fato de navegar entre o real e o fictício explicaria o grande sucesso que foi Austerlitz, e as fotografias tem um papel importante no que diz respeito à essa indefinição. O fato de o leitor não saber ao certo se está lendo uma história que realmente aconteceu somente aguça sua

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c­ uriosidade, fazendo com que a leitura se torne ainda mais aprazível. Essa zona nebulosa entre a realidade e a

ficção em que o escritor opera explica, em grande parte, o entusiasmo que Austerlitz despertou. E essa sensação de que a história ali contada trafega na fronteira entre

dois mundos é reforçada pelas fotografias – que trazem lugares, situações e rostos

que existem, mas que não correspondem

necessariamente às suas identificações. (Freitas, 2008)

Austerlitz perdeu seu passado; ele vivera em uma casa que não era a sua, foi inserido em uma família e em uma cultura totalmente diferente da sua família. Quinhones explica que:

Austerlitz só pode ser quem é através do contato que tivera com o pregador Elias e sua repressiva educação, da quase indiferença da esposa do pregador e das conversas com Evan, que lhe mostrara outra

forma de religiosidade e outra cultura. Es-

sas mesclas culturais produzem a riqueza

da história do protagonista, ou seja, todo

seu presente depende desse passado que lhe foi imposto pelo infortúnio. As reações psicológicas que Austerlitz desenvolveu na vida adulta estão fortemente ligadas com

sua infância e com o lugar em que cresce-

ra, por isso a importância do tempo (2014, p.191).

Um exemplo disso é a fotografia (Fig.1) onde aparece o corrimão da escadaria da suposta casa onde Austerlitz cresceu e que, através da imagem, permanecerá intacto na sua memória e nas suas lembranças. Ou então a imagem de uma encosta coberta de folhas e flores (Fig.2) que o remete instantaneamente a um episódio de sua infância, à muito esquecido.

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no qual se pode detectar- tal como ocor-

re nos documentos escritos não apenas os elementos constitutivos que lhe deram

origem do ponto de vista material. No que

toca a imagem uma série de dados poderão Fig.1 - Escada do apartamento de Ágata. Fonte: Sebald, 2008, p. 153

Fig.2 - Parque.

Fonte: Sebald, 2008, P. 163

E os teixos verde-escuros que cresciam sob as árvores altas também me eram fa-

miliares, tão familiares quanto o ar fresco que me abraçou no fundo da vertente e as

incontáveis anêmonas que cobriam o chão

ser reveladores, posto que jamais mencionados pela linguagem escrita da história”. (2001,p.153, 154 )

A fotografia é um meio individual de expressão, onde a imaginação criadora não pode ser entendida apenas como registro da realidade. Seu registro visual documenta a atividade criativa do autor, além de ser uma manifestação de arte.

A fotografia é inclassificável porque não há qualquer razão para marcar tal ou tal de

suas ocorrências, as fotos são signos que não prosperam bem, que colham, como

leite. Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto

é sempre invisível: não é ela que vemos. (­BARTHES,1984, p.16).

das minhas expedições com Hilary às casas

No seguinte fragmento observamos a importância do tempo e até da revelação deste através de imagens:

cujo plano era muito semelhante ao dos

pelo tempo éramos capazes de percorrer às

da floresta, já murchas agora em abril, e

então entendi porque anos antes, em uma de campo, a minha voz me faltara quando,

em um dos parques de Gloucestershire jardins de Schönborn, nós topamos inesperadamente com uma encosta voltada para

o norte, coberta pelas folhas penatissec-

tas e pelas flores níveas que desabrocham em março da Anemone nemorosa. (Sebald,

2008, p. 162-163)

Boris Kossoy afirma que:

As fotografias não são meras ilustrações ao texto. A imagem fotográfica informa sobre

o mundo e a vida, porém em sua expressão e estética próprias. Para ele toda e qual-

quer fotografia, além de ser um resíduo do passado, é também um testemunho visual

Somente nos atendo ao curso prescrito pressas os gigantescos espaços que nos se-

paravam uns dos outros. Sem dúvida, disse Austerlitz após um instante, a relação entre

espaço e tempo, tal como percebemos ao viajar, tem até hoje algo de ilusionista e ilusório, razão pela qual sempre que voltamos

de viagem nunca sabemos com certeza se

de fato estivemos fora. – Desde o início me surpreendeu o modo como Austerlitz dava corpo a suas idéias [sic] no próprio ato de falar, como era capaz de desdobrar as frases mais harmoniosas a partir daquilo que lhe

ocorria no momento, e como a transmissão de seu conhecimento através da fala constituía para ele a gradual ­aproximação a uma

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espécie de metafísica da história, na qual os fatos relembrados tornavam novamente à vida (SEBALD, 2001, p. 16-17, grifo n ­ osso).

Para Quinhones a primeira parte grifada demonstra

dissonância entre espaço e tempo, talvez originada pelo fato de que podemos voltar

no espaço (mesmo que ele esteja mudado em alguma medida), mas não no tempo

(que é movimento, mudança, devir). Já a

segunda parte grifada pode ser associada a algumas experiências que são impregna-

das por fortes componentes emocionais, que, quando rememoradas, potencializam

sensações, tornando os sentimentos tão vívidos que darão a ilusão de estarem ocorrendo no presente (2014, p. 191)

As fotos podem proporcionar emoções prazerosas ou não. De acordo com Barthes a fotografia pode ser objeto de “três práticas (ou três emoções, ou intenções): fazer, suportar, olhar”. (1984, p. 17). Qualquer que seja o assunto registrado na fotografia, ela também documentará a visão de mundo de quem está fotografando.

A MEMÓRIA

Segundo a Wikipedia, a memória é a “capacidade de adquirir, armazenar e recuperar informações disponíveis, seja internamente, no cérebro (memória biológica), seja externamente, em dispositivos artificiais (memória artificial)”. Sebald coloca a questão da memória de uma forma muito forte em Austerlitz. O livro é, antes de tudo, um exercício da memória, e essa tem a característica de não ser 100% confiável. Aqui, o ficcional se cruza com o biográfico e o documental. Contamos com a memória de Austerlitz para que os fatos e a história sejam desvendados. É o que Pierre Nora chama de pós-memória – memória indireta e fragmentária de uma segunda e terceira geração

cuja relação com objetos como o holocausto passa mais pela via criativa e pelo investimento imaginativo do que pela experiência (Nora, 1993). Ou seja, Austerlitz não viveu exatamente os horrores da Segunda Grande Guerra, ele foi poupado graças à coragem de sua mãe ao entrega-lo à adoção. O que ele viveu foram os efeitos dessa guerra, a solidão, a falta da mãe e os traumas recorrentes deste prematuro afastamento. O romance começa com uma série de memórias aleatórias, como se fosse um diário de viagem, e, à medida que o tempo passa e Austerlitz começa a confiar mais no narrador, suas memórias vão ressurgindo, desvendando o verdadeiro eixo da trama que é a busca ao seu passado, que acaba se confundindo com o passado mais sombrio da Europa na metade do século XX. Benjamin, diz que: (...) a imagem autêntica do passado só aparece num clarão. Imagem que surge para

desaparecer no instante seguinte(...)é uma imagem única, insubstituível do passado

que se enfraquece com cada presente que

não soube reconhecer-se visado por ela. (2003,p.324).

Benjamim vincula essa concepção à “memória involuntária”, pressupõe que o instante do conhecimento possível é de extrema fugacidade pela continuidade do esquecimento e da opressão. Conforme Austerlitz vai recobrando algumas poucas memórias e encontrando as pistas da sua infância e de sua família biológica, surge também lembranças de fatos históricos que marcaram o mundo no período. A Segunda Guerra Mundial, os horrores dos campos de concentração, o “kindertransport”, que transportava crianças judaicas para a Inglaterra com o objetivo de salvá-las das políticas anti-judaicas nazistas e as 45 milhões de vidas ceifadas durante o conflito fazem parte da história pessoal de Austerlitz. Gatti (2012) coloca

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que “ao longo de sua jornada é possível enxergar em cada pequena descoberta os horrores da Segunda Guerra e do Holocausto ainda não tão escancarados, mas já presentes de uma forma assustadora”. A memória é, sem dúvida alguma, a espinha dorsal das obras de Sebald. As lembranças vão voltando aos poucos à mente de Austerlitz, nas pequenas coisas, em uma palavra, em um gesto, em uma imagem. Maurice Halbwachs defende que a memória é uma imagem reconstruída, e que vem, pelo menos em parte, de depoimentos e realizações, e que a lembrança é, generalizando, uma “reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada” (1990). Ou seja, as lembranças vêm “forjadas” por outras lembranças, relatos ou declarações. Ela é uma imagem engajada em outras imagens, uma imagem genérica recortada do passado. As lembranças de Austerlitz emergem do seu inconsciente de maneira abrupta e irrompem em uma dolorosa crise nervosa, conforme o fragmento: “[d]amos quase todos os passos decisivos na nossa vida à força de um impulso interior obscuro” (SEBALD, 2008, p. 135). A importância da marcação espaço-temporal em Austerlitz é acentuada. Para Quinhones “o protagonista encarcerava-se dentro de si mesmo e seu contato com o mundo estava cada vez mais reduzido; suas ações pareciam movidas mais pelo inconsciente (interior obscuro) que pela razão” (2014, p.192). A tentativa de trazer o passado à tona, e fracassar, causava-lhe angústia e aflição. Austerlitz conta ao narrador que, após aposentar-se, costumava caminhar longas distâncias à noite em Londres, tentando se libertar da ansiedade e da insônia. Em uma manhã de domingo, de 1991, na Liverpool Street Station, local que irresistivelmente atraía Aus-

terlitz, ele sentara em um banco e repensava a história arquitetônica da estação de trem.

[...] a sala de espera em cujo centro me

achava como que deslumbrado continha

todas as horas de meu passado, todos

meus medos e desejos sempre reprimidos e sufocados, como se os losangos em pre-

to-e-branco das lajotas de pedra sob meus pés fossem o tabuleiro para a partida; final

da minha vida, como se ele se estendesse pela superfície inteira do tempo. (SEBALD, 2008, p. 138).

Cabrera explica que em Austerlitz vemos claramente esta relação com as lembranças quando, por exemplo, o autor relata as alucinações e as experiên-

cias que tinha quando ia a Liverpool Street Station. Sebald utiliza a metáfora arquitetônica não para simular um acesso ao mun-

do histórico e social, mas para construir uma interpretação crítica da História e da sociedade moderna. Sebald mostra ima-

gens que refletem emoções e sentimentos profundos. O personagem participou da descoberta do passado, fotografou e imor-

talizou os momentos. Suportou o olhar das

sombras e os sentimentos de dor, capturou o “spectrum ou o espetáculo” da fotografia

(BARTHES, 1984, p. 17), acrescentando o

que há em quase toda foto: o retorno dos mortos. Austerlitz conta que tenta imaginar de forma “quase obsessiva onde fica-

vam as celas dos reclusos do mosteiro de Bedlam” (SEBALD, 2008, p. 131). Austerlitz relata que fotografou os “restos mortais” no local onde foi construída a Broad Street

Station em 1865, através da imagem confirma o sofrimento com uma espécie de ful-

gor, absorvido pela superfície (2014, p.85).

Os colapsos que pontualmente afetam Austerlitz e que o ajudam a recuperar seu passado enterrado, são como as epifanias

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proustianas – o guardanapo engomado, a madeleine embebida no chá de tília e o calçamento irregular das pedras de Veneza -porém, diferente de Proust, que passou a entender plenamente como funciona a vida, desde o que há nela de mais extraordinário e majestosa, ao que há de bizarro e obsoleto, para Austerlitz, eles fazem aflorar as misérias do seu tempo, tornando-o uma espécie de mensageiro dos horrores, das atrocidades e da morte de milhões de inocentes.

JACQUES AUSTERLITZ

Jacques Austerlitz a personagem principal, professor de arquitetura no Instituto de História da Arte em Londres, também está sempre se deslocando em função de seu trabalho. Austerlitz e o narrador, no entanto, tal como o ponteiro do relógio, voltam sempre ao ponto de partida. Quanto a esse retorno do narrador, o que também é válido para o protagonista, Gatti menciona: “[a] sensação de pro fundo desapego em suas caminhadas solitárias tem um efeito revigorante sobre seu estado emocional debilitado, mas não salva este viajante esco lado de outros contratempos. Assim que retorna, ele mergulha em novo estado melancólico” (GATTI, 2012, p. 1), Jaques é um homem que tem sua vida assombrada pela catástrofe. Em 1939 ele embarcou num kindertransport – trem que levava crianças judaicas, sem a companhia dos pais, da Alemanha Nazista, Polônia, Checoslováqui e Cidade Livre de Danzig para o Reino Unido, com o objetivo de salvá-las das políticas anti-judaicas do nazismo (Wikipedia), deixando Praga, sem mesmo ter completado cinco anos de idade. O que explica a sua obsessão pelos trens e pelas estações, muitas delas descritas com detalhes nas páginas do livro. Austerlitz, assim como grande parte das crianças que estavam naqueles trens, foi adotado por uma família Inglesa, de um pastor da igreja calvinista. O pastor e sua esposa levam uma vida sombria e infeliz na pequena cidade de Bala, no País de Gales e

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fizeram questão de afastar o menino de qualquer contato com o seu passado. O menino cresceu sem o carinho de que necessitava, depois do trauma da separação da mão e do sentimento de abandono que o dominou e que o acompanhou por toda a sua vida. Seu nome verdadeiro somente lhe é revelado aos quinze anos, já em um colégio interno, após a morte dos pais adotivos. Não se chamava Dafydd Elias, como julgava até agora, mas sim Jacques Austerlitz, e havia nascido em Praga. Sua mãe o havia enviado à Inglaterra como última esperança em mantê-lo vivo. Após a revelação de sua identidade, o imenso e triste vazio de sua história surge de modo irreparável. A medida que Austerlitz vai contando sua história ao narrador, seu passado vem à tona. Ao acessar o passado, procura-se recompor o próprio universo interior. Quinhones menciona que “quando Austerlitz repensa sua história, ele remete a história de outros” (2014, p.188). Bakhtin descreve o ato criador e o papel do outro em relação à consciência individual. Com essa finalidade, ele menciona a “exotopia”, que poderia ser definida como a compreensão de que não se pode ver a si mesmo sem o excedente de visão do outro, que enxergará a incompletude que o próprio ser não vê, e a partir dela viverá e sentirá “amor, espanto, piedade, etc.” (BAKHTIN, 1997, p. 31) Nesse narrar, o tempo e o espaço deixam de ser apenas coordenadas objetivas e externas, e passam a ganhar uma dimensão interna, psicológica. Eles dilatam-se englobando o coletivo de vozes, um ser singular torna-se plural. Quinhones, explica que em Austerlitz, percebe-se que a narrativa explora as marcações de espaço-tempo externos, objetivos, para sinali-

zar as mudanças internas das personagens. A relação entre passado e presente é o condutor que tecerá a trama. (2014, p.188)

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Observamos que na página doze, quando Austerlitz e o narrador estão no restaurante da Estação Central de Antuérpia, ao observar o lugar, já quase vazio, restando apenas um cliente, os dois, e a velha senhora atendente atrás do balcão, encontra-se o seguinte excerto:

­relógio, parece ser uma estratégia narrati-

ro oxigenado se amontoava em forma de

fragmentada, mas também a fragmenta-

A propósito dessa senhora, cujo cabelo loi-

ninho de pássaros, Austerlitz comentou de passagem que ela era a deusa do tempo passado. E de fato, na parede atrás dela,

sob o leão heráldico da casa real belga, havia um poderoso relógio, peça que dominava a sala do bufê, no qual um ponteiro com

cerca de dois metros fazia sua ronda em

torno de um mostrador antes dourado, mas agora enegrecido pela fuligem da estação e pela fumaça do tabaco. Durante as pausas

que entremeavam nossa conversa, ambos notamos como era interminavelmente longo o tempo que levava para que mais um

minuto se passasse, e como cada vez nos parecia assustador, embora o esperásse-

mos, o avanço desse ponteiro semelhante a uma espada da justiça, quando ele subtraía ao futuro a subseqüente [sic] sexagé-

sima parte de uma hora com um tremor de tal forma intimidante que o coração quase

parava de bater (SEBALD, 2008, p. 12, grifo nosso)

No fragmento grifado, percebe-se o conflito entre o tempo cronológico e a consciência íntima do tempo (tempo psicológico) para o narrador personagem. Quinhones conta que: Todos parecem vítimas do tempo, até mes-

mo o relógio mostra-se refém deste, visto que está desbotado e enegrecido pela fuligem. Ou seja, o ponteiro volta sempre ao

mesmo espaço, mas esse espaço vai se deteriorando com o tempo e nunca permanece o mesmo. Essa preocupação com a estrutura espaço-temporal, metaforizado pelo

va para contar o impacto psicológico cau-

sado pelo passado traumático e o presente

desestabilizado. Mesmo distante no tempo objetivo da vida da personagem, o trauma

do passado continua sempre presente. O mosaico de narrativas, que contam sobre arquitetura, estações de trem, viagens e

fotos, evidencia uma história particular

ção identitária do homem contemporâneo. Essa reprodução mimética causará o efeito estético da obra. (2014, 0. 189)

Austerlitz é um homem melancólico, que não tem vínculos familiares ou amorosos, que desconhece sua história de vida, sua genealogia e que, por esse motivo, não consegue criar laços afetivos duradouros e satisfatórios. Durante anos ele tenta fugir de suas origens, evitando até mesmo qualquer estudo que pudesse ligá-lo ao passado. Contudo, as lembranças o atormentam, deixando-o melancólico, passando dias de total desassossego. Revolver a sua memória para descobrir seu passado é condição primordial para que possa curar o mal-estar em que vive. Cansado de lutar contra seu passado, ele começa a recolher memórias de uma época de sua vida a muito esquecida. Ele procura pelos pais, seguindo as pistas que encontrava pelo caminho. Revisita as cidades que havia soterrado no passado e reencontra as línguas de sua infância. As fotos, as histórias, os desenhos, os mapas, além dos lugares e das pessoas o ajudam a juntar aos poucos as peças do seu passado. Gatti (2012) coloca que “o tempo e a memória são a matéria de reflexão deste autor, que alertanos para algo fundamental: não se pode enterrar o passado”. O que pode ser entendido como uma crítica à Alemanha do pós-guerra, que mascara os anos de atrocidade nazista com o desenvolvimento de uma economia potente. Almir de Freitas (2008) compara a obra de Sebald à do austríaco Thomas

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­ ernhard, que também escreve no universo B do mal-estar do pós-guerra e com quem Sebald compartilha o recurso de escrever seus romances em praticamente um único e longo parágrafo. Austerlitz nos mostra um homem assolado internamente pelo conflito, pelas lembranças que teimam em desaparecer e a ressurgir na sua mente, talvez como um processo de autoproteção do menino que foi prematuramente separado da mãe e que, até os quinze anos de idade acreditou ser outra pessoa, descobrindo e redescobrindo sua real história aos poucos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Austerlitz, Sebald nos coloca diante de uma realidade que não é a nossa, diretamente, mas que faz parte da vida e da história de todos nós. Somos descendentes dessa geração que sofreu (e ainda sofre) com os horrores da Segunda Guerra Mundial. Seres marcados pela ferida da guerra e seus desdobramentos, ferida que continua aberta, apesar dos anos que se passaram. É impossível não nos tocarmos com a história do menino tirado da mãe como única forma de sobreviver ao inexplicável extermínio de milhões de judeus – homens, mulheres e crianças – pelos alemães nazistas. Nas mais de 200 páginas do seu livro, Sebald explora temas como a perda, o desolamento e a inquietude mental, e mistura gêneros como a memória, a história e a literatura de viagem. Na história do Judeu enviado à Inglaterra em 1939 pelo kindertransport, nos é revelada a memória daquele cujo passado estava perdido, e que somente foi sendo desvendado aos poucos, graças à amizade que Austerlitz nutria pelo narrador. Austerlitz ora confessa coisas, ora pratica uma espécie de autoanálise, exercitando sua memória, revelando sua vida e suas obsessões, atuando, muitas vezes como um detetive de sua própria biografia.

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Na sucessão de experiências traumáticas como a morte dos pais adotivos e um co-

lapso nervoso, Austerlitz se empenha em uma investigação a respeito de sua vida,

que termina por leva-lo a descobrir tanto o destino na mãe, uma judia morta em um

campo de concentração, de quem ele não se lembrava mais, quanto o seu próprio, o do

filho único, evadido à Londres às vésperas da Segunda Guerra Mundial. (Gatti, 2012)

W. G. Sebald havia lançado apenas quatro livros quando a morte o levou inesperadamente aos 57 anos. O escritor colidiu com seu Peugeot 306 de frente com outro carro ao sofrer um ataque cardíaco, apenas dois meses após o lançamento de Austerlitz. Freitas o coloca como uma espécie de militante contra o esquecimento dos horrores perpetuados pelos nazistas, e lamenta profundamente a seu prematuro desaparecimento. “É uma dolorosa ironia que a morte tenha ceifado o futuro literário de um escritor cuja obra se alicerçava no esforço de juntar os pedaços do passado, numa luta contra o esquecimento” (Freitas, 2008). A representação do processo histórico opõe-se a qualquer imagem histórica. Talvez pelo fato de que a continuidade da história é sempre opressora e a liberdade é vista apenas por instantes que logo são esquecidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2.ed. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e Técnica. Arte e Política. Tradução Sergio Paulo Rouanet. 1ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

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CABRERA, A. P. ;  ALÓS, Anselmo Peres  . ‘Austerlitz’: uma constelação em (re)construção. Cadernos do IL, v. 49B, p. 71-93, 2014. Disponível em:  ; Acessado em: 06.02.2015. FIGUEIREDO, Eurídice. A pós-memória em Patrick Modiano e W.G. Sebald. Alea: Estudos Neolatinos, vol. 15, num 1, enero-junio, 2013, pp.137-151. Universidade Federal do Rio de janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Disponível em: Acessado em: 05/07/2014. FREITAS, Almir de. A última obra-prima. Disponível em: Acessado em: 05/07/2014.

GATTI, Luciano. Os duplos de Sebald. Disponível em: Acessado em: 03/07/2014. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a Problemática dos Lugares”, In: Projeto História. São Paulo: PUC, n.10, pp. 07-28, dezembro de 1993.

POMPEU, Douglas Valeriano. As sombras do real em Austerlitz: investigação sobre a fotografia em W.G. Sebald. 2012.200f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em:< http://C:/ Users/pccli/Downloads/2012_DouglasValerianoPompeu_VRev%20(1).PDF> Acessado em: 03/07/2014. QUINHONES, E. W. ; ALÓS, Anselmo Peres . A importância da marcação espaço-temporal em

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‘Austerlitz’ (2001), de W. G. Sebald. Organon (UFRGS), v. 29(57), p. 185-197, 2014. Disponível em:  ; Acessado em: 06.02.2015.

ROCHLITZ, Rainer. A filosofia de Walter Benjamin: O Desencantamento da Arte. Bauru. SP: EDUSC, 2003. SEBALD, W.G. Austerlitz. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial,2001.

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OS POEMAS NEGROS DE JORGE DE LIMA Anselmo Peres Alós1

RESUMO: este trabalho investiga o livro Poemas negros (cuja primeira edição data de 1947), escritos por Jorge de Lima, nos quais é possível observar a predominância de aspectos noturnos da imaginação simbólica (DURAND, 1997). Analisar-se-á, também, neste trabalho, as relações e interconexões estabelecidas entre crenças e mitos afro-brasileiros e suas representações no texto poético. Palavras-chave: Jorge de Lima. Poemas negros. Lírica brasileira. Século XX.

ABSTRACT: this article aims at focusing attention on the Poemas negros (first published in 1947), written by Jorge de Lima, in which is possible to observe the predominance of nightly aspects of the symbolic imagination (DURAND, 1997). It is also analyzed here the relations and connections established between the African-Brazilian myths and beliefs and its respective representation in these poems. Keywords: archetypal imagery – Jorge de Lima – Poemas Negros – Brazilian poetry – 20th century

JORGE DE LIMA, SUA OBRA E SEU TEMPO Nascido em União dos Palmares (Alagoas), em 1893, Jorge de Lima formou-se em Medicina no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que exercia a profissão médica, tornou-se professor de Literatura Brasileira na Universidade do Brasil. A carreira poética de Jorge de Lima iniciou-se com certa influência da Escola Parnasiana. Entretanto, ao final dos anos 20, sua produção lírica começa a refletir aspectos do Modernismo, em especial o verso livre. Ao mesmo tempo, travou contato com vários intelectuais nordestinos, genericamente denominados pelo termo regionalistas, dos quais sem dúvida o mais ilustre foi Gilberto Freyre, prefaciador de seu livro Poemas negros (1947). Dados estes fatos, a obra poética de Lima configura-se dentro do grupo de poetas modernistas metafísicos do qual, à exceção de Cecília Meireles, todos os integrantes findaram por se voltar, ao final da vida, para a fé católica, tal como Murilo Mendes e Augusto Frederico Schmidt. Nos poemas de Jorge de Lima, o popular aparece com um ar nostálgico, relembrando a realidade decadente dos engenhos-de-açúcar tão comuns à sua infância (cabe lembrar que o pai do poeta foi também um senhor de engenho, tal qual o pai do próprio Gilberto Freyre). Sobre o prefácio escrito por Freyre para Poemas negros e sobre as opiniões desse acerca das diferenças entre a poesia negra brasileira e a poesia negra estadunidense, Vagner Camilo afirma o seguinte:

Afora a atitude em face do modernismo, o prefácio também surpreende pelo modo como Freyre rompe certo consenso em torno do confronto entre a poesia negra do Brasil e a dos Estados Unidos: enquanto esta, feita pelos próprios negros, parece, para alguns, guardar certa vantagem (se

é possível colocar a questão nesses termos) em relação à primeira, feita predominantemente por 1 Doutor em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação de Letras da UFSM. Coordenador do projeto de pesquisa Ressonâncias e dissonâncias no romance lusófono contemporâneo: o imaginário pós-colonial e a (des)construção da identidade nacional. Coordena também o projeto de pesquisa Poéticas da masculinidade em ruínas, ou: o amor em tempos de AIDS, que conta com financiamento do CNPq (Chamada 43/2013). E-mail: [email protected].

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brancos, numa atitude que bem atesta sua

dimensão paternalista, para Freyre, ao

contrário, a vantagem estaria conosco. A

seu ver, a poesia negra norte-americana, justamente porque feita por negros, revelaria um caráter segregacionista e ressen-

tido, hostil em relação ao branco, ao passo que a brasileira seria produto do fraterna-

lismo e da democracia, de que é exemplo a obra de, entre outros, um Castro Alves,

um Ascenso Ferreira, o próprio Mário de Andrade e, é claro, Jorge de Lima (CAMILO, 2003, p. 226).

O valor dado ao misticismo no nordeste brasileiro foi um dos pontos cruciais para que o poeta aderisse ao catolicismo. Ainda assim, é possível vislumbrar em seu fazer poético algo de conhecimento acerca das muitas crenças e práticas rituais afro-brasileiras. Observe-se, a título de abonamento da afirmativa anterior, um trecho do poema “Quando ele vem”, incluído em seu livro P ­ oemas negros: Quando ele vem,

vem zunindo como o vento,

como mangangá, como capeta,

como bango-balango, como marimbondo. Donde é que ele vem?

Vem de Oxalá, vem de Oxalá, vem do oco do mundo,

vem do assopro de Oxalá, vem do oco do mundo

(LIMA, 1997, p. 311-12).

Por causa de sua proximidade com os setores marginalizados da população, Jorge de Lima lança mão da religiosidade como forma de sustentação ideológica. Entretanto, o momento da obra poética do escritor alagoano, contemplado no presente estudo, é o da celebração da cultura negra, de uma religiosidade e de um conjunto de crenças e representações cristalizado na superfície do texto lírico.

Trata-se não de referências a um ­imaginário mítico católico, mas sim da religiosidade do povo negro, em um momento histórico em que as crenças africanas já haviam, através do sincretismo religioso, adquirido certa legitimidade. Ainda que não reconhecida pelo status quo, é válido afirmar a conquista de alguma legitimidade, visto que tais crenças davam vazão às expectativas religiosas de uma comunidade discursiva bem demarcada, tal como, por exemplo, a dos quilombos. Na esteira dessas afirmações, Poemas negros é um livro que desperta singular interesse. Nessa obra, o eu-lírico assume uma posição-sujeito que equivale à posição do sujeito social negro. Com relação à questão do sujeito, Eni Puccinelli Orlandi, em Análise de discurso: princípios e procedimentos, salienta que: [...] o lugar do sujeito é constitutivo do que

ele diz, assim, se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas palavras significam de modo diferente do que se falasse do lugar do aluno [...].

Assim, não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é,

como estão inscritos na sociedade, e que

poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas ima-

gens que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situa-

ções empíricas – os lugares dos sujeitos –

para as posições dos sujeitos no discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição (ORLANDI, 2000, p. 39-40).

Muito mais do que o pertencimento do autor à raça negra, o fator central para a caracterização da presença de uma voz enunciativa negra na lírica de Jorge de Lima é a filiação a uma subjetividade negra: “a afeição artística pelo negro não teria possibilitado a Jorge de Lima um meio de se desvencilhar das determinantes aristocráticas que

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­ arcariam a sua poética onde o negro figum rou como o execrado principalmente pela sua cor” (­SILVA, 2004, p. 66). Logo, a legitimidade dessa voz nos poemas em questão não só é procedente em função das imagens cristalizadas na obra de Jorge de Lima, mas também em função de uma série de vetores ideológicos, identificáveis no nível do enunciado (texto poético), mostrando a filiação do eu-lírico à subjetividade negra. Como exemplo desses vetores, podese mencionar o seguinte trecho do poema “Bangüê”, onde a supremacia da raça branca é questionada: E os senhores de espora?

E as sinhás-donas de cocó?

E os cambiteiros, purgadores, negros queimados na fornalha?

O seu cozinhador, Usina Leão, é esse tal Mister Cox que tira da cana

[o que a cana não pode dar

e que não deixa nem bagaço com um tiquinho de caldo para as abelhar chupar! (LIMA, 1997, p. 296).

Finalizando esse comentário a respeito do quão legitimamente afrobrasileira é a voz de Jorge de Lima, faz sentido pensar um pouco nas seguintes palavras de Gilberto Freyre, em seu prefácio à obra Poemas negros: Experiência brasileira não falta a Jorge de

Lima: ele é bem do Nordeste. Não lhe falta o contato com a realidade afro-nordestina. E

há poemas seus em que os nossos olhos, os nossos ouvidos, o nosso olfato, o nosso pala-

dar se juntam para saborear gostos e cheiros de carne de mulata, de massapê, de resina, de muqueca, de maresia, de sargaço; para sentir cores e formas regionais que dão pre-

sença e vida, e não apenas encanto literário,

às sugestões das palavras: que pareçem lhes dar outras condições de vida além da tecnicamente literária (FREYRE, 1997, p. 91-2).

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O ARQUÉTIPO DA RODA E SUAS IMPLICAÇÕES: O ETERNO RETORN0 LÍRICO

Em As estruturas antropológicas do imaginário, Gilbert Durand sistematiza o estudo da imaginação simbólica a partir do trabalho de vários campos das ciências humanas. Entre suas fontes, cabe destacar a presença de Carl Gustav Jung e Gaston Bachelard, outros dois importantes nomes dentro dos estudos do imaginário e da imaginação simbólica. Durand começa sua obra a partir de uma espécie de “recenseamento dos símbolos”, que surgem a partir de esquemas simbólicos. Enquanto o regime diurno centra-se na verticalidade e nas oposições antitéticas (por exemplo, a transcendentalidade da subida e o trauma da queda), o regime noturno vai funcionar a partir da eufemização das imagens presentes no regime diurno. O que, no regime diurno, é queda e degradação, será eufemizado em lenta descida aos interiores secretos e à intimidade. A imagem simbóloica da mulher, que no regime diurno é dicotomizada ou em virgem santificada ou em bruxa medonha, aparecerá enquanto símbolo, no regime noturno, como a mãe acalentadora, fonte de morno e íntimo calor materno. É claro que se corre o risco de reducionismo ao se tentar apreender aqui a complexidade da obra de Gilbert Durand. Entretanto, não é de interesse aqui “reinventar a roda” e realizar uma exposição sobre o pensamento desse antropólogo; o eixo central neste trabalho é dado pela crítica e pela interpretação da obra de Jorge de Lima. Para tal, apropriase de alguns conceitos de Durand, que serão de extrema valia para que se possa compreender a sintaxe simbólica construída por Jorge de Lima em sua obra. “Enquanto o pensamento solar nomeia, a melodia noturna contenta-se com penetrar e dissolver” (DURAND, 1997, p. 224). É por isso que, ainda que as imagens antitéticas surjam nos poemas de Jorge de Lima, não se configuram como constelações imagéticas

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diurnas: as oposições não surgem para separar e purificar, mas para progredir e recensear (DURAND, 1997, p. 453), caracterizando o aspecto rítmico do regime noturno, cristalizado sob o arquétipo da roda e do eterno retorno, manifestações simbólicas para o conceito de ciclicidade dos fluxos temporais. É o que se pode verificar no poema “Ladeira da gamboa”. A escolha do adjunto que complementa o sintagma que tem como núcleo “ladeira” já é, por si só, extremamente significativo. Gamboa é o nome dado a uma espécie de lagoa temporária de água salgada, que se forma por ocasião dos movimentos de ida e vinda das marés. O movimento de ida e vinda das marés, tal como o eterno ciclo existencial que toma como referente os intercalados momentos de ser e não-ser das gamboas, organizam-se em uma sintaxe simbólica comum ao regime noturno da imaginação: LADEIRA DA GAMBOA

Há uma rua que eu conheço Rua Barão da Gamboa

tem uma ladeira de lado

com o mesmo nome da rua nenhum barão mora lá

mas porém gente que sua

gente que sobe gente que desce gente que vai para a vida gente que dela vem

não há meio de dizer-se

na ladeira ninguém vem

você mesmo não se agüenta pois a ladeira é um vaivém parece mesmo com a vida tem subida tem descida

Barão não

Poesia mesmo à toa

tem lama poeira buracos tudo o que a vida possui mas polícia não tem não polícia lá não influi

que a vida não tem polícia

a vida é mesmo um vaivém

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igualmente esta ladeira

dá na gente uma canseira tem subida tem descida

tem mais que tudo canseira igualmente esta ladeira

da Rua Barão da Gamboa.

Que boa.

Ladeira. Vida. Canseira. Gamboa (LIMA, 1997, p. 303).

As imagens antitéticas que surgem nesse poema, em especial as sugeridas pelos verbos (“gente que sobe gente que desce / gente que vai para a vida / gente que dela vem”) não funcionam de acordo com os valores do regime diurno, que são os da separação e da purificação. Assim, binarismos do tipo herói/ monstro são comuns no imaginário diurno, pois centram o aspecto terrível no monstro, de forma a garantir a subida transcendental do herói. No regime noturno, de acordo com Durand, “essa simetria já não é a simetria na antítese, mas sim a simetria na semelhança” (DURAND, 1997, p. 269). Assim, a partir do que o antropólogo do imaginário chama de simetria na semelhança, é sugerido não o ir e vir antagônicos, mas a própria ladeira da Gamboa tornada roda. A ladeira é a atualização do arquétipo da roda, que vai e que vem eternamente, vencendo o tempo através da eterna sucessão de altos e baixos, de momentos transcendentes e degradantes. O vaivém das pessoas na ladeira é o mesmo movimento de ida e vinda existencial, é o eterno alternar entre vitalidade e esgotamento, entre sentido e nonsense, alternância cara ao povo negro retratado nos poemas de 1947, povo que vive o eterno ir e vir, a ascensão transcendental da fé e a queda vertiginosa ocasionada pela perda do orgulho e do amor-próprio através da escravidão. Em “Cachimbo do sertão”, a imagem simbólica do eterno retorno também está presente. Em um primeiro momento, a imagem arquetípica da roda da fortuna é atualizada a partir do movimento sugerido pela ­descrição

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do cotidiano: sucedendo a constatação das dificuldades diurnas, a noite é um convite para cachimbar, para o rito onde se fuma à volta da fogueira, para que atinjam outros níveis de percepção da realidade. A primeira estrofe do poema delineia-se como um convite ao devaneio, que remete para o caráter cíclico tanto do tempo quanto dos símbolos representados através da lírica de Jorge de Lima, tais como a lua, a sucessão dos dias e das noites, a ciranda e o ritmo das cantigas infantis. Novamente, tal como no poema “Ladeira da gamboa”, imagens aparentemente antitéticas são, em verdade, a conciliação noturna através de uma estrutura antifrásica, que funciona através da dupla negação. Assim, a oposição das imagens criadas por Jorge de Lima em seus Poemas negros perde o referencial diurno, passando a sugerir o movimento da roda da fortuna em seu perpétuo giro através da sucessão do cansaço do dia e do acalanto da noite que convida aos delírios apaziguadores do fumo inalado através do cachimbo de barro: CACHIMBO DO SERTÃO Aqui é assim mesmo.

Não se empresta mulher,

não se empresta quartau

mas se empresta cachimbo para se maginar.

Cachimbo de barro

massado com as mãos,

canudo comprido, que bom! - Me dá uma fumaçada!

- Que coisa gostosa só é maginar! Sertão vira brejo, a seca é fartura,

desgraça nem há!

Que coisa gostosa é só cachimbar.

De dia e de noite, tem lua, tem viola.

As coisas de longe vêm logo pra perto. O rio da gente vai, corre outra vez.

Se ouvem de novo histórias bonitas. E a vida da gente menina outra vez ciranda, ciranda debaixo do luar.

Se quer cachimbar, cachimbe sêo moço,

mas tenha cuidado! – O cachimbo de barro se pode quebrar

(LIMA, 1997, p. 307-8).

Não apenas essa sucessão entre as imagens do cotidiano e o momento mágico despertado pelo cachimbo e pelas respectivas inversões eufemistas que este desperta, mas também o movimento circular das cirandas acompanhadas de cantigas infantis, e mesmo a imagem da lua, astro circular e cíclico por excelência, contribuem para a construção de uma constelação imagética toda ela voltada para o eterno rodar do Tempo: “o Tempo sagrado se apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos” (ELIADE, 1995, p. 64). Vemos aqui uma sintaxe imagética aparentemente antitética, com versos sugerindo o sertão a tornar-se brejo, e a seca a virar fartura. Vamos utilizar o pensamento de Gilbert Durand para esclarecer o papel dessa aparente oposição diurna dentro do universo noturno de Jorge de Lima: A lição dialética do simbolismo lunar já não

é polêmica e diairética como a que se inspira no simbolismo uraniano e solar, mas, pelo contrário, sintética, uma vez que a

lua é ao mesmo tempo morte e renovação,

obscuridade e clareza, promessa através e pelas trevas e já não procura ascética da

purificação, da separação (DURAND, 1997, p. 295).

Os últimos versos do poema (“Se quer ­cachimbar, cachimbe sêo moço, / mas tenha cuidado! – O cachimbo de barro / se pode ­quebrar”) revelam um papel importante a respeito do papel ritualístico sugerido em

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“Cachimbo do sertão”. Tal como o que ocorre nas cantigas infantis, quando o símbolo ritualístico é quebrado ou profanado, o girar eterno da roda é solapado. Basta que se lembre dos versos de domínio popular das cantigas de roda entoadas pelas crianças nos quatro cantos do Brasil: “o anel que tu me destes / era vidro e se quebrou / o amor que tu me tinhas / era pouco e se acabou”. Tal como na cantiga infantil, onde o quebrar do anel bloqueia o movimento amoroso, tido como o motor do movimento universal, a possível quebra do cachimbo instaura uma possível ruptura do devaneio noturno, paralizando o eterno suceder dos dias e das noites e instaurando uma dicotomia paralisada, onde não reinam mais as aspirações à ascensão e à subida transcendental, mas apenas ao repetir monótono do trabalho cotidiano e das convenções sociais, descritas nos primeiros versos (“Aqui é assim mesmo. / Não se empresta mulher, / não se empresta quartau / mas se empresta cachimbo / para se maginar”). Se o próprio Durand já fala que mesmo dentro do regime noturno as trevas sempre mantêm certa ambiguidade e, dentro dessa, certo aspecto terrível, a lírica de Jorge de Lima atuará justamente lendo tais símbolos pelo avesso, pois a ambiguidade terrível de que fala Durand está vinculada, no que tange ao poema “Cachimbo do sertão”, ao símbolo diurno e iluminado, mas corrompido pelo esforço desgastante do cotidiano e pelas convenções sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMILO, Vagner. Poemas negros: um diálogo poético entre Jorge de Lima e Gilberto Freyre. Revista USP, São Paulo, n. 59, p. 224-231, setembro/novembro 2003.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1995. FREYRE, Gilberto. Poemas negros. In: LIMA, Jorge de. Jorge de Lima: poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 90-94.

MIELIETINSKI, E. M. A poética do mito. Trad. de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. LIMA, Jorge de. Jorge de Lima: poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2000.

SILVA, Ângela Maria de Pinho e Silva. Jorge de Lima dá licença para que eu...? Em Tese. Belo Horizonte, v. 8, p. 65-73, dez. 2004.

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VIOLETA PARRA E O QUESTIONAMENTO À IGREJA NO CANCIONEIRO CHILENO DOS ANOS 60 Camila Marchesan Cargnelutti1 Maurício Marques Brum2

RESUMO: Tendo iniciado um trabalho de pesquisa e recompilação do folclore chileno no início da década de 1950, Violeta Parra se tornou precursora do movimento artístico e musical que viria a ser conhecido pelo nome de Nova Canção Chilena. Muitos dos traços típicos do movimento já eram identificados em suas obras, com destaque para o uso de instrumentos e ritmos de raiz folclórica e a composição de novas canções autorais, muitas delas marcadas por uma nítida mensagem social. Temas polêmicos passaram a ser incluídos em suas letras, que frequentemente se identificavam com as demandas dos partidos de esquerda, alcançando um destaque até então inédita para esse tipo de composição. Este artigo pretende analisar as primeiras críticas realizadas por Parra à Igreja Católica, em duas composições do início da década de 60: Porque los pobres no tienen, de 1962, e Julián Grimau (mais conhecida como ¿Qué dirá el Santo Padre?), escrita e gravada um ano depois. Palavras-chave: Violeta Parra. Nova Canção Chilena. Religião.

ABSTRACT: Having started a research on Chilean folklore in the early 1950s, Violeta Parra became the precursor of the artistic and musical movement that would become known as the New Chilean Song. Many of the typical traits of the movement’s songs could be identified in her works, especially the use of folkloric instruments and rhythms, and the composition of new, authorial songs, many of them marked by a clear social message. Controversial issues appeared in her lyrics, often identified with the demands of the leftist parties, reaching a prominence rarely seem before for this kind of compositions. This paper analyses the first criticisms made by Parra to the Catholic Church, in two songs from the early 60s: Porque los pobres no tienen, from 1962, and Julián Grimau (better known as ¿Qué dirá el Santo Padre?), written and recorded a year later. Keywords: Violeta Parra. New Chilean Song. Religion

RESUMEN: Habiendo iniciado un trabajo de pesquisa y recopilación del folklore chileno a inicios de la década del 50, Violeta Parra se convirtió en precursora del movimiento artístico y musical que vendría a ser conocido como Nueva Canción Chilena. Muchos de los atributos típicos del movimiento ya podían identificarse en sus trabajos, con destaque para el uso de instrumentos y ritmos de raíz folklórica y para la composición de nuevas canciones autorales, muchas de ellas marcadas por un nítido mensaje social. Temas polémicos pasaron a ser incluidos en sus canciones, que frecuentemente se identificaban con las demandas de los partidos de izquierdas, alcanzando un destaque hasta entonces inédito para ese tipo de composiciones. Este trabajo pretende analizar las primeras críticas realizadas por Parra a la Iglesia Católica, en dos composiciones del inicio de la década del 60: Porque los pobres no tienen, de 1962, y Julián Grimau (más conocida como ¿Qué dirá el Santo Padre?), escrita y grabada un año después. Palabras-clave: Violeta Parra. Nueva Canción Chilena. Religión. 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), soba orientação do Prof. Dr. Anselmo Peres Alós. Bolsista CAPES/DS. Jornalista formada pela UFSM. E-mail: [email protected] 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bolsista CNPq. Jornalista formado pela UFSM. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO: O PIONEIRISMO DE VIOLETA PARRA Precursora do movimento de renovação da pesquisa do folclore chileno iniciado na década de 1950, Violeta Parra seria lembrada como uma pioneira – fosse como folclorista, compositora, cantora ou artista plástica. Nascida no sul do Chile, em uma família numerosa, desde cedo se interessou pela música e pelas artes, algo que se acentuou após uma sugestão de seu irmão mais velho – o poeta Nicanor Parra – para que se dedicasse a investigar as tradições e a cultura do interior do país. Violeta foi uma das primeiras artistas a viajar pelas províncias chilenas recompilando ritmos, descobrindo instrumentos musicais ancestrais, registrando versos populares e passos de dança conservados na memória e nos costumes dos antigos habitantes de localidades remotas. Desgostosa com o que considerava um folclore meramente comercial, vendido como se fosse um “cartão postal3”, que ganhava cada vez mais espaço nas grandes emissoras de rádio de Santiago, Violeta Parra partiu em busca de um cancioneiro ancestral que não se limitasse à identidade cultural da região central do Chile. Por muito tempo, as tradições da zona rural ao redor da capital tiveram seus traços mais marcantes universalizados pelo discurso santiaguino como um autêntico folclore representativo de todo o país. Veja-se, por exemplo, o caso da “invenção4” da cueca como a dança chilena por excelência: bailado típico da província nas vizinhanças de Santiago, com o passar dos anos ela seria institucionalizada como a “dança nacional” – inclusive por força de lei5 –, mesmo que não 3

A esse respeito, ver Ángel Parra (2006) e Jorge Montealegre (2011).

4 Aqui pensamos no conceito de “tradição inventada” proposto por Eric Hobsbawm (1984, p. 9): “Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”. 5 Violeta Parra e outros folcloristas contemporâneos seus questionavam esse status “nacional”, atribuído em seu tempo principalmente pela imprensa. A cueca seria oficializada como “dança nacional” já na ditadura de Augusto Pinochet, pelo Decreto 23, de 6 de novembro de 1979, cujo texto afirmava:

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fizesse parte do repertório das populações de outras partes do país. A partir de trabalhos de folcloristas como Violeta Parra e sua contemporânea Margot Loyola – artista que realizou uma importante pesquisa sobretudo voltada às danças típicas do interior, bem como do folclore da região de Chiloé –, uma geração de compositores de raiz folclórica ganharia proeminência na década de 1960. Nomes como Víctor Jara, Rolando Alarcón, Patricio Manns, Héctor Pavez, Osvaldo “Gitano” Rodríguez, Ángel e Isabel Parra (filhos de Violeta), os conjuntos Quilapayún e Inti-Illimani, entre outros, passariam a reivindicar, como parte indissociável ao que então se considerava o “folclore chileno”, ritmos e temas das regiões andinas do norte, bem como das comunidades indígenas do sul – manifestações culturais até ali desprezadas pelo público urbano. A influência de Violeta Parra, no entanto, se manifestaria para além do interesse artístico na investigação das tradições: em flagrante distinção quanto às concepções de Margot Loyola, Violeta era contrária a uma ideia do folclore como algo estático, compondo obras que mais tarde a colocariam como “fundadora” do movimento que viria a ser conhecido como Nova Canção Chilena. Seu trabalho, longe de interpretar as manifestações folclóricas como imutáveis, foi marcado pelo uso da raiz ancestral para a criação de novas músicas, com as letras frequentemente trazendo uma bem marcada mensagem social. A motivação, portanto, não se restringia simplesmente aos aspectos da arte popular e da memória conservada pelos anciãos das localidades visitadas: também nascia de um posicionamento conscientemente político. Nas composições de Violeta Parra, pouco a pouco os ritmos e instrumentos musicais tradicionais foram se tornando companheiros de letras que falavam sobre greves, a desigualdade econômica, a marginalização “la cueca constituye en cuanto a música y danza la más genuina expresión del alma nacional”.

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das comunidades indígenas mapuche, a hipocrisia da Igreja e sobre a própria situação da mulher chilena numa sociedade extremamente machista. Nas músicas tocadas nas rádios, por exemplo, as mulheres eram comumente representadas de modo condescendente, flertando com o pejorativo. Tratava-se, na visão de Violeta, de canciones dulzonas, que hablaban de un

país que solo existía en sus mentes, en general de gran servilismo respecto de los patrones y donde la mujer campesina aparece

como decorado inútil. Sirviendo solo para avivar la cueca, cerrar un ojo mostrando

un pedazo de muslo. A la mujer, estos individuos la llaman “china”, palabra de connotación peyorativa en el lenguaje urbano,

doméstica, lo que revela dos problemas, racismo y machismo (PARRA, 2012, p. 67).

Os princípios artísticos e políticos explicitados pelo trabalho de Violeta entusiasmaram diversos cantores e compositores de seu tempo – já citados – que, seguindo os passos dela, também realizariam pesquisa folclórica para compor letras próprias, a partir do final dos anos 50. Em um concerto, Víctor Jara resumiu a admiração que os músicos da época tinham em relação a Violeta:

Assim, chegava este canto que, de pronto, falava outras coisas. E não dizia somente que, bem, que tínhamos uma cordilheira coberta de neve, e rios que são muito bo-

nitos, e que nossas mulheres eram lindas,

e que nós éramos muito felizes. Com este ambiente de canto banal, pitoresco, de cartão postal, um canto para o tourist, surgiu

uma voz áspera, rude, vital, tremenda, que marcou uma senda no Chile. Violeta Parra é, para nós, a artista popular por excelência (JARA apud BRUM, 2014, p. 64).

Curiosamente, embora em retrospectiva Violeta Parra seja considerada a “­fundadora”

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da Nova Canção Chilena, o movimento só seria reconhecido como tal – e só ganharia este nome – após a sua morte: em 1969, durante um festival organizado em Santiago pela Universidade Católica, a fim de discutir os rumos da música popular no país. Violeta havia se suicidado em fevereiro de 1967. Mesmo que o nome não existisse, porém, muitas das características normalmente associadas à Nova Canção podem ser identificadas na obra da artista. Para Fernando Barraza (1972), os traços musicais e temáticos desse movimento – o qual nunca chegou a “definir bases” oficialmente, como lembra Jorge Coulon (2009, p. 62-63) – incluíam precisamente a apropriação de ritmos folclóricos e letras que, de forma aberta ou sutil, levavam a um questionamento crítico da sociedade. Frente a esse modo de encarar a realidade social, o movimento logo se viu associado à esquerda política do Chile. Com efeito, muitos dos intérpretes da Nova Canção participaram de comícios nas campanhas presidenciais do candidato socialista Salvador Allende, e era comum terem filiações com instituições partidárias – notavelmente o Partido Comunista que, através de seu selo gravador Dicap (Discoteca del Cantar Popular), lançou diversos discos de músicos do movimento. A própria Violeta Parra, embora não fosse filiada ao Partido, manifestou, em entrevistas e canções, simpatia pelas pautas comunistas. Deste modo, temas que antes não costumavam tocar, por não representarem interesse comercial no circuito estabelecido de gravadoras e rádios, começaram a ganhar espaço a contrapelo, em selos independentes, em bares onde se tocavam apenas canções folclóricas (as peñas, abertas pelos próprios cantores) e através de apresentações públicas. No debate cotidiano, passaram a figurar então discursos que questionavam várias estruturas políticas e sociais até então pouco atacadas no dia-a-dia chileno – e

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um dos pontos que chamaram a atenção no início da década de 60 foi a crítica contumaz ao conservadorismo da Igreja Católica. Neste trabalho, pretendemos elaborar uma análise sucinta sobre os dois primeiros trabalhos conhecidos de Violeta Parra em que se fizeram questionamentos explícitos à postura da Igreja: as canções Porque los pobres no tienen e Julián Grimau, mais conhecida como ¿Qué dirá el Santo Padre?.

TEMPOS DE CRÍTICAS À IGREJA CATÓLICA Entre os pioneirismos atribuídos a Violeta Parra, a crítica à Igreja pode ser facilmente incluída, pelo menos quando se observa o contexto chileno. Apontar para as contradições e falhas daquilo que se identificava com as instituições eclesiásticas, desde os vigários católicos das cidadezinhas chilenas até o próprio Papa, era algo considerado impensável na canção chilena comercial até o início da década de 60, como destaca Marisol ­García (2013, p. 37). Quando se olha para o cancioneiro popular, contudo, é fácil constatar que a crítica à Igreja e ao clero não era exatamente uma novidade na América Latina – e o Chile não constituía exceção nesse sentido. Já na metade do século XIX o intelectual liberal Francisco Bilbao registrava no célebre ensaio Sociabilidad Chilena uma série de versos que circulavam entre a população, criticando o caráter parasitário de membros do clero: “El cura no sabe arar/ ni sabe enyugar un buey./ Pero por su propia ley/ él cosecha sin sembrar” (BILBAO, 1844, p. 68). A grande questão, no entanto, está no fato de que, embora o repertório de canções populares incorporasse versos críticos à Igreja mais de cem anos antes de Violeta Parra escrever suas letras, até então sempre houvera pouco espaço para difusão dessas canções além da tradição oral. O ensaio de Bilbao, por exemplo, foi censurado na época de publicação, entre outros motivos, por seu

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tom ­fortemente anticlerical. E os versos publicados por ele originalmente em 1844 só seriam gravados pela primeira vez 125 anos mais tarde, em 1969, pelos filhos de Violeta – e o disco saiu por uma gravadora independente, administrada pelos próprios Parra. O espaço para esse tipo de produção era, portanto, muito limitado. E o que se aponta como um “pioneirismo” de Violeta Parra no questionamento à Igreja é, mais propriamente, a retomada de algo que já existia – mas agora investido de uma força inédita, num momento do século XX em que passava a haver mais abertura para tais discursos circularem por públicos mais amplos. Se essas músicas agora poderiam ganhar mais destaque, mesmo que frequentemente só tocassem em rádios ligadas à esquerda política, era porque a sociedade havia mudado o suficiente para colocar em xeque o papel representado pela Igreja na vida diária – especialmente na América Latina. Convém recordar, ainda, que a própria institucionalidade católica chegou à década de 60 vivendo dilemas quanto a seus discursos e as formas de seguir em frente, discutindo internamente a adoção de posturas mais progressistas, como aquelas colocadas em pauta pelo Concílio Vaticano II (1961) e, no cenário do continente, a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, celebrada na Colômbia em 1968. É nesse cenário que, logo no início dos anos 60, Violeta Parra passa a escrever versos cada vez mais mordazes, incluindo duas canções abertamente críticas às posturas representadas pela instituição católica: Porque los pobres no tienen, composta em 1962 e jamais gravada por Violeta, e Julián Grimau, escrita e gravada no ano de 1963. Na mesma época em que Violeta Parra desenvolvia seu trabalho no Chile, em outras nações do continente algumas composições com temáticas semelhantes começavam a ser editadas pelas gravadoras locais. Um nome de destaque no período é Atahualpa

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­ upanqui, da Argentina, que desenvolvia um Y trabalho análogo ao de Violeta Parra, realizando tanto a recompilação folclórica no interior de seu país quanto a construção de uma obra artística autoral, investindo em temáticas que buscavam uma crítica social. Duas canções suas que atingiram considerável notabilidade nesse momento, sendo inclusive regravadas por cantores chilenos, alinham-se à ideia de demonstrar as reticências em relação à Igreja através da música. Os questionamentos de Yupanqui desembocaram numa discussão sobre o papel das instituições católicas em composições como Preguntitas sobre Dios (“que Dios vela con los pobres/ tal vez sí o tal vez no/ pero es seguro que almuerza en la mesa del patrón”) e Coplas del payador perseguido (“he visto tanta pobreza/ que yo pensé com tristeza:/ Dios por aqui no pasó”). De maneira geral, se as críticas à Igreja rapidamente se colocam como um lugar-comum em muitas das produções desses artistas no início dos anos 60, o mesmo não pode ser dito sobre a religiosidade e a fé como um todo. No Chile, vários intérpretes da Nova Canção, mesmo aqueles críticos à Igreja, aproximaram-se em algum momento da religiosidade popular – Víctor Jara, autor da Plegaria a un labrador, canção vencedora do Primeiro Festival da Nova Canção em 1969, justificou dessa forma a escolha em basear seus versos no Padre-Nosso e na Ave Maria: “conozco a la mística de mi pueblo y sé que gran parte de él es demasiado apegado a creencias religiosas. [Esta combinación] es una bella forma de darse a entender por estos compañeros” (KÓSICHEV, 1990, p. 98). Esse posicionamento aparece, por vezes, mesmo em canções sem uma crítica à Igreja. Em La Carta, de 1962, Violeta Parra brinca com as expectativas do senso comum em seu último verso. Ao referir-se aos seus irmãos e à eventual perseguição que poderiam sofrer por suas ideologias de esquerda6, Violeta diz 6

La Carta foi literalmente escrita após Violeta receber uma carta contan

sobre eles: “los nueve son comunistas/ con el favor de mi Dios”. Apesar de descrevê-los como comunistas, e portanto geralmente vistos como antirreligiosos, Parra se permitia fazer um paradoxal agradecimento a Deus pela orientação política de seus irmãos. Desta forma, novamente abria a possibilidade de manter um traço de fé religiosa mesmo distante da Igreja, cuja imagem seguia associada – na obra de Violeta Parra – a tendências conservadoras. Em letras posteriores, tais como Miren como sonríen (“Miren como profanan/ las sacristías/ con pieles y sombreros/ de hipocresía”) e Yo canto a la diferencia (“Ahí pasa el señor vicario/ con su palabra bendita/ ¿Podría su santidad/ oírme una palabrita?/ Los niños andan con hambre/ les dan una medallita/ o bien una banderita”), as críticas de Violeta à Igreja voltariam a se manifestar.

O QUESTIONAMENTO DE VIOLETA PARRA NO INÍCIO DOS ANOS 60

Ainda que as críticas e questionamentos à Igreja seguissem aparecendo no trabalho de Violeta Parra até perto de sua morte, optamos por limitar a presente análise àqueles que são considerados seus dois primeiros escritos nos quais esta temática é posta em evidência. Porque los pobres no tienen é considerada a mais antiga, com a composição datando de 1962, mas não há qualquer registro gravado na voz de sua autora – a música apareceria ao público chileno quatro anos mais tarde, num disco de Isabel Parra. Julián Grimau, por sua vez, foi composta em 1963, e teve duas versões distintas cantadas por Violeta: apareceu primeiro em 1965, no disco Recordando a Chile. Curiosamente, aquela não era a gravação do texto original, mas uma versão levemente alterada – a letra composta originalmente só sairia em vinil em 1974, numa coletânea póstuma intitulada Un río de sangre. do da prisão de seu irmão Roberto por apoiar uma greve.

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Antes de elaborar nosso comentário sobre as canções, transcrevemos na sequência os versos de ambas (em itálico, os estribilhos): Porque los pobres no tienen (1962) Porque los pobres no tienen adonde volver la vista,

la vuelven hacia los cielos con la esperanza infinita

de encontrar lo que a su hermano en este mundo le quitan.

Julián Grimau (1963)7

Miren cómo nos hablan de libertad

cuando de ella nos privan en realidad.

Miren cómo pregonan tranquilidad

cuando nos atormenta la autoridad.

¿Qué dirá el Santo Padre que vive en Roma,

Palomita,

que le están degollando

¡qué cosas tiene la vida!,

a sus palomas?

y zambita. Porque los pobres no tienen adonde volver la voz,

la vuelven hacia los cielos buscando una confesión,

ya que su hermano no escucha la voz de su corazón.

Porque los pobres no tienen en este mundo esperanza,

se amparan en la otra vida como a una justa balanza. Por eso las procesiones,

las velas y las alabanzas.

De tiempos inmemoriales

que se ha inventado el infierno para asustar a los pobres con sus castigos eternos,

y al pobre, que es inocente, con su inocencia creyendo. Y pa’ seguir la mentira, lo llama su confesor.

Le dice que Dios no quiere ninguna revolución,

ni pliego ni sindicato,

que ofende su corazón.

Miren cómo nos hablan del paraíso

cuando nos llueven balas como granizo.

Miren el entusiasmo con la sentencia

sabiendo que mataban a la inocencia.

El que oficia la muerte como un verdugo

tranquilo está tomando su desayuno.

Lindo se dará el trigo por los sembrados,

regado con tu sangre, Julián Grimau.

Entre más injusticia, señor fiscal,

más fuerzas tiene mi alma para cantar.

Con esto se pusieron la soga al cuello,

el sexto mandamiento no tiene sello.

7 Esta é a versão da letra original, contida no disco Un río de sangre, de 1974. O primeiro disco a vir a público, em 1965, trazia um texto levemente alterado: havia uma inversão nas duas últimas estrofes e o mandamento mencionado na letra era o quinto (“não matarás”) e não o sexto (“não adulterarás”).

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Como as datas de composição e lançamento mencionadas acima indicam, é preciso ter em conta que, para ambas as músicas, as críticas elaboradas por Violeta Parra tiveram seus sentidos ressignificados entre o momento da escrita da canção e aqueles nos quais o disco acabaria sendo editado (ou reeditado). Porque los pobres no tienen foi escrita em 1962, à sombra de um passado conservador da Igreja Católica – e, para todos os efeitos, do governo – no Chile. O país ainda era governado por Jorge Alessandri, representante das oligarquias e filiado à direita mais tradicional do país. No momento em que o disco de Isabel Parra chegou às lojas, em 1966, o país já estava se modificando claramente: o Chile estava então sob o governo de Eduardo Frei Montalva, do Partido Democrata Cristão (PDC). Por mais que fosse considerado um conservador pela esquerda, Frei vinha levando a cabo uma plataforma com pontos indiscutivelmente reformistas – e contava com apoio de setores progressistas da Igreja, inclusive em temas sensíveis como a reforma agrária8. Deste modo, a crítica originalmente direcionada a setores católicos identificados com as elites nacionais conservadoras, quando da escrita da canção, tornou-se disco podendo ser interpretada como um questionamento ao gradualismo da plataforma social ­democrata-cristã. Julián Grimau, por sua vez, manifesta um olhar menos direcionado ao contexto chileno e mais voltado ao papel representado pela Igreja Católica como um todo. A letra está dedicada a Ángela Grimau, viúva do político comunista espanhol Julián Grimau, executado pelo regime de Francisco Franco em abril de 1963. Nela, Violeta Parra critica o que lhe parecia uma conivência da Igreja – através, em grande medida, do silêncio – em relação ao julgamento e ao fuzilamento arbitrários de Grimau. 8 Convém notar que, no Chile, a reforma agrária foi simbolicamente iniciada pela Igreja Católica, com a doação, pela diocese de Talca, de alguns terrenos eclesiásticos aos camponeses que ali trabalhavam.

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Mencionando claramente seu personagem, a canção num primeiro momento não parecia dizer respeito a situações chilenas, mas ganharia um significado completamente distinto no momento de sua reedição, no álbum Un río de sangre, de 1974. O título do long-play não era casualidade: publicado em Paris, imediatamente após o golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet, quando as violações de direitos humanos cometidas pela ditadura chilena já eram bem conhecidas – o próprio Ángel Parra, filho de Violeta, chegou a ser preso e torturado –, o disco incluía diversas canções críticas, permeadas pela temática social. Nesse novo cenário, Julián Grimau passou a soar como uma metáfora das arbitrariedades do regime chileno, sofrendo censuras. Notavelmente, a estrofe que cita o nome do comunista espanhol (“El que oficia la muerte/ como un verdugo/ tranquilo está tomando/ su desayuno./ Lindo se dará el trigo/ por los sembrados,/ regado con tu sangre,/ Julián Grimau”) não pôde ser tocada no Chile até o final do regime pinochetista. Esta, também, acabou sendo uma das razões pelas quais a composição chegou aos nossos dias pouco conhecida pelo seu título original – passou a ser difundida com um nome alternativo, referente ao estribilho: ¿Qué dirá el Santo ­Padre?. Ainda que se refiram a situações distintas, nas partes em que mencionam a Igreja, os versos procuram associá-la a posturas conservadoras, ligadas aos setores dominantes da sociedade – e, portanto, incapazes de oferecer ao povo o amparo que é buscado. Em Porque los pobres no tienen, a figura do “pobre” é insistentemente apresentada como alguém que não encontra acolhida nas instâncias terrenas. A Igreja deveria ocupar esse espaço mas, como as estrofes sucessivamente indicam, isso não ocorre: neste mundo, o pobre não tem para onde direcionar “la vista” ou “la voz”, e tampouco tem “esperanza”, optando deste modo por se voltar aos céus e buscar abrigo numa crença “en la otra

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vida”. Mas, claro está, trata-se de uma crença individual e particular, um tributo de Violeta Parra à religiosidade popular – de modo algum uma exaltação a qualquer simbologia eclesiástica. Ao contrário: a Igreja, se aparece, é como uma repressora a mais das pulsões do povo por melhorar suas condições de vida. Ela o faz implicitamente, como por exemplo na passagem em que se menciona que, desde tempos imemoriais, “[...] se ha inventado el infierno/ para asustar a los pobres/ con sus castigos eternos” (entende-se aqui não a Igreja como responsável pela “invenção” do inferno, noção presente inclusive em outras religiões; trata-se de uma crítica aos usos que a ideia das penas eternas foram feitos historicamente por lideranças católicas). Ou então aparece de forma explícita, como na estrofe final de Porque los pobres no tienen, em que é ninguém menos que o próprio padre confessor quem chama o pobre à “razão” defendida pelo setor conservador da Igreja que Violeta procura criticar: o confessor “segue a mentira”, aquela que prega castigos eternos para quem se comportar fora do padrão conveniente, e avisa ao pobre que “[...] Dios no quiere/ ninguna revolución,/ ni pliego ni sindicato,/ que ofende su corazón”. Se o início da canção se dedica principalmente a demonstrar o desamparo dos pobres, que não encontrariam conforto na Igreja, é a estrofe final de Porque los pobres no tienen que faz um questionamento mais claro à instituição católica e seus discursos. É esta estrofe, também, aquela cujo tom guarda mais traços em comum com a mensagem recorrente de Julián Grimau: além dos versos destinados a criticar o próprio caso de Grimau, que não teriam tanta relação com a outra canção, alternam-se estrofes especificamente destinadas a apontar a hipocrisia da Igreja – que pregaria a tranquilidade e a submissão dos oprimidos, ao mesmo tempo em que fecharia os olhos para a brutalidade dos opressores.

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Em Porque los pobres no tienen, a mensagem é dada sem meias palavras: o “coração” de Deus é ofendido por mobilizações sociais. O pobre deve ser pacificado, deve compreender a oposição divina aos pliegos (nome dado às cartas de reivindicações dos grevistas), aos sindicatos e, claro, à revolução. Em Julián Grimau, o contraste entre a voz da Igreja e a realidade é dado por uma série de oposições entre o que é pregado no discurso dos padres (e do próprio Santo Padre, mencionado na canção) e aquilo experimentado pelos fiéis humildes no dia a dia: falam-nos de liberdade, mas dela somos privados; pregam tranquilidade, mas pela autoridade somos atormentados; insistem com o paraíso enquanto as balas do Estado chovem como granizo. E, hipocrisia maior, enquanto o governo autoritário anuncia a sentença com entusiasmo e mata “la inocencia” (uma alusão ao que se considerava a inocência de Grimau), a Igreja parece se calar. Daí emerge a pergunta, que sempre volta no estribilho: o que dirá o Santo Padre? A resposta não é dada por Violeta Parra – e o silêncio não deixa de ser gritante. Aliás, a “inocência” atribuída a Grimau na segunda canção também aparece na primeira, dirigindo-se aos pobres: “y al pobre, que es inocente,/ con su inocencia creyendo”. Duplamente inocentes, portanto: não apenas ingênuos, mas sobretudo sem a culpa que os discursos religiosos tentam fazê-los sentir, de modo que não deveriam temer o inferno e os castigos “mentirosos” que teimosamente lhes são impostos. É importante ressaltar que a compositora jamais nega a fé propriamente dita – o que é feito, e de forma bastante clara, é rebater os discursos e posicionamentos da Igreja. Em Porque los pobres no tienen, Violeta Parra não questiona a devoção dos pobres, que seguem se voltando aos céus, e justifica a busca deles por esperança desse modo: “Por eso las procesiones/ las velas y las alabanzas”. As velas, procissões e louvores se deveriam, assim, à religiosidade de cada um, e não às

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i­ nstitucionalidades católicas. O fato de se tratar de uma crítica à Igreja e não à fé em si mesma também pode ser apontado pelo verso final de Julián Grimau: diante de tamanha injustiça, o sexto mandamento (ou quinto, que é citado na segunda versão da música e parece ser mais adequado para o contexto) deixa de ser respeitado. Mas não é o mandamento em si que está errado – são aqueles que deixam de segui-lo; é a Igreja, que faz vistas grossas no momento em que algum detentor do poder trata de desrespeitar as escrituras. Como argumenta Montealegre (2011, p. 57) em seu ensaio biográfico sobre a folclorista: “Devota desde la religiosidad popular, como lo es en sus versos por padecimento [...]; [Violeta Parra] es irreverente y mordaz con la iglesia institucionalizada en la que reconoce la práctica hipócrita de un catolicismo clasista”. Assim, nas duas composições o que há é uma Igreja incapaz de oferecer amparo efetivo, limitando-se a palavras tranquilizadoras que em nada serviriam ao fiel comum. Este mantém a sua religiosidade – em nenhum momento isso é negado –, mas já não teria razões para se sentir identificado com aquilo que os padres lhe dizem. O anticlericalismo, como argumenta Bernardo Guerrero (1994, p. 55), desapareceria aos poucos nas produções da Nova Canção Chilena. Mas, no início da década de 60, quando Violeta escreveu essas primeiras letras ainda pensando em um passado claramente conservador da Igreja, esta é referida invariavelmente como uma instituição que busca o monopólio sobre a interpretação da palavra divina – e, quando o faz, é sempre com um viés favorável aos setores de elite, tentando desmobilizar os movimentos ­sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Porque los pobres no tienen e Julián Grimau, primeiras composições de Violeta Parra explicitamente críticas à Igreja, seriam

s­ ucedidas por outras produções artísticas de temática semelhante, tanto da própria autora quanto de músicos contemporâneos a ela, dentro e fora do Chile. Os textos iniciais de Violeta retratam, sobretudo, uma insatisfação com uma tradição das instituições católicas, no país, de se aliar a setores oligárquicos e se valer de sua influência junto às camadas humildes da população para ajudar a conter anseios por mudança. Mas, se as abordagens nas produções artísticas do período em relação à religião eram variadas, e as críticas foram minguando com o avançar da década de 60, isso se deveu também à multiplicidade nos posicionamentos da Igreja, ela própria fendida internamente por tendências ideológicas distintas. Tradicionalmente colaborando com grupos conservadores – que gerou grande parte das críticas da Nova Canção Chilena – a instituição católica viu setores importantes se aproximarem cada vez mais de posturas progressistas ao longo da década, fosse em relação a políticas como a reforma agrária ou, após 1973, no apoio institucional oferecido aos perseguidos políticos pela ditadura de Augusto Pinochet.

REFERÊNCIAS

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COULON, Jorge. La sonrisa de Víctor Jara. Santiago de Chile: Universidad de Santiago de Chile, 2009.

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GARCÍA, Marisol. Violeta Parra, al centro de la injusticia. In: . Canción valiente: 19601989 – Tres décadas de canto social y político en Chile. Santiago de Chile: Ediciones B, 2013, p. 27-44.

GUERRERO JIMÉNEZ, Bernardo. Religión y canción de protesta en América Latina; un ensayo de interpretación. Revista de Ciencias Sociales, Universidad Arturo Prat, n. 4, p. 55-64, 1994.

HOBSBAWM, Eric. Introdução: A Invenção das Tradições. In: HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 9-23. KÓSICHEV, Leonard. La guitarra y el poncho de Víctor Jara. Moscou: Progreso, 1990.

MONTEALEGRE, Jorge. Violeta Parra. Instantes fecundos, visiones, retazos de memoria. Santiago de Chile: Universidad de Santiago de Chile, 2011. PARRA, Ángel. Violeta se fue a los cielos. 5.ed. Santiago de Chile: Catalonia, 2012.

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PRÁCTICA DE ENSEÑANZA: UNA MIRADA MÁS CERCANA A LA PEDAGOGÍA DE LOS PROYECTOS Eduardo Alves dos Santos1

Lucas Sidnei Carniel2

RESUMEN: Este artículo es resultado del informe de práctica presentado a la asignatura de Estágio Curricular Supervisionado em Língua Espanhola I, del Curso de Graduação em Letras: Português e Espanhol - Licenciatura de la Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Realeza. En aquel momento, la práctica fue destinada a la observación del espacio de las instituciones escolares del Programa de Escolas Interculturais Bilingue de Fronteira - PEIBF. Las escuelas que participan del programa adoptan la pedagogía de los proyectos como método de enseñanza, en lo cual profesores de la educación básica de Brasil ministran clases para alumnos argentinos y profesores argentinos ministran clases en escuelas brasileñas. Este cambio de profesores en las escuelas de los dos países es conocido como cruce. En este artículo tenemos el objetivo de reflexionar a respecto de la pedagogía de los proyectos en ese proceso de enseñanza y aprendizaje. En esa reflexión, observamos, principalmente, como esa pedagogía de enseñanza contribuye para la construcción de un alumno que se pone como protagonista del evento que es una clase, dividiendo el espacio con el profesor, que deja su centralidad al lado para tornarse un mediador entre el conocimiento y el alumno. Palabras-clave: Práctica de Enseñanza en Lengua Española. Pedagogía de los Proyectos, PEIBF.

RESUMO: Este artigo é fruto do relatório de estágio apresentado à disciplina de Estágio Curricular Supervisionado em Língua Espanhola I, do Curso de Graduação em Letras: Português e Espanhol - Licenciatura da Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Realeza. Naquele momento, o estágio foi destinado à observação do espaço escolar nas escolas participantes do Programa de Escolas Interculturais Bilingue de Fronteira - PEIBF. As escolas que participam do programa adotam a pedagogia dos projetos como método de ensino, no qual professores de educação básica do Brasil ministram aulas para alunos argentinos e professores argentinos ministram aulas para alunos brasileiros. Esta troca de professores é conhecida como “cruce”. Neste artigo, temos o objetivo de refletir a respeito da pedagogia dos projetos nesse processo de ensino-aprendizagem. Nessa reflexão, observamos, principalmente, como essa pedagogia de ensino contribui para a construção de um aluno que põe-se como protagonista do evento que é uma aula, dividindo o espaço com o professor, que deixa sua centralidade de lado para se tornar um mediador entre o conhecimento e o aluno. Palavras-chave: Estágio Supervisionado em Língua Espanhola. Pedagogia dos Projetos. PEIBF. ABSTRACT: This article is the result of the period of practive presented to the discipline of Supervised Practice in Spanish Language I of the Undergraduate Course in Letters : Portuguese and Spanish from the Universidade Federal da Fornteira Sul - Campus Realeza. At that moment , the practice was meant to observing the school space in schools that were taking part in the Intercultural Bilingual Frontier Schools Program - PEIBF. Schools participating in the program adopt pedagogy of projects 1 Acadêmico da 10ª fase do Curso de Graduação em Letras: Português e Espanhol - Licenciatura pela Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Realeza/ PR. Contato: [email protected]. 2 Acadêmico da 10ª fase do Curso de Graduação em Letras: Português e Espanhol - Licenciatura pela Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Realeza/ PR. Contato: [email protected].

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as a teaching method in which basic education teachers in Brazil teach classes to Argentine students and Argentine teachers teach classes to Brazilian students. This exchange of teachers is known as “ Cruce “. In this article, we aim to reflect on pedagogy of projects in this teaching -learning process. In this reflection, we have observed mainly how this teaching pedagogy contributes to the construction of a student who can be protagonist during a class , working together with the teacher, who leaves his centrality aside to become a mediator between knowledge and the student. Keywords: Supervised Practice in Spanish Language. pedagogy of projects. PEIBF.

I INTRODUCCIÓN Este trabajo se trata del resultado de las observaciones realizadas en el período de práctica de enseñanza del Curso de Graduação em Letras: Português e Espanhol - Licenciatura de la Universidade Federal da Fronteira Sul Campus Realeza. En ese momento, después de realizada las etapas de preparación para adentrarse en el ambiente escolar, con la elaboración de un plan de práctica y de concretización de la práctica, empezamos el análisis de algunos aspectos visualizados en las observaciones realizadas en la Escola de Educação Básica Dr. Theodureto Carlos de Faria Souto, de Dionísio Cerqueira, en el estado de Santa Catarina. En esta práctica de enseñanza, la de número uno, hemos observado clases del proyecto desarrollado entre Brasil y Argentina, el Programa Escuela Intercultural Bilingüe de Frontera (PEIBF). En las páginas que se siguen, trataremos a respecto de las problemáticas que vivenciamos en el medio escolar. Explicitamos el porqué de la realización de esta práctica en un proyecto como el PEIBF y por qué tuvimos que hacerlo en una escuela lejana de la institución. También hacemos una lectura del ambiente escolar como un todo y por fin establecemos un recorte de todo lo visto, con

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el intuito de mirar el aspecto a que nos proponemos. Todo eso de manera a dejar transparente nuestra concepción de práctica de enseñanza, que debe ser vista como momento de reflexión del proceso de enseñanza y aprendizaje y no solamente un medio de mirar y reproducir a los profesores y ambientes que observamos.

II LA PRÁCTICA DE ENSEÑANZA COMO UN ESPACIO DE CONSTRUCCIÓN DE LA IDENTIDAD DOCENTE

Empezamos este tópico tratando de la práctica de enseñanza. Parece repetitivo decir que cuando se adentra en el medio escolar nuestras formas de mirar la enseñanza cambian o además nos parece que toda la teoría vista en el grado se torna insuficiente delante a los desafíos que la docencia en un país como el Brasil trae. En la epígrafe del capítulo intitulado “Estágio: Diferentes concepções”, del libro Estágio y Docência (2011), Pimenta y Lima hacen uso del habla de una profesora para decir que la realidad de la educación en el Brasil no es buena. La profesora Nilce Conceição da Silva (apud Pimenta e Lima) habla: “Hasta un año yo tenía certeza de que estaba teniendo un buen grado. Ahora, estoy chocada con la realidad de aquellos chicos, y tampoco sé por donde empezar. En la práctica la teoría es otra” (traducción nuestra). Pimenta y Lima (2011) contribuyen con la forma en que nosotros entendemos el período de la práctica de enseñanza. Las autoras presentan algunas concepciones de práctica, siendo que entre ellas nos identificamos con una, la cual elegimos como nuestra forma de pensar este período. Las autoras dicen que teoría y práctica son indisociables, o sea, no hay como pensar la práctica sin la teoría y tampoco la teoría sin la práctica. De esta manera, excluimos la segunda concepción presentada por las escritoras, la cual mira la práctica como instrumentalización técnica. Antes de esa concepción, las autoras aún hablan sobre considerar la práctica como

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imitación de modelos, o sea, ir a la escuela, mirar las cosas que se hacen allá y reproducirlas sin reflexión sobre lo visto. Y, ya que no entendemos la práctica de ninguna de estas dos formas, pensamos que ella debe ser vista como un espacio de trabajar teoría y práctica conjuntamente (ya que no se puede aislarlas) y de manera a reflexionar sobre la escuela y no solamente reproducirla. Este período de práctica de enseñanza ejerce papel fundamental en la formación del profesor, inserta el académico en las situaciones comunes en las escuelas, principalmente, en el aula. Haciendo referencia a la enseñanza de lengua y sus competencias, como lingüística y literatura. Además, es muy importante para la formación del futuro profesor que la atención de los profesores de la graduación ligados a la práctica tenga un direccionamiento para la construcción de la identidad de ese futuro docente. Sobre la formación de la identidad del sujeto como profesor, Barreiro e Gebran (2006, p. 20) afirman que “A identidade do professor é construída no decorrer do exercício da sua profissão, porém, é durante a formação inicial que serão sedimentados os pressupostos e as diretrizes presentes no curso formador, decisivos na construção da identidade docente”. Pensando de esa manera, tenemos en mente que el diálogo entre escuela y universidad se hace fundamental para el ejercicio inicial del profesional profesor. En relación al local en que se desarrolló la observación, tres puntos que en nuestra mirada carecen de explicación, la idea de pensar la enseñanza a partir de los proyectos de trabajo y el recorte que habría que ser hecho para el análisis. Siguiendo en orden, empezamos por el lugar, la Escuela Dr. Theodureto. Quien leerlo a este artículo puede preguntarse el porqué de nosotros no habernos realizado la observación en una escuela del municipio de Realeza o quizá en una de las municipalidades que hacen límite con la ciudad donde está la universidad. En relación

a eso, observamos que en las ciudades de la región suroeste del estado de Paraná la oferta del español en las escuelas públicas, sino nula, es escasa y en la mayoría de los casos está ligada al modelo conocido como Centro de Línguas Estrangeiras Modernas - CELEM. Hablar del CELEM se hace demasiado complicado, pues adentramos en un campo en el cual precisamos pensar como queremos la enseñanza de lenguas extranjeras en nuestro país. Pensamos que al hablar de lenguas extranjeras, no nos referimos a esa o aquella lengua pero a todas, hasta porque entendemos que la escuela debe ser un espacio de varias lenguas y no de una o dos. Pero al hablar sobre esa relación entre las lenguas extranjeras en las escuelas nos deparamos con una supremacía de una lengua, el inglés. Antes que se pueda crear entendimientos equívocos, dejamos claro que no tenemos nada que va en contra esa lengua o la enseñanza de la misma, pero creemos en una escuela donde se pueda convivir más lenguas dentro de la grade principal de los grados. Sobre eso, Almeida Filho (2011) argumenta a favor de la diversificación de lenguas en las escuelas brasileñas, siendo que el mismo autor aún apunta posibles características que explicarían la inserción de una lengua extranjera en una o más escuelas. Sobre el monopolio de una lengua extranjera en las escuelas, Almeida Filho habla que: Essa aludida distorção não seria vantajosa para ninguém que trabalha em educação

da linguagem […] Nesse caso, não é a presença de um interlocutor-escritor opos-

itor que defende a ideia de monopólio do monolinguísmo de uma língua estrangeira

hegemônica que justifica a grita continua-

da. O alvo é, provavelmente, a resistência do “sistema escolar” às tentativas de inserção de outras línguas na disciplina língua

estrangeira no currículo escolar. (ALMEIDA FILHO, 2011, p. 44)

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Podríamos continuar hablando de esta relación entre lenguas extranjeras en la escuela brasileña, pero este no es el nuestro objetivo con este trabajo, entonces retomamos los porqués de la práctica haber sido hecha en la Escuela Theodureto, de manera que llegamos a la idea de visualizar la enseñanza a partir de la pedagogía de los proyectos. Una de las primeras cuestiones que nos fue puesta en esta práctica es referente a lo que pensábamos sobre el formato de enseñanza de la mayoría de las escuelas brasileñas, en las cuales se trabaja con el modelo de disciplinas que juntas componen a lo que llamamos de grade curricular, pero que en general son trabajadas de maneras aisladas, sin haber contacto entre los conocimientos de las áreas. Es justamente como una manera de conocer otras formas de pensar el proceso de enseñanza y aprendizaje que hicimos la práctica en el PEIBF. De esta manera, se construye un ambiente en que el propio académico puede reflexionar sobre los dos modelos para elegir aquél a que cree ser el más adecuado para su realidad. No nos prendemos aquí a explicaciones sobre la pedagogía de los proyectos y sobre el PEIBF, pues más adelante retomaremos a estos tópicos con más profundidad. Hablado esto, retomamos lo que de hecho proponemos con este trabajo. Nuestra temática se justifica en virtud de que en el principio de nuestra práctica pensábamos en visualizar como los profesores de la escuela de Dionisio Cerqueira se utilizaban de la literatura en las clases, entretanto al nos depararnos con la realidad en la escuela, repensamos nuestra propuesta y decidimos por expandir nuestra mirada para algo más amplio, o sea, en el lugar de la literatura nos proponemos a pensar de qué manera la cultura, como un todo, es trabajada.

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III EL PEIBF: UN AMBIENTE PROPICIO PARA EL APRENDIZAJE DE LENGUA EXTRANJERA

Es extensa la faja de frontera entre Brasil y los demás países de Sudamérica. Diez países son vecinos de los brasileños en el continente y, de estos, son siete los que tienen el español como idioma oficial, eso sin contabilizar los que hablan español y no hacen frontera con Brasil. Es en ese contexto que funciona el Proyecto Escuela Bilingüe de Frontera. En el año de 2012 tuvimos la oportunidad de conocer el funcionamiento del proyecto en escuelas de cuatro ciudades, dos de Brasil y dos de Argentina: Puerto Iguazú y Foz do Iguaçu; Dionísio Cerqueira y Bernardo Irigoyen. Esas son las ciudades gemelas. Se llaman así por qué los estudiantes y profesores brasileños con los estudiantes y profesores de los países vecinos promueven integración, la quiebra de frontera y la amplitud de oportunidades del aprendizaje de la segunda lengua por medio del cruce, momento en que los profesores cruzan la frontera para enseñar a alumnos extranjeros. El Brasil realiza el intercambio con casi todos los países fronterizos de Sudamérica, aunque su población no hable castellano, ejemplo de Pacaraima, ubicada en Venezuela; Lethen, en Guiana y Saint Jeorges, en Guiana Francesa. El único país que aún no realiza el proyecto con Brasil es Suriname. Lo interesante es que las clases no son realizadas con el objetivo de enseñar una segunda lengua a los estudiantes. El principal objetivo del proyecto es enseñar los contenidos a los estudiantes por medio de la lengua extranjera. Un ejemplo: para enseñar Ciencias Naturales, el profesor argentino hablará sólo en castellano a alumnos brasileños. Ellos tendrán de comprender, así, el proceso de la fotosíntesis en español. Es por eso que consideramos al PEIBF la creación de un ambiente propicio para el bilingüismo, puesto que:

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Para estas crianças e suas comunidades escolares o ensino bilíngue significa o reconhe-

cimento de uma situação de fato, e significa avançar para possibilitar o acesso à forma

escrita do português, paralelamente ou seqüencialmente ao letramento em espanhol.

A função social do português apresenta-se de maneira mais clara para as comunidades

escolares argentinas envolvidas, pois, entre outros motivos, essa língua é utilizada no

cotidiano, ou seja, é parte importante do re-

pertório comunicativo local. (BRASIL, 2008)

Fue eso que observamos en las actividades de campo hecha en 2012. El interés de los alumnos argentinos por el portugués era mayor que el interés de los brasileños por el castellano. Acreditamos que eso ocurra porque los medios de comunicación brasileños invaden la frontera e propagan la lengua portuguesa. Pero lo inverso no se pasa, por lo que observamos, los brasileños poco o nada sabemos de Argentina, aunque esta realidad está cambiando en los últimos años.

IV LA PEDAGOGÍA DE LOS PROYECTOS EN EL PEIBF

Las clases del PEIBF son organizadas de acuerdo con proyectos de aprendizaje, de esta manera, los alumnos son enseñados a través de múltiplos letramentos. Eso proporciona a los profesores la posibilidad de abordar productos culturales de distintas esferas sociales, medios de comunicación y en diversas lenguajes. Los proyectos de las clases funcionan como herramientas para la cooperación interfronteriza. Cada una de las clases elige una problemática y elabora con la cooperación del profesor un mapa conceptual conteniendo otras indagaciones, hipótesis y conocimientos previos que los niños ya poseen de aquello que les encantaría estudiar con más profundidad (Seiffert, 2011, p 98). Una cuestión interesante es que según las profesoras brasileñas que enseñan en el

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­ EIBF es que las problemáticas son formuP ladas a partir del interés de los alumnos. Son ellos que proponen preguntas sobre el tema elegido y cabe a la profesora investigar sobre el asunto. “Eu trabalho há seis anos com o projeto e a gente vem percebendo que a cada ano que passa eles querem uma coisa diferente, mas ainda não estão tão maduros para saber o que querem.” (Relato de la profesora Gessi, que enseña para los primeros años de la enseñanza básica). Un ejemplo de como las clases son arregladas es que los niños se quedaran encantados para investigar el tema del terremoto. Eso porque en la época los noticiarios y periódicos trataban sobre el terremoto en Japón. “Estava bem na época de quando aconteceu aquele terremoto no Japão, em 2011. E uma turma do 4º ano da Escola de Bernardo começou a falar sobre esse assunto. Então, o projeto de 2011 foi sobre terremoto e muita coisa legal, que nem mesmo eu sabia, foi trabalhado com eles”. (Relato de la profesora Vera). En esta práctica de enseñanza, nosotros pudimos entrar en contacto con un tipo relativamente distinto de se pensar la enseñanza de lenguas extranjeras, la pedagogía de los proyectos. Decimos distinto en relación al contexto de enseñanza de lenguas extranjeras en las escuelas brasileñas, que en la gran mayoría trabaja a partir de una perspectiva que se vuelve más a la enseñanza tradicional. Cuando hablamos de la perspectiva tradicional observamos que a partir de ella el profesor se pone en una posición de sujecto incontextablemente central en el processo, el que es portador de todo el conociemiento sobre determinada area y lo transmite a sus alumnos. De esa menera, los alumnos que, pensando así, entran en clase sin saber nada del conteúdo, como vasos vazios, salen llenos del conocimento que el profesor insertó en sus cabezas. En la pedagogía de los proyectos, eso se hace distinto. El alumno gana un espacio de

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suma importancia en la clase, pasando al centro del aula junto al profesor. Ahora el conocimiento no se transmite pero se construye, proceso hecho con la colaboración de alumnos y profesor. Ademas de eso, partiendo de esa perspectiva, concebimos la lengua como algo que se construye en la acción de se uctilizar de ella, o sea, la clase debe se desarrollar a partir de la utilización de la lengua, trabajando así aspectos como comprensión, manipulación, producción y interación en la lengua dos. Es justamente en esta interacción establecida en la lengua extranjera que se fija el aprendizaje. En relación a las diferencias entre las dos perspectivas, creemos que se pueda sintetizar en fondo de la contraposición en una palabra, alumno. La distinción entre enseñanza tradicional y por proyectos en gran parte reside en el como se piensa en alumno que está insertado en el proceso de enseñanza-aprendizaje. El papel de alumno es pensado de forma distinta en esas dos perspectivas pedagógicas, mientras la primera, la tradicional, mira al alumno como un simple receptor de conocimientos, que es subordinado a la figura del profesor, la segunda, la pedagogía de los proyectos pone el alumno al centro del proceso, tirando la posición del profesor, que pasa a ser el que direcciona la construcción de saberes para dejar de ser el transmisor. Son en estos puntos que la Pedagogía de los Proyectos se diferencia a las demás didácticas destinadas a la enseñanza. El alumno gana el papel de protagonista, junto al profesor, en el proceso de enseñanza y aprendizaje. Cabe al profesor estimularlos a participar de este proceso. Así se refirió Gandin (2006) sobre la pedagogía de los proyectos:

Permite a participação de todos, porque

é da essência do projeto levar as pessoas ao fazer (…) abre perspectiva para a construção do conhecimento, a partir de ques-

tões reais, tão simples, como aprender a

ver televisão, com espírito crítico, ou tão

­complexas, como estabelecer a relação entre economia e bem social (p.15).

Fue eso que observamos en algunas clases de profesores brasileños en Bernardo de Irigoyen, en la Escuela Bilingüe de Frontera Número 604 y de los profesores argentinos en la Escola Theodureto de Faria Souto, en Dionísio Cerqueira. En esta última escuela, por ejemplo, uno de los profesores trabajó sobre el tema Leyendas de la Provincia de Misiones, pero también trujo a los alumnos cuentos de Horacio Quiroga, además de textos como Pulgarcito y Caperucita Roja. Hablamos del trabajo con la literatura, pero asta donde comprendemos que se llega al trabajar con el literario, lo que es la literatura. Terry Eagleton en Teoría de la Literatura: una introducción presenta que muchas ya fueron las tentativas de definir literatura. Eagleton (2006) presenta algunas de esas formas de difinición. Los formalistas, por ejemplo, entendian la literatura como siendo un tipo de texto que rompe rompe con el lenguaje del cotidiano, que causa lo que los formalistas llaman de extrañamiento. Si para los formalistas la respuesta está en el lenguaje ectilizado, Eagleton (2006) aún nos presenta una perspectiva más actual que apunta para el lector como el que define lo que es y lo que no es literatura. Nosotros pensamos que literatura sea una junción de esas dos explicaciones, texto (de los diversos tipos) y lector en un diálogo que se efectiva en la lectura. Acrecentando también a la ecuación un poco del autor y del suporte del texto, una vez que textos como las crônicas, gêneros que presenta característica tanto literárias cuanto jornalísticas, pueden ser entendidos como literatura o no, algunas vezes solo por estar en el jornal y no en un libro. Así, alumnos brasileños, cumplidos apenas 09, 10 años, pudieran conocer Quiroga, la Provincia de leyendas e canciones de la tradición argentina. El literario gana proporciones mayores si no nos limitamos a

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los textos que son publicados con el rótulo de literatura, abriéndose camino para el trabajo como el visto, con música y leyendas, así como pudiera ser hecho con la pintura, la danza y otras artes que también regeneran lecturas. Fue este el contexto de nuestras observaciones de las clases de profesores argentinos en Brasil. Percibimos que la cultura, como didáctica para la enseñanza, es fundamental cuando se necesita enseñar para alumnos brasileños un poco de la cultura castellana. Entre los puntos favorables al profesor, se puede observar que hay un mundo de cosas para abordarse em las clases, puesto que pocos son los conocimientos de los alumnos sobre el país vecino. En ese sentido, todo lo que se enseña puede ser una novedad, aunque sean los alumnos quién ayudan a escoger los temas que serán estudiados. La Pedagogía de los Proyectos ofrece a una clase todas las oportunidades para que la cultura sea trabajada de forma amplia y seductora para los alumnos. ¿Quién fue Quiroga? ¿Lo que escribió? ¿Cuáles fueran sus temas preferidos para escribir? Son preguntas que supuestamente fueron hechas por los alumnos y el profesor puede contestarlas haciendo como que una relación entre el autor y la provincia misionera, puesto que, por ejemplo, en Cuentos de la Selva, la mayoría de las historias se pasan en ambientes salvajes de Misiones y el Chaco, justamente las localidades vecinas a los alumnos brasileños. Lo más importante, es que la literatura fue trabajada como una didáctica de enseñanza de la cultura argentina a alumnos brasileños. Para Coelho (2005), en ese caso el papel del profesor no se distingue mucho de un médico en los partos. Para la pensadora, A literatura contemporânea, expressão de

mudanças em curso e que, longe de preten-

der a exemplaridade ou a transmissão de valores já definidos ou sistematizados, bus-

ca estimular a criatividade, a ­descoberta ou

a conquista de novos valores em gestação. E aquí entra o trabalho didático dos pro-

fessores, fazendo o papel de médicos nos partos… (COELHO, 2005, p. 49, grifos da autora).

Sin embargo, la literatura no fue el único tema abordado en clase (a pesar de ser el tema que nosotros teníamos en mente para analizar en la práctica). Además de eso, canciones y leyendas de Argentina también hicieron parte de las clases de uno de los profesores argentinos (el profesor Cayo). La Caperucita Roja, historias argentinas del lobizón (el sétimo hijo hombre de una madre, tal cual en Brasil), entre otros cuentos del mundo maravilloso hicieron parte del repertorio, lo que, por supuesto, despertó los alumnos a conocieren un poco más de la cultura ­argentina.

V CONSIDERACIONES FINALES

Durante la práctica, pudimos visualizar las estructuras (físicas y pedagógicas) de las escuelas brasileña y argentina, guardadas las especificidades regionales, tales como la relación de los alumnos con la enseñanza de la lengua extranjera en el proceso de enseñanza y aprendizaje. Después de realizada la práctica de enseñanza, empezamos un proceso de análisis a respecto del rol del profesor y también del proceso de enseñanza y aprendizaje. Creemos que este periodo en que pudimos parar y solamente observar los aspectos que construyen el ambiente escolar fue de fundamental importancia para que en nosotros ya sea insertadas diversas preguntas, tales como ¿cómo ser un practicante y, posteriormente, un profesor reflexivo? y ¿cómo envolver a nuestros futuros alumnos en el proceso de enseñanza?, entre otras indagaciones oportunas. Creemos que la pedagogía estudiada y observada en la práctica de enseñanza tiene buenos resultados en el proceso como un

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todo, principalmente cuanto al intento de traer el alumno para la construcción del conocimiento, haciendo con que él también se mire como participante activo y importante en el aula.

VI REFERENCIAS BIBLIOGRÁ­FICAS

ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. Linguística Aplicada: Ensino de Línguas & Comunicação. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.

BARREIRO, I. M. F.; GEBRAN, R. A. Prática de ensino e estágio supervisionado na formação de professores. São Paulo: Avercamp, 2006.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática. São Paulo: Moderna, 2005. GANDIN, Adriana Beatriz. Metodologia de Projetos na Sala de Aula: Relato de uma Experiência. 7.ed. São Paulo: Loyola, 2006. MINISTÉRIO da Educação; MINISTÉRIO de Educación, Ciencia y Tecnología. Escolas de Fronteira. Brasília e Buenos Aires. 2008.

NILSSON, Liliam Prytz. Planificación y gestión del Programa de Educación Intercultural Bilingüe de Frontera en el Mercosur Educativo. Su aplicación en la Provincia de Misiones. IN. Universidade Estadual do Oeste do Paraná: Revista do Centro de Educação e Letras do Campus Foz do Iguaçu. Ideação: Dossiê: Gestão em Educação Linguística de Fronteira. 2 ed. Foz do Iguaçu: 2011. p. 21-32. PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e Docência. 6ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011. SEIFFERT, Ana Paula. O Processo de Ensino e Aprendizagem Via Projetos de Pesquisa no Projeto Escolas Interculturais Bilingues de Fronteira (PEIBF) e suas implicações para os

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múltiplos letramentos. IN. Universidade Estadual do Oeste do Paraná: Revista do Centro de Educação e Letras do Campus Foz do Iguaçu. Ideação: Dossiê: Gestão em Educação Linguística de Fronteira. 2 ed. 2011. p. 93-103.

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A EMERSÃO DO REAL NO CONTO FANTÁSTICO “MUJER DE CERA”, DE CARMEN MARTÍN GAITE Elenara Walter Quinhones1

RESUMO: esta pesquisa tem por objetivo discutir a autoria feminina e suas imbricações históricas, e para isso utiliza-se como corpus o conto “Mujer de cera” (1954), de Carmen Martín Gaite. A autoria feminina tem um pequeno espaço na história da Literatura, porém, mesmo diante de diversas dificuldades sociais, inúmeras mulheres escreveram durante os mais infaustos contextos históricos. Muitas autoras utilizaram suas ficções como denúncia contra a hegemonia masculina, tanto no âmbito particular, como no político. Este é o caso de Carmen Martín Gaite, que tivera uma intensa produção na década de 1950, período marcado pela ditadura franquista. A análise do conto “Mujer de cera”, com base nos pressupostos teóricos da crítica feminista, propicia a compreensão dos sujeitos na estrutura social ditatorial. Ao romper o paradigma da realidade, ambientando o conto em um universo fantástico, Gaite critica o silenciamento feminino na conjuntura político-social espanhola. Através do narrador homodiegético, a autora não só explicita a condição feminina, como aponta a situação econômica ocasionada pela condição política do país. Palavras-chave: Autoria feminina; Carmen Martín Gaite; Ditadura franquista.

ABSTRACT: this paper aims to discuss the female authors and their historical overlaps, and this is used as the corpus tale “Mujer de cera” (1954), by Carmen Martin Gaite. The female authors have a small space in the history of literature, but even before various social difficulties, many women wrote for the most inauspicious historical contexts. Many authors used their fictions as a complaint against male hegemony, both in the private sphere, in the political. This is the case of Carmen Martín Gaite, who had an intense production in the 1950s, a period marked by the Franco dictatorship. Analysis of the short story “Mujer de cera”, based on the theoretical assumptions of feminist criticism, allows the understanding of the subjects in dictatorial social structure. By breaking the paradigm of reality, ambientando the tale in a fantastic universe, Gaite criticizes the silencing women in the spanish political and social situation. Through homodiegético narrator, the author not only explains the female condition, as reported in the economic situation caused by the political condition of the country. Keywords: Female authorship; Carmen Martín Gaite; Franco dictatorship.

RESUMEN: esta investigación tiene como objetivo discutir las autoras y sus coincidencias históricas, y esto se utiliza como el cuento corpus “Mujer de cera” (1954), de Carmen Martín Gaite. Los autores femeninos tienen un pequeño espacio en la historia de la literatura, pero incluso antes de diversas dificultades sociales, muchas mujeres escribieron para los contextos históricos más desfavorables. Muchos autores utilizan sus ficciones como una queja contra la hegemonía masculina, tanto en el ámbito privado, en el ámbito político. Este es el caso de Carmen Martín Gaite, que tuvo una intensa producción en la década de 1950, un período marcado por la dictadura franquista. Análisis del cuento “Mujer de cera” , sobre la base de los supuestos teóricos de la crítica feminista, permite la ­comprensión de los temas en la estructura social dictatorial. Al romper el paradigma de la realidad, 1 Graduada em Letras – Licenciatura em Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras pela mesma instituição, soba orientação do Prof. Dr. Anselmo Peres Alós. Bolsista CAPES/DS.

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ambientando la historia en un universo fantástico, Gaite critica las mujeres de silenciamiento de la situación política y social española. A través homodiegético narrador, el autor no sólo explica la condición femenina, como se informa en la situación económica causada por la condición política del país. Palabras-clave: la autoría femenina; Carmen Martín Gaite; Dictadura franquista.

INTRODUÇÃO Este artigo trata da autoria feminina e suas imbricações históricas, e para isso utiliza-se como corpus o conto “Mujer de cera” (1954), publicado na obra Cuentos completos (1989), de autoria de Carmen Martín Gaite. A análise do conto faz-se necessária, a fim de se constatar de que forma Gaite tratou das questões políticas e do silenciamento feminino. Mas, antes de partir para análise do conto, far-se-á a contextualização histórica espanhola de 1935-1975, período que abarca o fim da guerra civil espanhola e o nazifascismo encabeçado pelo general Francisco Franco. Posteriormente, localizar-se-á a produção de Gaite no contexto histórico ditatorial. Nesse ínterim, remontar-se-á a condição feminina na era franquista. Essa condição será analisada sob o prisma da crítica feminista atual, que coaduna o discurso narrativo ao contexto histórico de produção da obra. Em última instância, analisar-se-á a narrativa propriamente, conforme proposto no parágrafo inicial. Para isso, deter-se-á prioritariamente na ambientação do conto, já que a narrativa encontra-se inserida no gênero fantástico. Concomitantemente, verificar-se-á as personagens, principalmente no que concerne as suas reações psicológicas frente às situações fantásticas. Finalizarse-á a análise com o estudo do espaço e as considerações finais.

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CONTEXTO HISTÓRICO ESPANHOL E A PRODUÇÃO DE CARMEM MARTÍN GAITE

Na década de 1930 a Espanha passou por uma guerra civil muito intensa, resultando em milhares de mortos. Os combates no território espanhol chegaram ao fim por volta de 1939, com a vitória de um grupo nacionalista que colocou no poder o general Francisco Franco. Segundo Eric Hobsbawm (1994), embora Franco não tivesse qualquer programa ideológico particular, o que lhe movia era o anticomunismo e os preconceitos tradicionais de sua classe. Após a guerra civil o país ficara devastado, sendo necessário reconstruir a Espanha, o que para Franco, “significava purificá-la em sangue e castigos” (MORAES, 1983, p. 10). Assim, começa o governo franquista marcado por um extremo nacionalismo, anticomunismo e catolicismo. Segundo Veleda (2010), [...] a base do regime franquista foi o “Nacional-Catolicismo” e o anticomunismo, criando um imaginário místico de uma “cruza-

da” dirigida pelo General Franco, que faria

com que a Espanha resgatasse seu passado imperial de glória e poder, restituindo-a ao

seu lugar de direito dentro da Europa. Os nomes de Isabel e Fernando, os reis cató-

licos, foram bastante lembrados como os

promotores dessa “era de ouro” do país, primeiramente com a expulsão dos muçul-

manos e com as posteriores descobertas na América. O discurso dos apologistas do Caudillo vinculava Franco ao retorno des-

se período de prosperidade ou “idade de ouro” (VELEDA, 2010, p. 9).

De acordo com Tunõn de Lara (1980), no período franquista, a Igreja Católica teve influência na censura, no controle educativo e na repressão moral. A Igreja anulou alguns matrimônios civis realizados durante o período republicano e de Guerra Civil, e algumas inscrições no Registro Civil. O que era

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­ astante pertinente ao estado, visto que b muitas pessoas ficaram desaparecidas durante essa ditadura. A era franquista durou até 1975. Esse período ficou, então, marcado pela violência e violação dos direitos humanos, com um saldo de “500 mil exilados e dois milhões de prisioneiros, o regime executou, em poucos anos, um número próximo a 100 mil pessoas” (MORAES, 1983, p. 10). Nesse infausto contexto histórico localizam-se diversas obras da escritora Carmem Martín Gaite (1925-2000). Ela nasceu em Salamanca, cidade em que se formou em Filosofia e Letras pela Universidad de Salamanca, posteriormente, fez seu doutorado em Madri (SILVA, 2006). Segundo Aline Coelho da Silva (2006), a autora não é muito conhecida no Brasil, apenas duas de suas obras foram publicadas no país. A coletânea Cuentos completos (1989), não fora publicado no Brasil, mas a escolha dessa obra, e mais especificamente, do conto “Mujer de cera”, deu-se pela intensidade da narrativa ao descrever a percepção do universo relacional homem/mulher, e como essa percepção mostra-se um produto de seu contexto histórico-social. Percebe-se que a Espanha da era franquista não difere muito do contexto histórico brasileiro ao silenciar diversas obras de autoria feminina. E, relegar a mulher a um papel social, intelectual e cultural subalterno à hegemonia masculina.

CONDIÇÃO FEMININA NA ESPANHA FRANQUISTA

As Teorias e Críticas Feministas auxiliam na percepção do silenciamento que voz feminina sofrera durante muito tempo na história da humanidade. A cultura patriarcal escamoteou a mulher da vida social. Ela foi confinada ao lar, e lhe foi vedado o direito de frequentar o espaço cultural, intelectual e político. Ao se resgatar muitas obras de autoras, percebe-se que muitas propunham outra interpretação da história. Essas novas interpretações, muitas vezes, contrariavam as ideias políticas

provindas de uma elite masculina e branca, conforme apontado por Rita Terezinha Schmidt e Márcia Navarro (2007),

A cultura literária constitui parte integran-

te do campo cultural e seu desenvolvimento foi, até há pouco tempo, regulado e controlado ideologicamente pela hegemonia patriarcal e seus pressupostos sobre diferen-

ças assimétricas e hierárquicas de gênero,

o que significa dizer que as mulheres que atuaram, no passado, no campo das letras,

ficaram à margem da literatura, esquecidas

e silenciadas nas histórias literárias. Nesse sentido, uma visada crítica às culturas lite-

rárias nacionais ilumina as conexões entre cultura e poder, entre instituição intelectual e dominação, entre privilégio e exclusão (SCHMIDT; NAVARRO, 2007, p. 85).

Ao retornar a atenção para o contexto político-social espanhol, observa-se que com a queda da República, após o golpe franquista, algumas mulheres que se destacavam publicamente por suas ações proativas e politizadas foram obrigadas a se exilar ou desapareceram nas prisões (CARCELLER, 2014, s/p.). Em 1934, criou-se na Espanha a Sección Femenina de La Falange Española. O grupo La Falange Española era formado pela unificação de várias organizações fascistas e nacionalistas que apoiaram Franco, já a ala feminina, tinha como objetivo mobilizar as mulheres para o trabalho social durante a guerra civil. Posteriormente, por volta de 1937, sob o controle rigoroso de Pilar Primo de Rivera, a Sección Feminina era responsável pela orientação da mulher de acordo com os preceitos católicos, definindo que o lugar mais apropriado para essa era o lar, e suas principais atividades eram sempre em prol da família em submissão ao marido (CARCELLER, 2014, s/p.). Assim, o regime autoritário franquista manifestou desde o início a sua política reacionária em relação à mulher. Elas tiveram

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seus direitos civis perdidos (CARCELLER, 2014, s/p.). Carmen Martín Gaite na sua obra Usos amorosos de la postguerra española (1996) relata sobre diversas mudanças na sociedade espanhola após a guerra civil e a tomada do poder por Franco. A autora menciona o abismo que separou a vida familiar, quando em 1939, Franco proibiu as escolas mistas, reduzindo o contato entre meninos e meninas e impondo à disciplina e à censura em todos os lares. Na mesma obra, acima citada, Gaite (1996) comenta um texto de Augustín Isero, sobre a postura social que a mulher espanhola deveria possuir: La mujer de España, por española, es ya católica —leemos en um texto de la época—...

Y hoy, cuando el mundo se estremece en un torbellino guerrero en el que se diluyen insensiblemente la moral y la prudencia, es

un consuelo tener a la vista la imagen «antigua y siempre nueva» (el entrecomillado

es mío) de esas mujeres españolas come-

didas, hacendosas y discretas. No hay que dejarse engañar por ese otro tipo de mujer que florece en el clima propicio de nuestra

polifacética sociedad, esa fémina ansiosa de «snobismo» que adora lo extravagante y se perece por lo extranjero. Tal tipo nada

tiene que ver con la mujer española y, todo lo más, es la traducción deplorable de un

modelo nada digno de imitar. Aunque resulta un tanto esquivo a la definición este

concepto de la mujer muy mujer, lo cierto es que su adjudicación suponía un gran

elogio. En una semblanza de 1950 sobre la

esposa del Generalísimo, se la definia ante todo como «muy mujer» (GAITE, 1996, p. 14 Grifos do autor).

No ano de 1939, em toda a Espanha, as mulheres deveriam declarar às autoridades o nome do seu cônjuge, sua profissão, o local onde trabalhavam, o salário que recebiam e o número de filhos que possuíam (MOLINEIRO, 1998). No final desse mesmo ano,

as mulheres foram proibidas de inscreverse para trabalhar em agências de emprego, exceto se fossem chefes de família, seus esposos estivessem incapacitados, ou fossem solteiras sem meios para sobreviver (MOLINEIRO, 1998). Ainda, quanto a Sección Femenina de La Falange Española, mencionada anteriormente, a organização tinha três funções: doutrinadora, educadora e assistencial (CARCELLER, 2014, s/p.). As mulheres solteiras, ou viúvas sem filhos, de 17 a 35 anos eram obrigadas a trabalhar em algum tipo de serviço social durante no mínimo seis meses, por seis horas diárias (CARCELLER, 2014, s/p.). Esses trabalhos perpassavam das instruções de como ser boa dona de casa, ao cuidado de crianças, à cozinha, e às atividades esportivas etc. O cumprimento desse serviço era necessário para que as mulheres pudessem participar em concursos públicos, obter títulos, empregar-se em empresas ou órgãos oficiais. Em 1956, houve um aumento significativo da prostituição, levando o regime franquista a ordenar a reclusão das prostitutas em Prisiones Especiales para Mujeres Caídas, criada pelo Decreto de 20 de novembro de 1941 (ROURA, 1998). Em março de 1942, fora criado o Patronato de Protección a la Mujer, essa entidade era presidida por Carmem Polo de Franco, esposa do General Francisco Franco, e a finalidade era acolher e educar as prostitutas no ensinamento católico, a fim de salvá-las da promiscuidade (ROURA, 1998). Assim, conforme Maria Teresa Gallego Méndez (1983), o franquismo implantou o tradicionalismo católico em todas as atitudes relativas à mulher. Dentro do paradigma antifeminista da Igreja a mulher é um ser inferior espiritual e intelectualmente, que possui como vocação a maternidade e a condição de dona de casa. Esses pensamentos estão impregnados das concepções do nacionalismo conservador e do positivismo (MÉNDEZ, 1983). Todos esses discursos que tentavam justificar a inferioridade feminina

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eram ­utilizados para recluí-las ao lar e submetê-las ao marido e a Igreja. A propaganda franquista apresentava-se de forma astuciosa ao elevar certos atributos físicos e morais tidos como femininos: a maternidade, a doçura, a proteção etc. Assim, as mulheres eram propagandeadas como mães da pátria, necessárias à nação ao cuidar e preparar as crianças para o futuro (CARCELLER, 2014, s/p.). Mas, na realidade tudo isso era apenas uma estratégia para exercer controle sobre as mulheres e mantê-las presas à esfera doméstica. Segundo Mary Louise Pratt (1994), nas construções de ideários nacionais as populações femininas das nações não eram imaginadas e nem sequer convidadas a se imaginar como parte de uma irmandade horizontal. Pratt, afirma que o valor da mulher, nessa lógica nacionalista de cunho patriarcal, está associado à sua capacidade reprodutora, mas “como mães da nação elas são precariamente outras para a nação” (PRATT, 1994, p. 131). Quanto à atividade laboral e jurídica, conforme a Ley de Derechos Políticos, Profesionales y de Trabajo de la Mujer de 1961, alegava-se a incompatibilidade biológica da mulher para cargos de magistratura, fiscal ou direção de empresas. Segundo essa lei, ao acender a esses cargos as mulheres poderiam renunciar a sua natural ternura, delicadeza e sensibilidade. Ainda, conforme essa lei, toda mulher casada que quisesse trabalhar necessitava da “autorización marital” (ESPANHA, 1961, s/p.), documento esse que o marido assinava autorizando-a a trabalhar. Essa lei manteve-se em validade até 1975. Esse cenário de intensa coerção política e social que Carmem Martín Gaite tivera de enfrentar. Ela conjuntamente com outros escritores (Carmen Laforet, Juan Goytisolo, Luis Martín Santos, Jesús Fernández Santos e Medardo Fraile) são conhecidos como “los niños de la guerra”, segundo a antologia organizada pela escritora Josefina Rodríguez (ALDECOA, 1983). Esses autores ­produziram

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suas obras em meio à repressão intelectual e com dificuldades de acesso aos meios de transmissão da cultura. Sujeitos a sanções impostas pela censura, os escritores eram obrigados a obedecer às regras exigidas pelo regime franquista. Dessa forma, Gaite precisava ultrapassar os obstáculos políticos comuns a todos os escritores, e ainda afirmar sua autoria em um contexto machista e misógino. De acordo com Silva (2006), “é preciso que o discurso da mulher rompa, principalmente com o espaço que lhe foi delegado, narrando os universos criados a partir da perspectiva marginal à qual a mulher foi relegada” (SILVA, 2006, p. 41). Ao escrever sobre esse espaço, a qual fora colocada, Gaite rompe com a marginalidade. Quando retrata mimeticamente a mulher subordinada socialmente, tanto no que concerne o âmbito privado, como o público, ela denuncia o modelo patriarcal instituído. Tratando-se do contexto franquista, evidenciado no conto “Mujer de cera” (1954), Gaite cria um universo ficcional fantástico, em que critica o silenciamento feminino na conjuntura político-social espanhola. Os papéis sociais representados ali manifestam claramente as relações de dominados/dominantes (SILVA, 2007). Conforme a crítica feminista Elaine Showalter (1994), o discurso feminino apresenta um caráter duplo, pois engloba a história dominante e a silenciada. Gaite escreve a partir do ângulo do silenciado, colaborando com uma nova perspectiva histórica. Embora a obra literária não possua um rígido compromisso com os fatos históricos por ser ficcional, ela sempre refletirá o seu tempo, representando, portanto, a relação entre autor e sociedade. O texto literário como documento da histó-

ria ou a história como contexto que atribui

significado ao texto literário são caminhos que podem colidir no congestionamento

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escolha de um ou de outro termo já implica

implícito] que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2008, p. 16). Graças às incertezas do leitor, ele sentese movido a acompanhar todos os passos das personagens para finalmente acabar com suas dúvidas. Ainda, conforme Todorov,

como também, e, sobretudo, o modo como

cemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros

da mão única por onde enveredam. Neste sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos similares são o léxico que costuma vincular o texto

literário ao que há de coletivo e social para aquém e para além de suas páginas. Aliás, a

não só menor ou maior grau do entrelaçamento postulado entre literatura e história,

se postula tal entrelaçamento (Mallard et. alii., 1995, p. 21).

Segundo a Crítica e Teoria Feminista todo o texto literário tem de ser analisado levando-se em consideração a determinação histórica e política do seu contexto de produção (SHOWALTER, 1994). Embora Carmem Martín Gaite tenha demorado a conhecer a Critica Feminista, de acordo com Silva (2006), suas obras demonstram uma profunda reflexão sobre a situação da mulher no contexto histórico em que ela está inserida. Para Silva (2007), a contística de Gaite desmascara a ideia de transformação divulgada nos discursos do general Franco, propondo narrativas que adentram as casas dos sujeitos comuns espanhóis, que viveram cotidianamente subjugados àquele regime fascista. Mas, como um conto fantástico poderá evidenciar a realidade de um contexto político-social totalitário?

EMERSÃO DO REAL NO CONTO FANTÁSTICO “MUJER DE CERA”

Por ambientação entende-se que é o “conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar na narrativa, a noção de um determinado ambiente” (LINS, 1976, p. 77, Grifo do autor). Observa-se que o conto “Mujer de cera” é ambientado em uma lógica ficcional de suspense e terror. Características comuns ao gênero fantástico. Tzvetan Todorov (2008) aponta o fantástico como o tempo da incerteza, ou seja, “a vacilação experimentada por um ser [o leitor

Em um mundo que é o nosso, que conhe-

se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sen-

tidos, de um produto de imaginação, e as

leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desco-

nhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como ou-

tros seres, com a diferença de que rara vez o encontra. (TODOROV, 2008, p. 15)

A fim de entender a forma como aparece o fantástico na narrativa “Mujer de cera”, é necessário entender o seu enredo: a personagem Pedro passara o dia à procura de emprego, como tantos outros dias. À noite, ele vai até o bar de costume com seus companheiros, já altamente embriagado recebe o telefonema da sua esposa Marcela. A atitude dela causa-lhe preocupação, visto que ela ligara para o bar somente em duas ocasiões: primeiro para avisar de um aborto que tivera, e quando “aquellos tipos” (GAITE, 1989, p. 13) estiveram em sua casa atrás dele. Assim, ele decide voltar para casa. Já no trem, ele observa os passageiros, até que se detém em duas mulheres acompanhadas por seus respectivos filhos. Porém, Pedro sente-se observado por uma terceira mulher. Quando a encara, ela encobre-se atrás de um lenço. No momento que consegue vê-la, percebe que seus olhos refletem

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uma espécie de pânico misturado com loucura. Fica aterrorizado pela expressão da morte que a mulher personifica. Nesse jogo de olhares, quem passa a insistir na observação é ela. Finalmente, ela consegue que ele a encare, e mostra-lhe um bebê morto a facadas enrolado em muitos trapos encharcados de sangue. Ele foge aterrorizado descendo na primeira estação. Ao chegar a sua casa, desesperado, ele encontra um silêncio inquietante. A residência está com um forte odor de cera. Pedro começa procurar por Marcela, mas encontra apenas um bilhete dela despedindo-se e pedindo-lhe que não a procure mais. Entorpecido pelo álcool e pelo medo, ele sai pela casa gritando até que ao adentrar no quarto percebe, no escuro, uma mulher sentada próxima à janela. Esta não se mexe, Pedro fica aterrorizado ao perceber que se trata de uma mulher de cera. Ele esconde-se embaixo das cobertas para não ver a sombra daquela mulher, e chora implorando que Marcela volte. Em meio a esse turbilhão de sensações, Pedro adormece. Ele acorda com a voz de Marcela, que havia decidido voltar para casa. Todorov descreve como principal elemento da literatura fantástica “a vacilação do leitor” (TODOROV, 2008, p. 19). No conto “Mujer de cera”, o leitor implícito vacila frente à crença sobre a possibilidade de uma mulher carregar um bebê morto em um trem. Da mesma forma, a existência de uma mulher de cera perto da janela, no quarto do casal, parece ultrapassar as fronteiras da verossimilhança. Por outro lado, a embriaguez poderia produzir alucinações com essas mulheres irreais. O leitor do conto é surpreendido pela primeira situação inusitada: o terror da possibilidade de um bebê morto de forma tão brutal. Já a aparição da mulher de cera, causa um profundo mal estar, porém o choque é menor que o causado pela primeira mulher, visto que essa situação aproxima-se mais ao suspense que ao terror.

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Além das situações fantásticas, percebese na narrativa de Gaite um desassossego constante. Uma espécie de sentimento de coerção ao estar-se preso em algo maior, que não é visível. Essa sensação psicológica é experienciada, tanto pela personagem Pedro, como pela personagem Marcela. Logo ao entrar no trem, Pedro sente-se vigiado, observado, invadido pelo olhar escrutinador da mulher que era a face da morte. Esse olhar o acompanhará mesmo em sua própria casa, em sua cama, pois, em seu quarto, outra mulher o escrutinará, a mulher de cera. Essa vigilância recorrente é associada ao poder ditatorial franquista que está em todos os lugares, todo tempo. A vigilância demonstra, também. a subjugação social e política da qual os espanhóis eram obrigados a enfrentar cotidianamente. Pedro é a representação da lógica social vivida na era franquista. Sua desesperança frente à falta de emprego, a fuga da realidade através do álcool, sua repressão, seu medo, sua sensação de estar sendo vigiado, o fato de ser visitado pelos homens do governo, descritos como “aquellos tipo” (GAITE, 1989, p. 13), tudo isso representa a impotência do cidadão comum diante do poder estatal. Para se entender a situação econômica dos desempregados, experienciada no país, é necessário recorrer, novamente, à história oficial da Espanha. Segundo Reginaldo Moraes (1983), por volta de 1940, a administração estatal do governo franquista cria uma rede de empregos políticos. As organizações sindicalistas que aparecem no Foro do Trabalho (1938) e na Lei de Regu-

lamentação do Trabalho (1942) estabelece

que os sindicatos não são propriamente autoridades, mas apenas organismos des-

tinados a ‘conhecer os problemas’, fornecer ao Estado dados para elaborar estatísticas

de sua produção e colaborar no ‘adestramento’ e disciplina da força de trabalho,

através da assistência social e da ideologia

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de ‘comunidade de destino’. A submissão era plena e todos os cargos sindicais deter-

minantes eram preenchidos por nomeação, constituindo a chamada ‘lista de mando’ (MORAES, 1983, p. 13-14, Grifos do autor).

Conforme Moraes (1983), essa época ficou conhecida como “quarentena” (MORAES, 1983, p. 14). Posteriormente, a ONU condena o regime espanhol e em 1948, e abrem-se as fronteiras do país para os Estados Unidos e para França. Moraes (1983) analisa que, em plena Guerra Fria, a Espanha não tinha como manter-se passando de uma autarquia para o liberalismo de forma tão rápida. Assim, o número de desempregados cresceu assustadoramente, e muitos desses eram exportados para Alemanha, França e América (MORAES, 1983). Dessa forma, Pedro representa mimeticamente o que a classe proletária espanhola vivenciava na década de 1950. Entretanto, há outra personagem mais subjugada que Pedro, sua esposa Marcela. Ela é duplamente subalterna: primeiro pelo poder coercitivo político ditatorial do regime franquista. Segundo, pelas amarras psicológicas que a prendem ao lugar social de inferioridade feminina frente ao poder do marido. Marcela deseja romper com a realidade em que vive, mas não consegue fazê-lo. Seu desassossego está relacionado com a imobilidade que experencia ao manter-se presa a um homem que a silencia. De acordo com Silva (2007), “seria no próprio silenciamento que se daria a formação [do] discurso literário feminino, na reclusão do espaço solitário da casa que encontra no universo da palavra, [...] um universo primeiro de enunciação, para muitas mulheres espanholas” (SILVA, 2007, 32). Nota-se que Marcela ao partir deixa um bilhete, ela não consegue expor o que sente ao marido através da conversação. Isso demonstra que ela não só é silenciada, como também não é ­ouvida.

A escolha do narrador homodiegético, Pedro, enfatiza esse silenciamento. Quem possui a voz narrativa, no conto, é Pedro. Através dele que o leitor conhece as atitudes e as sensações de Marcela. Ela cala-se diante do esposo embriagado. Ela cala-se perante a sociedade quando aceita as condições sofríveis da vida conjugal que leva. Mas, além de calar-se ela não consegue sair daquela situação, voltando para casa, mesmo quando, finalmente, decide ir embora. A metáfora da mulher de cera se adéqua a imobilidade dessa mulher. Ela é a mulher que tudo observa, contudo não reage. Pedro demonstra uma profunda incapacidade de lidar com a pressão emocional ocasionada pelo desemprego. Ele mostra-se frágil frente à fuga de Marcela, perante a mulher do trem, e à visão da mulher de cera. Mesmo assim, Marcela é subjugada por ele. Silva (2007) menciona quanto ao conto: “esta é uma narrativa que se alicerça na narração de um homem atrelado aos princípios mais tradicionais da relação de gêneros, mas através da representação do fantástico, a vulnerabilidade desse universo de dominação masculina é abalada, portanto, questionada” (SILVA, 2007, p. 127). Questiona-se a condição de Pedro ao apontar suas fragilidades, ao expor sua fraqueza diante dos acontecimentos. O poder patriarcal, por ele metaforizado, parece ruir-se diante das inconstâncias do mundo político. Pedro já não possuía sua dignidade dentro da lógica social, ele era apenas um desempregado, e um alcoólatra. Marcela representava sua válvula de escape, somente frente a ela, Pedro possuía algum tipo de poder. Carmem Martín Gaite não necessita afirmar o quão fraca é a condição de Pedro. O fantástico descrito no conto fará emergir essa realidade. Para Silva (2007) “o fantástico suporta o que a realidade não prevê, já que esta é a representação dela mesma, e sua narrativa está guardada às vozes do poder que cercam o visível, tornando-o muitas

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vezes, o ­impossível” (SILVA, 2007, p. 32). Não se prevê, no contexto social da Espanha concebida por Franco, um homem derrotado, fragilizado e com medo. Mesmo que a mulher do trem e a mulher de cera não pronunciem uma palavra sequer, elas desestabilizam ­Pedro. Outro ponto relevante na análise do conto é a formação dos espaços. O primeiro espaço, que se encontra a personagem Pedro, é a rua. Esse lugar é brevemente descrito, a rua representa a esfera pública de ação masculina, já que o espaço reservado à Marcela é a casa. O segundo espaço mencionado também é masculino, o bar. Pedro fora direto para o bar após muito andar procurando emprego. Ali se reúnem diversos homens, para compartilharem suas preocupações e ansiedades. Marcela não pode frequentar esse lugar, ela nem mesmo telefona ao marido quando ele encontra-se ali, exceto em situações de extrema importância. O bar representa a separação exata das relações homem/mulher. O terceiro espaço narrado é o trem. De acordo com Silva (2007), “o trem é recorrente nos contos de Carmem Martín Gaite como veículo de fuga: um veículo guiado pelos trilhos dos quais não escapará, cumprindo inequivocamente seu percurso estipulado” (SILVA, 2007, p. 127). É no trem que Pedro é observado pela mulher com o bebê morto, nesse lugar ele encontra a face da morte personificada por essa mulher. Mesmo que ele tente fugir de seus medos e das situações impostas pela vida ele não consegue. Ele não consegue fugir da coerção política e da sua insuficiência como marido. Conforme observado anteriormente, Marcela não pode adentrar o espaço masculino, por isso ela telefona para Pedro quando sofre um aborto. Ao que tudo indica, Pedro prefere a companhia de seus amigos a atender a esposa que convalescia. Assim, há outra possibilidade para compreensão do fantástico: a mulher do trem pode simbolizar o sofrimento de Marcela pelo aborto sofrido, e a negação de

Pedro diante da dor de sua esposa. Por isso, a mulher no trem obriga a Pedro a olhá-la. Por fim, o conto “Mujer de cera” pode ser entendido como uma obra fantástica, em que suas personagens demonstram diferentemente a emersão da realidade, e possuem um alto grau de ambiguidade. Pedro representa o proletário comum frente ao poder estatal, mas, representa também o poder patriarcal tradicional frente à Marcela. Ela representa a subordinação e silenciamento das mulheres espanholas, no entanto, representa também a esposa que não age para modificar sua situação. As personagens fantásticas simbolizam tanto o poder estatal, quanto a situação de Marcela. Dessa forma, Carmem Martín Gaite consegue construir um enredo ficcional fantástico, em que emergem a realidade da situação política do país, e as relações de gênero no contexto cultural espanhol durante o período governado por Franco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar a narrativa é perceptível uma voz de denúncia a um tempo de repressão e silenciamento. Verifica-se, também, no conto, a condição de aprisionamento político e social que a mulher vivera durante o período franquista. Em nenhum momento da narrativa aparece diretamente a voz da personagem Marcela. Tudo que se sabe sobre ela é contado através do narrador-personagem Pedro. Já quanto a Pedro, percebe-se que há certa ironia ao retratar essa personagem. Embora a voz narrativa seja a dele, sua fragilidade e impotência expõe a vulnerabilidade do universo masculino, colocando em interrogação a dominação masculina frente ao poder estatal hegemônico. Observa-se, em última instância, que o fantástico retratado no conto pode representar também o abandono da mulher, e sua condição de subalternidade, mesmo quando o homem não corresponde à expectativa de representante legítimo do poder patriarcal. Assim, a contística de Gaite demonstra-se

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extremamente importante para o entendimento das concepções histórico-sociais da era franquista.

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HACIA UNA CLASIFICACIÓN DE OBRAS LEXICOGRÁFICAS DEL ESPAÑOL DESDE LA PERSPECTIVA DE SU ENSEÑANZA Félix Bugueño Miranda (UFRGS)1

Laura Campos de Borba (UFRGS)2

RESUMO: Vista a ausência de obras de qualidade voltadas especificamente para os aprendizes brasileiros de espanhol (dicionários de aprendizes), esse trabalho tem por objetivo oferecer um panorama de obras lexicográficas (desenhadas para falantes nativos) que poderiam ser empregadas também pelo aprendiz de espanhol. Para tanto, trabalha-se com duas classes de parâmetros: Por um lado, um conjunto de critérios de de imanência linguística que permitem gerar uma classificação de orientação taxonômica (no âmbito lexicográfico) e, pelo outro, as habilidades de recepção e produção (no âmbito do ensino aprendizagem da língua). Em relação aos critérios de imanência linguística, cabe destacar que o primeiro deles é a distinção entre discurso livre e discurso repetido. Esse critério é fundamental, já que parte significativa do “total do falado” em uma língua natural corresponde a unidades que estabelecem alguma classe de relações sintagmáticas entre elas. Um segundo critério está composto pela distinção entre semasiologia e onomasiologia. Essa distinção se baseia em que todo indivíduo produz e recebe linguagem. Palavras-chave: Español; Ensino-aprendizagem; Lexicografia.

ABSTRACT: It is a fact that there is no specifically designed learner´s dictionary of the Spanish language targeting Brazilian users. This research paper aims at presenting and discussing if lexicographical works conceived primarily for native speakers of the Spanish language could be used by students of Spanish as a foreign language too. In order to establish the potentially use of the wide spectrum of dictionaries for native speakers of Spanish, two kind of parameters are used: On the one hand, a bundle of immanent linguistic criteria that make possible a taxonomical oriented classification (from the perspective of the lexicographic research field). On the other hand, we consider two language skills: reception and production (from the perspective of language teaching). Regarding the bundle of immanent linguistic criteria, the first criterion is the distinction between free speech and idiom principle. This criterion is fundamental, in attention to the fact that a main part of “the spoken language” corresponds to words that belong to syntagmatic clusters. A second criterion is the distinction between the semasiological and the onomasiological perspective of a language. This distinction is based on the fact that anyone produces and receives speech. Keywords: Spanish; Language-teaching; Lexicography.

RESUMEN: Considerando la ausencia de obras de calidad concebidas específicamente para los aprendices brasileños de español, (diccionarios de aprendices), este trabajo tiene el objetivo de ofrecer un panorama de obras lexicográficas (diseñadas para hablantes nativos)que el aprendiz brasileño de español pudiera también consultar. Para ello, se trabaja con dos clases de parámetros: Por un lado, un conjunto de criterios de inmanencia lingüística que permiten generar una clasificación de orientación taxonómica (en el ámbito de la lexicografía) y, por el otro, las habilidades de recepción 1 Instituto de Letras / UFRGS; Professor de Língua Espanhola (graduação); Professor de Lexicografia (PPGLET). O presente trabalho é produto de uma estada de pesquisa na Universidade de Paderborn (Alemanha), usufruindo de uma bolsa CAPES/DAAD (BEX 13951/13/0). 2

Instituto de Letras / UFRGS; Bolsista PIBIC / CNPq.

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y producción (en el ámbito de la enseñanza de lenguas). En relación al criterio de inmanencia lingüística, cabe destacar que el primero de ellos es la distinción entre discurso libre y discurso repetido. Este criterio es fundamental, ya que parte importante de “todo lo hablado” en una lengua natural corresponde a unidades que establecen alguna clase de relaciones sintagmáticas entre ellas. Un segundo criterio está basado en la distinción entre semasiología y onomasiología. Esta distinción se fundamente en el hecho de que todo individuo produce y recibe lenguaje. Palabras-clave: Español; Enseñanza de lenguas; Lexicografía.

INTRODUCCIÓN No cabe ninguna duda, parafraseando a Valdés (1926 [1535]), que la lengua española siempre ha sido “compañera del imperio”, si se considera, por ejemplo, que se da la feliz coincidencia de una publicación casi paralela entre la primera gramática del español y el primer diccionario bilingüe del mundo occidental (cf. BUGUEÑO MIRANDA (2013b) para más detalles). Esta coincidencia no es fortuita, sino que obedece a una misma y única clave interpretativa. Por un lado, no hay cómo negar que gramática y diccionario son instrumentos absolutamente complementarios. Por otro lado, la codificación de la grammata y del lexikón obedeció a un fin didáctico pedagógico claro, que no era otro que la enseñanza del latín (en el caso del diccionario) y de la lengua vernácula, legitimada por su independencia frente al latín (en el caso de la gramática) (cf. BUGUEÑO MIRANDA (2000)). La lexicografía de lengua española, como un todo, es hoy todavía depositaria de esa tradición. Sin embargo, y no obstante la ingente producción que atestigua (cf., por ejemplo, HAENSCH; OMEÑACA (2004) para una síntesis de conjunto), es necesario reconocer también que sus resultados hoy son, en términos generales, muy dispares. A lo anterior, hay

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que agregar que la enseñanza del español como lengua extranjera3 ofrece también resultados muy poco alentadores desde el punto de vista de la lexicografía (cf., por ejemplo, BUGUEÑO MIRANDA (2006)). Por ello, es que en el marco de un proyecto de investigación de metalexicografía, nos hemos abocado a la tarea de elaborar un panorama de las obras lexicográficas existentes, con un énfasis en el potencial aprovechamiento podría tener en el proceso de enseñanza-aprendizaje de español para hablantes del portugués, particularmente, del medio universitario.

LA NECESIDAD DE UNA CLASIFICACIÓN

La necesidad de clasificar diccionarios obedece a una doble urgencia. Desde el punto de vista teórico (“metalexicográfico” sería la expresión más correcta), la clasificación de diccionarios se torna un imperativo de una teoría general de la lexicografía, una cuestión que Hartmann (2013), por ejemplo, se encarga de resaltar, no obstante el avance en la investigación que supuso WDD (19891991). La tarea, pues, no es nueva, aunque hasta ahora los resultados hayan sido muy dispares. En síntesis, y como ya lo había prefigurado Haensch et al. (1982), las obras lexicográficas obedecen a más de un criterio de ordenación, esto es, se deben clasificar considerando más de un parámetro. Por nuestra parte, en Bugueño Miranda (2014) proponemos un modelo de orientación taxonómica basado en criterios de inmanencia lingüística aliados a criterios de determinación de perfil de usuario. Es necesario dejar en claro que ese modelo sólo considera las obras monolingües. La razón para ello también es doble. Por un lado, la representación ­unitaria de la 3 Hemos mantenido la denominación “español como lengua extranjera”, porque nos parece la más neutra. Particularmente en el Estado de Rio Grande do Sul, ha ganado alguna popularidad la expresión “español como lengua adicional”. Más allá de la tendencia a la creación de nombres sui generis a la que el mundo académico demuestra una marcada inclinación, no vemos, desde el punto de vista de la teoría lingüística, una razón de orden epistemológico que esta segunda denominación posea y que lleve a la adopción de este nuevo nombre.

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lexicografía mono- y bilingüe cobraría dimensiones gigantescas debido a las particularidades de cada una de ellas (cf. Bugueño Miranda (2015) para a determinación de parámetros aplicables a la clasificación de diccionarios bilingües). Por otro lado, el estado actual de le investigación sobre lexicografía bilingüe que relaciona el portugués con el español es todavía tan insatisfactorio que todo ejercicio de ordenación clasificatoria sería sólo meramente especulativo. Desde el punto de vista del usuario, el destinatario final de toda obra lexicográfica, una clasificación es también una tarea urgente para ayudarlo a escoger obras lexicográficas según sus particulares necesidades. El mundo de la lingüística aplicada hispánica, y más específicamente, el de aquella lingüística preocupada con la enseñanza del español, no puede sustraerse al hecho de que la tradición de enseñanza del inglés hace ya más de cincuentas años que descubrió la importancia del diccionario, inaugurando así toda una línea de diseño y crítica, llamada de lexicografía pedagógica (cf. HARTMANN; JAMES (2001, s.v. pedagogical lexicography). Como comentado ya ad supra, la lexicografía volcada para la enseñanza del español está sensiblemente a la zaga de los avances de tradiciones lexicográficas como la inglesa, según enunciado ya, o de la alemana, que ofrece excelentes materiales para los aprendices de esa lengua (cf. BUGUEÑO MIRANDA; JARDIM (2010) para un análisis comparativo entre ambas tradiciones).

LA COMPLEJIDAD ESTRUCTURAL DEL ESPAÑOL Y LA COMPETENCIA METALINGÜÍSTICA DEL ALUMNO BRASILEÑO DE ESPAÑOL

Según lo señalado en el párrafo anterior, existe una lexicografía dedicada exclusivamente a servir de auxilio en la enseñanza de una lengua extranjera. En el caso específico del español, la cantidad de obras que hipotéticamente se podrían adscribirse a este ­linaje

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lexicográfico se limita, en la práctica, a dos diccionarios: DSELE (2000) y DSLE (1996). Ambos presentan serias restricciones para su utilización como herramientas confiables de auxilio en la enseñanza y aprendizaje de la lengua. En la ausencia de instrumentos que atiendan tailor made (“específicamente”) al aprendiz brasileño de español, es factible pensar qué instrumentos lexicográficos diseñados para el hablante nativo del español podrían ser aprovechados por los aprendices brasileños. La teoría metalexicográfica insiste en destacar que los diccionarios deberían estar diseñados para públicos específicos con necesidades específicas (cf. HERBST; KLOTZ (2003)) En el caso específico de la enseñanza del español a luso-hablantes, sin embargo, es necesario ponderar dos factores. En primer lugar, que esos instrumentos todavía no están disponibles entre nosotros y, en segundo, que existe un grado razonable de convergencia genética y tipológica entre el español y el portugués, de modo que el aprendiz brasileño, específicamente el universitario, está en condiciones de sacarle provecho a algunas de estas obras, no obstante que éstas no fueron concebidas para aprendices de español como lengua extranjera, hecho que es necesario destacar. Dicho en otros términos, se trata de procurar qué instrumentos lexicográficos podrían auxiliar al aprendiz brasileño hasta que obras específicamente diseñadas para él estén a su disposición. A favor de esta tesis hablan por lo menos dos factores. En primer lugar, el alto grado de convergencia genética y tipológica entre las dos lenguas (cf. MLS (2010, s.vs. genetisch e typologisch para estos conceptos). Esto quiere decir que la filiación genética de ambas lenguas constituye una factor de alta convergencia en todos los niveles de organización de la lengua (para el concepto de nivel de organización, c. HENNE (1982); sobre su aplicación como constructo útil para el análisis lingüístico, cf. ZANATTA (2010)).

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Esto, evidentemente, tiene un reflejo en el desempeño en algunas de las competencias lingüísticas del estudiante brasileño de español, tales como la comprensión lectora. Es evidente también que el ámbito tipológico dicha convergencia también existe, de modo que esta variable clasificaciones una variable “controlada” (por lo menos parcialmente) en el proceso de enseñanza-aprendizaje de la lengua. Por esa razón es que sustentamos la tesis de que existe una competencia metalingüística mínima que le permite al estudiante brasileño de español decodificar e interpretar las informaciones presentes en muchos diccionarios de lengua española.

LA CLASIFICACIÓN PROPUESTA

En Bugueño Miranda (2014) se definieron las bases teórico-metodológicas que sustentan dicha clasificación. Es recomendable subrayar, sin embargo, que esta clasificación es de orden taxonómico, ya que ello lleva a clases de diccionarios (“genotipos”) obtenidas por una sumatoria de rasgos. Para el usuario es menos complejo trabajar por una check -list que por una semejanza de familia mayor o menor, como propone una teoría prototípica. La clasificación le ofrece al usuario, además, un esfuerzo heurístico menor, ya que se propuso un conjunto de parámetros de clasificación de modo que el usuario fuera escogiendo según sus propias necesidades. Es evidente que, en la ausencia de obras confiables para la enseñanza del español como lengua extranjera, el usuario deberá escoger el lado izquierdo de la clasificación.

RESULTADOS DE APLICACIÓN

Siguiendo la distinción propuesta por Coseriu (1992), se distingue entre discurso libre y discurso repetido. Tres son las clases de diccionarios que obedecen a este principio. El diccionario sintagmático, el diccionario de colocaciones y el diccionario de régimen. El primero de ellos se emplea primordialmente para la comprensión. De las tres clases

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e­ stablecidas, la lengua española presenta una variada gama de exponentes sólo en lo que se refiere a diccionarios sintagmáticos4. Un ejemplo es DFrasEM (2004, s.v. laurel):

Naturalmente que la primera dificultad que un estudiante tendrá es cómo buscar en la estructura de acceso ofrecida por el diccionario. De facto, el estudiante probablemente habrá escuchado o leído algo parecido a: “[Fulano] se durmió en los laureles”. Sobre todo en los niveles iniciales y considerando también que no existe entre nosotros todavía una “cultura del diccionario” que desarrolle la heurística necesaria para procurar información no linear (el lema laurel aparece en la última posición de la frase), es muy posible que el potencial usuario no descubra cómo se lematizó la expresión. Por ello, y mucho más relacionado a la falta de “estrategias de búsqueda” [look-up-strategies], es dudoso que un estudiante le pueda sacar el debido provecho a esta clase de diccionarios. Las otras dos clases de diccionarios de discurso repetido sirven fundamentalmente para las tareas de producción. Tanto en lo que se refiere a padrones colocacionales como en lo que respecta a los regímenes preposicionales, se trata de claros problemas de cálculo para efectos de producción textual. Lamentablemente, la tradición lexicográfica todavía no cuenta con un diccionario de colocaciones, salvo el DiCE (1999- ), que está incompleto. En relación a diccionarios de régimen preposicional, DCR ((1872-1994, s.v. abstener) es, sin ninguna duda, la obra más completa de su género. 4 Se ha escogido la expresión diccionarios sintagmáticos para denotar aquellos diccionarios que lematizan las llamadas expresiones fijas. Para detalles de la multiplicidad de designaciones existentes, cf. Martínez de Souza (1995, s.v. diccionario).

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La filiación claramente filológica con que fue diseñado le confiere una complejidad que rebasa con creces la competencia de un estudiante de español para interpretar la ingente masa de informaciones que cada artículo léxico posee. A lo anterior se hace necesario agregar que el fenómeno del régimen preposicional está en un franco estado de vacilación, de modo que su tratamiento lexicográfico se torna muy complejo. Un lugar muy singular es el que ocupa DCEC (2004), un diccionario combinatorio del español. En Bugueño Miranda (2013b, p. 235) se destaca que el concepto de combinación está asumido aquí de forma muy amplia , dando cabida tanto a las colocaciones como a los regímenes, así como al potencial de combinatoria de las palabras a la luz de la teoría léxico generativo. Véase abajo el artículo empujón:

El potencial heurístico para la producción textual es de proporciones. Sin embargo, y más allá de encontrarle un lugar específico en la taxonomía (DCEC (2004) es un diccionario “tres en uno”), la mayor dificultad que un estudiante de español tendrá es la de

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r­ econocer e interpretar los diferentes segmentos informativos de cada artículo léxico. Dentro del discurso libre y en el ámbito de los diccionarios ordenados por el significante, el usuario brasileño tiene a su disposición un amplio espectro de opciones. La consulta al DRAE (2001, s.vs.) para casos como bambú o bambuc, calorosamente: v. calurosamente, camarina o camariña, éxtasi: v. éxtasis, fríjol: v. fréjol, marcapaso o marcapasos, médula o medula, quilogramo: v. kilogramo, etc. despeja cualquier duda o vacilación. Por otro lado, y no obstante ello, la doctrina vinculante que suponen las orientaciones de la Real Academia Española (RAE) implica necesariamente que de tiempo en tiempo habrá sí alguna mudanza en el ámbito de la prescripción ortográfica (piénsese, por ejemplo, en el tiempo que demoró hasta que DRAE (en sus varias ediciones) aceptó la coexistencia de las formas video y vídeo. Es en este punto en que la búsqueda por orientación ortográfica ofrece, sin embargo, resultados dispares, esto es, cuando se abandona el ámbito de la ortografía literal y se incorporan a la prescripción ortográfica variables fonológicas (como los casos de video y vídeo) o casos de particularidades morfo-fonológicas. Así, por ejemplo, s.v. hábitat en DSELE (2000), hay un post comentario de forma que indica que el plural se forma por medio del artículo (el hábitat / los hábitat). A partir de DPD (2005, s.v. plural, § 1.k), sin embargo, la orientación actual es formar el plural acrecentando el alomorfo –s (los hábitats). Por ello, una consulta ortográfica en la lexicografía de lengua española, si rebasa los límites de la ortografía literal, necesariamente debe ir seguida de una consulta al DPD (2005). Si bien se cuenta ahora con la Ortografía de la Lengua Española (2010), su consulta en línea resulta compleja y no consigue resolver las eventuales dudas del usuario5. 5 Ello se debe no a la doctrina o la redacción del texto propiamente tal, sino que al acceso muy limitado que se obtiene consultando va versión en línea dispuesta por la RAE. De facto, el sitio sólo ofrece uno o dos párrafos por página, de modo que casi imposible obtener suficientes informaciones en relación al fenómeno consultado.

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En lo que respecta a la representación fónica, la lengua española no precisa con prioridad de esta clase de obras y el estudiante brasileño de español tampoco. De facto, existen muy pocos diccionarios de pronunciación disponibles para esta lengua6. La razón fue ya parcialmente anunciada ad supra. El sistema fonológico del español es relativamente simple (basta constatar cuántas magnitudes son necesarias para representarlo en el AFI si se lo compara con el total posible de fonemas establecidos) y la correspondencia entre el plano fonológico y el ortográfico corresponde a un alto grado de convergencia. Además, una evaluación contrastiva de la disponibilidad fonológica entre español y portugués redundará en un beneficio del hablante nativo de lengua portuguesa, pues es su lengua la que presenta una mayor complejidad fonológica. Baste aquí citar los casos de la nasalización vocálica y el grado de abertura de las mismas. De esta forma, lo que en su lengua materna corresponde a fenómenos discretos en el nivel fonológico, en el español corresponde apenas a realizaciones alofónicas en el nivel fonético. La paronimia constituye un fenómeno léxico al que el español no se sustrae tampoco. Sin embargo, hay que señalar que no son muchos los repertorios léxicos que se registran este fenómeno. Se hace necesario definirlo conceptualmente. Alonso (1955, p. 1408)7 define parónimo como “vocablo fonéticamente parecido a otro: espirar y expirar”. Esta definición merece dos comentarios y un corolario. Por un lado, los parónimos corresponden a casos de homonimia (parcialmente) homofónica. Por el otro, corresponden a aquello que Hartmann; James (2001, s.v.) 6 Una excepción es DFonEsp (2007). A continuación del lema, hay una transcripción estrecha y después de ella, una descripción fónica de cada una de las magnitudes de la unidad lematizada. Así, por ejemplo s.v. lid [lįđ] Realización del fonema /l/, alveolar lateral fricativa sonora oral: /l-/. Realización del fonema /i/ anterior (palatal) sonora oral, con variante alofónica del modo de articulación, abierto (por su distribución trabada) y con suprasegmento fonológico acentual: [į]. (…). 7 Se ha escogido Alonso (1955) por la tendencia de la lingüística hispánica contemporánea a evitar en los diccionarios de lingüística la lematización de aquellos conceptos que advienen de la filología.

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denominan confusible words. Como corolario, se podría afirmar que, en el caso específico del estudiante brasileño de español, éste necesita mucho más que un diccionario de parónimos, un diccionario de falsos amigos, como, por ejemplo, nDFAEP (2014). Esta opción, desde el punto de vista clasificatorio, corresponde a una subdivisión muy anterior a este punto de la taxonomía, sin embargo. Los otros dos genotipos establecidos en la clasificación son de poca utilidad para el estudiante brasileño. Por un lado, el diccionario de la rima no tiene ninguna una aplicación práctica alguna, ya que los cursos de Letras no gradúan poetas. En lo que se refiere al diccionario inverso, esta clase de obras carece también de una utilidad en la enseñanza de español a estudiantes del portugués. Sin embargo, conviene señalar que para otras lenguas (tales como aquellas que presentan un alta frecuencia de compuestos) esta clase de obras cobra una enorme importancia. Sin duda alguna que la mayoría de los potenciales usuarios de diccionarios relaciona prototípicamente el diccionario a la clase de obras lexicográficas que se preocupan con el significado. Dentro de este subgrupo hay que distinguir entre diccionarios de orientación semasiológica y diccionarios de orientación onomasiológica. Los primeros están concebidos para la recepción o decodificación de lenguaje. La primera clase del subgrupo corresponde a los diccionarios diasistémicamente inclusivos, o sea, diccionarios que “están abiertos” a una gran masa de vocabulario, y en que se distingue entre “exhaustivos” y “α exhaustivos”. Los exhaustivos corresponden a aquellos diccionarios que intentan abarcar la totalidad del léxico de una lengua. En a tradición lexicográfica hispánica no hay una obra de estas dimensiones. Los “α exhaustivos”, a su vez, corresponden a los diccionarios que restringen su densidad macroestructural sin que haya criterios claros para ello. El DRAE (2001, s.v. juglar) es un excelente representante de este linaje:

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Al estudiante de español el éxito o no en la consulta le estará asociado proporcionalmente a la bondad (o falta de ella) en relación a la redacción de las paráfrasis explanatorias (cf. BUGUEÑO MIRANDA (2009) para este concepto). Si la paráfrasis está bien formulada, le será indudablemente útil. En una relación complementaria se encuentran los diccionarios diasistémicamente restringidos, esto es, diccionarios que “seleccionan” el léxico que lematizan de acuerdo a la manera de definirlo en términos diasistémicos. Por limitación de espacio, seleccionamos las clases “diapragmático”, “diaintegrativo”, “dianormativo” y diatópico”. En lo que respecta a los diccionarios “diapragmáticos”, éstos corresponden a los diccionarios escolares, un linaje con bastantes exponentes en la lengua española, incluso correspondiendo varios de ellos a la iniciativa de la “lexicografía oficial” (ALVAR (1990)). Véase abajo el DE (2005, s.v. falsario): La situación en que se encuentra esta lexicografía es muy heterogénea. Zanatta (2007), por ejemplo, demostró que hay casos de diccionarios escolares que presentan un diseño muy poco riguroso, lo que afecta su confiabilidad incluso para su empleo por hablantes nativos. En ámbitos tan sensibles como las paráfrasis explanatorias o los ­insumos necesarios para la producción esto constituye un factor crítico. En relación a los ­diccionarios “diaintegrativos”, el español está en una situación bastante cómoda, ya que la observación referente a la incorporación de unidades léxicas exógenas queda a cargo del DPD (2005). Sirva de ejemplo apartheid en DPD (2005):

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Los diccionarios “dianormativos”, por otro lado, constituyen sí un linaje con exponentes de nota. Siguiendo la ya clásica distinción de Coseriu (1992) entre norma real y norma ideal, hay un grupo de diccionarios del español que se pueden agrupar perfectamente por este criterio. Antes, sin embargo, es fundamental dejar en claro que, sea o no el objetivo del compilador de diccionarios, el diccionario termina teniendo un efecto modelar (cf. BUGUEÑO MIRANDA (2013a)). Por ello, si bien la distinción entre diccionarios de norma real y diccionarios de norma ejemplar se deja aplicar muy bien al español, en la práctica, y desde el punto de vista del usuario, todo diccionario acaba teniendo un efecto normativo ejemplar. En relación a los diccionarios de norma real, DEA (1999), GDEA (2001) y LaULE (2006) se encuadran en esta categoría. Véase abajo un ejemplo del DEA (1999, s.v. dar):

Mientras DEA (1999) cumple su función normativa por el complejo sistema de marcación de valencias, GDEA (2001, s.vs. destrucción, abotagar, haber) manifiesta su intensión normativa por medio de la explicitación de la frecuencia, comentario de forma ortográfico y comentario semántico:

En relación a LaULE (2006), este diccionario es una transposición al español de la

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s­ erie de diccionarios para aprendices de inglés Collins Cobuild, aunque no siempre acertada. Así, por ejemplo, hay muchas unidades lematizadas que son de bajísima frecuencia. Sirva de ejemplo el intervalo diplopía, dipneo-a, dipodia, dipolo, dipsáceo, dipso- . Indudablemente que de uso, entendido como norma real, no se puede hablar en este caso. En lo que se refiere a las paráfrasis explanatorias, el usuario queda a merced también de la felicidad con que una paráfrasis haya sido redactada. Transcribimos algunos ejemplos:

En relación a campechano, la primera paráfrasis contiene la palabra llaneza, que sin lugar a dudas, constituye una unidad léxica que difícilmente el usuario comprenderá. Su corrección implica que el redactor siempre debe intentar emplear palabras más comunes, tales como simplicidad. A la derecha de la caja de texto, LaULE (2006) adopta dos segmentos informativos: clase gramatical y dos segmentos de comentario semántico: sinonimia y antonimia. Este último segmento se puede aprovechar para fines de producción (sobre el aprovechamiento de este segmento para fines de producción, cf. Bugueño Miranda; Farias (2008)). S.v. holganza, por otra parte, aparecen ya los problemas propios de éste y muchos otros diccionarios, esto es, la masiva presencia de paráfrasis opacas. Sin duda alguna, que el diccionario de norma ideal, o sea, abiertamente normativo) es DUE (1966-1967, s.v. atribuir):

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El último genotipo de los diccionarios diasistémicamente normativo es el diccionario dialectal. En el caso específico del Español de América, la serie de diccionarios oriundos del Nuevo Diccionario de Americanismos (NDA) constituye el ejemplo metodológicamente más perfecto del género. Se citan aquí tres ejemplos del NDAr (1993, s.v. baya, bayo, -a, bebe):

Sin duda alguna que la clase lexicográfica onomasiológica es la menos conocida. Lo primero que cabe decir es que esta clase tiene una serie de particularidades. En primer lugar, el diccionario onomasiológico “stricto sensu” presupone el establecimiento de una ontología. Ya que no hay ninguna de aceptación universal, la compilación de esta clase de obras siempre se inicia por la ontología, que necesariamente debe serle informada al usuario. Veamos el ejemplo de DId (2004). Una segunda clase de ordenación onomasiológica es la que ofrecen los diccionarios de ideas afines. Estos diccionarios presentan dos particularidades. En primer lugar, ofrecen una estructura de acceso alfabética. En segundo lugar, junto con el campo de las designaciones, ofrecen también campos asociativos (las ideas afines), cuya selección depende de la intuición del redactor. Véase el ejemplo del DIA (1985, s.v. diente).

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Plan General de la Clasificación Ideológica





Finalmente, la última clase onomasiológica es la de los diccionarios por la imagen. Hay dos factores que determinan esta clase. En primer lugar, la correspondencia ontológica entre la lengua materna y la lengua extranjera del aprendiz (por, ejemplo, baseball, ferrocarril, plantas y animales). En segundo lugar, el poder discriminante de las propias imágenes. Para la lengua española no existen diccionarios por la imagen que sean monolingües; se encuentran apenas obras ­bilingües.

CONCLUSIONES

La clase de los diccionarios de sinónimos, por otra parte, es la más conocida dentro del espectro de obras onomasiológicas. La mayor parte de estos diccionarios corresponde a la sinonimia acumulativa [komulative Synonymik] (cf. MLS (2010, s.v. Synonymwörterbuch), de escasa utilidad incluso para el hablante nativo. Los diccionarios de sinonimia distintiva [distinktive Synonymik] (cf. MLS (2010, ibid.), por el contrario, son de gran utilidad. En español, sin embargo, no hay muchos y en los casos en que se reconoce la necesidad de distinguir entre sinónimos, ello no es siempre una constante, como lo demuestra DASA (1998, s.v. empresa):

Si bien se constató que no todos losa diccionarios le serán útiles al aprendiz de lengua española, ya sea porque el tratamiento lexicográfico de determinado problema exige le exige unos conocimientos lingüísticos de los que todavía carece, o las informaciones ofrecidas por los diccionarios son claramente insuficientes, es forzoso reconocer también que el usuario aprendiz de español puede sacarle provecho a algunas obras lexicográficas. Todavía no ha llegado el día en que la lexicografía de aprendices de español cuente con los instrumentos adecuados a las habilidades lingüísticas y las exigencias curriculares de la enseñanza de español como lengua extranjera.

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POR UNA POESÍA SIN PUREZA: A LÍRICA HISPANO-AMERICANA MODERNA PARA ALÉM DO ROMANTISMO Giulia Ribeiro Barão1

RESUMO: Há uma tendência entre as análises teóricas e críticas de encontrar na poesia hispano -americana moderna – do século XX em diante - traços do que seria um Romantismo anacrônico. Isto é, elementos de construção semântica e formal que diriam respeito à expressão sentimental, ao questionamento identitário e à busca por interlocução e vínculos afetivos do sujeito lírico; elementos estes típicos da escola romântica e, portanto, contrários às propostas revolucionárias das vanguardas do modernismo. Este artigo se dispõe a fazer um contraponto a tal perspectiva, a partir daquilo que Pablo Neruda denominou, em 1935, de uma poesia sem pureza. Na década de 1930, o Chile e toda a América Latina estavam imersos nas discussões estéticas e políticas sobre os rumos que a poesia hispano-americana deveria tomar a partir das rupturas trazidas pelas vanguardas europeias nos anos precedentes, sobretudo pelo simbolismo francês e a vertente artística que ficou conhecida como poesia pura. Neste artigo, pretende-se argumentar, com base em teorias sobre sujeito e enunciação lírica, de que forma determinada linhagem da lírica hispano-americana se apropriou da crítica modernista e vanguardista, mas ao mesmo tempo se contrapôs à poesia pura, inaugurando, com isso, uma abordagem poética que não pode ser reduzida a uma permanência anacrônica do Romantismo. Palavras-chave: Lírica hispano-americana moderna. Poesia pura. Poesia sin pureza. Sujeito lírico. ABSTRACT: There is a tendency among theoretical analysis to find in modern hispanic hispanic american poetry – from the 20th century onward - traces of what would be an anachronic Romanticism. That is, semantic and formal elements related to sentimental expression, identity questioning and searching for dialogue and affective bonds, elements, these, that are typical of the Romantic movement and, therefore, contrary to the revolutionary proposals of the modernist vanguards. This paper intends to make a counterpoint to this perspective, folllowing what Pablo Neruda called, in 1935, a poetry without purity. In the 1930s, Chile and all Latin America were immersed in the aesthetic and political discussions about the direction that the hispanic american poetry should take, having in mind the disruptions brought by the european vanguards in the previous years, especially the french symbolism and the artistic orientation which became known as pure poetry. We will argue, based upon theories of lyrical subject and lyrical enunciation, on how a particular lineage of hispanic american poetry assumed modernist and avant-garde criticism, but also stood against pure poetry, opening with it, a poetic approach that can not be reduced to an anachronic permanence of the Romanticism. Keywords: Modern hispanic american poetry. Pure poetry. Poetry without purity. Lyrical subject. RESUMEN: Hay una tendencia entre los análisis teóricos y críticos de encontrar en la poesía moderna hispanoamericana - del siglo XX en adelante - rastros de lo que sería un Romanticismo anacrónico. Es decir, elementos de construcción semántica y formal que se refieren a la expresión sentimental, el cuestionamiento de la identidad y la búsqueda por diálogo y vínculos afectivos por parte del 1

Mestranda em Letras/ Escrita Criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

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sujeto lírico; rasgos estos típicos de la escuela Romántica y, por eso, contrarios a las proposiciones revolucionarias de las vanguardias del modernismo. Tenemos por objetivo hacer un contrapunto a tal perspectiva, a partir de lo que Pablo Neruda llamó en 1935 de una poesía sin pureza. En la década de 1930, Chile y toda América Latina estaban tomados por las discusiones estéticas y políticas sobre la dirección que la poesía hispano americana debería tomar frente a las rupturas inauguradas por las vanguardias europeas de los años anteriores, especialmente por el simbolismo francés y el linaje estético que se quedó conocido como poesía pura. En este artículo, nos proponemos a discutir, com basis en las teorías del sujeto y de la enunciación lírica, de que manera un determinado linaje de la lírica hispanoamericana moderna se apropió de la crítica vanguardista y al mismo tiempo se opuso a la poesía pura, abriendo camino así, a un abordaje poético que no se puede reducir a la permanencia anacrónica del Romanticismo. Palabras-clave: Lírica hispanoamericana moderna. Poesía pura. Poesía sin pureza. Sujeto lírico.

1. INTRODUÇÃO Numa obra que se tornou clássica, Hugo Friedrich (1998) faz o mapeamento de traços comum à obra de poetas do fim do século XIX e início do século XX a fim de estabelecer o que seriam princípios estruturais da lírica moderna. Isto é, propõe uma síntese dos elementos formais e sensíveis que ­compreenderiam produção poética do imediato pós-Romantismo europeu sob a mesma moldura teórica. Conforme argumenta Alfonso Berardinelli (2007), o poder de simplificação e síntese da obra de Friedrich (1998), se resulta valioso para o estudo da poesia moderna, também exclui do período estudado uma pluralidade de vozes que não se encaixam em sua proposta teórica. Nesse sentido, a estrutura da lírica moderna proposta por Friedrich (1998),

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seria, melhor dita, a estrutura da lírica moderna francesa, e, ainda mais especificamente, da lírica que numa linhagem iniciada por Baudelaire culminaria em Mallarmé (BERARDINELLI, 2007). Apesar de ver alguma ingenuidade e exagero na crítica deste autor, que parece esquecer que toda teoria é sempre um recorte e, portanto, excludente; creio que a grande contribuição da sua resposta à Friedrich (1998) é estimular a pesquisa e o estudo de outras vozes componentes da lírica moderna. É a partir desse estímulo que o presente artigo se constrói. Tomaremos alguns dos conceitos da obra de Hugo Friedrich (1998) como horizonte comparativo, a fim de apontar um outro lirismo, outra qualidade de voz poética, que, apesar de moderna – isto é, cronologicamente posteriores ao movimento romântico - pouco se aproxima da estrutura proposta por esse autor. Trata-se da poesia modernista hispano-americana, e, mais precisamente, daquilo que, por direto contraponto à lírica moderna do simbolismo francês ficou conhecido no continente como poesia impura (NERUDA, 1935). Ao estabelecer este elo dialógico, procuraremos apontar, de um lado e de outro a coincidência entre os aspectos formais e sensíveis da enunciação poética e o respectivo sujeito lírico do enunciado. Isto é, estamos interessados em fazer a correspondência entre as características da enunciação lírica que se entendem por poesia pura e poesia impura e os seus respectivos sujeitos líricos. Utilizamos a expressão sujeito lírico na perspectiva de Kate Hamburguer (2013), a qual propõe uma compreensão dos diferentes gêneros literários a partir da teoria linguística, fazendo corresponder o estilo lírico à forma enunciativa da linguagem. Um enunciado supõe um sujeito que fala sobre um objeto ou a este se dirige. Este objeto pode ser qualquer coisa – o universo, uma pessoa, um vaso de flores, o próprio sujeito. No plano comunicativo da linguagem, a

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enunciação tem sempre uma finalidade prática, que pode ser declarativa, interrogativa, optativa ou imperativa. O caráter específico da enunciação lírica reside, em primeiro lugar, na recusa dessa função utilitária. Para a definição de uma enunciação como lírica não interessa a realidade factual da relação entre sujeito e objeto, mas a própria enunciação enquanto vivência imediata desta relação (HAMBURGUER, 2013, p.200). Em segundo lugar, na constituição dessa enunciação como alteridade. Isto é, ao escrever o poeta busca o Outro da linguagem – uma forma de empregar as palavras diferente do uso cotidiano e renovadora da riqueza linguística (COLLOT, 2006). O que importa disso para o nosso estudo é entender que este uso da linguagem, pelo menos na lírica moderna, supõe duas relações de alteridade: 1.

2.

A clivagem percebida ou constituída pelo sujeito da enunciação e o objeto da enunciação, que pode ter maior ou menor relação com algum objeto existente fora dela.

A formulação de uma linguagem inédita e irreproduzível. No poema, forma e conteúdo coincidem completamente e, portanto, tentar dizê-lo de outra forma já seria dizer outra coisa. Trata-se, portanto da linguagem como alteridade, como presença em si mesma.

O poema, por seu caráter de enunciação, isto é, de relação entre sujeito e objeto pela linguagem, é recebido como realidade. Esta realidade não é, contudo, a dos fatos objetivos, mas a do campo da experiência do sujeito. Em outras palavras, o conteúdo da enunciação lírica não é o objeto, mas a vivência do objeto pelo sujeito (HAMBURGUER, 2013). A forma como essa vivência fica expressa na enunciação condiz com a maior ou menor inteligibilidade ou possibilidade de identificação do objeto. Num dos extremos, a linguagem da enunciação é priorizada (o Outro da linguagem) –

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o que resulta no maior apagamento da referencialidade ao objeto. No outro, a alteridade do objeto é mais relevante, de modo que o poema se aproxima mais de um enunciado comunicativo. No primeiro caso, os objetos são pretextos para as palavras – como na poesia pura - no segundo, as palavras servem de pretexto para os objetos – conforme exemplifica a poesia política (HAMBURGUER, 2013, p.185). Não obstante a imensa possibilidade de variação do enunciado lírico entre esses dois extremos, um elemento persiste em comum: “ o sujeito lírico é capaz de formar uma enunciação que não vise o objeto ou o real, mas não tem o poder de eliminar-se com sujeito autêntico dessa enunciação” (HAMBURGUER, 2013, p. 197). Isso nos fornece duas diretrizes para o estudo que aqui propomos. Primeiro, que, independentemente do seu ideal de despersonalização ou de desaparecimento elocutório do poeta, a lírica simbolista moderna não consegue, porque não pode, apagar o sujeito lírico, uma vez que este é pressuposto da enunciação. Em segundo lugar, que a relação de maior ou menor apagamento do referencial ao objeto diz muito sobre a intencionalidade da enunciação, e, portanto, sobre o sujeito lírico que ali se estabelece. Com base nisso, procuraremos apontar de que maneira a enunciação na poesia pura e na poesia impura correspondem a determinadas intencionalidades do sujeito lírico, conforme sua preferência por um ou outra dimensão de alteridade do poema. Seguiremos Kate Hamburguer (2013) em sua abordagem lógico-linguística do gênero lírico, mas, tendo consciência da limitação desse tipo de análise para explicar a poesia, buscaremos complementá-la com outros aportes sobre o sujeito lírico moderno. Nas primeira seção do artigo, definiremos as características da enunciação lírica típica da poesia pura e seu correspondente sujeito lírico. Em seguida, passamos à poesia impura e à exposição de trechos de poemas de

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Pablo Neruda, os quais julgamos ilustrativos de nossos argumentos. O enfoque é dado à segunda parte, porquanto o objetivo do artigo seja, justamente, ampliar o escopo daquilo que se compreende por lírica moderna e sujeito lírico, ao olhar para uma amostra da produção hispano-americana do período pós-romântico. Ao mesmo tempo, propomos analisar esse excerto da poesia hispano-americana, a partir de aportes teóricos sobre sujeito lírico ainda fundamentalmente restritos à língua francesa. Esse autor propõe uma compreensão de lirismo e de sujeito lírico que foi fundada pelo Romantismo, mas transformada, e não eliminada, pelas gerações seguintes. O que nos interessa nessa abordagem é que ela exime a poesia hispano-americana da análise canônica que lhe atribui um traço de Romantismo tardio (ELIOT, 1957). Procuraremos demonstrar, em contraposição à tipificação da enunciação lírica moderna tal como aparece em Hugo Friedrich (1998) e com base nos argumentos de outros autores, como Kate Hamburger (2013) e Michel Collot (1996, 2006) que a poética de Pablo Neruda, tomada como representante de uma linhagem da poesia latino-americana, não deixa de ser moderna por ser dialógica, e não chega a ser romântica por ser impura. Como última observação, não nos aprofundaremos na estrutura sintática e imagética dos poemas analisados, nos restringindo às observações sobre a intencionalidade da enunciação e o tipo correspondente de sujeito lírico.

2. A ENUNCIAÇÃO LÍRICA DA POESIA PURA

O movimento literário romântico coincide com a transição daquilo que chamamos modo de vida tradicional ao modo de vida moderno. Isso quer dizer uma revolução completa na organização da existência humana e sua compreensão sobre o mundo, e sobre o ser no mundo. A poesia romântica,

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inserida nesse contexto é, portanto, uma ­poesia de crise. (PAZ, 2013). De um lado ela está associada à formação de Estados Nacionais e a revoluções burguesas consolidadores de regimes políticos por isso tem um forte componente nacionalista, assim como um afã conservador, que pode ser religioso e/ou político (PAZ, 2013). Por outro, o poeta romântico pressente que este mundo está em decadência, sobretudo, pela relativização da figura de divina a partir do pensamento racionalista e antropocêntrico do Iluminismo. Um mundo sem o recurso estabilizador de uma força superior é um mundo contingente e à deriva, mas que, ao mesmo tempo, transfere às mãos do homem o poder criador antes conferido a Deus, e, portanto, a responsabilidade por suas obras e seu destino. O poeta romântico, sensível a essa transição, oscilará entre o chamado a um Deus que já não escuta e a potencialidade de seu poder criativo: entre religião e imaginação (PAZ, 2013). Sentindo-se órfão, mas com esperanças, o romântico escreve em busca de si mesmo e procurando interlocução. (VADÉ, 1996). Quer saber quem é, que mundo é este, se alguém está com ele; e ao perguntar, também responde, sempre insuficientemente, fragmentado em eu-líricos de enunciações contraditórias. Por assim dizer, no Romantismo, o eixo que mais importa para o poeta é o da relação entre sujeito-de-enunciação e objeto. Na moldura teórica de Kate Hamburguer (2013), a poesia romântica tende ao lado em que as palavras são pretextos para os objetos. O Outro da linguagem é uma consequência da intencionalidade do sujeito lírico em questionar a própria identidade. Mesmo que ao fazê-lo se dirija a um objeto exterior a si, é a relação de identidade consigo mesmo e com esse objeto que está em questão (VADÉ, 1996). É nesse sentido que o sujeito lírico do romântico se projeta no poema, não como exteriorização de um egocentrismo ­sentimental

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mas como ato de questionamento do ser. Yves Vadé (1996) argumenta que o Romantismo pode ser compreendido como a busca identitária do sujeito lírico e, portanto, como a expressão poética da condição humana no nascente mundo moderno – a tragédia e a maravilha da razão e da imaginação, da criação de si mesmo: tarefa de encontrar a própria identidade entre referências fragmentadas e pela falta de uma explicação superior. O Romantismo inaugura a poesia moderna ao colocar o sujeito lírico no primeiro plano da criação poética. Além disso, eleva esse gênero à categoria de arte assim como expande seu público, antes restrito às leituras de poemas nos salões da burguesia. Por fim, o Romantismo dá início àquilo que Octavio Paz (2013) denomina de revolta do futuro: a percepção de que o progresso se produz na negação do antigo em nome do novo, e portanto, na sucessão de movimentos literários que rompem com o imediatamente anterior. Essa é a revolta a partir da qual os poetas modernos analisados por Hugo Friedrich (1998) procuram romper radicalmente com o Romantismo. Em primeiro lugar, com aquilo que se compreendia como a expressão sentimental do eu-lírico. Sua poesia que ser pura, bastar a si mesma, não exigir a interpretação de um sentido subjetivo, mas aparecer como presença, como existência autorreferenciada. Trata-se do desaparecimento elocutório do poeta, a busca de uma neutralidade subjetiva que dê ao poema a liberdade de ser puramente linguagem. Trata-se, nos poemas, da preeminência da alteridade da linguagem sobre a relação sujeito-objeto da enunciação. Em segundo lugar, se o poeta romântico, mesmo em suas contradições mantinha alguma esperança no mundo nascente, o poeta moderno está diante da sociedade técnico -burocrática, o fetiche do progresso, o afã da produtividade, em suma, um mundo onde a única esperança é econômica e utilitária (BERARDINELLI, 2007). Na recusa desse mundo,

esses poetas não fazem poesia de busca pela identidade ou de interlocução, mas lugar de transcendência. São tributários do Jean-Jacques Rousseau de Devaneios2 (FRIEDRICH, 1998), sentem-se traídos por um mundo não os compreende e que assassina a poesia (MILLER, 2010). Por isso querem fazer de seus poemas outro mundo, graças ao seu poder criador, ao poder criador da linguagem. Em contraposição à linguagem reificada pela técnica e pela comunicação, querem renovar e ao mesmo tempo preservar a função poética da língua, encontrar o Outro da linguagem (COLLOT, 2006). Nesse sentido, a enunciação lírica desses poetas se aproxima daquele extremo delineado por Kate Hamburguer (2013), em que os objetos da enunciação são pretextos para as palavras. E além disso, são pretextos para a verdadeira intencionalidade dessa enunciação que é produzir no leitor um efeito, o choque do não-entendimento imediato (FRIEDRICH, 1998), da linguagem como presença irredutível a explicações lógicas, alusiva aos ritmos secretos do cosmos (PAZ, 2013). O poema se pretende duplo do universo inconcebível na linguagem. Isto é, do universo verdadeiro e secreto, além da falsidade do modo de vida que lhes é contemporâneo. Como sugestão de Outro mundo, presente mas escondido no mundo de sempre (COLLOT, 2006). A enunciação lírica serviria aqui como plataforma para o inefável e o sujeito lírico como porta-voz da linguagem verdadeira, redimida de seu uso pragmático (PAZ, 2013). A intencionalidade dessa enunciação, que é revelar Outro mundo, se choca, contudo, contra os limites da linguagem e contra os limites da própria capacidade criadora. Esses poetas só podem fazer da poesia exílio intermitente, porque, não obstante a riqueza da sua linguagem poética e o poder de alusão de seus poemas, é preciso voltar à linguagem e ao mundo banais. 2

Devaneios do Caminhante Solitário

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Se o poeta romântico ainda tem a esperança na própria capacidade criativa, se ainda enxerga um horizonte na paisagem do sonho, do amor, da política, da busca por si mesmo, o moderno se choca contra o vazio da própria criação poética. A isso, Hugo Friedrich (1998, p. 49) chamou de idealidade ou transcendência vazia: O desconcertante de tal modernidade é que está atormentada até à neurose pelo impul-

so de fugir do real, mas se sente impotente para crer ou criar uma transcendência de

conteúdo, dotada de sentido. Isto conduz os poetas da modernidade a uma dinâmica de tensão sem solução.

A tensão sem solução pode ser entendida como a condição de estrangeiro do sujeito lírico moderno. Ele se recusa ao mundo da linguagem reificada, mas é incapaz de fazer da poesia exílio definitivo, e portanto, está fadado a voltar a esse mundo no qual que se sente estrangeiro. Não pode viver constantemente em estado lírico, dadas as demandas da vida prática e as limitações de seu poder de transcendência. E não suporta a realidade que não seja a da poesia. É como se para este poeta só houvesse a possibilidade de ir embora, de fugir à condição de estrangeiro, à qual, contudo, não pode escapar pois lhe é constitutiva. É ela que está por trás de sua enunciação lírica. Pois, por maior que seja o grau de despersonalização do poema, é sempre enunciação de um sujeito e, quanto mais incompreensível, mais diz respeito a uma vivência desse sujeito e de ninguém mais. Mais diz respeito à sua condição de estrangeiro. O sujeito lírico moderno reafirma ou recria estrangeiridade de sua condição humana na enunciação. Porque a intenção do enunciado é causar ou evidenciar o choque entre a linguagem poética, deste outro mundo verdadeiro e a linguagem utilitarista do mundo real de sempre. Ao fazê-lo, o sujeito

lírico nega o vínculo com os outros sujeitos, porque, não obstante a esterilidade do mundo regido pela lógica produtiva, é este o lugar onde a convivência com os outros torna possível o diálogo e a criação de laços intersubjetivos. Em outras palavras, ao fazer da enunciação lírica um lugar de predomínio da alteridade da linguagem, o sujeito-da-enunciação corre o risco de apagar o eixo da relação sujeito-objeto. Tal sujeito lírico se sente e quer se sentir alheio a esse mundo contra o qual se revolta e a essa linguagem comunicativa a que se recusa. Quanto mais a enunciação lírica se afasta de seu objeto, que é, em última instância o que se encontra no mundo compartilhado, quanto mais o fragmenta e o codifica, mais evidencia um sujeito lírico do tipo estrangeiro. O poema se torna um mistério que, se por um lado pode gerar uma experiência no leitor pelo efeito de estranhamento e curiosidade que acarreta, por outro pode gerar a recusa da vivência do poema pela inacessibilidade, pela percepção de que só diz respeito ao sujeito-da-enunciação e portanto nos permite pensar em uma natureza antilírica. Isso porque, ao perder o elo com o objeto, tornando-o realidade absolutamente subjetiva, o sujeito fecha-se sobre si mesmo, a linguagem torna-se hermética, torna-se não -enunciado, e a partir daí, segundo a teoria de Kate Hamburguer (2013, p. 188), podemos nos questionar o quanto de lirismo sobrevive no texto. Seguramente isso também depende do pólo da recepção, isto é, do leitor estar animicamente disposto à experiência lírica que o poema propõe, mas esta, é, infelizmente, uma discussão que já escapa à proposta do artigo. Aqui nos limitaremos à dimensão do enunciado em si mesmo, em seu maior ou menor apego à referencialidade objetiva e o que isso pode nos dizer sobre o sujeito lírico. Segundo a teoria de Friedrich (1998, p. 103), o movimento da lírica moderna é o de afastamento radical da linguagem ­comunicativa,

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num claro processo de desobjetivação: de preferência pelo Outro da linguagem, em detrimento do objeto da enunciação e da comunicação com o leitor. Não é, porém, conforme querem nos fazer acreditar o poetas e o próprio Hugo Friedrich (1998), um processo de despersonalização. O poema, por mais impessoal que seja, é sempre um ponto de vista pessoal sobre o impessoal (COLLOT, 2005), e essa intenção de desaparecimento elocutório diz muito sobre o sujeito lírico. Segundo Hugo Friedrich (1998, p. 81), na poesia de Rimbaud “o mundo real se rompe sob a imposição de um sujeito que quer receber conteúdos, mas sim impor sua criação”. Sobretudo em Les Illuminations, onde o texto não quer ser compreendido, não está preocupado com o leitor: é o primeiro reflexo poético da poesia pura em sua manifestação extrema e que terá seu ponto culminante na poética do jogo de Mallarmé (FRIEDRICH, 1998, p.81) e mais tarde na poesia concreta . Isto é, a poesia como enunciação redimida de qualquer teor informacional, as palavras a serviço de si mesmas, o poema como vivência linguística, sem outra finalidade que a de ser presença arrebatadora, alteridade da linguagem e recusa transcendente à lógica utilitarista da civilização. E o sujeito lírico escondido por trás das palavras, inacessível. A poesia, então, redimida do vínculo afetivo. A poesia como exílio e a proposta de uma experiência que, no entanto, devido à perda do elo sujeito-objeto, da enunciação corre o risco de não tocar a mais ninguém, de ser tão lúdica quanto um jogo de tabuleiro.

3. A ENUNCIAÇÃO LÍRICA DA POESIA IMPURA

É recorrente na crítica da poesia hispano-americana o reconhecimento de uma influência continuada do Romantismo na produção dos poetas mais estudados. Longe de refutar essa proposição, queremos apontar, contudo, que há uma confusão entre os termos lírico e romântico - evidenciada, por exemplo,

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na leitura da obra de Pablo Neruda - que limita não só a compreensão da poesia do continente, como da lírica moderna em geral. Trata-se, fundamentalmente, de uma falsa sinonímia de conceitos que teóricos contemporâneos, como Jean-Michel Maulpoix (2000), Yves Vadé (1996) e Michel Collot (1996, 2006), ajudam a esclarecer. Segundo argumenta Maulpoix o termo lirismo passou a ser sinônimo de efusão sentimental a partir da crítica vanguardista moderna, que precisava se contrapor radicalmente ao Romantismo para afirmar a revolução estético-filosófica que propunha. Fizeram uma confusão que permanece até hoje. Graças ao distanciamento histórico podemos revisitar os poemas do Romantismo e compreender que, mais que um voltar-se para si mesmo e derramar suas emoções interiores, o sujeito lírico romântico se lança no poema buscando (e encontrando) uma comunidade de experiência (VADÉ, 1996, p.23) – com a mulher amada, o cosmos, Deus, um homem do povo ou consigo mesmo como um outro. A experiência comum serve de resposta provisória, a cada enunciação lírica, a cada poema, à busca de identidade do sujeito lírico (VADÉ, 1996). Dito isto, podemos compreender o lirismo não mais como uma exclusividade romântica ditada pela linguagem exaltada ou sentimental, mas uma postura poética inaugurada por esse movimento e transformada pelos seguintes. Que postura é essa? A do sujeito lírico que, no plano da enunciação, lança-se para fora de si, em busca de alguma coisa (COLLOT, 1996). No Romantismo, em busca da afirmação de uma sua identidade, de uma comunidade de experiência da qual se faz porta-voz, seja ela afetiva, política ou existencial (VADÉ, 1996). O que faz da poesia Romântica é, em primeiro lugar, sua relação com o período da História ao qual se refere, ao contexto histórico-cultural em que está inserida. Fora desse contexto só podemos dizer que um

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poema é romântico se cumprir os requisitos de forma que o cânone atribui a esta escola. Não basta, nos termos de Vadé (1996), que a enunciação apresente um sujeito lírico em busca da própria identidade. Um sujeito lírico que se lança no poema perguntando quem é diz respeito ao lirismo, e não ao Romantismo (COLLOT, 1996). Sendo assim, a poesia modernista hispano-americana não pode ser romântica pois está inserida no contexto da revolução estética do início do século XX, mas pode ter fortes traços de lirismo, na medida em que corresponde à produção poética de um continente em busca da própria identidade (BORDA, 1985). É este o contexto das décadas de 1920 a 1940, em que se desenvolvem a as diversas manifestações do modernismo hispano-americana, dentre as quais a Geração de 27, de o onde surge o termo poesia impura (BORDA, 1985). Vimos que a ruptura fundamental da poesia moderna francesa foi trazer para primeiro plano da enunciação lírica a alteridade da linguagem, em contraposição à importância dada pelos românticos ao eixo sujeito-objeto, na busca do sujeito por si mesmo em comunidade de experiência com o outro da enunciação. Como já dissemos, a poesia modernista faz dos objetos pretextos para as palavras e da linguagem poética, presença em si mesma: seu valor é a própria experiência do outro da linguagem. Levada ao extremo, esse tipo de enunciação lírica perde a referencialidade ao mundo real, ou o mesmo da linguagem e, com isso, sua possibilidade de fruição lírica pelo leitor e sua vinculação ao mundo afetivo que podemos ter em comum. A poesia sin pureza delineada pelo manifesto de Pablo Neruda se opõe à poésie pure francesa quanto ao afastamento radical que esta propõe entre a linguagem poética e a língua comum, entre o mundo poético e o mundo social. A enunciação lírica da poesia impura se aproxima mais do extremo em que as palavras são pretextos para os

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­ bjetos, em que a vivência da relação sujeio to-objeto é mais relevante que a pura fruição da linguagem, como no Romantismo. Mas isto não basta para dizer que esta poesia é romântica. Estes poetas escrevem no contexto pós-romântico, inseridos na revolução vanguardista e dela assumem as transformações formais que ampliam as possibilidades da enunciação lírica, assim como a revolução na percepção da função da poesia, em sua busca pela alteridade da linguagem e pelo reconhecimento da alteridade no mundo (COLLOT, 2006). Se a poesia impura é também a expressão de uma busca, não o é completamente nos termos românticos, onde o sujeito lírico, cingido pela transição histórica precisa reafirmar referências identitárias em crise. Pelo contrário, é obra de um sujeito lírico atento à alteridade inapreensível do mundo, mas que, ainda assim, busca vincular-se a ela, e encontrando a si mesmo na renovação da linguagem e das formas de se relacionar com o mundo. Em suma, a poesia impura é tão moderna quanto a poesia pura francesa em sua busca de alteridade, e no entanto, diferencia-se desta por seu lirismo, depurado dos excessos da enunciação tipicamente romântica e transformado por uma séria de inovações estilísticas. Diferentemente da poésie pure, está preocupada com o par identidade-alteridade que encontra na relação do sujeito-de-enunciação com seu objeto, sem desconsiderar o imperativo de renovação da linguagem ­poética. Vejamos o que diz Pablo Neruda (1935) no manifesto Por una poesía sin pureza: La confusa impureza de los seres humanos se percibe en ellos, la agrupación, uso y desuso de los materiales, las huellas del pie y los dedos, la constancia de una atmósfera inundando las cosas desde lo interno y lo externo. Así sea la poesía que buscamos, gastada como por un ácido por los deberes de

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la mano, penetrada por el sudor y el humo, oliente a orina y a azucena, salpicada por las diversas profesiones que se ejercen dentro y fuera de la ley. Una poesía impura como un traje, como un cuerpo, con manchas de nutrición, y actitudes vergonzosas, con arrugas, observaciones, sueños, vigilia, profecías, declaraciones de amor y de odio, bestias, sacudidas, idilios, creencias políticas, negaciones, dudas, afirmaciones, impuestos.

Trata-se de uma proposta centrada no conteúdo e no vocabulário da enunciação lírica. Esta não deve recusar nada que seja humano, não deve buscar um outro mundo, onde a alteridade da linguagem poética seja redimida da impureza que compõe o mundo entre os homens. Pelo contrário, na poesia impura tudo é material poético em potencial, como bem exemplifica a obra de Pablo Neruda, que passou pelas mais diferentes fases, desde uma poesia hermética fortemente influenciada pelo simbolismo francês até uma poesia política, em que os poemas se aproximam perigosamente de enunciações pragmáticas. A chave de compreensão da poesia impura é aquilo que Félix Schawartzmann (1953, p.1) chamou de voluntad de vínculo: “Un tenso deseo de enlace afectivo-espiritual constituido en su outro término por el vínculo orgánico com el prójimo que se ofrece fugaz, remoto o incierto”. Diferentemente do sujeito lírico da poesia pura, que pretende desaparecer por trás das palavras, aqui o sujeito lírico quer evidenciar sua condição, tanto com relação ao objeto da enunciação, quanto na escolha dos temas, do vocabulário, da forma do poema. É um sujeito lírico em busca de comunidade de experiência, a partir do reconhecimento de sua alteridade e da alteridade do mundo. O quanto ainda é possível para este sujeito lírico, pós-romântico, ciente dos limites da linguagem evidenciados pelas experimentações vanguardistas, sentir-se em comunidade

com os outros? É esta a pergunta por trás da enunciação lírica da poesia impura. Trata-se, portanto, de um sujeito em busca do lirismo que aparentemente precisa ser recusado para que a poesia possa ser moderna. Um sujeito lírico que propõe, como agora reconhece a crítica, ser possível um lirismo que não é romântico, que é moderno, na medida em que atualizado pela revolução estética do início do século XX. A atitude desse sujeito lirico é do tipo nômade. Diante da inapreensibilidade da alteridade do mundo e da infinitude do material potencialmente poético, o sujeito lírico vai transitar. Ao invés de buscar um outro mundo na alteridade da linguagem, fará um movimento interminável pela alteridade deste mundo comum, tratando de encontrar vínculos com ele. O sujeito lírico estrangeiro, típico da poesia pura, faz do poema lugar de exílio e desaparece por trás da enunciação. O sujeito lírico nômade, típico da poesia impura, faz do poema viagem, ressurgindo ali onde encontra vínculos com a outridade do mundo a partir da alteridade da linguagem poética. É uma das leituras que se pode fazer do poema Todos (NERUDA, 2009, p.110): […]

Y fui a la próxima casa a la próxima mujer, a todas as partes a preguntar por mí,, por ti, por todos: y donde yo no estaba ya no estaban […]

Nesse poema, o sujeito lírico reconhece, ao fim, que o “eu” é como todos, todos estes com os quais buscou ter vínculo, justamente naquilo em que cada um tem de inexprimível, de desencontrado. Um sujeito lírico da poesia impura não recusa a expressão subjetiva, na medida em que a reconhece como a expressão vazio, uma solidão primordial, e, portanto, de uma busca pelo encontro com a solidão dos outros.

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A busca desse sujeito lírico é sabidamente interminável. Na medida em que é inapreensível a alteridade de todas as coisas e o encontro do sujeito lírico com cada uma delas. Enquanto o sujeito lírico da poesia pura faz desta uma utopia de outro mundo, o sujeito lírico da poesia impura faz a utopia deste mundo, a utopia do vínculo, da criação de pontos de encontro entre alteridades irredutíveis. O primeiro, por sua recusa ao mundo banal e, portanto, de uma enunciação lírica que aluda mais claramente à relação sujeito -objeto, realiza um caminho sem volta, pois a poesia pura faz a si mesma uma exigência totalitária: o desaparecimento elocutório do poeta, uma poesia sem sujeito. Por outro lado, a poesia impura permite ao sujeito falhar em sua busca pela alteridade e voltar a si mesmo e ao que julga “seu” quando necessário. No poema Todos me preguntaban, Neruda expressa essa liberdade do sujeito lirico que pode lançar-se na busca pelo vínculo com o outro, mas também voltar ao abrigo dos seus, àquilo que compõe sua comunidade de experiência primordial – o país, a casa, o eu - consolo inadmissível ao sujeito lírico da poesia impura: Todos me preguntaban cuándo parto cuándo me voy. […] Señores, no me voy yo soy de Iquique

soy de las viñas negras de Parral del agua de Temuco de la tierra delgada soy y estoy. (NERUDA, 2009, p. 94)

A liberdade do sujeito lírico nômade é a de sentir-se em casa no trânsito, na vinculação fugaz do encontro e ao mesmo tempo, poder admitir a permanência absoluta nos domínios do eu. Um sujeito que se lança para fora de si, mas que pode retornar. Que deseja vincular-se àquilo que compreende como a alteridade do mundo, mas que não nega sua con-

dição subjetiva e solitária. Um sujeito que se dedica à tarefa interminável de dizer com outras palavras o mesmo mundo e não se entrega ao silêncio como quem perde uma batalha. Uma sujeito lírico que aceita o silêncio, como no poema Regresando, escrito por Neruda pouco antes de sua morte: aceita e agradece à infinitude da poesia, que persiste no mundo além do poema, além da insuficiência de cada sujeito lírico, além da morte do poeta: […]

Porque es obligatorio obedecer al invierno, dejar crecer el viento también dentro de ti, hasta que cae la nieve se unen el hoy y el día, el viento y el pasado, cae el frío, al fin estamos solos al fin nos callaremos. Gracias. (NERUDA, 2009, p.20)

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Romantismo trouxe o sujeito lírico para o primeiro plano da criação poética. É um movimento que se insere na passagem do modo de vida tradicional para o modo de vida moderno, em que as estruturas sociais estabilizadoras, dentre as quais a religião e a monarquia, passam a ser relativizados pela razão iluminista e o poder criador do indivíduo. O poeta romântico é um homem sensível a essa transição e suas contradições. A expressão poética disso é um sujeito-lírico em busca de sua identidade, e a enunciação lírica como lugar de interlocução e comunidade de experiênca (VADÉ, 1996). Entre a poesia romântica e a poesia pura há uma ruptura na intencionalidade da enunciação lírica – busca de comunidade de experiência substituída pela busca da alteridade na linguagem. A verdadeira dicotomia não é, portanto, entre poesia impura e ­poesia

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pura, mas entre esta e a poesia romântica. A poesía sin pureza da América espanhola pode ser vista como uma tentativa de síntese desta dicotomia, porque não nega o lirismo, enquanto busca identitária e necessidade de vínculo, e tampouco a importância da alteridade da linguagem poética. É uma poesia já liberada das imposições programáticas das vanguardas, buscando recuperar o potencial afetivo que se perdeu na exigência de pureza da linguagem poética. Como toda abordagem teórica, a nossa é reducionista. Ao falar sobre sujeitos líricos de cada forma de enunciação lírica, relacionando-as a determinados movimentos literários e sua contextualização histórica, não queremos dizer que elas sejam exclusivas destes períodos. Estamos cientes de que um mesmo poeta pode alternar seus sujeitos-líricos dentre uma variedade incontável de possibilidades enunciativas, que podem ser mais românticas agora e buscar a pureza da linguagem poética em outro momento. A intenção do artigo foi contribuir, ainda que superficialmente, às análises interessadas no sujeito lírico, assim como expandir o escopo daquilo que entendemos por lírica moderna. Não obstante o esforço da teoria, é preciso lembrar que a poesia é como a água – maleável e escorregadia. É possível encaixá-la em muitos recipientes, abrigá-la nas mais diferentes molduras, mas nunca segurá-la com as mãos. Não fica sob nosso domínio mais que um instante, nasce de nosso ventre para ter vida própria, usa nossa voz para dizer algo a mais. Da mão que domina, escorre. Da voz que define, escapa. A única verdade sobre a poesia está no silêncio da experiência: da leitura, da escrita - de mergulhar no oceano de um poema ou beber de sua fonte.

BORDA, Juan Gustavo Cobo(org.). Antología de la Poesía Hispanoamericana. Ciudad de Mexico: Ed. Fondo de Cultura Económica, 1985.

BERARDINELLI, Alfonso. As muitas vozes da poesia moderna. In Da Poesia à Prosa. Cosac ­Naify, 2007. p. 17 – 41.

PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro: do Romantismo à vanguarda. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosacnaify, 2013.

REFERÊNCIAS

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. Paysage et poésie:du romantisme à nos jours. Paris: José Corti, 2005.

ELIOT, Jorge. Antología Crítica de la Nueva Poesía Chilena. Concepción: Publicaciones del Consejo de Investigaciones de la Universidad de Concepción, 1957. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1998.

MAULPOIX, Jean-Michel. Du Lyrisme. Paris: José Corti, 2000. MILLER, Henry. A Hora dos assassinos. Trad. Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 2010. NERUDA, Pablo. El Mar y las campanas (bilíngue). Trad. Olga Savary. Porto Alegre: L&PM: 2009.

. Por una poesía sin pureza. In: NERUDA, Pablo. Caballo verde para la poesía, 1 octubre de 1935. Disponível em:. Último acesso em 24 jun 2014.

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SCHAWARTZMANN, Félix. El mundo poético de Pablo Neruda como voluntad de vínculo. In El sentimiento de lo humano em América. Vol 2, cap. IV, p. 63 – 80. Santiago de Chile: Universitaria, 1953.

VADÉ, Yves. L’emergence du sujet lyrique à l’epoque romantique. In: RABATÉ, Dominique (org.). Figures du sujet lyrique. Paris: Presses Universitaires de France, 1996. p. 11 – 37.

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A DOMINAÇÃO MASCULINA E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM UM CÉU DE ESTRELAS, DE FERNANDO BONASSI1 Graziela Inês Jacoby2

Rosani Úrsula Ketzer Umbach3

RESUMO: Este artigo traz um breve estudo sobre a representação da dominação masculina e da violência contra a mulher na obra “Um céu de estrelas” (1991). Ao abordar a representação da violência contra a mulher, faz-se necessário, primeiramente, refletir a origem da dominação masculina, resultado de uma ideologia que atravessa gerações e fronteiras. Para tanto, buscou-se apoio teórico em autores como Simone de Beauvoir (1970) e Pierre Bourdieu (2012). No referido romance bonassiano, o protagonista ameaça a ex-noiva com uma arma de fogo e a mantém em cárcere privado em virtude do término do relacionamento. Durante o sequestro, a mulher é vítima de várias formas de violência, como violência psicológica e violência sexual, e o homem demonstra juízos de superioridade sobre a ex-noiva. Visando explorar a representação da dominação masculina e da violência contra a mulher na referida obra, a análise literária abordará fundamentalmente a categoria “narrador” e a subcategoria “foco narrativo”. Palavras-chave: Dominação masculina. Violência contra a mulher. Foco Narrativo.

ABSTRACT: This paper brings a brief study on the representation of masculine domination and of violence against women in the work “Um céu de estrelas” (1991). To approach the representation of violence against women, is required, first, think about the origin of masculine domination, which is result of an ideology which crosses generations and borders. To do this approach, we sought theoretical support in authors such as Simone de Beauvoir (1970) and Pierre Bourdieu (2012). In that novel bonassiano, the protagonist threatens the ex-fiancée with a firearm and keeps her on false imprisonment because of the ending of the relationship. During the kidnapping, the woman is the victim of various forms of violence, such as psychological violence and sexual violence, and the man demonstrates superiority in judgments about the ex-fiancee. To approach the representation of masculine domination and of violence against women in this work, the literary analysis fundamentally will approach the category “narrator” and the subcategory “narrative focus”. Keywords: Masculine domination. Violence against women. Narrative focus.

INTRODUÇÃO Ao analisar a representação da violência contra a mulher na literatura, faz-se necessário refletir a origem da diferença simbólica entre os sexos e, portanto, da dominação masculina e da opressão feminina. Homens e mulheres não são diferentes porquanto são valorizadas positivamente suas singularidades, mas porque, sendo o macho o “ser” primeiro, principal e absoluto, coube à mulher adaptar-se ao que lhe foi concedido: ser o segundo, o adjacente e 1 Artigo produzido para a disciplina “Literatura Comparada”, do Programa de Pós-Graduação em Letras – UFSM. Uma versão reduzida deste texto foi apresentada em forma de comunicação no Seminário Internacional em Letras, do Centro Universitário Franciscano, edição de 2014. 2 3

Autor (a) Mestranda em Estudos Literários – PPGL/UFSM.

Coautora. Professora titular da Universidade Federal de Santa Maria.

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o Outro. A diferença biológica entre o corpo feminino e o masculino, antes de ser o agente da superioridade de um sexo sobre outro, foi (e ainda é) utilizada como pretexto para uma diferenciação culturalmente imposta. Para aprofundar essa discussão, empregam-se neste artigo, as obras O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir e A dominação masculina, de Pierre Bourdieu. Ambos os estudos se caracterizam por identificar as origens da dominação de um sexo sobre outro. Enquanto a primeira foi uma importante obra do feminismo e apresenta, à luz da moral existencialista, as origens da relação assimétrica entre homem e mulher e revela novos caminhos para a condição feminina, a segunda, por sua vez, inova ao apresentar o conceito de violência simbólica, compartilhada de forma inconsciente por homens e mulheres, através da qual se perpetua a dominação masculina. Nesse sentido, a primeira parte deste artigo expõe uma revisão das teorias bourdieriana e beauvoiriana, visando compreender a origem da diferença simbólica entre os sexos. Para fins práticos, optou-se por realizar uma abordagem individual de cada obra, explorando os pontos em comum sempre que possível. Na sequencia, com o intuito de verificar a representação da dominação masculina e da violência contra a mulher na obra Um céu de estrelas, a análise literária abordará essencialmente a categoria “narrador” e a subcategoria “foco narrativo”. Ao considerar que “o externo (no caso o social) importa não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha em certo papel na constituição da narrativa, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO. 2010. p. 14), este trabalho visa identificar como os temas de análise se encontram na organização interna da obra.

1. O MITO DO SEGUNDO SEXO

De acordo com Simone de Beauvoir, a categoria do Outro é tão antiga quanto a própria consciência. Mesmo nas mais primitivas so-

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ciedades, encontrar-se-ia uma dualidade: o Um e o Outro. Como forma de ilustração, ela expõe que basta três viajantes reunidos por acaso num

mesmo compartimento para que todos os demais viajantes se tornem “os outros” va-

gamente hostis. Para os habitantes de uma

aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao mesmo lugarejo são “outros”’ e suspeitos” (BEAUVOIR, 1970, p. 11).

Assim, é a partir da dualidade Um e Outro que a diferença entre os sexos ideologicamente imposta começa a ser compreendida. Como observado por Pierre Bourdieu (2012, p. 23), ao usar o homem como medida, a mulher passa a ser seu inverso, seu oposto. Se o homem é o Sujeito; logo, ela é o Outro. Ao questionar a submissão da mulher, Beauvoir (1970) explica que uma categoria consegue dominar totalmente a outra durante um tempo, sendo que muitas vezes a conquista se dá pela diferença numérica: a maioria impõe sua lei à minoria. Nesses casos, um acontecimento histórico subordinou o mais fraco ao mais forte, a exemplo da diáspora judaica, da introdução da escravidão na América e das conquistas coloniais. No entanto, no caso da submissão da mulher, Beauvoir observa que essa lógica não se explica, pois as mulheres não são uma minoria. Ao contrário das outras formas de dominação, “sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu” (1970, p. 13), pois as mulheres sempre estiveram subordinadas ao homem. E porque escapa ao caráter acidental do fato histórico, nesse caso a alteridade aparece como um absoluto. Nesse sentido, a autora afirma que o casal é uma unidade cujas metades se acham ligadas. A mulher, no entanto, é o Outro dentro de uma totalidade cujas duas partes são necessárias uma à outra. Assim sendo, a mulher sempre foi escrava ou vassala do homem;

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eles nunca partilharam o mundo em igualdade de condições. De acordo com a socióloga, mesmo quando os direitos das mulheres são abstratamente reconhecidos,

um longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta. Economicamente, homens e mulheres consti-

tuem como que duas castas; em igualdade

de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos4, maio-

res possibilidades de êxito que suas con-

correntes recém-chegadas. Ocupam na indústria, na política etc., maior número

de lugares e os postos mais importantes (­BEAUVOIR, 1970, p. 14-15)

Diante desse contexto, Beauvoir (1970, p. 15) questiona: “Como tudo isso começou? Por que este mundo sempre pertenceu aos homens e só hoje as coisas começam a mudar? Será um bem essa mudança?” A partir dessa inquietação, ela afirma que o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. É evidente, explica a autora, que “esse problema não teria nenhum sentido se supuséssemos que pesa sobre a mulher um destino fisiológico, psicológico ou econômico”. Assim sendo, seu estudo permite discutir os pontos de vista da biologia, da psicanálise e do materialismo histórico acerca da mulher e objetiva mostrar que a mulher foi definida como o Outro e quais foram as consequências do ponto de vista masculino. Em seu estudo, Beauvoir (1970, p. 23) propõe descrever do ponto de vista das mulheres o mundo que lhes é proposto. Quanto à Biologia, a autora resgata as mais diversas versões para o papel ­respectivo dos 4 Ao citar este fragmento, não posso deixar de mencionar um filme que retrata as inquietações apresentadas por Beauvoir. O filme Made In Dagenham (Reino Unido/2010) é baseado em uma história real e tem como foco a greve ocorrida na fábrica de automóveis da Ford em Dagenham, em 1968, protagonizada por mulheres operárias que lutaram por igualdade salarial e protestaram contra a discriminação sexual.

dois sexos. Desprovidas de fundamento científico, em princípio elas refletiam unicamente mitos sociais. Pensou-se durante muito tempo que o pai não participava na concepção do filho. Contudo, com o advento do patriarcado, o macho reivindicou rapidamente sua posteridade. Concorda-se, a partir de então, em atribuir um papel à mulher na procriação, mas se crê que ela nada faz senão carregar e alimentar a semente viva, pois “o pai é o único criador” (BEAUVOIR, 1970, p. 29). A socióloga busca também na mitologia a origem da relação desigual entre homens e mulheres. A história, segundo ela, denuncia que os homens sempre possuíram todos os poderes; “desde os primeiros tempos do patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos estabeleceram-se contra ela; e assim foi que ela se constituiu concretamente como Outro” (­BEAUVOIR, 1970, p. 179). De acordo com Beauvoir (1970, p. 181), a mulher apresentava-se como o inessencial que nunca retorna ao essencial. Todos os mitos da criação revelam essa convicção preciosa do macho, a exemplo do Gênese, que se perpetuou na civilização ocidental através do cristianismo. Segundo essa lenda, Eva não foi criada ao mesmo tempo que o homem [...] ela foi tirada do flanco do primeiro macho. Seu nascimento não foi autô-

nomo [...]: destinou-a ao homem. Foi para salvar Adão da solidão que ele lha deu, ela

tem no esposo sua origem e seu fim; ela é seu complemento no modo do inessencial. E assim ela surge como uma presa privilegiada. É a natureza elevada à transparência da consciência, uma consciência natu-

ralmente submissa. E é essa maravilhosa

esperança que muitas vezes o homem pôs na mulher. Êle espera realizar-se como ser

possuindo carnalmente um ser e ao mesmo

tempo que consegue confirmar-se em sua liberdade através de uma liberdade dócil (BEAUVOIR, 1970, p. 181).

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Quanto à sexualidade feminina, Beauvoir explica que a hesitação do macho entre o medo e o desejo reflete-se de maneira impressionante nos mitos da virgindade. De acordo com a autora,

e por vezes mais ainda; é através dela que

mente um papel no dever de virtude impos-

sentar; sua beleza, seu encanto, sua inteli-

Motivos racionais desempenham certa-

to à jovem; tal como a castidade da esposa, a inocência da noiva é necessária para que o pai não corra o risco de legar seus bens

a um filho estranho. É, porém, de uma ma-

neira mais imediata que a virgindade da mulher é exigida quando o homem encara

a esposa como sua propriedade pessoal (­BEAUVOIR, 1970, p. 196).

Nessa perspectiva, a Igreja traduz e serve “uma civilização patriarcal na qual é conveniente que a mulher permaneça anexada ao homem. É fazendo-se escrava dócil que ela se torna também uma santa abençoada” (BEAUVOIR, 1970, p. 214). Ergue-se, assim, a imagem perfeita da mulher propícia aos homens: a figura da Virgem Maria, imagem invertida de Eva. De acordo com Beauvoir (1970, p. 215), se Maria se recusa a ser esposa carnalmente possuída é para lhe exaltar mais puramente seu papel de Mãe. Desde que foi escravizada como tal, é primeiramente como mãe que a mulher será querida e respeitada. Contudo, das duas faces da maternidade, o homem não quer mais conhecer senão a sorridente e disponível. No entendimento de Beauvoir (1970), privada de suas “armas mágicas” de sedução pelos ritos nupciais, econômica e socialmente subordinada ao marido, a “boa esposa” é para o homem o tesouro mais precioso. Pertence-lhe tão profundamente que participa da mesma essência: usa seu nome, tem os mesmos deuses e é responsável por ela. Enquanto isso, ele orgulha-se de sua mulher como de sua casa,

suas terras, seus rebanhos, suas riquezas,

manifesta sua força aos olhos do mundo; ela é sua medida e sua parte na terra. [...]

Um muçulmano é tanto mais considerado quanto maior número de mulheres flores-

centes possui. Na sociedade burguesa, um dos papéis reservados à mulher é repregência, sua elegância são os sinais exterio-

res da fortuna do marido, ao mesmo título

que a carroceria de seu automóvel. Rico, ele a cobre de peles e joias. Mais pobre, elogia-

lhe as qualidades morais e os talentos de dona de casa [...] (BEAUVOIR, 1970, p. 219).

Tendo escravizado a mulher, no entanto, o homem despojou-a do que lhe tornava a posse desejável: Integrada na família e na sociedade, a

magia da mulher dissipa-se em vez de se

transfigurar; reduzida à condição de serva, ela não é mais apresa indomada em que se

encarnavam todos os tesouros da Natureza. Desde o aparecimento do amor cortês, é lu-

gar-comum dizer que o casamento mata o amor. Demasiado desprezada ou demasiado respeitada, por demais quotidiana, a es-

posa não é mais um objeto erótico.[...] Por

ter desejado uma jovem viçosa, o homem deve sustentar toda sua vida uma gorda matrona, uma velha encarquilhada; a joia

delicada destinada a embelezar sua existência torna-se fardo odioso (­BEAUVOIR, 1970, p. 232).

Nessa perspectiva, ocorrendo a infidelidade, o marido, orgulhoso de sua amante, buscará várias justificativas para sua atitude: em todas elas a esposa é, de alguma forma, a culpada pela atitude do marido.

2. A DOMINAÇÃO MASCULINA

O sociólogo francês Pierre Bourdieu inicia seu estudo destacando que sempre lhe causou espanto ver o “paradoxo da dóxa”: o ­respeito a

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“uma ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e suas impunidades, seus privilégios e suas injustiças”. Assim também, surpreende-lhe que “condições de existência das mais intoleráveis possam permanentemente ser vistas como aceitáveis ou até mesmo como naturais”. Segundo ele, importa restituir à dóxa seu caráter paradoxal e demonstrar os processos responsáveis por transformar a história em natureza, o “arbitrário cultural em natural” (BOURDIEU, 2012, p. 08). No entendimento de Bourdieu, a dominação masculina na estrutura familiar é ofuscada por uma espécie de magia. A subordinação da mulher aparece ora em forma de medo e insegurança, ora em forma de respeito e paixão. Esta última está bastante naturalizada na sociedade, como se fosse “normal”. Na maioria das vezes, a violência está encoberta por uma aparente “suavidade”, conforme propõe o autor: sempre vi na dominação masculina e no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência [...] (da) submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de

violência simbólica, violência suave, insen-

sível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias [...] simbólicas da

comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do re-

conhecimento, ou, em última instância, do sentimento (BOURDIEU, 2012, p. 07).

De acordo com o sociólogo, faz-se indispensável quebrar a relação de enganosa familiaridade que nos liga à nossa própria tradição. Para ele,

Aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo trabalho coletivo de

socialização do biológico e de biologiza-

ção do social produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para inverter a re-

lação entre causas e os efeitos e fazer

ver uma ­construção social naturalizada

(os “gêneros” como habitus sexuado) [...] (­BOURDIEU, 2012, p. 09)

A força da ordem masculina, segundo Bourdieu (2012, p. 09), evidencia-se “no fato de que ela dispensa justificação; a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se anunciar em discursos que visem legitimá-la”. Simone de Beauvoir corrobora com esse pensamento quando afirma que “Um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade. [...] Um homem não começa nunca por se apresentar como um indivíduo de determinado sexo: que seja homem é natural” (BEAUVOIR, 1970, p. 09). Para Bourdieu (2012, p. 23), a definição social dos órgãos sexuais, além de ser um simples registro de propriedades naturais, é um produto de uma construção efetuada através da acentuação de certas diferenças. Segundo ele, a representação da vagina na Idade Média consistia em um falo invertido, impondo o princípio masculino como medida de todas as coisas. Nessa construção, o corpo feminino sofreria se uma ausência - a ausência do falo -, tornando-a consideravelmente inferior num mundo falocêntrico.5 A origem da carga negativa imposta à mulher é observada (também) por Simone de Beauvoir no discurso da Gênese, segundo o qual Eva teria sido criada a partir de uma costela de Adão. Ou seja, “A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele” (BEAUVOIR, 1970, p. 10) De acordo com Bourdieu (2012, p. 111), separadas dos homens por um coeficiente simbólico negativo6, as mulheres tem em comum o fato de, indiferentemente de sua posição 5 Segundo Bourdieu (2012, p. 32), sob o ponto de vista que liga a sexualidade ao poder, para o homem a pior humilhação consiste em ser transformado em mulher (ou visto como uma). Esse princípio é internalizado rapidamente pelas crianças, que constantemente utilizam apelidos como “mulherzinha” ou “menininha” para ofender algum colega do sexo masculino. 6

Grifo do autor.

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no espaço social, sofrerem pelo estigma que afeta tudo que elas fazem. Elas estão, no entanto, separadas umas das outras7 por diferenças econômicas e culturais que afetam, também, “sua maneira objetiva e subjetiva de sentir e vivenciar a dominação masculina – sem com isso anular tudo que está ligado à diminuição do capital simbólico trazido pela feminilidade” (BOURDIEU, 2012, p. 112). Unidas pela inferioridade a que foram subjugadas, as mulheres sofrem pelo seu estigma independente do meio de atuação – no trabalho de casa ou fora dela. Embora reconheça a distância entre os espaços, Bourdieu exemplifica fazendo referência a um elemento comum entre uma mulher que ocupa um cargo de direção em uma grande empresa e àquela que trabalha em uma metalúrgica: ambas sofrerão pelo simples fato se serem do sexo feminino. A executiva recorrerá às sessões de massagem para ter forças para enfrentar a tensão ligada ao exercício do poder sobre os homens. A operária buscará na solidariedade das companheiras um conforto “contra as provocações ligadas ao trabalho em um meio masculino, como o assédio sexual ou, simplesmente, a degradação da própria imagem e da autoestima infringidas pela feiura e sujeira impostas pelas condições de trabalho” (BOURDIEU, 2012, p. 111-112).8 O trabalho doméstico, por sua vez, passa despercebido (e até mesmo malvisto) na maior parte das vezes. De acordo com Bourdieu, O fato de que o trabalho doméstico da mulher não tenha uma retribuição em dinheiro contribui realmente para desvalorizá-lo,

inclusive a seus próprios olhos, como se este tempo, não tendo valor de mercado, 7

Grifo do autor.

8 Importa mencionar outra obra cinematográfica que retrata a situação enfrentada pelas mulheres no ambiente de trabalho. Trata-se de Terra fria (EUA/2005), baseado na história de Lois Jensen, que decidiu processar a mineradora Eveleth Taconite após sofrer assédio sexual e não obter apoio dos dirigentes. Depois de convencer outras mulheres que trabalhavam na empresa a aderirem à ação coletiva, a empresa teve que pagar às trabalhadoras uma indenização de US$ 3,5 milhões.

fosse sem importância e pudesse ser dado sem contrapartida e sem limites, primeiro aos membros da família, e sobretudo às crianças, mas também externamente, em

tarefas de beneficência [...] (BOURDIEU, 2012, p. 117).

O sociólogo complementa a questão da dominação masculina através da construção sexual dos corpos afirmando que a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação. A relação está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo. Esse princípio cria, expressa e dirige o desejo: “[...] o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como o desejo de dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, em ultima instância, como o reconhecimento erotizado da dominação” (BOURDIEU, 2012, p. 117). Sobre a incorporação social da dominação, Bourdieu afirma que a definição social do corpo, em especial dos órgãos sexuais, é produto de um trabalho social de construção. Não é o falo - ou a falta dele - que é fundamento da visão de mundo androcêntrica; mas é a visão de mundo que institui o falo como símbolo da virilidade, que institui a diferença dos corpos biológicos em fundamentos objetivos da diferença entre os sexos. Nesse sentido, o sociólogo explica que “A força particular da sociodiceia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada” (BOURDIEU, 2012, p. 32-33).9 Bourdieu trouxe grandes contribuições aos estudos sobre a dominação masculina ao expor seu conceito de violência simbólica. A ordem social funciona como uma imensa 9

Grifos do autor.

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máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante restrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos [...] (BOURDIEU, 2012, p. 18). A violência simbólica, segundo o sociólogo, institui-se por meio da adesão que o dominado não pode deixar de dar ao dominador (logo, à dominação), uma vez que os esquemas que ele mobiliza para se perceber e se avaliar ou para perceber e avaliar o dominador são o produto da incorporação de classificações, assim naturalizadas, das quais seu ser social é o produto (BOURDIEU, 2012, p. 47). De acordo com o autor, o princípio da inferioridade e da exclusão da mulher não é mais do que a assimetria (sujeito/objeto) instaurada entre homem e mulher no terreno das trocas simbólicas, cujo dispositivo central é o mercado matrimonial. Nessa relação de troca de domínio do pai para o marido, as mulheres são vistas como objeto “cuja função é contribuir para a perpetuação ou o aumento do capital simbólico em poder dos homens” (BOURDIEU, 2012, p. 46). No entendimento de Bourdieu (2012 p. 70), a masculinização do corpo masculino e a feminilização do corpo feminino são tarefas socialmente naturalizadas.10 Desta forma, opõe-se, inclusive, os espaços a serem frequentados por homens e mulheres. Enquanto os espaços públicos, como a rua e os bares, são essencialmente masculinos, o espaço feminino é o mundo privado, ou seja, a casa (e seus afazeres domésticos) (­BOURDIEU, 2012, p. 72). 10 Vale ressaltar que o “adestramento” do corpo humano pode começar (assim como normalmente começa) antes mesmo do seu nascimento. Ao saber o sexo do bebê, a maioria dos pais já escolhe a cor da decoração do quarto e das roupas (azul para o sexo masculino, rosa para o sexo feminino), procurando isolá-lo de tudo que remete ao sexo oposto. Assim também, costuma-se separar as crianças nas brincadeiras: enquanto os meninos usufruem de maior liberdade, podendo correr e se sujar, as brincadeiras das meninas devem ocorrer no espaço interno da casa, evitando-se (claro) correr, pular e gritar. Ao aparecer suja e ofegante diante dos adultos, a menina logo ouvirá que “está parecendo um menino”, pois se acredita que o corpo feminino deve se manter disciplinado, discreto, dócil e frágil.

Somando-se a isso, Bourdieu (2012, p. 79) afirma que o “ser feminino” é “ser-percebido”. Nessa linha, ele explica que a dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, tem por efeito colocá-las em constante estado de insegurança corporal, de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetosreceptivos, atraentes, disponíveis. Delas se espe-

ra que sejam “femininas”, isto é sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. E a

pretensa “feminilidade” muitas vezes não

é mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas masculinas, reais ou

supostas, principalmente em termos de engrandecimento do ego. Em consequência, a dependência em relação aos outros (e não

só aos homens) tende a se tornar constitutiva do seu ser (BOURDIEU, 2012, p. 82).

De acordo com o sociólogo, enquanto que para os homens a aparência e as roupas tendem a “apagar o corpo em proveito de signos sociais de posição social (roupas, ornamentos, uniformes etc.)”, nas mulheres, os trajes tendem a exaltá-lo, fazendo dele fazer uma linguagem de sedução (BOURDIEU, 2012, p. 118-119). Assim, socialmente vistas como objetos estéticos, observa-se que a preocupação com a aparência é muito maior para a mulher. Assim, permanentemente sob o olhar dos outros, as mulheres se veem obrigadas a experimentar constantemente a distância entre o corpo real e o corpo ideal, do qual buscam incessantemente se aproximar. Estando orientadas em sua prática pela avaliação antecipada do apreço que sua aparência corporal poderá receber (dos outros), estão propensas à autodepreciarão e à incorporação do julgamento social sob forma de insatisfação do próprio corpo ou de timidez (BOURDIEU, 2012, p. 83).

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Examinando as perspectivas de permanências e mudanças da dominação masculina, Bourdieu (2012, p. 102-103) explica que a compreensão das mudanças sobrevindas na condição das mulheres e nas relações entre os sexos não pode ser esperada a não ser de uma análise das transformações dos agentes (especialmente as instituições) encarregadas de garantir a perpetuação da ordem dos gêneros. Nesse sentido, o autor afirma que até recentemente, esse trabalho de reprodução ideológica esteve garantido pela Família, Igreja e a Escola, instâncias que tinham em comum o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes. Para o sociólogo, fica principalmente a cargo da família a reprodução da dominação masculina e a determinação da experiência da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão. Enquanto isso, a Igreja marcada pelo anti-feminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas

femininas à decência, sobretudo em maté-

ria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mu-

lheres e da feminilidade, ela inculca (ou inculcava) explicitamente uma moral familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo

dogma da inata inferioridade das mulhe-

res. Ela age, além disso, de maneira mais

indireta, sobre as estruturas históricas do inconsciente, por meio sobretudo da sim-

bólica dos textos sagrados (BOURDIEU, 2012, p. 103)

A Escola, por sua vez, continua (mesmo sem a tutela da Igreja) a difundir os pressupostos da sociedade patriarcal, baseada na homologia entre a relação homem/mulher e a relação adulto/criança (BOURDIEU, 2012, p. 104). No entanto, é a própria escola, segundo Bourdieu “um dos princípios mais decisivos da mudança nas relações entre os sexos, devido às contradições que nela ­ocorrem e

às que ela própria introduz” (BOURDIEU, 2012, p. 105). Concluindo o levantamento dos fatores institucionais da reprodução da divisão dos gêneros, Bourdieu cita o Estado, o qual

veio ratificar e reforçar as prescrições e proscrições do patriarcado privado com as de um patriarcado público, inscrito em todas as instituições encarregadas de gerir e regulamentar a existência cotidiana

da unidade doméstica. Sem falar no caso extremo dos estados paternalistas e auto-

ritários [...], realizações acabadas da visão ultraconservadora que faz da família pa-

triarcal o princípio e o modelo da ordem social como ordem moral, fundamentada

na preeminência absoluta dos homens em

relação às mulheres, dos adultos sobre as

crianças e na identificação da moralidade

com a força, da coragem com o domínio

do corpo, lugar de tentações e desejos [...] (BOURDIEU, 2012, p. 105).

3. AS MARCAS DA DOMINAÇÃO MASCULINA E DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Já nas primeiras leituras, observa-se que não existe uma definição consensual ou incontestável para a palavra “violência”, pois o termo envolve grande complexidade de fatos para se encontrar uma definição final. Michaud (1989) pondera que a qualificação da violência depende ainda de normas sociais que variam de acordo com o âmbito em questão. Ou seja, a violência é a transgressão a uma ordem normativa definida, sendo os limites acordados culturalmente (MICHAUD, 1989, p. 07). Atos de violência podem ser percebidos em vários aspectos da vida e se manifestam cotidianamente como violência econômica, política, ideológica, religiosa, familiar, racial, entre outras. Porém, muitas das formas de violência são exercidas de forma dissimulada, por isso dificilmente são reconhecidas

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como tais. Observa-se, entretanto, que os atos de violência física encontram sua origem nessas outras formas de violência: elas são o agente que acaba impulsionando respostas de violência física. O romance Um céu de estrelas apresenta um enredo que envolve a violência do protagonista contra a ex-noiva em virtude do término do relacionamento. Nesse sentido, as observações teóricas sobre a violência contribuem para esse estudo, que visa exemplificar a representação da violência contra a mulher na referida obra. A violência contra a mulher cruza os tempos e as fronteiras, atingindo de maneira semelhante países cultural e geograficamente distintos. Porém, apesar de ser um fenômeno antigo, ele só se tornou um problema social recentemente, com o avanço dos movimentos feministas. Segundo as sociólogas Cecília Santos e Wânia Izumino, a bibliografia sobre violência contra as mulheres tem suas origens no início dos anos 80 e são frutos das mudanças sociais e políticas no país, acompanhando o crescimento dos movimentos feministas e o processo de redemocratização. Objetiva-se, nessa época, dar visibilidade à violência contra as mulheres e combatê-la mediante intervenções sociais, psicológicas e jurídicas (SANTOS; IZUMINO, 2005, p. 01). Conforme a Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, considera-se violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão ou sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano moral ou patrimonial, que ocorra no âmbito da unidade doméstica, em relações pessoais por parentesco ou laços afetivos, inclusive nas relações de namoro.11 11 A bibliografia sobre a violência contra as mulheres apresenta diversas classificações para a violência exercida, principalmente, pelos homens contra as mulheres: Violência conjugal, Violência doméstica, Violência de gênero, Violência contra a mulher, Violência familiar. Todas essas classificações possuem as suas especificidades, e seus conceitos tendem a variar entre um pesquisador e outro. Importa ressaltar que, como este artigo não objetiva explicar a diferença entre as classificações, optou-se pela nomenclatura “violência contra a mulher”, embora se reconheça que outros termos também poderiam ser utilizados.

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No romance, Um céu de estrelas a história é narrada por um narrador heterodigético. Quanto ao foco narrativo, ele se concentra na perspectiva do protagonista da história, ou seja, o foco narrativo se restringe à descrição dos pensamentos e sentimentos do sequestrador, configurando a tipologia de foco narrativo “visão com”, conforme a classificação de Jean Pouillon. O teórico dedica estudo sobre o foco narrativo e explica que na “visão com” o personagem principal ganha destaque, pois a partir dele se conhece os demais personagens, limitando a história a sua maneira de vê-la. Dessa forma, a descrição das demais personagens ocorre de forma pessoal e parcial gerando a impressão de incerteza, pois não se sabe se elas estão deformadas através dessa descrição, e se o que transparece de seu caráter é realmente essencial ou não: “Tudo isto fica na dependência da natureza d[o] personagem central” (POUILLON, 1974, p. 54-55). Nesse sentido, Pouillon afirma que esse tipo de descrição não caracteriza as demais personagens como elas realmente são, sendo apenas a compreensão que narrador possui em relação ao personagem. Assim também, a visão que se forma do personagem que narra é discutível, podendo ser bem ou mal conhecida, pois sua visão é interna, limitada e parcial. Limitada pela compreensão irregular, a noção que há do protagonista, a partir do narrador, pode discrepar se outra personagem contasse a mesma história e descrevesse o mesmo ser ficcional (POUILLON, 1974, p. 47). Corroborando com esse pensamento, Alós explica que No texto narrativo, a enunciação de valores,

juízos e percepções acerca do mundo social (seja ele interno ou externo à narrativa) está atrelada à questão da configuração do

narrador. Logo, é a partir da voz narrativa

que se pode instaurar uma análise do locus de enunciação em questão. As articulações

entre narração e focalização são cruciais

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para que se compreenda a delimitação de

pode se tranquilizar ao perceber que ela já

de um determinado interesse - na narrativa

garganta; até foi difícil dizer:

um espaço de enunciação - marcado por certa subjetividade, isto é, pela construção literária.

12

A diferença entre narrador e focalização baseia-se em duas questões: quem fala e quem vê. O narrador é a voz responsável pela narrativa, enquanto o focalizador é o ponto de vista utilizado por quem vê. Apesar de a narrativa ser centrada na terceira pessoa, configurando suposta objetividade e fidelidade, a focalização influencia diretamente na percepção que o narrador tem dos fatos. De acordo com Mieke Bal,

Lá percepción depende de tantos factores,

que esforzarse em ser objetivos carece de sentido. Por mencionar sólo unos pocos factores: la própia posición respecto del objeto percebido, el ângulo de caída de la

luz, la distancia, el conocimiento prévio,

la actitude psicológica hcia el objeto; todo ello y más influye em el cuadro que nos for-

mamos y que passamos a otros (BAL, 1999, p. 118).

Nesse sentido, na obra aqui estudada, o leitor vê a história sob os olhos de um narrador que relata os fatos sob a ótica do próprio protagonista e sequestrador, como pode ser compreendido nas passagens abaixo. Dava o que pensar, dava o que pensar...No fim, a mulher sentou-se numa das poltro-

nas. Bem longe dele, embora ela talvez não quisesse que parecesse assim (BONASSI, 1991, p. 14).13

A mulher desapareceu no corredor, mas o homem ficou atento. Não relaxou nem quando ouviu abrir e fechar a geladeira. Só 12 ALÓS, 2007, p. 69 13 Grifos nossos.

voltava com uma Skol. A mulher estendeu

a bebida e ele sentiu um ódio se instalar na - Não tem um copo é?

Ela sabia que ele não punha a boca nessas merdas que rasgavam o lábio da gente, ela sabia... (BONASSI, 1991, p. 14).

Através dos destaques em itálico na citação acima, observam-se as impressões que o sequestrador tem da personagem feminina. Essas passagens se referem à perspectiva do protagonista, uma vez que esse ocupa o papel de focalizador do narrador. Na primeira frase destacada, o protagonista admite não ter certeza da intenção da mulher ao sentarse longe dele, conforme demonstra o uso do advérbio “talvez”, que indica dúvida, incerteza. Já no segundo fragmento, observa-se na passagem em destaque que não se trata de um comentário de um narrador onisciente que tudo sabe; essa reflexão ilustrada pelo narrador pertence ao seu focalizador. Assim, observa-se que a narração contempla o ponto de vista do sequestrador, como se fosse um olhar “participante”. Desse modo, leitor e narrador acompanham o protagonista a todo o momento, quase ombro a ombro com ele, como se fosse um terceiro olho dentro da casa. Nesse estudo, parte-se da premissa de que a escolha pela onisciência focada somente na perspectiva masculina é um dos elementos estruturais mais importantes do texto, pois sugere o desejo de dominação da personagem masculina sobre a personagem feminina, principal causa da violência contra a mulher. Além de ameaçar a mulher com uma arma de fogo, mantendo-a refém em sua própria casa, juntamente com a mãe e o irmão, o protagonista violenta sexualmente a ex-noiva no momento em que ele a obriga a praticar sexo oral com ele, conforme ilustra a passagem:

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O homem parou diante da mulher, pés afastados. - Ei...

Abriu a braguilha, disse: - Pega...

A mulher continuou curvada e começou a esfregar uma palma da mão contra a outra. - Pega.

Ele não estava com a melhor das boas vontades, como não era difícil de notar. Pu-

xou-a pelos cabelos, desentortando-a no assento. Ergueu-a pelo queixo e aguardou

que o olhasse... Mas ia demorar... Chacoalhou-a.

- Você não está me ouvindo... Aproximou-se.

A mulher foi levantando o braço e, se não estava morrendo de vontade, também não parecia que não tivesse nenhuma. Era uma

sutileza que o homem percebeu quando concluiu:

-... e chupe.[...]

Mas quando o homem olhou para baixo no-

vamente, não foi o lago infinito que viu; só percebeu a mulher procurando um lugar

onde pudesse cuspir. Quando ela tentou apanhar a flanela, o homem ficou puto e tapou-lhe a boca, - Engole.

Com a metade do rosto coberto pela mão do homem ela engoliu com um barulho e olhares de pedinte. [...]

- Um cara não deve se comportar como um

cachorrinho com a coisa que carrega no meio das pernas... (BONASSI, 1991, p. 119-121).

Neste fragmento, tem-se, inicialmente, a passagem em que o narrador destaca que o homem “chacoalhou” a cabeça da mulher na tentativa de convencê-la a praticar o ato sexual. Além da violência psicológica de todo o sequestro pelo qual a personagem feminina sofre, o homem usa a agressão física no intuito de intimidá-la. Apesar de ficar claro que o ato sexual não era consentido pela mulher, no segun-

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do ­destaque do fragmento, observa-se que o narrador dá margem para dúvidas sobre o interesse – ou não – da personagem feminina em praticar sexo oral no homem. Ao comentar que ela não demonstrava que não estivesse com vontade de fazer aquilo, sua percepção da cena vai além do campo da visualização direta (narrador-espaço) e se concentra no focalizador. Ou seja, ele comenta a opinião que o personagem focalizador tem da situação. Ao apostilar que a reação da mulher foi recebida “sutilmente” pelo protagonista, utilizando-se de um eufemismo, sugere-se que o homem estava completamente consciente que aquele ato sexual não era consentido. Este fragmento ilustra a visão parcial e subjetiva dos fatos através da onisciência exclusiva no protagonista. A percepção do ato sexual percebida pelo narrador através da consciência do personagem masculino certamente não é a mesma da vítima. Se a personagem feminina fosse o focalizador, a percepção que o narrador teria da mesma cena mudaria consideravelmente, e a narração daria mais ênfase na brutalidade à qual a mulher estava sendo submetida. Por fim, na terceira e última passagem do fragmento anterior, observa-se, através da voz do personagem (discurso direto) que o homem usou seu falo para provar sua masculinidade. Dominando a mulher através do seu órgão sexual, ele pretendia mostrar sua superioridade diante dela. Nessa perspectiva, para Bourdieu, a virilidade, em seu aspecto ético mesmo, como princípio da conservação e do aumento da honra, mantém-se indissociável, implicitamente, da virilidade física, através, principalmente, das provas de potência sexual que são esperadas do homem que seja realmente um homem. Assim sendo, Uma sociologia política do alto sexual faria

ver que, como sempre se dá em uma relação de dominação, as práticas e as representa-

ções dos dois sexos não são, de maneira

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medo “viril” de ser excluído do mundo dos

e leitor, que parecem dividir os mesmos sentimentos. Parece, porém, que normalmente o leitor não se dá conta do ato solidário que se constitui a leitura e dessa atitude de cumplicidade com o discurso apresentado no campo da ficção. A partir desse efeito, temse o início de um processo sugestivo em que o leitor cria empatia com o protagonista, de forma a não abandonar esta posição mesmo nas cenas de violência, tornando-o quase cúmplice da crueldade. Com esse recurso, sugere-se o princípio da banalização da violência, reforçado pelo aspecto cômico/irônico com o qual o narrador expõe os fatos, conforme ilustra o seguinte fragmento, narrado logo após o homem tirar do paletó a arma e a apontá-la para a mulher.

ros para com o próprio sofrimento e sobre-

labo nos mais variados tons, ainda não sa-

alguma, simétricas. [...] também porque o

ato sexual em si é concebido pelos homens

como forma de dominação, de apropriação de “posse” (BOURDIEU, 2012, p. 20).

Assim sendo, não deveria espantar que as angústias e os medos de se perder o reconhecimento da virilidade sejam fontes de sofrimento masculino. Por conseguinte, o que chamamos de “coragem” muitas vezes tem suas raízes em uma forma de covardia: ...basta lembrar todas as situações

em que, para lograr atos como matar, torturar ou violentar, a vontade de dominação,

de exploração ou de opressão baseou-se no

“homens” sem fraquezas, dos que são por vezes chamados de “duros” porque são du-

tudo para com o sofrimento dos outros [...] (BOURDIEU, 2012, p. 66).

Pode-se, então, visualizar um esquema muito claro que preside esse jogo a partir do narrador em Um céu de estrelas. Através do discurso em terceira pessoa, há a tentativa de disfarçar a parcialidade das opiniões e legitimar as impressões da estória que são somente do sequestrador e não de um narrador onisciente - que tudo sabe e tudo vê -, porquanto sua onisciência é seletiva, restrita àquele personagem. Em Um céu de estrelas a proximidade do ato de narrar com os acontecimentos narrados se faz de modo tão instantâneo quanto se revelava uma “fotografia”. A pesquisadora Ligia Leite, citando Friedman, explica que na narração em “cena” os fatos aparecem no momento em que acontecem, sem haver divergência temporal entre a cena e o discurso (LEITE, 1987, p. 26). O efeito de proximidade se faz pela quantidade de elementos descritivos utilizados pelo narrador, privilegiando “o instante da ação”, o que gera uma impressão de cumplicidade entre narrador, ­personagem

O retardado grunhia um mesmo monossí-

bia se era trágico ou festa; saltitava. Os dois, velha e mongoloide, tinham os braços ergui-

dos acima da cabeça, dançando uma dança diferente, sem música. Era um espetáculo horrível e divertido, como trem fantasma (BONASSI, 1991, p. 79).

No fragmento acima, o narrador descreve a reação do irmão e da mãe da ex-noiva. Portador de Síndrome de Down, o irmão é chamado como “retardado” e a surpresa e medo de ambos é ridicularizado pelo narrador (pela perspectiva do sequestrador). Através desses recursos, o narrador expõe o sequestro, mas deixa o leitor em dúvida sobre os atos do protagonista e de sua consciência. Em alguns momentos, parece que o homem não tem noção da gravidade do ato que estava cometendo. Compreende-se, assim, que esses recursos (narração onisciente seletiva e ironia) são utilizados pelo narrador para gerar dúvida no leitor, que em um primeiro momento pode até simpatizar-se com o criminoso através da narrativa, sendo levado a diminuir a importância do crime. Porém, no decorrer da leitura, o leitor percebe a ­sedução ­presente

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no jogo de linguagem e passa a questionar aquele ponto de vista, pois independente das motivações, intenções e consequências do sequestro, o ato foi praticado e configura-se violência doméstica, por envolver membros de um núcleo familiar que dividiam a mesma casa, e violência contra a mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se considerar que na trama em estudo há o relato de um sequestro como vingança pelo fim de uma relação amorosa, deve-se lembrar de que a representação desse crime traz à luz um problema social bastante discutido atualmente: a violência contra a mulher. Ao observar que o narrador dá voz “à moda de primeira pessoa” ao protagonista, anulando a perspectiva feminina da trama, sugere-se o desejo de dominação do homem sobre a mulher, que também é o fato propulsor do sequestro na narrativa, pois o protagonista não admite o final do noivado. Na trama em estudo, o sequestrador mantém três pessoas em cárcere privado durante horas e obrigada a ex-noiva a ter relações sexuais com ele. Porém, observa-se que, sob a perspectiva do próprio sequestrador, o crime é registrado sem a devida importância, como se fosse um ato banal, uma brincadeira sem consequências, uma demonstração de virilidade permitida. Esta aparente falta de seriedade na ação do sequestrador esconde, na verdade, um grave ato de violência. Com esse estudo pretendeu-se analisar a importância do narrador e do foco narrativo no romance Um céu de estrelas para a reflexão sobre a dominação masculina, conforme proposto por Bourdieu, e da violência contra a mulher. A ponderação ocorre porque a visão que se tem dos fatos narrados é perpassada sob a ótica subjetiva e parcial daquele que protagoniza os acontecimentos. Observou-se que, por causa da onisciência seletiva, o discurso do narrador pode omitir fatos ou deformá-los através de sua percepção. Assim também, os demais personagens ganham

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­ elineamento a partir da relação que posd suem com o protagonista e, por conseguinte, o perfil de cada um deles é traçado pela sua visão subjetiva.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FARRA, Maria Lucia Dal. O narrador ensimesmado: o foco narrativo em Vergílio Ferreira. São Paulo: Editora Ática, 1978.

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LEITE, Ligia Chiappini Moraes.  O foco narrativo: ou a polêmica em torno da ilusão. São Paulo: Ática, 1987. MICHAUD, Yves.  A violência.  São Paulo: Ática, 1989.

POUILLON, Jean. O tempo no romance. São Paulo: Cultrix, 1974. Tradução de Heloysa de Lima Dantas.

SANTOS, Cecília Macdowell; IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra as mulheres e violência de gênero: notas sobre estudos feministas no Brasil. Estudios Interdisciplinarios de América Latina y El Caribe, Tel Aviv, v. 1, n. 16, jun. 2005. Disponível em . Acesso em: 14 Jan. 2014.

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A RELAÇÃO DO “EU” E DO “OUTRO” EM DOIS CONTOS ­LATINO-AMERICANOS Juliana Prestes de Oliveira1

RESUMO: este trabalho propõe uma análise comparativa dos contos “Orientação dos gatos” (2014), do escritor argentino Julio Cortázar, e “Perfil de um ser eleito” (1984), da escritora brasileira Clarice Lispector. A partir da leitura desses textos, será analisada a maneira através da qual os narradores constroem suas identidades por meio da relação com os “outros” e consigo mesmo. Com base nas experiências e reflexões dos personagens dos contos, é possível relacionar os seus sentimentos e suas angústias, e fazer uma conexão com a história do povo latino-americano. À medida que os personagens vão se descobrindo, é possível compreender como se deu a formação de suas respectivas nações, e como eles se sentem diante daqueles que são de outra cultura, principalmente dos seus colonizadores de origem europeia. A busca pela liberdade e pela compreensão de quem eles são está presente nas entrelinhas dos textos, e leva o leitor a refletir sobre o modo como os latino-americanos são vistos e rotulados pelos países do suposto ‘Primeiro Mundo’. Com base na comparação desses contos, tentar-se-á traçar características comuns e distintas existentes entre a Argentina e o Brasil. Palavras-chave: Identidade. “Orientação dos gatos”. “O perfil de um ser eleito”. Liberdade. ABSTRACT: This paper proposes a comparative analysis of the short stories “Orientação dosgatos” (2014), by Argentine writer Julio Cortázar, and “Perfie de um ser eleito” (1984), by Brazilian writer Clarice Lispector. From reading these texts, we will analyze the way in which the writers construct their identities through the relationship with the “other” and to “himself”. Based on the experiences and reflections of the characters of the short stories it is possible to relate their feelings and anxieties, and make a connection with the history of the Latin American people. As the characters will discover it is possible to understand how was the formation of their respective nations, and how they feel before those who are of another culture, especially its settlers of European origin. The quest for freedom and understanding of who they are is present between the lines of text, and leads the reader to reflect on how Latin Americans are perceived and labeled by the countries of supposed ‘First World’. Based on comparison of these tales, will try to draw-up existing between Argentina and Brazil common and distinct features. Keywords: Identity. “Orientação dos gatos”. “O perfil de um ser eleito”. Freedom.

INTRODUÇÃO Neste trabalho, apresentaremos um breve estudo sobre os contos “Perfil de um ser eleito” (1984), da escritora brasileira Clarice Lispector, e “Orientação dos gatos” (2014), do escritor argentino Julio Cortázar, buscando perceber como os autores utilizam a linguagem para construir seus personagens, para mostrar suas reflexões sobre a construção da identidade dos sujeitos, e para fazer a crítica social acerca do modo como devemos nos comportar diante da sociedade. 1

Juliana Prestes de Oliveira é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria.

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Além disso, a comparação ente esses dois contos permite que vejamos como está se constituindo a literatura no Brasil e na Argentina na contemporaneidade, e quais aspectos distintos e em comum esses dois contos possuem. Ao compará-los, também percebemos como os autores trazem em seus textos o que estava acontecendo, bem como, o modo como se deram à construção de ambas as nações. Através dos anseios e reflexões dos personagens conseguimos traçar a história do povo Latino-americano, e como as influências dos povos colonizadores ainda estão presentes em cada país. Ao longo da narrativa, também podemos perceber como a relação com os “outros” pode influenciar na construção do “eu” da personagem. A partir disso, podemos relacionar o conto de Clarice Lisector e o de Julio Cortázar com a teoria de Stuart Hall (2005) sobre a construção da identidade do ser humano no mundo contemporâneo, e também com a teoria de Linda Hutcheon (1991) no que diz respeito à relação entre realidade e ficção. Abordaremos ainda, tema da alteridade, baseando-nos em estudos do sociólogo Eric Landowiski (2002), pois o que mais contribui para a desestabilização, e reflexão dos protagonistas foi o relacionamento deles com as pessoas com quem conviviam diariamente, e que estavam ligadas diretamente com suas vidas.

RELAÇÕES ENTRE “PERFIL DE UM SER ELEITO” E “ORIENTAÇÃO DOS GATOS”

O conto “Perfil de um ser eleito”, da escritora brasileira Clarice Lispector, foi publicado em 19712. Conta a história de um sujeito que durante sua vida elegia as coisas e se elegia, misturando o que ele achava que era e o que ele realmente era. Como uma forma de se expor e se manifestar. A partir disso, passou a se dar por meio da pintura, e aos poucos os 2 Para a elaboração desse trabalho foi utilizado a edição publicada em 1984, no livro de contos de Clarice Lispector Para não esquece.

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demais começaram a vê-lo como uma estátua, um retrato e amar o que estavam vendo. Porém, o fato de estar sendo amado, levou-o a pensar que o que estava sendo amando era outro ser e não ele, e através disso, ele entra em conflito consigo mesmo, e começa a repensar tudo o que fez da sua vida e as eleições que fez até então. Já o conto “Orientação dos gatos”, do escritor argentino Julio Cortázar, foi publicado em 19803. Trata-se da história de um casal, a partir da perspectiva do homem, e como ele via a sua companheira Alana e o modo como ela se relacionava com o seu gato Osíris. A partir da observação dessa relação o narrador passa a pensar sua vida e o modo como Alana se comporta e como isso influencia na construção da identidade dele. Essa reflexão se dá enquanto o casal está em uma exposição de arte e percorrem as galerias onde estão inúmeros quadros. Ao ler os contos percebemos que o primeiro ponto em comum entre ambos é que apresentam os pensamentos de seus narradores, o modo como eles pensam o que está acontecendo ao seu redor, com as pessoas que convivem ou consigo mesmo. Uma das características das obras da contemporaneidade é essa preocupação dos sujeitos em se entender, em conhecer e construir a sua identidade, e a tentativa de equilibrar o modo como ele é e o modo como a sociedade quer ou espera que ele seja. De acordo com Stuart Hall em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade (2005), o ser humano está em constante busca pelo seu lugar no mundo, por tentar entender quem ele é e qual sua identidade. À medida que a sociedade vai se modificando, os sujeitos vêem a necessidade de se modificar para se adaptarem a esse novo meio, ademais, conforme com quem convivem também sentem a necessidade de se adaptar, se modificar. “[A]s velhas identidades, 3 Para a elaboração desse trabalho foi utilizado a edição publicada em 2014 no livro Gostamos tanto da Glenda.

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que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo [...], até aqui visto como um sujeito unificado” (HALL, 2005, p. 7), e essa desestabilização da identidade do sujeito contribui para o conflito interno de cada pessoa acerca da construção do seu ‘eu’ e da sua identidade. E, consequentemente, também afeta na relação com o ‘outro’ e na formação da identidade do ‘outro’. Ainda em relação à constituição da identidade desse sujeito fragmentado, Hall (2005) apresenta-nos três concepções de identidade: a do ‘sujeito do Iluminismo’, que via a pessoa humana “como um indivíduo totalmente centrado [...] dotado das capacidades da razão [...] cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia [...] quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo” (p. 10-11, grifo do autor); a do ‘sujeito sociológico’, que reflete sobre esse núcleo interior do sujeito não ser autônomo e auto-suficiente e sim “formado nas relações com ‘outras pessoas importantes para ele’ [...] a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade” (p.10-11, grifos do autor); e finalmente, o ‘sujeito pós-moderno’, que caracteriza aquele indivíduo que não possui uma identidade fixa, o “sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente” (p. 13, grifo do autor). A partir disso, podemos dizer que os narradores dos contos aqui analisados, são esses ‘sujeitos sociológicos’, pois eles constroem a sua identidade a partir das relações e interações com a sociedade em que estão inseridos e por meio do contato com aquelas pessoas que são importantes para eles, que fazem parte diretamente da suas vidas. No caso do narrador do conto de Clarice Lispector predomina a relação dele com a sociedade, com as pessoas que vêem as suas pinturas, a sua estátua e o seu retrato. Já no conto de Julio

Cortázar é a relação do narrador com sua ­esposa Alana e o gato Osíris. Essa ideia de que o narrador de “Perfil de um ser eleito” se molda a partir do outro pode ser vista nos seguintes excertos: Foi assim que o equívoco passou a rodear

o ser. Os outros acreditaram de um modo quase simplório que estavam vendo uma re-

alidade imóvel e fixa, e olhando o ser como se olha o retrato. Um retrato muito rico. Não compreenderam que para o ser, ter se reunido, fora trabalho de despojamento e não

de riqueza. E, por equívoco, o ser foi eleito.

Por equívoco o ser era amado. Mas sentir-se amado seria reconhecer-se a si mesmo no

amor. E aquele ser era amado como se fosse um outro ser: como se fosse um ser eleito (LISPECTOR, 1984, p. 81-82).

Nesse momento, vemos quando o indivíduo é percebido pelas pessoas que o rodeiam, e como eles constroem a imagem do ser, influenciando a percepção do ser sobre si mesmo. É a partir de uma representação do ser real, ou seja, uma fotografia, que todos notam e louvam o ser. Por meio disso, o narrador passa a pensar todas as escolhas que fez até então, e como isso pouco importou as demais pessoas, que tudo que fez e escolheu foi deixada de lado, e somente sua imagem, sua representação era amada. Foi também através desse amor que estava recebendo, que passou a pensar sobre sua identidade, sobre quem ele é. O narrador vê que fora eleito, assim como fez com os outros e com as outras coisas durante toda a sua vida, e descobre como o fato de ser eleito o aprisiona, o condiciona a ser aquilo que fora tachado, como notamos no trecho a seguir: Mas alguma coisa falhara. Quando o ser se

via no retrato que os outros haviam tirado,

espantava-se humilde diante do que haviam feito dele. Haviam feito dele, nada mais, nada

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menos, que um ser eleito; isto é, ­haviam-no sitiado (LISPECTOR, 1984, p. 82).

No conto “Orientação dos gatos” a construção da identidade do narrador se dá através da relação com sua esposa Alana, e pode ser percebida no seguinte excerto: “[c]ontra Alana, para além de Alana, eu procurava para amá-la melhor” (CORTÁZAR, 2014, p. 8). Ao observar sua esposa e tentar decifrá-la, ele nem percebe que está se modificando, o fato de investigá-la faz com que seu amor por ela aumente, e desse modo a sua identidade também se modifica. Essa relação se torna ainda mais forte quando ele a vê admirar os quadros numa galeria de arte: “[n]unca se daria conta de que seu lento e meditativo caminhar de quadro em quadro a transformava até me obrigar a fechar os olhos e a lutar para não a apertá-la nos braços e levá-la ao delírio, a uma loucura de correria em plena rua (CORTÁZAR, 2014, p. 9). Por mais que essas mudanças fiquem no plano do pensamento e não cheguem a passar para o plano real, a concretude, elas afetam o interior do narrador, e a maneira de ver as outras pessoas e a si mesmo, modificando quem ele é. Nessa obra de Cortázar, não é somente o narrador que tem sua identidade alterada ao se relacionar com o ambiente, com a sociedade. Alana também segue se moldando, construindo sua identidade, conforme entra em contato com as obras de artes, com as músicas e com seu gato Osíris, como vimos no excerto supracitado, em que ela se transformava enquanto caminhava de quadro em quadro. E, como outro exemplo temos: vendo-a escutar os nossos discos de Bartók, de Duke Ellington, de Gal Costa, uma transparência paulatina afundava-me nela,

a música desnudava-a de um modo diferente, transformava-a cada vez mais na Alana,

porque a Alana não podia ser apenas aquela mulher que sempre me olhara inteiro sem ocultar nada (CORTÁZAR, 2014, p. 8).

Novamente Alana se modifica em contato com a arte, e à medida que ela se transforma o seu marido também se modifica. Ele percebe a metamorfose que Alana sofre e como a maneira dela olhar para ele muda, e a partir dessa percepção, ele também passa a alterar seu modo de agir, de ser. Assim, notamos como um sujeito e suas atitudes influenciam na construção e formação da identidade do outro. Essa noção de mudança de Alana, também fica mais evidente quando ela entra em contado com a pintura e o narrador nos revela a sua percepção acerca desse acontecimento: “Alana entregava-se às pinturas com uma atroz inocência de camaleão, passando de um estado para outro sem saber que um encapotado espectador espreitava sua atitude” (CORTÁZAR, 2014, p. 9). Além disso, nesse excerto há a imagem do narrador ‘encapotado’, podemos dizer que o autor o nomeou como um ‘encapotado espectador’ para mostrar que ele não deseja revelar a sua identidade para Alana, pois nem ele mesmo sabe qual é, ou porque ele tem receio de deixá-la ver no que ele está se transformando, pois ao ver as modificações que ela sofre, fica assustado e tem medo que ela também fique amedrontada e sem entender ao ver as mudanças que ele está sofrendo, e como consequência afaste-se dele. Como afirma Landowiski (2002, p.11, grifos do autor) “reconhecer-se no Outro, ou descobrir-se a si mesmo como Outro”. Dessa forma, tanto no conto de Lispector como no de Cortázar, os personagens percebem que o comportamento do ‘outro’ e a convivência com esse afetam no modo de se ver, e também o fazem refletir que aquilo que fizerem, ou escolherem também afetou no modo como os outros o enxergam, fazendo-os notarem que também são o ‘outro’. Porém, essa percepção não é facilmente compreendida, os narradores e personagens sofrem com as situações que estão vivendo, sentem-se angustiados e sem saber como

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agir ou o que fazer. E por não saber como tratar com essa situação e expor o que estão vivenciando, os sujeitos deixam todos esses empates e aflições no plano psicológico. Dessa forma, percebemos uma das características de algumas obras desses autores, principalmente da escritora Clarice Lispector, que é a abordagem do nível psicológico do indivíduo, a exacerbação do momento interior, a história de um sujeito que está perdido no labirinto da memória e da auto-análise e que busca um equilíbrio, a subjetividade de alguém que está em crise e a própria crise da subjetividade e por fim, textos muito complexos e repletos de metáforas. De acordo com Hall (2005, p. 75), “[s]omos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha”. A partir disso, percebemos que o um dos motivos para a crise interior, sobre de quem eles realmente são, sofridos pelos narradores e personagens de ambos os contos, está relacionado ao fato de estarem em constante relacionamento com outros indivíduos e até mesmo, com as várias identidades que eles mesmos possuem, identidades essas, resultantes do fato de terem que se comportar de maneira diferentes de acordo com o lugar em que estão e com as normas impostas pela sociedade, gerando dessa forma, múltiplas identidades para um único indivíduo. Percebemos essa multiplicidade de identidades quando o narrador do conto de Cortázar nos fala sobre o comportamento de Alana diante das obras de arte: Alana entrega-se às pinturas como uma

atroz inocência de camaleão, passando de um estado a outro [...] A seu lado, avançando pouco a pouco pelas paredes da galeria, via-a entregando-se a cada pintura, os meus olhos se multiplicavam um triângulo

fulminante que se estendia dela ao quadro

e do quadro a mim, para voltar a ela e apreender a transformação, a auréola diferente

que a envolvia por um instante para ceder depois a uma aura nova, a uma tonalidade

que a expunha à verdadeira, à derradeira

nudez. Era impossível prever até quando se repetira aquela osmose, quantas novas

Alanas me conduziriam por fim à sínte-

se da qual sairíamos os dois satisfeitos. (­COSTÁZAR, 2014, p. 9).

Destarte, é possível dizer que “[o] sujeito é um todo coerente e unificado, e, ao mesmo tempo, uma multiplicidade contraditória e dispersa” (HUTCHEON, 1991, p. 224). Ele é coerente e unificado quando se pensa naquilo que ele demonstra ser ou aquilo que o sujeito acha que é seu verdadeiro eu, também podemos afirmar que é unificado quando o indivíduo une a sua identidade com as partes das identidades do outro, formando uma nova identidade resultante das influências sofridas. E, ao mesmo tempo, o sujeito é múltiplo, pois mantém sua particularidade e absorve a do outro se tornando alguém com várias faces, sem saber qual assumir. Durante a leitura do conto de Clarice Lispector, percebemos essa multiplicidade de identidades quando o narrador fala do personagem: Por ignorar as verdades menores, o ser parecia rodeado de mistério; por ser ignoran-

te, era um misterioso. Tornara-se também: um sabido ignorante; um sábio ingênuo;

um esquecido que muito bem sabia; um

sonso honesto; um pensativo distraído; um nostálgico sobre o que deixara de saber; um saudoso pelo definitivamente perde-

ra; e um corajoso por já ser tarde demais (­LISPECTOR, 1984, p. 81).

Essas múltiplas faces em uma mesma pessoa, também é percebida nos contos aqui analisados, durante todo o decorrer da narrativa. No caso do “Perfil de um ser eleito”

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a crise de identidade do personagem se dá quando esse percebe que os outros passam a idolatrar a sua imagem, aquilo que ele apresenta para a sociedade, dessa forma, ele passa a pensar sobre quem é ele. No conto “Orientação dos gatos”, desde o início do enredo o narrador se encontra em crise, ele observa seu relacionamento com Alana e Osíris e o modo como ela se comporta, afetando diretamente a vida e a construção da identidade do narrador. Dessa forma,

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está

se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-re-

solvidas. [...] O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, iden-

tidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em di-

ferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente

deslocadas (HALL, 2005, p. 12-13, grifo do autor).

Por isso, em ambos os contos os sujeitos estão perdidos nesse mar de possibilidades de “ser”, de múltiplas identidades, pois até entrarem em contato com o “outro” e perceberem que essa outra pessoa os afeta e os transforma, sua identidade estava aparentemente definida e estável, eles não percebiam que mudavam conforme a situação que enfrentavam. É a partir desse enfrentamento com o “outro” e da percepção desse embate, que percebem que sua identidade está em constante deslocamento. Segundo o teórico Stuart Hall (2005), ocorre “[a] formação do eu no ‘olhar’ do Outro” (p. 37, grifo do autor), ou seja, “[e]u sei quem ‘eu’ sou em relação com ‘o outro’ [...] que eu não posso ser” (p. 40, grifos do autor). Nos dois contos aqui analisados, os sujeitos

que estão em crise, só estão nessa situação porque se viram através do olhar do “outro”, eles perceberam que são diferentes do “outro” e ao mesmo tempo possuem algo semelhante. Eles também notam que o “outro” se transforma conforme o contato que tem com o mundo, e destarte, compreende que eles também mudam ao entrarem em contato com os “outros”. Quando os autores Lispector e Cortázar não nomeiam seus narradores, ou personagens que estão passando por essa crise identitária, podemos relacioná-los com todas as pessoas que, uma hora ou outra, passam por essa crise de identidade, que percebem que, a partir do momento que se relacionam com o “outro”, seu modo de ver a si mesmo e de se comportar se modifica. E, ao deixar em aberto quem são essas pessoas que então com suas identidades fragmentadas, é possível relacionar com a situação das pessoas dos países em que os autores estão vivendo, no caso de Clarice Lispector é o Brasil, e de Julio Cortázar a Argentina. Essas angústias dos personagens a respeito de quem são, pode ter sido utilizada pelos autores para trazer à tona a questão da constituição da identidade do povo brasileiro e argentino. Uma vez que ambos os países passaram pelo processo de colonização e, por muito tempo estiveram sob domínio de um país com costumes e cultura diferente do povo nativo. Vejamos mais detalhadamente como isso está nas entrelinhas dos contos. No conto de Clarice Lispector, ao retratar a história de uma pessoa que passa a vida elegendo as coisas e o fim passa a ser um “ser eleito”, a autora talvez esteja se referindo ao fato da sociedade eleger o modo como as pessoas devem agir, pensar e ser. Quanto ao fato da constituição da nação brasileira, podemos associar a questão da imposição do modo de viver a questão dos europeus, principalmente os portugueses, terem por muito tempo dominado a cultura em nosso país, ­praticamente

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anulando os costumes dos indígenas e, posteriormente, dos negros que aqui foram escravizados. Depois, quando saímos da dominação dos portugueses, nos continuamos sendo influenciados pelas ideias e rotulações instauradas pelos países considerados do Primeiro mundo, o que leva a população a anular suas particularidades e assumir aquilo que é eleito como o correto o ideal. Também podemos associar o fato do personagem ser construído e eleito pelas pessoas, a história da escritora Clarice Lispector, pois ela escreveu esse conto logo após voltar do exílio, e ter sofrido com os comentários sobre a sua vida e o modo como ela deveria se comportar ou sobre o que ela deveria escrever, uma tentativa de controlá-la, de moldá-la à maneira dos que estavam no poder. A imagem utilizada ela autora para representar essa ideia é a do retrato, da fotografia que os “outros” criaram do ser. Aquela imagem que a sociedade elaborou a respeito da escritora e que, de uma forma ou outra, a aprisionou, pois qualquer coisa que fizesse estava ligada àquela imagem criada a seu respeito. Como vemos no seguinte excerto:

E às vezes se confundia todo: não aprendia a copiar o retrato, e esquecera-se de como era sem o retrato. [...] Então o ser eleito tentou um trabalho subterrâneo de destrui-

ção da fotografia. Fazia ou dizia coisas tão opostas à fotografia que esta se eriçava na gaveta. Na esperança de tornar mais atual

que a própria imagem, e esta ter que ser

substituída por menos: pelo próprio ser. Mas o que aconteceu? Aconteceu que tudo

o que o ser fazia só ia mesmo era retocar o retrato. O ser era um mero contribuinte (LISPECTOR, 1984, p. 82-83).

No conto de Julio Cortázar, também é possível associar as angústias vividas pelo narrador aos dramas do povo argentino. Assim como o Brasil, a Argentina também passou pelo processo de colonização, só que no caso

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deles, foi pelos espanhóis. A Argentina também teve sua cultura quase dissipada pela imposição dos costumes e cultura do povo europeu, e assim como o Brasil, mesmo após deixar de ser colônia, também foi rotulado como país de Terceiro Mundo, e tinha que se submeter às vontades e regras dos considerados Primeiro Mundo. A presença do estrangeiro, e das ideias e opiniões desses, que influenciam no modo de viver do argentino, pode estar associado a imagem que Cortázar traz por meio das citações dos músicos, dos quadros que Alana observa e até mesmo da imagem do gato. Pois, em algum momento, essas figuras afetam o narrador e o fazem agir de forma diferente. A partir desses pontos, conseguimos traçar um esboço de como identidade dos indivíduos está se formando com o passar do tempo, e como a presença do “outro” tem papel decisivo nessa construção. Além disso, por meio desses contos, resgatamos a história do povo latino-americano e quais pontos em comuns há entre a nação brasileira e a argentina. Como o fato de ambos terem sido colônias e sofrerem com a dominação dos países considerados elites, afeta no modo de agir e pensar dessas populações, novamente ligando a noção de que o “outro” afeta nosso jeito de viver, e de se comportar, ou seja, contribui para a construção no “eu”. Ainda pensando nessa relação entre diferentes países e, que isso contribuiu para a formação da cultura do Brasil e da Argentina, é possível dizer que em ambos os contos aqui estudados, há nas entrelinhas a temática de como o povo latino-americano se sente diante da cultura dos outros países, principalmente daqueles países dominantes, e como isso afeta a constituição da identidade de cada indivíduo e, por consequência, a formação da sociedade brasileira e argentina. Durante o conto de Clarice Lispector, na medida em que o personagem percebe que a opinião dos outros segue alterando o seu modo de se ver e ser visto, e como aquilo

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que as demais pessoas tecem ao seu respeito, percebemos que talvez, a autora esteja se referindo ao fato de como a opinião de quem está de fora, nesse caso do estrangeiro, afeta o modo de viver do povo brasileiro. Também pode ser feita a associação, de que os conflitos internos vividos pelo personagem acerca de quem ele realmente é, e o modo como ele deve agir, pode estar sendo usado para representar a forma como o brasileiro se sente diante da cultura que vem de fora do país, ou diante daquilo que lhe é apresentado como ideal de vida e comportamento. E como resultado dessas angústias e assimilações da cultura do “outro”, acaba que os costumes do povo brasileiro vai se perdendo aos poucos e ocorra a miscigenação de culturas, muitas vezes predominando a do país dominante. Quando Lispector escreve o excerto abaixo citado, vemos como o ser se prepara para ir para um lugar que não é a ‘praça’, podemos dizer que a imagem da praça é utilizada para se referir ao país do sujeito, no caso pode ser o Brasil. A vida toda nos é vendida a ideia de que fora do nosso país a vida é melhor e, que devemos agir e adotar os costumes dos povos dos países desenvolvidos, mesmo que isso custe abrir mão dos sonhos e felicidades, e deixar sua liberdade e as particularidades de lado: O ser preparava-se a vida toda para ser apto ao lado de fora da praça. É verdade que o

ser, ao se sentir pronto assim como quem se

banhou com óleos e perfumes, o ser eleito vira que não lhe havia sobrado tempo para

aprender a sorrir. Mas é verdade que isso não incomodava o ser, pois era ao mesmo tempo a sua grande expectativa: o ser havia

deixado toda uma terra para lhe ser dada

por quem quisesse dar. O cálculo de sonho do ser fora deixar-se propositadamente incompleto (LISPECTOR, 1984, p. 82).

Já no conto de Julio Cortázar, o estrangeiro, ou a representação da cultura do “outro”,

pode estar relacionado com os quadros e as músicas com que o narrador e sua esposa Alana têm contato. E os anseios e aflições sentidas pelo narrador também pode ser algo pertencente a vários cidadãos argentinos, visto que, esse povo sofreu com a tentativa de apagamento dos costumes por parte dos seus colonizadores e posteriormente, as influências sobre o modo de viver vindo dos países desenvolvidos. Assim, como aconteceu e acontece no Brasil a miscigenação de culturas, na Argentina, também houve, e também há a luta por tentar buscar qual é a identidade nacional. Em ambos os contos, nos parece que os personagens, além de buscar construir a sua identidade, buscam a liberdade. Essa liberdade pode ser compreendida como a liberdade de poder ser quem eles realmente são, ou desejam ser. Também podemos pensar que eles procuram ter a liberdade de expressão, de poder sentir, pensar e exprimir aquilo que estão sentindo, pensando ou vivenciando. Essa questão fica mais evidente, quando o personagem do conto de Clarice Lispector passa a perceber que suas atitudes estão, de uma forma ou outra, ligadas ao que as demais pessoas pensam. E por mais que o ser tente agir de forma contrária ao que os outros esperam ou constroem a respeito de sua imagem, ele não consegue. No fim, tudo que faz só retoca a imagem criada pelos que estão ao seu redor. Como podemos ver no seguinte trecho: “[...] tudo o que o ser fazia só ia mesmo era retocar o retrato. O ser se tornara mero contribuinte. E contribuinte fatal: já não importava o que contribuinte desse, não importava mais com o contribuinte não desse, tudo, e mesmo morrer, enfeitava a fotografia” (LISPECTOR, 1984, p. 83). A busca pela liberdade de expressão, de mostrar em quem o sujeito está se transformando também é percebida através da voz do narrador do conto de Cortázar. Porém, o narrador tem medo de como sua esposa possa reagir ao ver que ele está mudando:

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“Deixei-me ficar atrás dela, sabendo que não me seria possível suportar o seu olhar, a sua interrogante surpresa quando visse na minha cara o deslumbramento da confirmação, porque aquilo também era eu” (CORTÁZAR, 2014, p. 10). A partir da análise desses contos, vemos como a literatura nos leva a refletir sobre a constituição das nações e do povo latino-americano. Além disso, percebemos como nossa identidade pode ser afetada de acordo com as relações que constituímos ao longo da vida com aqueles que fazem parte do nosso cotidiano. Não somente a relação com o outro nos influencia, mas as músicas e as leituras que fizemos desse modo, “[...] um livro pode afetar a consciência – afetar a forma como as pessoas pensam e, portanto, a forma como agem. Os livros criam eleitorados que tem seu próprio efeito na história” (TRENNER, Richard, 1983, apud ­HUTCHEON, Linda, 1991, p. 253). Assim, da mesma forma como os personagens dos contos tiveram suas opiniões e modo de ser modificados ao terem contato com o “outro” e com as mais variadas artes, nós também tivemos nossa visão e opinião sobre o modo como as identidades das pessoas se formam a partir da leitura desses dois contos. De acordo com Michel Foucault, apud Linda Hutcheon (1991), as fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por trás do título, das primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua configuração interna e de sua forma autônoma, ele fica preso num sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases: é um nó dentro de uma rede. É esse emaranhado de significados que fazem dos dois contos ricos em sentidos e tão complexões, permitindo inúmeras interpretações.

CONSIDERAÇOES FINAIS

Com base na análise dos contos “Perfil de um ser eleito”, de Clarice Lispector e “Orientação dos gatos”, de Julio Cortázar, ­percebemos

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como os sujeitos sofrem influências a partir da convivência com o “outro”, e dessa relação sua identidade sofre modificação, e o sujeito sofre transformações e passa a se ver e agir de uma forma diferente. Ambas as narrativas desses escritores faz-nos refletir acerca do embate interior dos sujeitos que estão em crise identitária e o modo como esses sujeitos tratam com essa situação. Além disso, as dúvidas e incertezas que os narradores e personagens desenvolvem ao longo da história estão diretamente ligadas ao fato de perceberem que precisam do “outro” para a formação da sua identidade, e que a sociedade é um fator que contribui muito para determinar o comportamento das pessoas. Ao entrar em contato com o “outro”, a vida dos personagens e do narrador de ambos os contos modifica-se totalmente, e o primeiro passo no processo de uma possível mudança da identidade de cada um foi dado. Destacamos que essa relação do “eu” com o “outro”, e os conflitos internos vivenciados pelo personagem e pelo narrador, são fatores importantes para que cada um busque entender quem realmente é, e o processo que levou a se tornar tal sujeito, compreendendo seu espaço na sociedade e a importância que cada um tem na formação do “outro”. No casso do narrador de “Orientação dos gatos” (2014), foi através das observações acerca do comportamento de sua companheira Alana, e em “Perfil de um ser eleito” (1984), foi por meio das escolhas que o personagem fez ao longo de sua vida e o modo como os “outros” o formaram, o elegeram. Assim, podemos dizer que nós só construímos nossa identidade a partir da relação com o “outro”, a partir do momento que percebemos que temos algo de semelhante e ao mesmo tempo diferente ao “outro”. Além disso, vimos que o povo latino-americano teve sua identidade por muito tempo anulada pela cultura do colonizador ou pelos países considerados de Primeiro Mundo, e que teve que aos poucos impor sua identidade,

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sua especificidades, saindo da condição de dominados, mostrando sua cultura e seus ­costumes, e dessa forma, não sendo mais apenas influenciados, mas também influenciando ou demais países com sua cultura.

REFERÊNCIAS

CORTÁZAR, Julio. Orientação dos gatos. In: . Gostamos tanto da Glenda. Trad. Miguel Mochila. Lisboa; Cavalo de ferro, 2014. p. 7-11.

HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. Trad. Tomás Tadeu da Silva. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história – teoria – ficção. Tradução: Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LANDOWISKI, Eric. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2002.

LISPECTOR, Clarice. Perfil de um ser eleito. In: . Para não esquecer. 3° ed. São Paulo: Ática, 1984. p. 80-83.

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COMPLICIDAD EN LA TRAMPA: JUEGOS FICCIONALES EN EL ASTILLERO Lucas Sidnei Carniel (UFFS-Realeza)

RESUMEN: Este trabajo se dedica a analizar los juegos ficcionales propuestos por personajes de la narrativa de Juan Carlos Onetti. El corpus literario comprende algunos cuentos de la narrativa onettiana como forma de ejemplificar la complicidad entre los personajes. Sin embargo el objetivo principal es identificar estos momentos en la novela El Astillero, cuya primera edición se publicó en 1961, en la cual los personajes Larsen y Jeremías Petrus miran en un astillero la oportunidad de reconstruir una empresa lucrativa y, así, consecuentemente, también una vida nueva y menos derrotada. Cuanto al corpus teórico serán utilizadas bibliografías referente a la crítica onettiana y también teóricos de los juegos ficcionales y metaficción en la literatura. Cuanto al El Astillero también será hecho un hincapié histórico, teniendo en vista que el escritor visitó, realmente, a un astillero en ruinas instalado en Buenos Aires antes de ponerse a escribir la novela. Palabras-clave – Juan Carlos Onetti; El Astillero; Literatura Hispanoamericana; voluntad de engaño; metaficción.

INTRODUCCION Es posible afirmar que una parte de la narrativa construida por el escritor uruguayo Juan Carlos Onetti está basada fundamentalmente en trampas, juegos ficcionales propuestos entre los propios personajes. Disparates constituidos por el juego del engaño, del chiste, y de la dependencia de uno al otro. Varias situaciones presentes en sus novelas y cuentos pueden ilustrar esa asertiva, como por ejemplo el cuento “Presencia” (1978) en lo cual el periodista Jorge Malabia percibe en el detective Tubor un compañero para una trampa: la manutención de Maria José fuera de la cárcel sanmariana, pero no en el universo “real” de la narrativa, sino en la metaficción. “Pensé que aquél era exactamente el compañero de disparate, de juego, que yo había deseado. Volví a mirar el aviso recortado de un periódico que le había traído: Detective privado – A. Tubor – Castilla Vieja, 30 – Madrid y España – Reserva”. Tubor no investiga nada, pero incorpora el rol de autor y relata periódicamente al cliente los hechos de María José que, por lo menos en los relatos ficcionales entregues a Malabia, vive muy bien fuera de la cárcel. El periodista exilado “compra” la idea y zambulla por la supuesta vida de María José. En “El Posible Baldi”, cuento de 1936, el personaje Baldi, abogado, incorpora otros personajes - un traficante de piedras preciosas, un cazador de negros en Sudáfrica, un contrabandista de cocaína - todo para encantar a una hermosa mujer que encuentra en la calle y que ve en él no un tipo común, sino un hombre distinto a los demás. Así él emerge por una ficción, construye otros yoes para impresionar a la dama que acepta la trama e incluso se identifica con las aventuras del “mentido” Baldi. “Él sintió que la bota que avanzaba en Transvaal se hundía en el ridículo. Pero los dilatado ojos azules seguían pidiendo con tan anhelante humildad, que quiso seguir despeñándose”. Además, en “Un Sueño Realizado” (1941) el empresario teatral Sr. Langman, desde su condición de interno en un hogar para artistas ancianos, recuerda de cuando participó de un

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“rápido disparate”: realizar el sueño de una mujer por medio de una escena actuada en el teatro. Tras realizarla la mujer muere en los brazos del actor Blanes.

Ya no servía hablar de teatro intimista ni de ninguna de esas cosas allí, frente con la mujer loca que abrió la cartera y sacó dos bille-

tes de cincuenta pesos – ‘con esto contrata

a los actores y atiende los primeros gastos

y después me dice cuánto más necesita’ –. Yo, que tenía hambre de plata, que o podía

moverme de aquel maldito agujero hasta que alguno de Buenos Aires contestara a

mis cartas y me hiciera llegar unos pesos.

Así que le mostré la mejor de mis sonrisas y cabeceé varias veces mientras guardaba el dinero en cuatro dobleces en el bolsillo del chaleco.

De esta forma, tanto Blanes como Langman – a pesar de tomarla por loca –la ayudan a teatralizar el guion propuesto por ella. Una tríade compañera en el disparate, en la ficción. Por lo tanto, en todo estos ejemplos el nivel ficcional es llevado muy en serio y de manera profundizada, como se los propios personajes fueran autores de historias dentro de la historia.

UN TIEMPO NO LINEAR

Así que llegamos a la obra fulcral de este trabajo, El Astillero. Publicada en 1961, la novela trata sobre el retorno de Larsen al universo de Santa María, y de su tentativa de reconstruir una vida menos derrotada en su retorno a la ciudad tras cinco años de exilio. Logra un empleo como gerente general en el astillero de Jeremías Petrus. En verdad, la empresa esta fallida, pero el propietario asegura que puede volver a sus tiempos áureos desde que haya un apoyo gubernamental. Larsen se pone a disposición de Petrus en la gerencia del Astillero, junto a Gálvez y Kunz, ambos administradores de diferentes áreas de la industrial de barcos. A medida que

­ arsen ingresa al espacio físico del astillero, L se percata inmediatamente de que el negocio no tiene oportunidad de revertir su quiebra. Lo curioso de esa novela es que ella empieza con un Larsen envejecido, en la casa de los cuarenta años, con una carga en las espaldas como se ya hubiera fracasado en la vida. En verdad, como relata su retorno a la ciudad mítica, El Astillero está en un tiempo ficcional más adelante en la vida de Larsen. Su juventud es tratada en la novela Juntacadáveres, lanzada en el año de 1964, tres años después de El Astillero. Por lo tanto, en la línea cronológica real (grifos nuestros) El Astillero vino antes de Juntacadáveres, pero en la línea cronológica del universo ficcional de Santa María, lo que pasó fue el opuesto. La aparente confusión es explicada por Marcos Roberto da Silva (2007): É importante lembrar que a lógica temporal é também quebrada quando Onetti

lança El Astillero antes de Juntacadáveres.

Aquele romance sucede cronologicamente ao outro na narrativa dos acontecimentos

“sanmarianos”; este narra o empenho de Larsen para instalar um prostíbulo em Santa María até que, expulso da cidade, prepa-

ra-se para deixá-la. El Astillero mostra seu retorno após cinco anos de “exílio” (p. 22).

En la novela Larsen no encuentra lo que espera, al revés de una empresa lucrativa, lo que se le presenta a los ojos es una ruina, una gran estructura decadente, carcomida por el tiempo y el abandono. De esa forma Onetti nos relata en El astillero la decadencia y muerte de Larsen1, apodado “Juntacadaveres”. Larsen llega con ambición, a radicar a Puerto Astillero, ubicado a una hora de Santa 1 El personaje Larsen es presentado en otras oportunidades en la narrativa onettiana, a pesar de haber supuestamente muerto en El Astillero. En la novela Juntacadáveres es el dueño del prostíbulo, y es apodado con el mismo nombre de la novela. En Dejemos hablar al viento, novela de 1979, vuelve supuestamente de la vida post muerte con el apodo de Carreño – con los gusanos saliéndole de la nariz – para invitar a Medina a “fabricar” Santa María. “-Está escrito, nada más. Pruebas no hay. Así que le repito: haga lo mismo. Tírese en la cama, invente usted también. Fabríquese la Santa María que más le guste, mienta, sueñe personas y cosas, sucedidos”, (Onetti, 1979, p. 142).

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María, y pide trabajo como gerente general en el astillero del lugar, propiedad de Jeremías Petrus. Al mismo tiempo, el taimado Larsen corteja a la hija de su patrón, una mujer hermosa, en la treintena, con retraso mental. Interés hay detrás de la actitud de Larsen, pues espera heredar, al casarse con la única hija de Petrus, la fortuna del dueño del astillero; sin embargo, los hechos desmienten las pretensiones del hombre, pues encuentra la empresa naval arruinada, apenas habitada por dos empleados más, aparte del dueño mismo: Gálvez, el director administrativo, y Kunz, el director técnico. Gálvez, un hombre de edad indefinida, cínico y desparpajado, tiene en su poder una prueba que puede hundir a Jeremías Petrus: una acción de la compañía, falsificada, que en su momento mandó hacer el anciano dueño para capitalizar a la empresa. Larsen comienza a intimar, y a ganarse la condescendencia (nunca la confianza), de sus dos compañeros y de la esposa de Gálvez, y a ganarse la condescendencia (nunca la confianza), de sus dos compañeros. En un viaje de negocios, el anciano y Larsen se encuentran en Santa María, y el segundo le revela la existencia de la prueba inculpatoria. Petrus, un viejo senil, que vive de fantasías y promesas de futuras glorias para el negocio, le da a su prospecto a yerno la consigna de conseguir el certificado. Larsen, antiguo explotador de mujeres y dueño de un encanto persuasivo y patético, intenta conquistar a la mujer de Gálvez para apoderarse del certificado. Cuando lo logra, la esposa del segundo le revela que en aquella misma tarde el director administrativo salió rumbo a Santa María con la intención de hacer la denuncia. Petrus es encarcelado, y Larsen lo visita en la cárcel, donde escucha por última vez los desvaríos y esperanzas del viejo, quien le pinta un futuro próspero para el astillero y para ellos. Juntacadáveres regresa solo para seducir a la gobernanta de Angélica Inés, y regresa a Santa Rosa. El final plantea la muerte de Larsen

en Rosario, una semana después de su huida, víctima de neumonía, consecuencia de estar expuesto al frío del invierno.

LA TRAMPA

El astillero articula deseos diferentes por parte de los personajes. De un lado, Petrus y Larsen depositan en la vieja construcción la esperanza de un futuro promisor, y eso puede sonar incoherente ya que estamos hablando de la novela escrita por el escritor de la desesperanza. Los dos personajes construyen una metaficción en el sentido de una actuación teatral. Actúan como en una pieza. Tanto Jeremias Petrus cuanto Larsen crean mecanismos para que ellos mismos logren creer en la farsa. Eso se queda claro en el trecho en lo cual el nuevo gerente camina por su taller de trabajo: Ia vigilante, inquieto, implacável e pater-

nal, dissimuladamente majestoso, decidido a esparramar promoções e licenças, neces-

sitando acreditar que tudo aquilo era seu

e necessitando entregar-se sem reservas a tudo aquilo com o único propósito de dar-

lhe um sentido e atribuir este sentido aos anos que lhe restavam viver e, em conse-

quência, à totalidade de sua vida. (ONETTI, 2009, p. 45).

Larsen acepta la ilusoria gerencia de Petrus Sociedad Anónima y así observa que tanto Petrus cuanto Galvez y Kunz también son farsantes. Pero es una complicidad que no resulta en beneficios para nadie. Por lo contrario, la farsa solo resulta en más miserias a los tres gerentes e incluso al propietario del astillero. Este último, incluso, es tomado por la decadencia y la locura. Empero es posible afirmar que los tres actúan en sus papeles como se fueran actores en una pieza teatral, piezas en un tablero de ajedrez. Es perceptible que todos ellos participan de una grande mentira, pero en ningún momento se hablan a respecto de cómo deben actuar. Es como

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si todos los papeles ya estuvieran definidos con antelación. “Agora [Larsen] estava na armadilha e era incapaz de nomeá-la, incapaz de conhecer que havia viajado, havia feito planos, sorrisos, atos de astúcia e paciência só para cair dentro dela, para aquietar-se num refúgio final desesperançado e absurdo” (ONETTI, 2009, p.36). De esta manera, la relación entre los personajes se pasa en un nivel metaficcional, una vez que no se interactúan en el sentido de reconstruir el astillero sino en el de mantener la trampa. Sobre metaficción, Antonio Jesús Gil González (2001), enfatiza que toda narrativa es un juego de palabras. “[…] todo relato de ficción es también, en mayor o menor medida una ficción de relato. No debemos extrañarnos ante la paradoja: tanto en el terreno de la metaficción, como el de la literatura en general, todo se reduce a un juego de palabras (grifos del autor)”, (p. 03). En este juego de palabras a que se refiere González, los personajes se utilizan de subterfugios para sostener la trampa, tales como la utilización de antifaces. Eso los permite participar del juego de simulaciones y vestir su verdadera identidad, como explica Liliana Reales. Mais do que as alegorias óbvias que possa

oferecer, o romance se escreve como um jogo de simulacros em que cada personagem veste uma máscara que, no entanto, não o torna persona, ou máscara teatral,

por trás da qual estaria escondido o ator. Cada personagem é a sua máscara, não

podendo já discernir entre o jogo de simu-

lações que representa e a sua “verdadeira

identidade”. Identidade que não é outra

além de uma apertada simbiose de desejos frustrados, sonhos fracassados, intensidades variáveis de projetos abortados e a farsa essencial que, para os personagens onettianos, torna a vida ainda possível (p.06).

Mismo sabiendo que el astillero es un buque afondando y que difícilmente será salvo

por un milagro, Larsen se lanza a la gerencia con el mismo ímpetu de cuando administró el prostíbulo en Juntacadávares. El juego de simulaciones bajo una atmosfera pesimista encuentra su desfecho con la ruina de Petrus, Larsen, Galvez y Kunz. La supuesta muerte de Larsen en el final concede un tono aún más melancólico a la narrativa. Sin embargo el lector tiene que tomar cuidado para no caer en una trampa narrativa. El narrador del final de El Astillero describe una muerte provocada por la neumonía – “Morreu de pneumonia em El Rosário, antes que terminasse a semana”, (p.247) – lo que no significa el destierro permanente de Larsen, ya que el personaje continua a aparecer en otras narrativas onettianas, tales como la novela Dejemos Hablar al Viento y en el cuento “La Araucária”, como el cura Larsen.

CONCLUSIÓN

Llevando en consideración estos aspectos se puede afirmar que El Astillero es considerado hasta hoy como una obra-prima de la Literatura de Latinoamérica porque mescla realidad e ilusión en una escrita que muestra un tono melancólico y ceniza, como se fuera un tango. El principal objetivo de la vida humana, la felicidad, es una busca que se puede considerar imposible en la mayoría de los libros de Onettti y eso se queda claro en El Astillero. Es posible suponer que como viven bajo una melancolía constante los personajes inventan para ellos mismos una vida de sueños, de ficción. Eso es lo que ocurre en esta novela, una tentativa de engaño por medio de la trampa entre los personajes. Pero el final, como en la mayoría de las obras del uruguayo, es triste, atormentado y obscuro.

BIBLIOGRAFÍA

GONZÁLEZ, Antonio Jesús Gil. Teoría y Crítica de la Metaficción en la Novela Española Contemporánea: a propósito de Álvaro Cunquiero y

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Gonzalo Torrente Ballester. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2001.

ONETTI, Juan Carlos. Cuentos Selectos. Buenos Aires: Corregidor, 2012. . Dejemos Hablar al Viento. Barcelona: Alfaguara, 1979.

. O Estaleiro. São Paulo: Planeta Literário, 2009.

REALES, Liliana. A Longa Noite de Onetti. Disponible en: . Acceso en 29 de noviembre de 2014.

SILVA, M. R, 2007. Nome Próprio em Juan Carlos Onetti. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. Santa Catarina. Brasil.

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O FUNCIONAMENTO DAS LÍNGUAS ENUNCIADAS NA FRONTEIRA E SUA RELAÇÃO COM A HISTÓRIA Marilene Aparecida Lemos*1

RESUMO: Este trabalho propõe mostrar o andamento de minha pesquisa de doutorado, iniciada em 2014, no IEL∕Unicamp, cujo título provisório é: “Barracão-PR, Dionísio Cerqueira-SC (Brasil); Bernardo de Irigoyen (Misiones-Argentina): fronteiras, línguas e história”. Assim, pretendo trazer à discussão um dos objetivos do projeto de pesquisa, o qual visa analisar traços de memória das línguas dos imigrantes e de outras línguas que constituíam esse espaço de fronteira quando da demarcação dos limites, na∕s línguas∕s enunciadas cotidianamente nesse “espaço fronteiriço” (STURZA, 2006). Tal pesquisa busca sua originalidade ao propor preencher uma lacuna no campo dos estudos sobre as fronteiras, no sentido de dar visibilidade ao processo de produção histórica de certas evidências, e aos seus produtos como produtos históricos, e não meramente naturais. Neste trabalho, retomo uma das hipóteses do projeto de pesquisa, a qual considera que havia várias línguas na época do estabelecimento dos limites de fronteira Brasil/Argentina; ou seja, línguas autóctones e línguas trazidas por colonizadores e imigrantes. Desse modo, considero relevante retomar uma obra que pontua aspectos importantes sobre a região fronteiriça em estudo: “A viagem de 1929: Oeste de Santa Catarina: documentos e leituras”, organizada pelo Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina. Essa obra contém a reimpressão de escritos do início do século XX, que relatam a viagem do então governador Adolfo Konder ao Oeste do estado de Santa Catarina. Assim, a partir de um fragmento da obra, apresento uma breve análise tentando compreender aquelas condições de produção (CP). Palavras-chave: discurso; fronteiras; língua; história. ABSTRACT: This paper intends to demonstrate my PhD research progress, which began in 2014, at IEL/Unicamp, temporarily titled: “Barracão-PR, Dionísio Cerqueira-SC (Brazil); Bernardo de Irigoyen (Misiones-Argentina): borders, languages ​​and history.” Therefore, I seek to foster the discussion of my research project goals, which aims to analyze memory traces of immigrant languages​and of other languages ​​that comprised this border space upon the demarcation of boundaries, in language/s daily found in such “border area” (STURZA, 2006). This research seeks originality by proposing to fill a gap in the field of studies regarding borders, in order to give visibility to the process of historical production of certain evidence, and to their products as historical, not merely natural products. This paper resumes one assumption of the research project, which considers there to be several languages ​​at the time of establishing the Brazil/Argentina bordering limits; i.e. indigenous languages ​​and languages ​​brought by settlers and immigrants. Thus, I consider it relevant to resume a paper that punctuates crucial aspects about the border region under study: “A viagem de 1929: Oeste de Santa Catarina: documentos e leituras”, organized by Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina (Western Santa Catarina Memory Center). This work contains the reprint of writings from early twentieth century, which reports the journey of governor (at the time) Adolfo Konder over the west of Santa Catarina state. Hence, from a fragment of such work, I present a brief analysis trying to understand those production conditions (CP). Keywords: speech; borders; language; history. 1

* Docente de Língua Espanhola - Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS

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RESUMEN: Este trabajo se propone mostrar el progreso de mi investigación de doctorado, que se inició en el año 2014, en el IEL / Unicamp, titulado provisoriamente: “Barracão-PR, Dionisio Cerqueira-SC (Brasil); Bernardo de Irigoyen (Misiones, Argentina): fronteras, lenguas e historia”. Por lo tanto, tengo la intención de traer a la discusión uno de los objetivos del proyecto de investigación, que tiene como objetivo analizar huellas de la memoria de las lenguas de los inmigrantes y de otras lenguas que constituyen esta frontera cuando de la demarcación de límites, en las lenguas enunciadas a diario en ese “espacio fronterizo” (STURZA, 2006). Esta investigación busca su originalidad cuando propone llenar un vacío en el campo de los estudios sobre las fronteras, con el fin de dar visibilidad al proceso de producción histórica de determinadas evidencias, y a sus productos como productos históricos, no meramente naturales. En este trabajo, vuelvo a una de las hipótesis del proyecto de investigación, en la cual se considera que había varias lenguas en la época del establecimiento de los límites de frontera: Brasil / Argentina; es decir, las lenguas autóctonas y lenguas traídas por los colonizadores e inmigrantes. Por lo tanto, considero pertinente retomar una obra que puntúa aspectos importantes sobre la región fronteriza en estudio: “El viaje de 1929: Oeste de Santa Catarina: documentos y lecturas”, organizado por el Centro de Memoria del Oeste de Santa Catarina. Esa obra contiene la reimpresión de los escritos de principios del siglo XX, que relatan el viaje del Gobernador Adolfo Konder al oeste del estado de Santa Catarina. Así, a partir de un fragmento de la obra, les presento un breve análisis tratando de entender esas condiciones de producción (CP). Palabras-clave: discurso; fronteras; lengua; historia.

INTRODUÇÃO

A proposta de pesquisa de meu doutora­ mento começou a tomar corpo em 2012, a partir de reflexões que realizamos na Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS,

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c­ ampus ­Realeza-PR, como docentes de Língua Espanhola no Curso de Graduação em Letras: Português e Espanhol - Licencitaura; e como participantes dos Grupos de Pesquisa Lingua(gem), discurso e subjetividade e Ensino de língua e literatura; e mais especificamente como colaboradores do projeto “De frente para a fronteira: fazendo o “cruce” com as escolas interculturais bilingues de ­fronteira”. O campus de Realeza está localizado na mesorregião grande fronteira do Mercosul, no sudoeste do estado do Paraná; e esta região de fronteiras apresenta-se como um vasto e instigante cenário de pesquisa no campo dos estudos linguísticos. Em torno de 80 km de Realeza está localizado o conjunto urbano das cidades trigêmeas de Barracão, Dionísio Cerqueira e Bernardo de Irigoyen. Barracão está localizada no extremo Sudoeste do estado do Paraná, Dionísio Cerqueira, no extremo Oeste catarinense e Bernardo de Irigoyen na província de Misiones, no extremo Oriente argentino. Em outras palavras, no mesmo perímetro urbano há uma fronteira entre dois países: Brasil/Argentina, e uma divisa entre dois estados: Paraná e Santa Catarina. Contudo, não há qualquer separação espacial entre essas três cidades, pelo contrário, elas são unidas, entrelaçadas, delimitadas apenas por linhas imaginárias. Diante dessa região de fronteira, algumas questões nos inquietam as quais dizem respeito ao fato linguístico de ter havido várias línguas no estabelecimento dos limites de fronteira Brasil (Barracão-PR / Dionísio Cerqueira-SC); Argentina (Bernardo de Irigoyen) e ao fato político de ter havido um silenciamento na ordem do discurso das línguas dos imigrantes e outras línguas que constituíam esse espaço de fronteira. Focalizando a língua espanhola e outras línguas enunciadas na fronteira de conformidade com o que elas significam por sua relação com a história, considerando-se a memória “da” língua (PAYER, 2006), queremos ­investigar o processo de apagamento da

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língua dos ­imigrantes na memória histórica (discursiva) a partir da época do estabelecimento dos limites de fronteira Brasil/ Argentina, nessa região. E considerando a memória histórica como parte constitutiva da/s língua/s enunciadas nesse espaço fronteiriço, nos perguntamos se o fato político de ter havido um silenciamento na ordem do discurso das línguas dos imigrantes e de outras línguas que constituíam esse espaço de fronteira é suficiente para que não escapem traços de memória dessa/s língua/s na/s língua/s enunciadas cotidianamente nesse espaço fronteiriço. Assim, essas questões nortearão nossos estudos sobre a fronteira, e funcionarão como propulsoras de nossa questão fundamental: queremos compreender discursivamente, por meio da história, as evidências a que nos encontramos submersos, sobretudo com relação às línguas enunciadas nessa faixa de fronteira; ou seja, investigar de que maneira a língua espanhola e outras línguas enunciadas na fronteira estão postas nesse espaço, como estas línguas significam, deslocando-as de sua aparência empírica (como “línguas em contato”, “línguas de fronteira” “línguas na fronteira”...). Sendo assim, nosso projeto de doutorado busca sua originalidade ao propor preencher uma lacuna no campo dos estudos sobre as fronteiras, no sentido de desvendar o funcionamento das línguas enquanto discurso: dar visibilidade, assim, ao processo de produção histórica de certas evidências, e aos seus produtos como produtos históricos, e não meramente ­naturais. Nesse sentido, nossa tese é a de que podemos, por uma rota teórica discursiva materialista de análise, em sua estreita relação com a história e a ideologia, desvendar o funcionamento discursivo das línguas enunciadas no espaço fronteiriço: Barracão-PR, Dionísio Cerqueira-SC e Bernardo de Irigoyen-Argentina, por meio de pistas dadas pela história e pelos traços de memória de/nas línguas.

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QUADRO TEÓRICO Nossa pesquisa fundamenta-se na teoria da Análise do Discurso (AD), fundada por Michel Pêcheux, na França nos anos 60 do século XX, e (des/re) territorializada por meio da reflexão levada adiante no Brasil por pesquisadores e grupos de pesquisa que se filiam a esse quadro epistemológico. A Análise do Discurso de linha francesa é considerada por Orlandi (2005) uma disciplina de entremeio, que não se caracteriza como uma disciplina positivista, mas que articula saberes do campo da Linguística saussuriana, pela releitura de Michael Pêcheux, saberes do campo do Materialismo Histórico formulado por Karl Marx e relido por Luiz Althusser e da Psicanálise freudiana, por uma leitura lacaniana. A análise de discurso filiada teoricamente aos movimentos de ideias sobre o sujeito, a ideologia e a língua, marca sua singularidade por pensar a relação da ideologia com a língua, trazendo para a reflexão o materialismo. Diz Orlandi (2012) que essa teoria “pós-estruturalista” se beneficia do não conteudismo – seja do sentido, seja do sujeito como origem. E acrescenta que essa teoria não é formalista, nem funcionalista, mas sim: materialista. A posição epistemológica da análise de discurso conduz, então, a pensar na existência da língua não como um sistema (o software de um órgão mental), mas como um real específico formando o espaço contraditório do desdobramento das discursividades (PÊCHEUX, 2011). E como afirma Orlandi, a Análise de Discurso pressupõe o legado do materialismo histórico: [...] há um real da história de tal forma que

o homem faz história mas esta também não lhe é transparente. Daí, conjugando a

língua com a história na produção de sen-

tidos, esses estudos do discurso trabalham o que vai-se chamar a forma material (não abstrata como a da Linguística) que é a

­forma encarnada na história para produzir

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sentidos: esta forma é portanto linguístico -histórica. (ORLANDI, 2005, p.19).

Desse modo, nos estudos discursivos o sujeito não é fonte nem origem de sentido, mas é sujeito à língua e à história; e procura-se compreender a língua não só como uma estrutura, mas como acontecimento. Na formulação de Pêcheux (2011, p.230):

a análise de discurso não pode se satisfazer com a concepção do sujeito cognitivo epistêmico, “mestre em seu domínio” e estra-

tégico em seus atos (face às coerções biosociológicas); ela supõe a divisão do sujeito como marca da sua inscrição no campo do simbólico.

Nessa direção, Orlandi (2005, p.19-20), ensina que para a análise de discurso: a. A língua tem sua ordem própria mas só é relativamente autônoma (distinguindo-

se da Linguística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da linguagem);

b. A história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos);

c. O sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e também

pelo real da história, não tendo o contro-

le sobre o modo como elas o afetam. Isso

redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia.

Assim sendo, ao fundamentarmos nosso estudo na perspectiva materialista a partir do entendimento de que esta considera que os sentidos não são estáticos e o discurso é a língua na história, significante na história (LAGAZZI, 2010), queremos dizer que por este viés poderemos investigar discursivamente, por meio da história, de que maneira a língua espanhola e outras línguas enunciadas na fronteira estão postas nesse espaço, como estas línguas significam.

E quando dissemos na introdução deste trabalho que há algo para se desvendar no funcionamento discursivo por detrás das evidências a que nos encontramos submersos: “línguas em contato”, “línguas de fronteira”, “línguas na fronteira”, entendemos a partir de Orlandi (2005), que é possível dizer que a ideologia representa a saturação, o efeito de completude que, por sua vez, produz o efeito de “evidência”, sustentando-se sobre o já-dito, os sentidos institucionalizados, admitidos por todos como “naturais”. Os sentidos de “línguas em contato”, “línguas de fronteira”, “línguas na fronteira”, ancorando-se no “já-dito”, vão se instalando na sociedade e vão sendo apropriados no intradiscurso como naturais; e esse processo de naturalização dos sentidos não permite trazer à tona a história das línguas enunciadas na fronteira, como essas línguas fossem transparentes, não tivessem sua materialidade, sua opacidade. Como observa Orlandi (2005, p.46):

A evidência do sentido – a que faz com que uma palavra designe uma coisa – apaga o

seu caráter material, isto é, faz ver como transparente aquilo que se constitui pela

remissão a um conjunto de formações discursivas que funcionam com uma domi-

nante. As palavras recebem seus sentidos

de formações discursivas em suas relações. Este é o efeito da determinação do interdiscurso (da memória).

Buscamos penetrar nessa materialidade, deslocar essas línguas de sua aparência empírica para desvendar seu funcionamento enquanto discurso: dar visibilidade, assim, ao processo de produção histórica dessas evidências, e aos seus produtos como produtos históricos, e não meramente naturais. Segundo Orlandi (2005, p.49) “na ideologia, não há ocultação de sentidos, mas apagamento do processo de sua constituição”, tomando a argumentação da autora para ­nosso

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estudo, quando esquecemos quem disse “línguas em contato”, “línguas de fronteira” ou “línguas na fronteira”, quando, onde e por que foi dito; ou seja, quando o dizer passa para o anonimato que o sentido do dizer produz seus efeitos, a impressão do “sentido-lá”. “(...) Todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação)” (ORLANDI, 2005, p.33). A mesma autora afirma que a memória quando pensada em relação ao discurso é tratada como interdiscurso. Este, por sua vez, é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente, ou seja, é o que se chama memória discursiva. Orlandi, destaca, ainda, fundamentando-se em Pechêux (1983, p.33), que é o interdiscurso que especifica as condições nas quais um acontecimento histórico é suscetível de vir a inscrever-se no espaço potencial de coerência próprio a uma memória. Assim, a partir do estudo desses conceitos, entendemos que o fato político da demarcação das fronteiras, o (não) apagamento da língua dos imigrantes e de outras línguas, – que estaria no eixo da constituição do dizer – tudo o que já se disse sobre as línguas enunciadas nessa faixa de fronteira, e também todos os dizeres políticos já ditos, em outros momentos, mesmo muito distantes, têm um efeito e pode estar significando na/s língua/s enunciada/s hoje na fronteira, na formulação do dizer, já que pode inscrever-se na memória discursiva. Com base em Pêcheux (2007, p.52), tomamos a memória discursiva como: [...] aquilo que face a um texto que surge

como acontecimento a ler, vem restabelecer os implícitos (quer dizer, mais tecni-

camente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.

Nessa perspectiva, o interdiscurso nos permite pensar que quando o sujeito enuncia

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na região de fronteira seu dizer se remete a toda uma filiação de dizeres, a uma memória, à política, à ideologia. Como propõe Orlandi (2005, p.38), “todo dizer é ideologicamente marcado. É na língua que a ideologia se materializa, nas palavras dos sujeitos”. Nessa mesma direção, Coracini (2007, p.150) assinala que “a imbricação das línguas e das culturas emerge, cá e lá, no discurso de cada um de nós”. A partir dessas constatações e conforme formulação de Payer (2006), focalizando a língua em conformidade com o que ela significa por sua relação com a história, se está considerando a memória “da” língua. Para a autora, a memória histórica (discursiva) é parte constitutiva da língua em que essa história se dá. Já ao falar sobre memória “na” língua a autora se refere ao “modo como os sentidos produzidos e sustentados socialmente, pela repetição, se encontram nisto que chamamos de língua”. Assim, conforme a autora, a memória “na” língua considera a relação entre língua e memória discursiva a partir do ângulo da memória histórica, sob a forma da memória discursiva, presente na língua. Levando em conta o sujeito que enuncia na região de fronteira, na sua história, estamos considerando os processos e as condições de produção da linguagem, nesse espaço fronteiriço, “pela análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer” (ORLANDI, 2005, p.16). Desse modo, com base na referida estudiosa, para encontrarmos as regularidades da linguagem na produção desse sujeito, devemos relacionar a linguagem à sua exterioridade, nas condições em que os discursos são produzidos e que não dependem só das intenções dos sujeito. Segundo Orlandi (2005, p.40):

As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é institucional (a forma-

ção social, em sua ordem) e o ­mecanismo

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imaginário. Esse mecanismo produz ima-

gens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio -histórica (...). É, pois, todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras.

Ainda com relação às condições de produção, a autora nos ensina que se as considerarmos em sentido estrito temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo, temos as condições de produção, que por sua vez, incluem o contexto sócio-histórico, ideológico (ORLANDI, 2005). As sequências discursivas ao serem analisadas podem apontar as posições-sujeito postas em jogo nessas discursividades. Nesse sentido, é necessário, segundo Pêcheux, referir o discurso “ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção” (PÊCHEUX, [1969] 1993, p. 79). Conforme Orlandi (2005, p.45), “observando as condições de produção e verificando o funcionamento da memória, ele deve remeter o dizer a uma formação discursiva (e não outra) para compreender o sentido do que está dito”. Devemos considerar as condições de produção em sentido amplo, e para tanto, nos fundamentamos nos estudos de Guimarães (2005), que nos indica um espaço de línguas e falantes o qual chama “espaço de enunciação”. Este autor considera que o falante não é uma figura empírica, mas uma figura política constituída pelos espaços de enunciação. Guimarães (2005, p.18) define o “espaço de enunciação” como: espaços de funcionamento de línguas, que se dividem, redividem, se misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante. São espaços ‘habitados’ por falantes,

ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer.

Sturza (2006) quando interpreta o sentido político das práticas linguísticas ­fronteiriças,

considera necessário definir um “espaço de enunciação fronteiriço”. De acordo com a autora: “sendo as línguas enunciadas em lugar específico, elas apresentam outros sentidos que não se repetem em outros espaços de enunciação, quando as línguas funcionam nos seus domínios enunciativos, como línguas nacionais.” Para pensarmos um espaço de enunciação específico como é o caso da tríplice fronteira: Barracão-PR, Dionísio Cerqueira-SC e Bernardo de Irigoyen-Argentina, os estudos de Sturza (2006) acerca de um “espaço de enunciação fronteiriço” serão fundamentais para nossa pesquisa.

RELATOS DE VIAGENS

Passaremos em síntese a apresentar duas publicações de obras originais de relatos de viagens às quais revelam aspectos importantes sobre a região fronteiriça em estudo. Consideramos relevante retomar essas obras, pois são fundamentais para trabalharmos os objetivos deste trabalho. A primeira delas tem como título “Pela Fronteira”, escrita em 1903, e trata das narrativas de uma viagem realizada por Domingos Nascimento entre Curitiba e Foz do Iguaçu. Domingos Nascimento foi designado a participar de uma expedição militar que tinha como intuito verificar a situação de algumas colônias militares estabelecidas no extremo-oeste paranaense. Esta viagem teve início em Curitiba, alcançava as cidades de Ponta Grossa e Guarapuava, via estrada de ferro, de onde partia rumo à Oeste por algumas picadas construídas por extratores de erva-mate, o objetivo era chegar à colônia militar da foz do rio Iguaçú. Foram 103 dias “de longa e penosa viagem através de sertões”. Segundo Nascimento, este livro que foi produzido em 25 dias, “não pode ser nem um livro de arte, nem um complexo de conhecimentos úteis sobre a zona da fronteira. É antes um roteiro.” Essa obra resulta de uma série de anotações do autor durante o percurso, e foi apresentada em um concurso realizado pela Sociedade Estadual

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de Agricultura do Paraná, durante a Exposição Paranaense de 1903, da qual foi premiada como melhor trabalho monográfico. A análise pautou-se nas representações de Domingos Nascimento sobre a natureza e os homens paranaenses, em seus projetos para o desenvolvimento econômico, para a nacionalização da fronteira Oeste e, enfim, no desejo de criação de uma identidade homogênea ao Paraná. No capítulo “A linha divisória” da referida obra “Pela Fronteira” Nascimento (1903) narra que o então povoado Barracão estava em território argentino, devido à sua posição geográfica: à margem direita do rio PepiryGuassú; e como Dionísio Cerqueira havia sido fundado do lado esquerdo pertencia ao Brasil. E o autor relata que quando chega à Barracão foi cumprimentado pelos oficiais argentinos da comissão de limites, com os quais mantiveram uma conversa amistosa. E assim que atravessa o Pepiry-Guassú – a 200 metros de sua cabeceira – avista o general Dionísio Cerqueira _ quem iria mais adiante receber o nome da cidade como homenagem. O general gentilmente recebeu o visitante e os demais militares que lhe acompanhavam e os convidou para visitar o marco assentado na divisa e assistir a fundação do povoado brasileiro. Nascimento (1903, p.169) narra que o general Cerqueira, exultando de prazer e orgulho cívico, expôs os motivos da resolução que tomara em promover a fundação de um povoado do lado brasileiro: _ Já grande número de compatriotas residia naquela zona, numa e noutra margem

do Pepiry-Guassú e onde as únicas auctori-

dades existentes eram da nação argentina. Agora estavam definitivamente traçadas

as fronteiras, e os brazileiros sem uma po-

voação sua continuariam a residir do outro lado, sob jurisdicção extrangeira, onde já havia começo de povoado com os recur-

sos e as leis mais adequadas a existência

125 das populações. Fazia-se mister, pois, que

a nossa fronteira se fizesse respeitar pelas suas auctoridades, os compatriotas vivendo à sombra das nossas leis. O novo povoado a fundar, além de um asylo para os seus

concidadãos, era como uma sentinella de vigilância à nossa fronteira (grifos nossos).

As palavras do “ilustre brasileiro” foram acolhidas com entusiasmo entre patrícios e estrangeiros ali presentes. O autor acrescenta que “no silêncio daquelas pesadas florestas, a palavra amena e firme do notável brasileiro era como uma evocação patriótica de honra, integridade e civismo”. Na sequência da narrativa vemos que o mesmo general apresentou aos presentes a planta da povoação, colocou os marcos de alinhamento das ruas que deviam ser abertas no seio daquele sertão, e entre demonstrações de contentamento foi assinada a ata da inauguração da povoação do Pepiry-Guassu, depois Dionísio Cerqueira. Consta nessa ata que ao serem convidados os assistentes a assinar esse documento, o capitão Domingos Nascimento, pedindo a palavra, propôs que em homenagem aos serviços prestados a esta zona paranaense pelo General Dr. Dionísio Cerqueira, a nova povoação tomasse o nome de Dionísio Cerqueira – em vez de Pepiry-Guassú; e tal proposta foi aprovada por unanimidade. Ainda no que diz respeito a relatos de viagens conhecemos, também, a obra organizada pelo Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina titulada “A viagem de 1929: Oeste de Santa Catarina: documentos e leituras”. Esta obra contém a reimpressão de escritos do início do século XX, que relatam a viagem do governador (na época era denominado Presidente de Estado) Adolfo Konder ao Oeste do estado de Santa Catarina em 1929. Konder percorre a referida região durante um período de 30 dias, chegando até a cidade de Dionísio Cerqueira na fronteira do estado e do país com a Argentina. Nesta obra são republicados dois livros: um de 1929:

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“O Oeste Catharinense – visões e suggestões de um excursionista”, de Arthur Ferreira da Costa; e o outro de 1931: “Oeste Catharinense – de Florianópolis a Dionísio Cerqueira”, de José Arthur Boiteux. Também fazem parte da obra, um álbum fotográfico que registra a passagem do Presidente de Estado pelo Oeste e duas interpretações sobre a viagem de 1929. Em contato com estas obras raras, aprendemos com Costa (1929) que Dionísio Cerqueira (a que os argentinos chamavam Villa Cerqueira) era a única povoação brasileira, em território catarinense, em toda a extensão da fronteira argentina. Acrescenta que o nome Dionísio Cerqueira deve-se à memória do general Dionysio Evangelista de Castro Cerqueira, como já vimos, e este foi o chefe da comissão brasileira de demarcação de limites com a Argentina. Dionísio Cerqueira, por ocasião da visita de Adolfo Konder _ registrada nesse livro – reclamava a atenção do Governo do estado e do governo brasileiro. Nas palavras de Costa (1929, p.37): Aquella zona estava se desnacionalizando. A moeda que ali corre é a argentina. A língua que se fala é uma mistura de portuguez e castelhano, predominando o

último elemento. Não havia escola, nem justiça, nem administração, nem organização política (grifos nossos).

Costa (1929) complementa que os filhos dos brasileiros, para não ficarem analfabetos, frequentavam a escola argentina de Barracon (como era conhecido este povoado, na época, pelos argentinos), onde aprendiam a cantar o hino da nação amiga, como sendo o de sua pátria. Mais do que isso, não havia oficial de registro civil, e as crianças que nasciam em Dionísio Cerqueira eram registradas como argentinas em Barracón, e mais tarde eram inscritas nos respectivos assentamentos militares. Os casamentos, igualmente, eram feitos na Argentina, bem como os registros

de óbitos. Sobre a divisão de limites, menciona-se que solucionado o pleito internacional, ficou a jurisdição argentina definitivamente assentada na orla direita do Pepery, como também foi mencionado na viagem de Domingos Nascimento. Prosseguindo sua narrativa, Costa nos diz que aquela região fronteiriça deixa uma inconfundível impressão de descaso do Governo Federal, “a apresentação ali é má, é deprimente” e a falta é igual para os dois países. Conforme o autor, do lado esquerdo do Pepery a disputa de jurisdição prolongou-se por mais tempo. Só com o Acordo 1917 foi traçada a linha divisória dos territórios catarinense e paranaense, sob um critério pouco recomendável de linhas secas. Descreve que na margem direita _ Argentina _ as casas eram melhores e o comércio era mais próspero. Na margem esquerda a porção melhor era a catarinense: Dionísio Cerqueira, embora seu comércio fosse muito pobre. A riqueza daquela região era o mate. Quem explorava aquela região, dispondo de dinheiro, organização e “gente inteligente”, era o argentino. Já na parte paranaense não havia comércio, qualificado pelo autor como insignificante, o qual conservou o nome de Barracão. Costa observa que em Barracón as bandeiras argentinas tremulavam em vários mastros, eram algo envelhecidas, dando a prova de seu uso frequente. Em Dionísio Cerqueira as bandeiras brasileiras, que eram numerosas quando ali esteve o presidente Konder, eram inteiramente novas. Boiteux (1931) relata que o presidente Konder encontrou aquela zona rica, de grandes possibilidades, referindo-se à Dionísio Cerqueira, abandonada por completo. Sem justiça, sem lei, sem escola. E desde logo, providenciou a normalização administrativa. Criou-se a escola, que, tomou o nome de José Boiteux. Reproduzindo as palavras do presidente: “não mais deixarão os nossos conterrâneos de aprender a língua nacional, pois que, para não serem analfabetos, iam à escola argentina, atravessando o Pepiry-guassú!”

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E prosseguindo sua narrativa Boiteux elogia as obras do presidente:

Nomearam-se autoridades policiais e outras, estabelecendo-se, desse modo, a ga-

rantia à vida e à propriedade do cidadão;

criou-se o juizado de paz, deixando assim de inscrever-se nos registros, como nas-

cidos na vizinha República, os brasileiros que viam a luz no território catarinense. Já agora ali fluctúa o auri-verde pendão da

nossa Pátria, que os brasileiros não viam,

apenas conhecendo o argentino, hasteando nas fachadas das repartições na outra margem do Pepiry-guassú. Em suma, numa fra-

se incisiva o presidente de Santa Catarina diz: “a situação em que (...) jazia essa por-

ção da terra barriga-verde fronteiriça com a República Argentina: ‘Aquella região dá a

impressão de que é de quem ali primeiro chega’”.

Em suma, o autor relata o abandono a que o presidente de Santa Catarina encontrou a região, mas que depois de sua visita tudo, “felizmente”, mudou.

A VIAGEM DE 1929

Para os fins deste trabalho, tomaremos o trecho a seguir, da obra “A viagem de 1929”, e realizaremos uma breve análise tentando compreender aquelas condições de produção, bem como o funcionamento das línguas enunciadas na fronteira e sua relação com a história: Aquella zona estava se desnacionalizando. A moeda que ali corre é a argentina. A língua que se fala é uma mistura de portuguez

e castelhano, predominando o último ele-

mento. Não havia escola, nem justiça, nem administração, nem organização política.

Começamos por dizer que o período compreendido entre o final do século XIX e início do XX foi marcante para os países

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l­ atino-americanos no sentido de afirmação de sua nacionalidade. Essa época coincide, na Argentina, com a chegada dos imigrantes e o tema da identidade nacional estava entre as principais discussões da época, principalmente entre a elite intelectual, a despeito da heterogeneidade de um país tomado pela imigração europeia. Na perspectiva de Greja (2009), na Argentina, a preocupação com a questão nacional surgiu a partir da independência. No entanto, para a autora, referindo-se a Bertoni (2001), o processo de construção da nacionalidade argentina passa, a partir de 1880, a ser motivado pela imigração massiva e o início de uma nova etapa de construção das nações e das nacionalidades na Europa, sob um clima de expansão colonial e imperialista. Diante disso, a elite considerava que a Argentina deveria construir uma nacionalidade própria que englobasse não apenas os argentinos natos, mas também os imigrantes europeus que chegavam ao país. Contudo, esse projeto nacionalizador se constituía em um grande desafio para a elite intelectual, pois tentavase forjar valores nacionalistas, homogêneos, a uma sociedade que se tornava cada vez mais heterogênea. Dentre os intelectuais da época, Domingo Faustino Sarmiento, como mostra Greja (2009), acreditava que os imigrantes poderiam ser os autores da mudança, por meio do desempenho de trabalho agrícola. Com isso, eliminariam o deserto, que para ele era o verdadeiro inimigo da civilização e do progresso. Para Sarmiento, a nacionalização era considerada o único meio de assimilação total da massa imigratória, pois acreditava que uma nova cidadania acabaria por dissolver as fronteiras entre criollos e estrangeiros (ibid., p.82). Os intelectuais da geração de 1880 consideravam o criollo como o primitivo, o simples, cuja tradição estava associada à espanhola. As cidades iam transformandose em centros de europeização da Argentina, ao mesmo tempo em que se defendia o

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r­ ompimento de um passado colonial para que se concretizasse o projeto de construção da nação argentina. Assim, o criollo era suprimido e substituído pelo imigrante europeu, representante da “civilização” e visto como a solução para o “problema cultural” que essa geração acreditava atingir a população argentina (ibid., p.30-35; destaques nossos). No Brasil, em 1930, Getúlio Vargas iniciava a implantação de uma política de nacionalização. Vemos que Orlandi (2005), em seu artigo “O discurso sobre a língua no período Vargas” (Estado Novo – 1937/1945)”, explica que o período denominado Estado Novo foi um período autoritário de tendência centralizadora. Esse governo, acrescenta a autora, exercia forte controle dos meios de comunicação, censura sobre a cultura e, consequentemente, esses aspectos influenciavam na área da educação (CHAGAS, 1979, p.117). Nesse sentido, Payer (2006) observa que havia uma política linguística que atingia fortemente os imigrantes. Na escola, segundo Orlandi (2005, p.29), “todo o desenvolvimento era para cercear o desenvolvimento de uma dominante estrangeira e a favor da dominância nacional: os professores, a língua, os livros (...) deviam ser do país”. Devemos considerar que o período de 1930 a 1945 foi significativo no que diz respeito à política para as regiões de fronteira, sobretudo no que se refere à nacionalização das fronteiras, sendo que a educação funcionava como um dos meios para se concretizar o objetivo de nacionalização. De acordo com Brito (2001, p.112), a partir do Estado Novo, em 1937, surgiram, de forma mais evidente e claramente formuladas, como políticas de Estado, as preocupações em torno da nacionalização das regiões fronteiriças do Brasil. No governo de Vargas, segundo as reflexões de Modesti (2012), havia um interesse forte em consolidar um Estado/Nação. Para tanto, além de outras políticas, fazia-se necessário desenvolver e integrar o interior à

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nação. Assim, as zonas de fronteira passaram a ser uma preocupação para esse governo, pois poderiam ameaçar a segurança nacional, tendo em vista que nessas regiões circulavam um grande número de imigrantes – Vargas os via como representantes de ideais subversivos. O projeto nacionalista, então, criava políticas específicas para as zonas de fronteira, em torno de um elemento fundamental: a educação. No intuito de “nacionalizar” grupos estrangeiros e padronizar o ensino, tomaram-se medidas para fechar escolas consideradas estrangeiras e ampliar o número de estabelecimentos de ensino oficiais. Nessas condições de produção, “os discursos em Santa Catarina demonstravam que […], ‘desbravar o sertão’ significava construir uma Nação”, de acordo com o autor. Essas foram algumas das bases políticas que motivaram, em 1929, um interventor nomeado por Getúlio Vargas: Adolfo Konder a realizar uma viagem ao oeste de Santa Catarina com o intuito de incitar a construção da brasilidade; ou melhor, “conquistar” “[...] populações brasílicas que estavam se ‘desnacionalizando’, pelo abandono completo em que viviam, sem a mínima ligação com a nossa pátria e totalmente alheias à comunhão nacional” (COSTA, 2005, p.7). A partir das condições de produção apresentadas fazia sentido o discurso da comitiva de Adolfo Konder: constatar o perigo de “desnacionalização” na região de Dionisio Cerqueira. Conforme exposto anteriormente, no relato da viagem de 1929, essa região fronteiriça apresentava escassez de serviços assistenciais básicos assim como acesso restrito à educação. Desse modo, como demonstra o relato em estudo, os brasileiros que viviam na fronteira estavam cada vez mais inseridos na cultura do país vizinho e se constituíam também na/pela língua espanhola e nessa relação com aquele momento histórico, como sujeitos cívicos, políticos e jurídicos e sujeitos às determinações da nação argentina.

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Assim, a viagem do governador a essa região fronteiriça, considerada esquecida e desintegrada da nação brasileira, expressa um interesse de integração das fronteiras com os referenciais nacionais. Havia “um simbolismo na passagem de Adolfo Konder pelo oeste catarinense como se a região ‘passasse a fazer parte’ de Santa Catarina e do Brasil a partir dessa viagem, durante a qual o governante pôde constatar os problemas característicos das regiões de fronteira” (MODESTI, 2012, p.42). Dado o exposto, tanto a Argentina como o Brasil, na época da viagem do governador Adolfo Konder a Dionísio Cerqueira (1929), vivenciavam um período de efetivação de políticas de nacionalização; contudo, tais políticas apresentavam suas particularidades. Convém destacar que a Argentina concebia o imigrante (principalmente o europeu) como o representante da “civilização” e como a solução do “problema cultural”. No Brasil, o projeto de nacionalização do governo Vargas tinha o imigrante como ameaça à segurança nacional, principalmente nas zonas de ­fronteira. Em ambos os países, a educação funcionava como um dos meios para concretizar o objetivo de nacionalização. E o discurso da educação se impunha juntamente com uma política linguística a favor da dominância da língua de respectiva nação. No caso do Brasil, o fragmento que analisamos mostra que: “Aquella zona estava se desnacionalizando”, e tal discurso produz efeitos de sentido de uma não-hegemonia da língua portuguesa na região. Agregado a isso está o fato de “a língua que se fala é uma mistura de portuguez e castelhano, predominando o último elemento” que tampouco era positivo para a Argentina, tendo em vista que “nacionalizar” para aquele país reforçava a ideia de uma fronteira definitivamente castelhana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encaminhando-nos para as considerações finais deste trabalho, vale mencionar Modesti

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(2012), fundamentando-se em Hobsbawm (2000, p.272): um estado nacional se caracterizaria por uma porção territorial na qual vive um grupo homogêneo de pessoas que se identifica por língua e costumes. E, nesse sentido, Vargas defendia seu projeto nacionalista o qual visava unificar o país, independente da pluralidade de grupos e de culturas. Nas regiões de fronteira, no caso em estudo a tríplice fronteira – Barracão-PR, Dionísio Cerqueira-SC e Bernardo de Irigoyen-Argentina – o fato de determinar aos sujeitos que ali enunciavam a identificação como nação, implicava, obrigatoriamente, identificação pela língua da nação, ou seja, a língua portuguesa. E a ideia de “conquistar” esses sujeitos para o projeto de “brasilidade”, incluindo estrangeiros, visando a compor um país homogêneo, sugere desprezar as condições de produção, pois “a língua que se fala é uma mistura de portuguez e castelhano” e aqueles sujeitos se constituíam em um espaço heterogêneo entre portugueses, indígenas, caboclos e descendentes de italianos e alemães, principalmente. Para a análise de discurso, o imaginário de homogeneidade da língua e dos discursos é desconstruído, “todo discurso é fundamentalmente heterogêneo e está exposto ao equívoco porque se relaciona sempre com um  discurso-outro (GREGOLIN, 2005). Embora tanto a Argentina como o Brasil apresentassem uma visão redutora e excludente da mistura de povos, da heterogeneidade, aquém de uma política linguística que contemplasse a interculturalidade e se colocasse a favor de uma imagem idealizada de homogeneidade, de acordo com os interesses das classes dominantes dos respectivos países, os sentidos escapam às determinações, dado que as línguas se dividem, se misturam, entram uma no espaço de enunciação da outra.

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IDENTIDADE SUL-RIO-GRANDENSE EM CONTOS ­GAUCHESCOS Sabrina Siqueira1 Vera Lucia Lenz Vianna2

RESUMO: O artigo é um estudo de Contos Gauchescos, compilação de 19 contos publicada em 1912, do autor João Simões Lopes Neto, identificando neles traços de regionalidade e de características do perfil gaúcho, como a bravura, a religiosidade associada à crença em supertições, o papel da mulher na sociedade e na família, a escravidão, a referencialidade a algumas revoluções pelas quais o Rio Grande do Sul passou, entre outros aspectos. Utilizando-se da figura do narrador Blau Nunes, gaúcho de idade avançada que foi peão, tropeiro e militar ativo em Revoluções, Simões recria o linguajar do homem do campo e mistura fatos históricos a conversas de galpão. A narrativa do escritor gaúcho fala de questões universais, como dramas da condição humana, com as peculiaridades da “cor local” do Rio Grande, em meados de final do século XIX e início do século XX, em um cenário predominantemente rural. O estudo também considera características do conto enquanto gênero literário, como clímax. Palavras-chave: Contos. Regionalidade. Contos Gauchescos. ABSTRACT: This paper analyses Contos Gauchescos, compilation of 19 shot stories published in 1912, by João Simões Lopes Neto, identifying some traits of regionality, as well as the way some inherent characteristics related to the gaúchos’s profile are conveyed in the narratives. Bravery, religiosity associated to superstitious beliefs, the woman’s role in society and inside the family’s realm, some historical events, such as the revolutions in Rio Grande do Sul among other pertinent aspects will be the focus of this work. Using the figure of the narrator Blau Nunes, gaucho in a old age that was peasant, cowboy and military acting in Revolutions, Simões recreates the language of the country man and mixes Historical facts to hangar conversations. The gaucho’s writer narrative talks about universal issues, as dramas of the human condition, with the peculiarities of a “local color” of Rio Grande, in the late 19th century and early 20th century, in a predominantly rural setting. This paper considers yet short stories features as a literary genre, such as climax. Keywords: Regionality. Short story. Contos Gauchescos.

RESUMEN: El artículo es un estudio de Contos Gauchescos recopilación de 19 cuentos publicados en 1912, autor Lopes Neto, identificando los restos de regionalidad y las características del perfil de gaucho como la valentía, la religiosidad asociados con la creencia en las supersticiones, el papel de las mujeres en la sociedad y en la familia, la esclavitud, referencialidad algunas revoluciones que el Río Grande do Sul ahora, entre otras cosas. El uso de la figura del narrador Blau Nunes, ancianos Gaucho era peatonal, arriero y militar activo en las revoluciones, Simões recrea el lenguaje del hombre de campo y se mezcla hechos históricos arrojan conversaciones. La narrativa del escritor gaucho habla de temas universales, como los dramas de la condición humana, con las peculiaridades de 1 Graduada em Comunicação Social – Habilitação Jornalismo, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários, na mesma instituição. E-mail: [email protected]

2 Professora Doutora no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas e no Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários, da UFSM. E-mail: [email protected]

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“color local” del Río Grande a mediados de finales del siglo XIX y principios del siglo XX, en un entorno predominantemente rural. El estudio también considera las características del cuento como género literario, como punto culminante. Palabras-clave: Cuentos. La regionalidad.Contos Gauchescos.

Contos Gauchescos é a compilação de 19 contos do escritor pelotense João Simões Lopes Neto, publicados em 1912, que falam do “ser gaúcho”. Utilizando-se da figura do narrador Blau Nunes, gaúcho de idade avançada que foi peão, tropeiro e militar ativo em Revoluções, Simões recria o linguajar do homem do campo, gaúcho típico. Neste trabalho, vamos considerar como referencial teórico o conto enquanto gênero literário e suas características determinantes sob o viés do teórico Júlio Cortázar , além de aspectos sobre espaço em contos regionalistas, na análise de alguns dos contos. Os Contos Gauchescos misturam tradição oral, fatos e personagens históricos, lendas e “causos” de galpão. É possível imaginar o velho Blau sentado à beira de um fogo de chão, enchendo o mate com uma chaleira preta, contando os “causos” para um homem mais jovem, podendo bem ser o próprio Simões, que passou parte da vida na campanha e que deve ter ouvido alguns desses contos de peões e tropeiros numa roda de chimarrão. Pensando a questão local e seu imbricamento com o universal, na narrativa do escritor gaúcho, Chaves (2001) destaca que, em se tratando de contos, o mote é a situação-limite, que traz à tona a dimensão humana e, portanto, universal, transcendendo a questão da “cor local”. Essa dinâmica de realçar traços comuns à condição humana minimiza, de certa forma, as dificuldades que leitores de outros contextos culturais podem encontrar ao se depararem com uma construção narrativa que prioriza um espaço/lugar bem determinado. E essa característica torna os

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contos de Lopes Neto mais ricos, uma vez que abordam conflitos universais, pertinentes a praticamente qualquer figura humana. Veremos exemplo do universal na narrativa do autor mais a frente, ao analisarmos os contos Trezentas Onças e Boi Velho. Considerando os contos “Assombramentos!”, de Afonso Arinos, e “Caminhos das tropas”, de Hugo de Carvalho Ramos, Marchezan (1999) reflete sobre o modo de enunciar o “caso”, ou “causo”, como são chamados os relatos curtos transmitidos oralmente no sul do Brasil, principalmente no meio rural: “A oralidade reflete a voz de um grupo cultural sem escrita” (MARCHEZAN, 1999, p. 80). Assim como em Contos Gauchescos, a atitude literária de destaque dos contistas analisados pelo estudioso foi a de “resgatar o mundo rural, o seu imaginário rústico, (...), dando ‘plasticidade’ para a visão do grupo cultural tropeiro que, assim, passa a deter um saber” (idem, p. 80). A comparação de Contos Gauchescos com “Caminho das Tropas” é pertinente, ainda, por ambos situarem-se em uma fase pós-naturalista e anterior ao neo-realismo dos anos 30, enquadrando-se no pré-modernismo. É uma fase, segundo Marchezan (1999), em que a cultura “não transparece como uma expressão exótica do novo mundo da América, como nos contos das fases do americanismo e do brasileirismo, mas como expressão constituída pelas relações sociais entre sujeitos” (idem, p. 88). Ou seja, nos contos de Simões Lopes Neto somos apresentados às condições de existência social do Rio Grande do Sul no final do século XIX/ início do século XX e à conduta das personagens no interior desse espaço determinado, típico, onde predomina a cultura do que é rural. Considerando aspectos recorrentes ao gênero conto, observa-se que intensidade e tensão são recursos cuidadosamente elaborados na composição da narrativa de Simões Lopes Neto. Se o texto fosse uma luta com o leitor, Cortázar (2006) postula, o romance venceria por acúmulo de pontos, enquanto

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que o conto, por knock out. Para ele, os dois elementos para um bom conto são intensidade e tensão. A intensidade seria a eliminação de todas as ideias e a subtração de todos os recheios, que o romance suporta e até necessita. A eliminação de todas as fases de transição próprias do romance. A tensão seria uma variante da intensidade, que ocorre na maneira pela qual o autor leva o leitor, aproximando este lentamente do que conta. O autor destaca a necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que seja significativo, em que somente o essencial e o indispensável ganham espaço, através da eliminação de tudo o que não convirja para o drama. O conto traz também a questão da revelação. Em Contrabandista, por exemplo, o leitor fica sabendo que Jango Jorge, experiente em contrabandos, sai para buscar o enxoval para o casamento da filha. Em seguida, Lopes Neto nos dá uma visão panorâmica da prática de contrabandos. Por se tratar de uma atividade ilícita, o perigo é uma constante para os praticantes. Do relato da situação político-econômica do Estado, que deu margem para o contrabando, o foco da narrativa volta para a casa de Jango Jorge, onde a família está esperando o vestido de noiva para o casamento. A princípio, não há indício de qualquer preocupação. Mas, para o leitor, o começo da tensão crescente vai despontando: uma espera que culminará em tragédia. O segmento posterior demonstra a intensidade com que a preocupação pela demora de Jango Jorge vai sendo construída, até a última frase, o clímax da tensão: Como disse, na madrugada vésp’ra do ca-

samento o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha.

Passou o dia; passou a noite.

No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.

Havia na casa uma gentama convidada; [ ... ]

A dona da casa, por certo traquejada nessas

bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.

Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.

Surdiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. [ ... ]

Só faltava a noiva; mas essa não podia apa-

recer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.

As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.

Entardeceu.

Nisto correu voz que a noiva estava chorando [ ... ]

E rindo e chorando estava, sem saber por que... sem saber por que, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:

— Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!... (LOPES NETO, 1976, p. 55)

Em Tezentas Onças, temos exemplo do knock out, ou seja, de uma frase ou pequeno trecho que arrebata o leitor com a declaração que traz à tona a problemática a ser desenvolvida na trama. Nesse conto, antes do momento revelador ou knock out, não acontece um gradativo acréscimo de intensidade, que culminará em um clímax, como em Contrabandista. Ao contrário, a narrativa segue descritiva, sem dizer ainda a que veio, sem nos mostrar qual é a problematização do conto, qual o ponto de tensão a partir do qual a trama discorrerá. Até a revelação, temos um relato paisagístico de uma viagem de Blau Nunes quando jovem, acompanhado pelo cão da família, carregando um dinheiro do patrão. O knock out se dá com o seguinte trecho: Quando botei o pé em terra na ramada da

estância, ao tempo que dava as — boas-­

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tardes! — ao dono da casa, agüentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!

Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados que ia levantar. (LOPES, 1976, p. 5)

E, a partir dele, a trama ganha outra velocidade. O leitor está “pego”. Dificilmente abandonará ou se desinteressará pela ­história. Ao teorizar sobre o conto, Cortázar (2006) postula que, tanto no conto como na fotografia, a necessidade de escolher e limitar uma imagem/ acontecimento de modo significativo, capaz de impactar o espectador/ leitor, deve ir além do argumento visual/ literário presente nestas duas linguagens, pois o bom conto deve impactar o leitor, vencer por knock out. Melancia Coco Verde exemplifica este cuidado na seleção de acontecimentos/ significação dentro da trama narrativa. A concentração da ação está voltada para o namoro de Sia Talapa e Costinha e, principalmente, na forma cômica com que os noivos encontram para manter a comunicação, com versos rimados em que cada um assume nova identidade, respectivamente ela é Melancia e ele Coco Verde. E em No Manantial, em que, desde as primeiras linhas, somos levados para o lodaçal que dá título ao conto e é onde se desenvolve a ação clímax da história. A figuratividade espacial desse último conto é construída com foco no espaço do lodaçal, que significa o “desconhecido”, o “abismo” e representa o perigo e a morte para quem se vê preso em suas terras movediças. Maria Altina cavalga consciente para o manantial porque prefere a morte à desonra por Chicão, que provavelmente a alcançaria antes que a moça avistasse socorro. Sabendo também que seria seguida por Chicão até o fim, cavalgar para o manantial representa a punição àquele que assassinou a avó e intencionava lhe fazer mal, pois, assim como ela, ele ficaria enredado nas plantas que cresciam no lodaçal e dificilmente lograria sair

do pântano com vida. Maria Altina assume a posição de mártir/ vítima, mas, de certa forma, vence Chicão. E a sequência de mortes agrava o “mau agouro” que já pairava sobre o manantial, que vem a ser também uma personagem do conto, senão a principal. Tudo na história converge para esse espaço que é quase um portal para o sobrenatural. A religiosidade e a aproximação com o mundo espiritual, aspectos recorrentes em Contos Gauchescos e presentes na cultura sul -rio-grandense do período narrado, estão na reza do terço católico e na crença em superstições, como em No Manantial, onde cresce uma roseira, mas que “gente vivente não apanha as flores porque quem plantou a roseira foi um defunto... e era até agouro um cristão enfeitar-se com uma rosa daquelas”, ou quando “a Maria Altina achou no quarto... uma borboleta preta, das grandes, que ninguém tinha visto entrar” e anunciava ­tragédia. Buscando uma definição para o regionalismo por meio da espacialidade, Marchezan (1999) a considera uma categoria (conceito que designa relações, no sentido de ser um articulador de unidades que dimensionam o espaço construído pelo texto) representativa de contos típicos, como os de campanha. Pensando especificamente sobre conto regionalista, o autor destaca que a categoria literária passa a escolher, selecionar uma dada espacialidade a ser temporalizada pelas suas personagens. A organização da espacialidade, no conto regionalista, leva-nos a perceber que o espaço nos contos vai sendo retificado e/ ou ampliado, aos poucos, até se configurar num espaço cada vez mais típico, regiona-

lizado. Dessa maneira, o conto regionalista progride para uma íntima relação entre a

ação das personagens e os espaços ocupados por elas... (MARCHEZAN, 1999, p. 80)

Em No Manantial, o espaço permanece na trama, através do tempo, como algo ­misterioso, ostentando a roseira que nasceu

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da flor do cabelo de Maria Altina e servindo de assunto para “causos” dos moradores da região. Assim, o mesmo espaço combina morte e vida. Não resta nada mais sobre a família de Maria Altina, mas sua história segue sendo contada pelas gerações a partir da representação do manantial com sua roseira.

HISTÓRIA, REGIONALISMO E A PERSONIFICAÇÃO DO GAÚCHO TÍPICO

Logo no início do livro, temos uma apresentação especial de Blau Nunes, por parte de Simões Lopes Neto, e ficamos sabendo que ele será o narrador/protagonista ao longo dos contos. Blau é descrito pelo autor como “nem herói, nem bandido, apenas um simples gaúcho”. Ao apresentá-lo, Simões descreve o gaúcho típico: Blau Nunes é um representante do espécime “gaúcho” tropeiro, da campanha, que trabalha na “lida” do campo. E temos registro de seu bom caráter já no conto de abertura, Trezentas Onças, quando o protagonista/ narrador conta que chegou a pensar em suicídio ao perceber que havia perdido uma bolsa de dinheiro do patrão. A boa índole é expressa, ainda, pelo grupo de tropeiros que encontrou a guaiaca e a entregou intacta. A retidão de caráter seria, para Simões, da essência do gaúcho. Nesse conto, também fica explícita a relação do homem do campo com os elementos da natureza, que parecem conversar com as pessoas, e, principalmente, a relação de cumplicidade e a inteligência dos animais. O cachorro que o acompanhava avisa da perda da bolsa com as onças de ouro e late para Blau voltar com o cavalo ao lugar onde descansou e esqueceu a guaiaca em cima de uma pedra: Durante a troteada bem reparei que volta

e meia o cusco parava-se na estrada e latia

e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e troteava um pouco sobre o

rastro; — parecia que o bichinho estava me chamando! (LOPES NETO, 1976, p.5)

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Ao narrar os “causos”, Blau nos dá um panorama não só do ser gaúcho, mas também das condições de vida no final do século XIX/ início do século XX. No conto O mate do João Cardoso, Blau fala da importância da oralidade na disseminação das informações e afirma ter visto o primeiro jornal, em Pelotas, somente em 1851. Algumas páginas depois, no conto O duelo dos Farrapos, conta que o jornal Americano, do governo, publicou a contagem dos votos da eleição para deputados em agosto de 1942, e ainda lembra dos versos da capa... Se os primeiros contos nos falam de como era esse gaúcho tropeiro valente e nos contam dos costumes da sociedade, a partir de Chasque do Imperador um Blau Nunes engajado nas Forças Armadas nos leva às batalhas rio-grandenses. Os primeiros contos do livro falam das memórias de Blau de quando era bem jovem, de “causos” que ouviu ou viveu na juventude. A seguir, os contos de batalhas narram uma fase mais adulta do narrador/ protagonista. E os contos que encerram o livro são recordações de uma fase mais madura de Blau. Levando-se em conta a relação História X ficção e sua interação, Contos Gauchescos têm como panos de fundo a escravidão e revoluções como a Farroupilha (de 1835 a 1845, no RS), que deixaram como herança para o Estado patentes militares ocupando cargos políticos. Antes da Lei Áurea, que aboliu a escravidão de 1888, alguns escravos conseguiam liberdade por intermédio de outras leis, como a do Ventre Livre, pela qual os filhos de escravas nasciam libertos. E muitos deles permaneciam nas estâncias, trabalhando na lida do campo. Muitos foram engajados como soldados rasos na Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870, evento que repercutiu positivamente para a abolição. Nos Contos Gauchescos, nos são apresentados negros nessas duas condições: de trabalhadores de fazendas e de militares (o próprio Blau exerceu ambas atividades). Em No Manantial, a

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família que se muda para o local da trama traz junto afrodescendentes para o serviço do campo e da casa: “De gente, ele, duas velhuscas, uma menina, uns pretos, campeiros e uma negra mina, chamada mãe Tanásia” (LOPES NETO, 1976, p. 14). Em O mate do João Cardoso, a chamada pelo dono da casa ao “crioulo” que devia trazer o chimarrão deixa perceber, mais uma vez, a presença de escravos, ex-escravos ou alforriados que serviam aos estancieiros. Nas referências a revoluções e guerras, Lopes Neto relaciona suas personagens a fatos históricos reais. Como em O chasque do imperador: “Quando foi do cerco de Uruguaiana pelos paraguaios em 65 e o imperador Pedro 2° veio cá, com toda a frota da sua comitiva, andei muito por esses meios, como vaqueano, como chasque, como confiança dele” (idem, p. 30). Quem também está neste conto é o General Caxias, dando suporte à História dentro da história. E, em O Anjo da Vitória, Blau conhece Bento Gonçalves: “Daí a pouco apareceu um outro oficial, mocetão bonito, que era major. Este chamava-se Bento Gonçalves, que depois foi meu general, nos Farrapos” (idem, p. 49). Em 1865, durante a guerra da Tríplice Aliança de Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, as tropas do Exército Brasileiro chegam à fronteira do Rio Grande do Sul e cercam Uruguaiana. O objetivo era render a cidade e forçar o recuo das tropas paraguaias, que ocupavam a cidade. Lá estava Blau, vistoriado junto de “uma indiada macanuda” pelo general Duque de Caxias e pelo próprio Dom Pedro 2º, e escolhido para ser ordenança deste último. Lembrado pelo velho Blau como um ruivo de vozinha fina, o representante máximo do Império é equiparado a uma pessoa qualquer, diferente do que esperava o vaqueano. Era bom homem, mas longe de possuir os méritos morais dos gaúchos, dos quais ele não entendia “a rudeza tão franca”, pois não havia sido criado a “apojo, churrasco e mate amargo”. E “que era

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meio maricas, era”, em contrapartida à virilidade sulina. Ao criticar o imperador, Simões reafirma a opinião da supremacia gaúcha e critica todos os forasteiros. A Guerra dos Farrapos está em Os cabelos da china. Neste conto, uma sutil crítica à superficialidade da guerra, em que emboscadas eram empreendidas para vingar a honra de um capitão que perdeu uma china para um comandante opositor. Assim como Duque de Caxias, também o general Bento Gonçalves aparece na narrativa, mas sem grande expressividade no desenrolar da trama. A maioria das tramas nos Contos Gauchescos é essencialmente voltada ao universo masculino. As histórias de homens brutos, envolvidos com a lida do campo e sempre dispostos a uma briga para vingar a honra, que tem nos cavalos seus melhores companheiros, não deixam muito espaço para as mulheres. Chinas de acampamentos ou prendadas beatas, as figuras femininas de Contos Gauchescos mostram qual era o papel da mulher no final do século XIX, em uma sociedade prioritariamente rural e patriarcal. Objeto de aposta em Jogo de osso ou vingativa em O Negro Bonifácio (o trecho de encerramento do conto diz: “Ah! mulheres!... Estancieiras ou peonas, é tudo a mesma cousa... tudo é bicho caborteiro...; a mais santinha tem mais malícia que um sorro velho!), não sobra à prenda o mesmo lustro que ao gaúcho nascido macho, nos Contos Gauchescos. Neste aspecto, os contos Negro Bonifácio e No Manantial constituem exceções porque têm nas personagens femininas, Tudinha e Maria Altina, as desencadeadoras da ação, mas ainda elas são movidas pelo desespero gerado pela violência masculina. A luta pela posse de terras num território ainda meio sem donos, como era o sul do Brasil, é mostrada em Contrabandista, que também denuncia o monopólio dos produtos e o alto valor dos impostos decretados pela monarquia, estimulando o contrabando entre gaúchos e castelhanos, ­principalmente

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depois da Guerra do Paraguai. A tomada de terras, por concessão de “gente pesada”, também está em No Manantial e em Correr Eguada. Simões delata o quanto foi duradoura a temporada de contrabandos (se é que teve fim), pois Jango Jorge “levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira” e “já batia nos noventa anos” quando a guarda o pegou contrabandeando o vestido de noiva da filha. Um dos principais contos do livro, em Contrabandista, Simões Lopes Neto denuncia não só o contrabando e a fuga dos impostos da Coroa na compra de mercadorias, mas também o abigeato entre estâncias fronteiriças e uruguaias: “Uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços... os de lá faziam conosco a mesma cousa, depois era com gado...”. (idem, p.53) Ao leitor desavisado, que está por fazer mau juízo dos gaúchos que aderiram à prática do contrabando, Simões alerta: “Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam”, e justifica o comércio que dribla os impostos como alternativa de um povo oprimido por um chefe de Estado que “dava as sesmarias, mas não garantia o pelego dos sesmeiros” – crítica ao abandono do sul do Brasil pela monarquia portuguesa, que se apressou em povoar a fronteira, mas não se preocupou em amparar os habitantes e não hesitou em taxar o custo de vida. De família comerciante de charque, Simões tinha conhecimento de causa para opinar sobre o assunto. Nesta terra do Rio Grande sempre se con-

trabandeou, desde em antes da tomada das Missões. (...) Naquela era, a pólvora era do

el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim... Também só na vila de

Porto Alegre é que havia baralho de jogar,

que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas

de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas! (LOPES NETO, 1976, p. 53).

Vale lembrar que o texto literário recria a realidade, não faz dela um retrato fiel.

E é problematizando a realidade histórica, transformando-a em aventura, que o autor

constrói sua obra. A História se confunde

com a história. A realidade histórica é mero instrumento, matéria-prima sobre a qual

trabalha o artista quando recria a realidade. (VELLOSO, 1988, p. 241)

O que geralmente acontece em textos regionalistas é uma intensa descrição da paisagem e do exótico do cenário, em detrimento da pesquisa psicológica. Simões vai de encontro a essa teoria e foca sua narrativa nos conflitos individuais. A dimensão humana das personagens caracteriza-se pela vivência de situações-limite, que aconteceriam mesmo em outros cenários. Apesar da violência presente em muitos dos contos, a sensibilidade de João Simões tem espaço nas tramas de Trezentas Onças e Boi Velho. No primeiro, Blau, ainda jovem, que há tempos não chorava, sente virem-lhe as lágrimas. O outro conto é marcadamente dramático, ainda mais se levando em conta o apego do narrador aos animais: depois de adultos, família de estancieiros que foi criada indo banharem-se no açude da fazenda levada pelo carretão puxado a bois, sacrifica um dos animais porque estava velho e morreria atolado, não se podendo aproveitar o couro. O conto ultrapassa o regional ao mostrar a maldade e mesquinhez possíveis da condição humana. Já nas primeiras linhas, Simões coloca nas falas de Blau a opinião de que “o homem é bicho mau”. Não o gaúcho ou qualquer personagem específico, mas a maldade seria inerente à condição humana. Não por acaso, o conto mostra o animal como superior em demonstração de afeto, consideração e amizade, como no trecho “Cá pra mim

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o boi velho ... berrava de saudades do companheiro...”, ou ainda em “Porém começou a emagrecer (o boi)... e tal e qual uma pessoa pesarosa, que gosta de estar sozinha, assim o carreteiro ganhou o mato...” (LOPES NETO, 1976, p. 26).

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Com o bonachão e bem vivido Blau Nunes, Simões Lopes Neto reforça ou implanta em nosso inconsciente coletivo o estereótipo do gaúcho típico, trabalhador, valente, brigão, xenófobo, rústico, orgulhoso, que estima mais o cavalo do que a mulher, e que deve ter inspirado muitos outros escritores. Ao longo dos 19 contos, o autor gaúcho representa um Estado e um povo em fins do século XIX, seus hábitos e costumes. Lopes Neto alcança os fatores que Cortázar (2006) considera fundamentais ao gênero conto: a intensidade, a tensão, o knock out, a escolha e restrição dos acontecimentos e personagens. Valendo-se de situações e figuras históricas, como a Revolução Farroupilha e o General Caxias, Simões Lopes Neto confere veracidade aos “causos” narrados com base na oralidade. Metáforas e onomatopeias reforçam a naturalidade com que as histórias são contadas por Blau Nunes, e as tramas delineiam o perfil do gaúcho típico de final do século XIX, com a linguagem popular campeira, a exaltação da paisagem sulina, da lida do campo, dos hábitos de alimentação do gaúcho e dos costumes do povo rio-grandense daquela época. Todas essas características reforçam o perfil do gaúcho da campanha, tal qual o conhecemos. Apesar do mergulho na “cor local” sul riograndense, em pelo menos dois aspectos Lopes Neto ultrapassa o regionalismo pitoresco e atinge a universalidade: na utilização da norma culta no falar do narrador, ainda que esse fosse um vaqueano de pouca instrução, sem perder o código de testemunho histórico do mundo gauchesco; e na universalidade

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da condição humana das personagens, em contos como Trezentas Onças e Boi Velho, em que a ação caminha junto da análise psicológica dos indivíduos, em histórias que ultrapassam o regional. Chaves (2001) destaca que Simões ultrapassa o localismo pitoresco e coloca os aspectos regionais como pano de fundo. O dado fundamental para a interpretação da obra simoniana não é a sua

inclusão no regionalismo, mas o fato de

que, incorporando-o, tenha conseguido dialeticamente ultrapassá-lo para expres-

sar uma visão de mundo. (CHAVES, 2001, p. 17)

O autor acrescenta ainda que “o regionalismo simoniano não se esgota na representação mimética do espaço regional; inclui a condição problemática do homem, impondo os meios de sua própria expressão”.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. São Paulo: 8ª ed. T. A.Queiroz, 2000. CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: 2. ed. Rev. UFRGS, 2001.

CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópio – Alguns aspectos do conto – Col. Debates 104, pág 147 a 164. São Paulo: Ed.Perspectiva, 2006. LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos. Porto Alegre: L&PM, 2001.

MARCHEZAN, Luiz Gonzaga. Literatura e Regionalismo. In: . Sociedade e Literatura no Brasil. São Paulo: UNESP, 1999.

POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. Caxias do Sul: ­EDUCS, 2009.

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ROMANCE, COSA IMPURA – SOBRE CRÔNICA DA CASA ­ASSASSINADA, DE LÚCIO CARDOSO Renata Farias de Felippe1 Xênia Amaral Matos2*

RESUMO: Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, é, em muitos sentidos, um romance ímpar na literatura brasileira. Do ponto de vista estrutural, articula uma série de relatos, espaços e temporalidades; no nível temático, traz à página questões como incesto, decadência moral, física e econômica; no âmbito dos gêneros (ficcionais), apresenta similaridades com o melodrama, o gótico, a narrativa investigativa. Menos do que um prenúncio, a complexidade da/na Crônica reitera a máxima cortazariana relativa ao romance: “cosa impura, muonstro de muchas patas y muchos ojos”. Este artigo, portanto, pretende refletir sobre as relações entre os elementos estruturais e discursivos do romance de Cardoso, ligações que nos parecem monstruosas, se considerados os múltiplos ângulos e vozes que o compõem. Palavras-chave: Romance. Monstruosidades. Gêneros ABSTRACT: Crônica da Casa Assassinada (1959), by Lúcio Cardoso, is considered a singular novel in Brazilian literature context. Its structure includes several narratives, settings, and different times. Its thematic involves incest, moral downfall, economic ruin, and physical decay. This novel is also related to different fictional genres, such as melodrama, gothic, and investigatory narrative. Crônica da Casa Assassinada’s complexity reaffirms Julio Cortaza’s idea about the genre novel: : “cosa impura, muonstro de muchas patas y muchos ojos”. In this sense, this paper intends to think about the relations between the structural elements and the discursive elements presented in this Cardoso’s novel. These relations become monstrous if we think the multiple angles and voices that build this novel. Keywords: Novel. Monstrosities. Genres

Publicado pela primeira vez em 1959, o romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso (1912-1968), é considerado a obra-prima do escritor. A obra é o resultado da união de diferentes textos – cartas, diários, confissões e narrativas– “escritos” por diferentes personagens. Tais textos estão dispostos sem manter uma relação imediata entre si: divididos em partes, eles não são organizados de forma linear, mas intercalados por relatos de diversas personagens, sendo que um determinado relato não, necessariamente, completa aquele que lhe precedeu. Sem seguir uma linearidade, no romance o tempo retrocede e avança; fatos são revelados por algumas personagens para, em seguida, serem omitidos ou desmentidos por outros. A leitura do romance, portanto, exige especial atenção do leitor, já que este deverá seguir e “ordenar” diversos acontecimentos diegéticos, ângulos e temporalidades. O romance tem como principais personagens – e narradores - os Meneses (Valdo, Timóteo e Demétrio), Ana- esposa de Demétrio, André, (suposto) filho da antagonista Nina3 e Betty, a 1 2

Professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria.

*

Mestranda em Estudos Literários no PPG-Letras da Universidade Federal de Santa Maria, sob a orientação do Prof. Dr. Anselmo Peres Alós.

3 Nina escreve uma série de cartas nas quais se coloca como uma figura discriminada e incompreendida, mas pouco revela sobre as suas experiências ou a dos demais. Nina é majoritariamente “contada” pelas outras personagens, o que instaura uma interrogação sobre a credibilidade das ações e dos anseios

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governanta. O romance é construído a partir das confissões e, no caso de Nina, das epístolas reunidas por uma espécie de arquinarrador, que não só reordena as diferentes vozes como acrescenta outras versões e visões sobre os Meneses através dos relatos de personagens de fora da Casa4, como Padre Justino, o Farmacêutico, o Médico e o Coronel. O referido arquinarrador é diretamente citado no “Pós-escrito numa carta de Padre Justino” (cap. 56): Sim, resolvi atender ao pedido dessa

pessoa. Não a conheço nem sequer ima-

gino por que colige tais fatos, mas imagino

que realmente seja premente o interesse

que a move. [...] Não sei o que essa pessoa procura, mas sinto nas palavras com que

solicitou meu depoimento uma sede de justiça. E se acedo afinal – e inteiramente – ao seu convite, é menos pela lembrança

total dos acontecimentos –tantas coisas se

perdem com o correr dos tempos... – do que pelo vago desejo de restabelecer o respei-

to à memória de um ser que muito pagou neste mundo, por faltas que nem sempre

foram inteiramente suas [grifos nossos] (CARDOSO, 2004, p. 523).

Para Evando Nascimento (2001), a presença desse arquinarrador, associada ao título do romance – cuja referência ao assassínio é explícita e à crônica policial, uma possibilidade- aproximam a narrativa ao gênero investigativo. Essa proximidade é também reforçada pelo intenso e complexo dialogismo estrutural que caracteriza o romance, traço que tem sobre o leitor “um efeito estonteante”, capaz de lançá-lo “num oceano de dúvidas e indagações, em face do desconhecido” (cf. 2011, p.51). Assim, à semelhança do atribuídos à antagonista.

4 Utilizaremos a grafia em maiúscula porque, a nosso ver, a Casa é, no romance, uma espécie de personagem, não só devido a sua relação de espelhamento com a personagem Nina – a qual será abordada – mas também por materializar a ordem patriarcal rural. É também em nome dela que o personagem Demétrio age.

l­ eitor dos romances investigativos, aquele que se dispõe a ler a Crônica seguirá os passos desse arquinarrador e tentará reagrupar as várias “peças” que compõem o universo diegético. Os diferentes relatos direcionam a uma queda: a da família patriarcal mineira, que no romance é representada pelos Meneses e tem em Demétrio o seu principal defensor. A ruína familiar – cujo processo pode ser reconstituído a partir dos vários relatos – não se dá apenas no âmbito financeiro, mas também no que diz respeito à unidade familiar e aos seus valores. O agente desencadeador dessa queda é a persoangem Nina, o ‘corpo estranho’ para quem todos os olhares e perspectivas se voltam. As diferentes vozes, a disposição dos textos, o excesso de capítulos (ao todo 56), a organização temporal não-linear tornam a estrutura da Crônica da casa assassinada algo monstruoso, ratificando a afirmação de Julio Cortázar sobre o romance: “cosa impura, muonstro de muchas patas y muchos ojos”5. A multiplicidade de olhares e de relatos voltados para um único objeto (Nina) – que, por sua vez, desencadeia a irremediável queda –aproximam a estrutura romanesca do monstruoso pelo excesso. Curiosamente, no entanto, o excesso de vozes reforça o sentido inconclusivo do texto, já que alguns mistérios – como a identidade do ‘assassino’ e da ‘vítima’, figuras presumidas a partir do título do romance; o enigma em torno da maternidade de André; a dúvida se a relação entre André e Nina é, de fato, incestuosa e se Nina está a par disso – permanecem insolúveis ao fim da leitura. Segundo Nascimento (2001), as “vozes intérpretes da Crônica levam ao último grau a função indagante do literário no século XX”. Os “documentos” reunidos para escrever Crônica da casa assassinada não mantêm

correspondência imediata entre si; as

5 Preservamos a citação em espanhol, porém, as demais referências à crítica de Cortázar seguirão a edição brasileira de 2006 de Valise de cronópio.

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e livro de memórias são, por natureza, so-

igualmente monstruosas, desconexas, bem como leitores que saibam lidar com a lógica desafiadora das referidas narrativas.

missivas, retomam-se episódios de umas

tadas, fraturadas e desordenadas refletem

­cartas não têm resposta, os depoimentos parecem não ter interlocutor, e os diários lipsistas... Apesar disso, as narrativas perfazem um movimento circular, são inter-reàs outras. O intenso dialogismo estrutural,

mais que oferecer simples informações sobre as ações dos personagens, obtém o efeito estonteante de lançar o leitor num

oceano de dúvidas e indagações, em face

do desconhecido [ grifos nossos] (NASCIMENTO, 2001, p.51).

O romance não é monstruoso– no sentido cortazariano – apenas em termos estruturais, mas também quanto ao seu conteúdo, se considerarmos acontecimentos como o suicídio; o suposto incesto (entre Nina e André); uma casa que se deteriora junto com seus habitantes (Nina e Timóteo); a presença de figuras femininas sombrias e subversivas (Nina, Ana e Maria Sinhá); a descrição de um corpo que apodrece em vida, entre outros fatos que parecem saídos da ficção de Edgar Allan Poe6. A monstruosidade, a morbidez que se alastra pelo romance remete ao gótico, mas não na sua forma tradicional: a narrativa materializa um gótico modernizado, cujas implicações têm efeito sobre a estrutura e o conteúdo do romance. Para Sam Coale (2007) a maioria das narrativas modernas e contemporâneas passaram a apresentar estruturas desordenadas, labirínticas, fragmentadas, fraturadas. Nesses casos, cabe ao leitor ‘seguir os fios’ através dos labirintos textuais e, se possível, apreender os elementos diegéticos, bem como o motivo que leva as personagens a agirem de um determinado modo. Tais narrativas Coale classifica como “monstruosas”, textualidades que envolvem personagens 6 O conto “A queda da casa de Usher” exemplifica essa similaridade. Nele, o narrador-personagem rememora a ruína da família Usher. No conto, Roderick Usher enterra sua irmã já moribunda, Lady Madeline, viva. Ao fazê-lo acaba por perder a sanidade e passa ouvir vozes, até que em uma noite de tempestade sua irmã volta para buscá-lo, terminando com a linhagem dos Usher.

[...] essas narrativas labirínticas, fragmen-

as desconexões entre as suas personagens, assim como o peso dos sistemas elaborados que as criam ou aprisionam. Cabe tam-

bém ao leitor seguir os vários fios, através do labirinto textual, para tentar discernir,

se possível, o que aconteceu exatamente.

É uma tarefa desafiadora que nos seduz a

submeter aos túneis e vielas do sistema, tanto quanto as personagens, feridas e pre-

judicadas, foram seduzidas (COALE, 2007, pp.118-9).

Se o romance em análise é monstruoso em sua constituição e extensão, o é também no que diz respeito aos gêneros (ficcionais), se considerarmos a sua proximidade com o melodrama e o gênero investigativo. O primeiro gênero aborda, geralmente, conflitos familiares e amorosos de modo sentimental, problemáticas expostas pelo ângulo do “castrado”. De acordo com o crítico Daniel Link (2002) a desvantagem é o local de enunciação do melodrama. Segundo o crítico, a castração envolve um sujeito que possui desejos amorosos, sexuais, que não podem ser expressos. Esse sujeito, ao amar, assumiria a condição barthesiana de “feminizar-se”, independentemente do sexo do enunciador. Ao se colocar na posição de menos absoluto, a personagem provoca no leitor uma identificação, uma empatia, a qual é responsável por fazer o último experienciar a castração. Segundo Link: a castração é transitiva, expansiva e impos-

sível de deter. Sendo castrado (e porque o é), o castrado castra: o milagre da identificação do bolero (do tango, do teletea-

tro, do romance sentimental, etc) repousa

no processo pelo qual o que ouve (vê, lê)

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­identifica-se com o lugar de enunciação

do castrado: a carência, o menos definitivo (2002, p.121).

A monstruosidade em Crônica da casa assassinada extrapola a estrutura, a materialidade e a polifonia textuais: ela envolve também as personagens. Nesse sentido, destaca-se a personagem Nina, cuja excentricidade pode ser notada tanto pelo modo como é construída - através das diferentes vozes -, quanto pelo modo como a personagem questiona o comportamento esperado de uma mulher em sua época7.O texto, através do exagero quantitativo de discursos, mostra, justamente, a impossibilidade de se definir a feminilidade, bem como a impossibilidade de revelar uma verdade definitiva sobre a personagem. Ainda assim, algumas metáforas como a que relaciona Nina ao “fermento que atua decompondo”8 ou ao “anjo exterminador”9 permitem associá-la à destruição e ao fascínio: Não havia apenas graça, sutileza, genero-

sidade em sua aparição: havia majestade. Não havia apenas beleza, mas toda uma atmosfera concentrada e violenta de

sedução. [...] Mais tarde, à medida que se degradou, fui acompanhando em seu

rosto os traços do desastre, e posso dizer que nunca houve vulgaridade nem rebai-

xamento na nobreza de seus traços [grifos nossos] (CARDOSO, 2009, p. 63 ).

Na passagem, a caracterização de Nina registrada no diário de Betty, a governanta da Casa, se dá pela via do excesso, dos afetos. Em outras passagens, outras personagens utilizam outros adjetivos, porém sempre associam Nina à intensidade, o que aproxima 7 Nina escreve 4 cartas ao longo dos 56 capítulos do livro. Nelas, a antagonista se coloca na posição discursiva do castrado, diferentemente do modo como os demais personagens a veem. 8 9

Diário de Betty. p. 254.

Do livro de memórias de Timóteo (I). p. 490.

a antagonista do melodrama. Ao qualificá-la como “anjo exterminador” a personagem Betty sintetiza, em uma única imagem, a aura misteriosa de Nina, personagem que, paradoxalmente, incorpora o divino e o potencial destrutivo. Ao mesmo tempo, o designador sintetiza a exotismo e o fascínio que a personagem exerce sobre aqueles que a rodeiam. O excesso de designações (e nas designações) faz de Nina uma personagem monstruosa10. Ao considerarmos a maneira como Nina constrói a si mesma, em suas cartas, com o modo com o qual as demais personagens a concebem, percebemos a caracterização maniqueísta da personagem, o que fica claro no excerto a seguir, retirado de “Primeira carta de Nina a Valdo”: Terá acertado Valdo, aquela pobre Nina, e

hoje ainda mais pobre do que nunca, de

novo à sua porta, humilde e farejando o seu rastro como uma cachorra abandonada

na estrada. Talvez não seja inútil dizer-lhe

que mulheres da minha espécie custam a morrer [grifos nossos] (ibdem, p.37).

Na passagem, Nina se constrói como “pobre”, “humilde” e “cachorra”, adjetivos que remetem à desvantagem, à castração (simbólica) e que, quando confrontados com o modo como Ana a define - como “prostituta da mais baixa espécie, ser amoral e monstruoso” (ibidem, p. 328) –, revelam o maniqueísmo na caracterização da antagonista, outro elemento que estreita a relação entre Nina e as personagens que ‘povoam’ os ­melodramas. A presença de ‘monstros’, duplos, lugares isolados e assombrados: recorrências no romance gótico bastante exploradas em Crônica da casa assassinada. Em relação à segunda característica, é interessante assinalar a 10 Toma-se como definição de monstro, a formulada por Sam Coale: um indivíduo/ser aterrorizador que causa estranheza. Um transgressor de um padrão considerado normal.

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r­ elação de espelhamento (invertido) entre Nina e a Casa, entre Nina e Ana; a relação especular entre Timóteo e a figura fantasmática de Maria Sinhá. Tanto Nina quanto a Casa são corpos feridos que lentamente sofrem com um processo de degradação. Vitimada (punida?) pelo câncer, o corpo da personagem desenvolve uma série de gangrenas que corroem o seu corpo, como mostra a “Última narratição do médico”:

[...] da borda do seio, era de onde partia o filamento principal [...] de uma cor roxo

escuro, sucedia-se uma série de manchas que ia finalizar nas costas, o que indicava

no interior uma série de tumores bastante difíceis de serem extirpados. [...] ela pare-

cia estar se decompondo em vida (ibidem, p. 417).

Diegeticamente, após o agravamento da doença de Nina, o processo de degradação da Casa também se agrava, como se a última fosse também afetada por um câncer, como relatado na “Segunda narrativa do médico”: Dirão que isso talvez não passe de im-

pressão exagerada, mas a verdade é que há muito eu pressentia um mal qualquer

devorando os alicerces da Chácara. (...) – eu aprendera a respeitar e admirar um

monumento de tenacidade, agora surgia vulnerável aos meus olhos [...] como um

corpo gangrenado que se abre ao fluxo

dos próprios venenos que traz no sangue. [...] Ah, desta vez não havia dúvida: uma voz íntima me prenunciava que a Chá-

cara se achava em seus últimos dias [grifos nossos](ibidem, p. 159).

Se a Casa é um reflexo de Nina – e viceversa -, a imagem do constructo se revela algo fantástico, como um grande corpo feminino que se decompõe lentamente, abrindo espaços que revelam o vazio, o nada. Ambas passam por processos semelhantes (a

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­ oença, a ruína, a morte), bem como são d alvo da curiosidade alheia. Pouco se sabe realmente sobre elas, o que realmente há é um excesso de ficções em torno delas. Nesse processo de espelhamento, entretanto, Nina revela-se uma antagonista da Casa, rivalidade cujo resultado é a queda e a ‘punição’ de ambas (seja pelas transgressões que cometem ou que abrigam). A doença – o câncer - de Nina funciona como um algoz para o seu comportamento subversivo. A crítica feminista Elaine Showalter (1993), argumenta que as doenças sexualmente transmissíveis são como uma punição para aqueles que buscam o sexo como um meio de prazer. Ela também ressalta o surgimento de uma “nova mulher”, que perturba os indivíduos por seu comportamento sexual libertário e autonomia. Por mais que o câncer de Nina não seja uma DST, sua doença parte do seio, órgão associado tanto à maternidade quanto ao erotismo. Nina, ao mesmo tempo em que corrói símbolos da sociedade patriarcal (a família, a Casa), parece ser corroída, subjugada, exatamente pela moralidade a qual ataca. Nina representa o ‘novo’, ela é uma ‘estrangeira’ que surge para romper com os vínculos que sustentavam a família Meneses. Ela não se ‘enquadra’ nos valores patriarcais que a Casa materializa, mesmo que ambas desenvolvam uma relação de espelhamento. Nina ‘desvirtua’ os costumes da Casa, impregna seus cômodos e hábitos. (cf. BARROS 2002, p. 66). Repetidamente atacada (inclusive por uma nova ordem sócio-econômica), a Casa passa a refletir o estado caótico e desobediente da sua antagonista, como relatado por Betty, a governanta da família: Pela primeira vez e de modo insistente, insinuante, eu sentia o que realmente era a

presença daquela mulher [Nina] - um fer-

mento atuando e decompondo. [...] devagar

ia destruindo o que em torno constituía qualquer demonstração de vitalidade. [...]

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Era inútil esconder: tudo o que existia ali naquela casa, achava-se impregnado pela sua presença – os móveis, os acontecimentos, a sucessão das horas e dos minutos, o próprio ar. [...] O ritmo da casa, [...], achava-se desvirtuado: não ha-

via mais um horário comum, nem ninguém se achava submetido à força de uma lei geral [grifos nossos] (ibidem, pp. 253-4).

A morte de Nina demarca a morte simbólica tanto da Casa quanto da família. A Casa, já morta, ganha uma nova fisionomia, a qual envolve a perda de suas características originais, como assinalado por Valdo em seu quarto depoimento: [...] a Chácara desnudava a sua nova fi-

sionomia: as janelas abertas como que

vigiavam em plena escuridão, se bem que aquelas pupilas acesas não se moves-

sem, e como que fixassem uma a outra paisagem, acima e superposta àquela que

constituía os velhos pastos em torno do lar onde eu nascera. [...] essa invasão [dos

vizinhos para o velório] significava o fim – o fim completo dos Meneses (ibidem, pp. 450-451).

Com a fisionomia de Nina também ocorre o mesmo processo: ela, segundo Timóteo, se torna “uma coisa fria boçal, como se tivesse sido toscamente modelada em barro.” (ibidem, p. 484). Para Marta Cavalcante de Barros (2002), ambas são também violadas: o corpo de Nina é despido e envolto apenas em um lençol. Demétrio defende vorazmente que o corpo dela é apenas um cadáver que não precisava ser adornado. Na sequência, o corpo da antagonista é tocado por diferentes mãos enquanto é preparado para o enterro. Já a Casa, é invadida por diferentes pessoas durante o velório e, posteriormente, saqueada, pelo bando de Chico Herrera.

1. OUTROS ESPELHOS, OUTROS MONSTROS

Morta, Nina é despojada de seus adornos e, assim, descaracterizada. Ao analisar a personagem, Ruth Brandão (1993) relaciona o uso excessivo de adornos por parte de Nina ao desejo de suprir a ausência de um signo identificatório com o pênis. As roupas possuem uma dupla função para a personagem: um duplo do corpo e um segundo desenho corporal, que anula o corpo material e que o remodela, tornando-o erótico. Para Brandão, a personagem se ‘fantasia’ de mulher, o que atrela à sua imagem a estranheza e o perigo.11 Diferentemente de Nina, Ana veste-se de preto tornando-se um ser sombrio que observa e critica os atos de Nina. Ana relaciona-se com Nina de forma vampiresca, como quem busca no outro algo que lhe falta12, característica que reforça o ar gótico da personagem. Em uma de suas confissões, Ana, revela: “Nina avançara um pouco, eu avançara com ela, [...] estávamos reunidas, convertíamo-nos no mesmo ser, e eu a sugava, e eu a fazia minha, porque queria arrancar de seus lábios a presença daquele amante” (ibidem, p.316). Ao mesmo tempo em que Ana tenta retirar algo da concunhada, parece também nutrir um sentimento de admiração, o que sugere uma atração homossexual13. Essa atração é reforçada quando Ana seduz o jardineiro Alberto, amante de Nina e pai de André, e quando tenta seduzir o próprio André. As investidas e tentativas parecem mais uma forma de emular o comportamento de 11 As roupas, ainda, revelam sobre outra personagem: Timóteo que, ao travestir-se, coloca a virilidade e a tradição dos Meneses em cheque. Timóteo é uma força rebelde que se expressa através dos excessos: usa roupas chamativas que pertenciam a sua mãe e é caracterizado pela gordura autodestrutiva. Seu corpo enorme é sem fronteiras, rebelde às leis e às normas, um corpo desestruturado e que deseja desestruturar o poder familiar. Ele, assim como Nina, corrói a família patriarcal através da feminilidade (cf. BRANDÃO, 1993). 12 Percebe-se entre as personagens uma relação vampiresca metafórica. Não se trata de um vampirismo no seu sentido literal, mas de uma relação na qual Ana busca absorver a vitalidade de Nina através de atitudes que destroem a cunhada aos poucos. Em outras palavras, Ana age como um parasita que se alimenta de Nina para saciar aquilo que não possui (vitalidade, graça, sensualidade, etc.). Esse vampirismo metafórico é uma das principais características das personagens góticas e pode ser observado em contos como “O retrato oval” de Edgar Allan Poe, através da relação que o pintor constrói com a sua esposa.

13 A insinuação do desejo lésbico remete ao texto fundador Carmilla (1872), de Joseph Sheridan Le Fanu.

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Nina do que um interesse direto por Alberto e ­André. A ligação entre as personagens acaba constituindo um espelhamento. Ana se autodescobre à medida em que se compara com Nina, como destaca a própria Ana: “Eis que agora, pelo simples manejo da existência de Nina, eu o descobria [Alberto] como havia descoberto a mim mesma”. (ibidem, p.115). Em outra passagem, Ana confirma a sua relação de espelhamento em relação a Nina, bem como enfatiza que a figura de Alberto funciona como um elo entre elas:

Ela havia se colocado defronte de mim e mais uma vez seus olhos me perquiriam

desconfiados. Certamente não era pelo que representávamos, míseras mulheres encerradas em um quarto, mas pelas

lembranças que o passado trazia ao nos-

so rosto, pelo que havíamos sido e agora nos convertia em espectros. [...] e era ele [Alberto] e sua sombra que nos unia agora, uma defronte da outra tão idênticas

como se fôssemos irmãs [grifos nossos] ( ibidem, p.317).

Ana é a personagem feminina que mais tem voz dentro da Crônica da casa assassinada e a sua escrita, através da reflexão sobre Nina, é uma reflexão sobre a sua figura como mulher, sobre a feminilidade e sobre a estranheza em relação à própria feminilidade. Ana toma consciência do seu próprio corpo através de Nina, bem como percebe o quanto é falha ao não conseguir expressar a sua sexualidade. O fascínio de Ana por Nina vai além de uma atração homossexual. A figura de Nina é um objeto de culto, um sortilégio para Ana. Assim, é a figura de Nina que faz Ana tomar consciência de si. A relação de espelhamento entre as duas também se dá também através dos seus respectivos nomes. “Nina” é considerado o diminutivo de “Ana” e este, em contraste com a personagem, significa “graça” em hebraico. O

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nome “Nina” também pode significar “fogo” na língua indígena Quéchua. “Ana”14 também é um nome bíblico duas vezes referido pelas Escrituras. A primeira vez em que o nome aparece é no Velho Testamento: Ana é o nome da esposa do profeta Samuel; a segunda vez é no Novo Testamento: a tia de Maria também se chama Ana. Ambas as ‘Anas’ bíblicas são marcadas pela dificuldade de engravidar, um desejo que alcançam através de uma graça divina. No romance, Ana também se envolve com a questão da maternidade. Ela afirma, em seu leito de morte, ser a mãe de André. Após a primeira saída de Nina da Chácara devido ao seu relacionamento com Alberto, Ana teria descoberto a própria gravidez. Ela, então, diz que iria ao Rio para buscar a concunhada. Chegando lá, Ana encontra Nina também grávida. A última, após dar à luz, supostamente, teria entregue o bebê, chamado Glael, a uma enfermeira. Ana dá à luz ao seu bebê e retorna à Chácara afirmando que o rebento seria filho de Nina. Após 15 anos, Nina retorna já doente e se envolve com André, o que seria um incesto se ela for, de fato, a mãe do rapaz. Entretanto, não há como provar a maternidade exata de André. Para críticos como Ruth Brandão, discutir se o incesto ocorreu ou não é uma falsa questão. O que Brandão destaca é que tanto o nome “Glael” quanto “André” podem ser relacionados à imagem do falo. Glael remete à palavra francesa que significa gládio, glaïeul, enquanto André vem do grego e significa ‘homem viril’. O que estaria em jogo é o “ter” ou o “ser” o falo, o que Ana –segundo Brandão -disputaria, inconscientemente, com Nina. O fato de o nome dos bebês remeter ao falo mostra uma busca da mãe tentando reincorporar o filho, reincorporação que também pode ser relacionada ao desejo obsessivo de André por Nina. O fato de André nunca ter visto um retrato de Nina quando 14 No ensaio “Da cólera ao silêncio”, Leyla Perrone-Moisés, ao analisar o romance Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, revela que o nome “Ana” significa “eu” em árabe (cf. PERRONE-MOISÉS, 2001, p.65).

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criança, ­segundo Brandão, pode explicar a sua incapacidade de identificá-la como mãe pelo olhar, como Édipo não reconheceu Jocasta. Em seu diário, André revela:

[...] não posso designá-la como “aquela mu-

lher”, e muito menos como “minha mãe”. Não é nem uma coisa nem outra. Não é

nem a mulher exterior a mim, que possa ser designada como “esta” ou “aquela”, nem

o ser que me deu nascimento, alimentan-

do-me com seu sangue e sua seiva. Talvez a qualquer outra mulher não me sentisse

tão identificado assim. Não somos pessoas diferentes, esta é a razão, somos uma úni-

ca e mesma pessoa. [...] Mulher e mãe, que

outro híbrido poderia condensar melhor a força de nosso sentimento? Amá-la é reintegrar-me no que fui, sem susto e sem

dificuldade [grifos nossos] (ibidem. Diário de André - VI, p.352).

Essa ideia de fusão dos corpos atinge um ápice quando André vislumbra a (suposta) mãe no leito de morte. Diante de seu corpo em agonia, André busca recuperar e recompor sua imagem única, no real do corpo inerte. Repulsivamente, André possui Nina em estado terminal, quando o seu corpo já estava aniquilado pela doença. Para Brandão, é diante do corpo quase morto da mãe, cujo sexo André vislumbra, que ocorre a castração, perda que, no romance, se realiza pela morte de Nina. Por fim, percebe-se que o romance Crônica da casa assassinada é uma grande profusão de vozes, de gêneros literários e de tabus voltados para a questão da feminilidade. É através, especialmente, de Nina que se mostra a impossibilidade de, linguisticamente, encontrarmos uma definição para o feminino. As diferentes vozes, por mais que tentem definir a antagonista, acabam infringindo sobre o objeto suas próprias convicções. Nina é o novo e o novo tende a ser encarado como algo monstruoso por aqueles que

o enfrentam e que o desconhecem. Ela, que representou para os Meneses, inicialmente, a esperança da continuidade genealógica, será o agente que decreta o fim da casa e da família. Por outro lado, é através dela e de suas faltas que se perpetuou a história dos Meneses, tanto na memória daqueles que conviveram diegeticamente com a família (o Médico, o Farmacêutico, habitantes de Vila Velha, Padre Justino), quanto no imaginário de todos os leitores desse romance - em vários sentidos - monstruoso.

COISA(S) IMPURA(S)

No já canônico ensaio “Situação do romance”, Cortázar destaca o ‘vale tudo’ romanesco – sobretudo, o das narrativas produzidas na primeira metade do século 20 -; o fato de o gênero ter por base a ação e de permitir a “aliança de elementos díspares” (2006, p.71). Para o escritor argentino, o ápice romanesco compreenderia as três primeiras décadas do século anterior, quando o gênero promoveu a “ação das formas” e conquistou a “audaz libertação” no sentido formal (cf. idem, p.75). Ainda que Crônica da casa assassinada seja uma narrativa posterior ao momento referido, nela podemos verificar a junção de ‘disparidades’ (diferentes gêneros textuais e ficcionais; presença de personagens que corporificam valores também distintos, cujos atos têm consequências desastrosas e desconcertantes). Em Crônica, porém, o amálgama de diferenças – diferentemente dos romances mencionados por Cortázar – não é resultado de uma busca por formas libertadoras, mas uma estratégia que permite entrever outros espelhamentos: entre forma e conteúdo, entre estrutura e discurso. No romance, a ‘monstruosidade’ temática, portanto, materializa-se em coisa(s) impura(s).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

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BARROS, Marta Cavalcante de. Espaços de memória: uma leitura de crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso. São Paulo: Nova Alexandria, 2002. BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1993. CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

. Inácio. In: Inácio, O enfeitiçado e Baltazar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. pp. 13-147.

CARDOSO, Elizabeth da Penha. Feminilidade e transgressão – uma leitura da prosa de Lúcio Cardoso. 2010. 215f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 2010. COALE, Sam. Os sistemas e o indivíduo: monstros existem. In: JEHA, Julio (org). Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

CORTÁZAR, Julio. Situação do romance. In: Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006. LINK, Daniel.O amor é um naufrágio (sobre o Melodrama).In: Como se lê. Chapecó: Argos, pp. 115-125, 2000.

NASCIMENTO, Evando. Crônica de um crime anunciado. Revista Ipotesi. UFJF, v 5, nº1, 2001. Disponível em: http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2011/05/6-Cr%C3%B4nica-de-um.pdf PERRONE-MOISÉS. Leila. Da cólera ao silêncio. In: Cadernos de literatura brasileira – Raduan Nassar. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2001

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SHOWALTER, Elaine. Anarquia sexual: sexo e cultura no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

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NORMAS PARA A SUBMISSÃO DE CONTRIBUIÇÕES

Expressão: Revista do Centro de Artes e Letras da UFSM é um periódico semestral que publica artigos inéditos, entrevistas, resenhas e informes sobre eventos artísticos e científicos, de autoria de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, redigidos em língua portuguesa, nas áreas de Letras, Música, Artes Cênicas, Artes Visuais e Desenho Industrial. Aberta a colaboradores internos e externos ao Centro de Artes e Letras da UFSM, o periódico aceita trabalhos de professores, pesquisadores e alunos de pós-graduação strictu sensu (mestrandos e doutorandos). Criada em 1996, Expressão recebeu a classificação B4 (Linguística/Letras, Artes/ Música e Interdisciplinar) e B5 (História) no Relatório Qualis de 2012. Os originais devem ser encaminhados para o email [email protected], simultaneamente em formato .doc (Word for Windows) e em formato .pdf (Portable Document Format). Anexar, juntamente com as cópias das colaborações enviadas, em arquivo à parte, ficha de identificação com os seguintes dados: título do artigo, nome do autor, titulação, filiação institucional, endereço eletrônico, endereço para correspondência e telefone para contato. Incluir também, nesta ficha de identificação, uma pequena biografia com breve apresentação do autor, filiação institucional, e publicações recentes (Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm), com até 10 linhas de extensão. Os artigos que não forem apresentados com a ficha de identificação ou que não atenderem às normas para apresentação de trabalhos serão sumariamente recusados. Os manuscritos – originais inéditos – devem ter a extensão de 15 a 20 páginas (artigos); até 15 páginas (entrevistas); de 5 a 10 páginas (resenhas) e até 5 páginas (informes sobre eventos artísticos ou científicos para a seção Depoimentos/divulgação). Os originais devem ser digitados em corpo 12, espaçamento entre linhas de 1,5, fonte Times New Roman. A ordenação dos originais deverá observar a sequência indicada, a saber: título do trabalho, nome(s) do(s) autor(es), resumo, palavras-chave, abstract e resumen, keywords e palabras-clave, corpo do trabalho, anexos e bibliografia. Em nota de rodapé, precedida de asterisco, na primeira página, deve constar a filiação institucional do(s) autor(es). Os autores deverão ter preferencialmente a titulação de doutor. Estudantes de pós-graduação (mestrandos e doutorandos) poderão submeter contribuições a todas as seções da revista. No caso dos artigos, entretanto, os respectivos orientadores devem possuir o título de doutor e assinar em regime de co-autoria o manuscrito submetido para avaliação. O conteúdo dos textos é de responsabilidade exclusiva de seus autores, bem como a adequação às normas científicas e ortográficas vigentes. Adotar 3 cm para as 4 (quatro) margens e espaçamento entre linhas de 1,5 para o texto, página tamanho A4. Os autores, ao enviarem os artigos, estarão cedendo à Expressão os respectivos direitos autorais e receberão 02 (dois) exemplares da revista em que seu trabalho foi publicado. Insiste-se no fato de que as colaborações submetidas devem ser inéditas.

Cabeçalho

No alto da primeira página, centralizado, a 3 espaços do topo da lauda, deve ser colocado o título do trabalho, grafado em maiúsculas, negrito e corpo 16. Centralizado(s), a 2 espaços abaixo do título, deve(m) vir o(s) nome(s) do(s) autor(es) em corpo 12, fonte Times New Roman, utilizando maiúsculas apenas para as letras iniciais.

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Resumo Inicia 3 espaços abaixo do nome do autor, à margem esquerda, precedido da palavra RESUMO, em corpo 12, grafada em maiúsculas, itálico e negrito, seguida de dois pontos. O texto do resumo, de 150 a 300 palavras, deve ser redigido em português. Deve ser apresentado em itálico, corpo 12, fonte Times New Roman e espaçamento entre linhas de 1,5.

Palavras-chave

A seção inicia dois espaços abaixo do resumo, à margem esquerda, em corpo 12, com a expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, itálico e negrito, seguida de dois-pontos. Admitem-se até cinco palavras-chave, em corpo 12, separadas entre si por ponto.

Abstract/Keywords – Resumen/ Palabras-clave

Seguir os mesmos padrões elencados para o resumo e para as palavras-chave. É obrigatória a inclusão de versão do resumo e das palavras-chave em inglês e em espanhol.

Corpo do trabalho

Deve ser disposto em forma sequencial, sem espaços ociosos, iniciando a 3 espaços das palavras-chave, em espaçamento entre linhas de 1,5, corpo 12 e fonte Times New Roman. A sinalização dos parágrafos corresponde a 1 toque de tabulação (1,25 cm). As citações com até 3 linhas devem ser incorporadas, com aspas, ao texto e seguidas do nome do autor, ano da obra e páginas, entre parênteses. Exemplo: x x x “[...] kshwj fiwf jfisjd” (PARRET, 1988, p. 24). As citações com mais de 3 linhas devem ser apresentadas, sem aspas, em margem própria de 4 cm, espaçamento simples, corpo 10, seguidas da referência bibliográfica entre parênteses conforme exemplo acima. Tabelas, gráficos e ilustrações, quando presentes devem vir inseridos em sua posição definitiva no texto, com resolução mínima de 300 dpi, em formato .jpeg. A revista ­publica

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ilustrações, tabelas e gráficos apenas em escala de cinza. Logo, é importante verificar as condições de visualização e impressão de elementos gráficos originalmente concebidos em cores. As notas textuais, exclusivamente explicativas, devem ser colocadas no rodapé, numeradas, de modo sequencial, em algarismos arábicos e apresentadas em espaço simples, corpo 10, iniciando à margem esquerda, alinhamento justificado. O número de referência, tanto no texto quanto no rodapé, deve ser sobrescrito. Os títulos das seções, sempre à margem esquerda, a 2 espaços do parágrafo anterior e posterior: a. TÍTULOS DE SEÇÕES PRIMÁRIAS: MAIÚSCULAS, NEGRITO, CORPO 12; b. Títulos de seções secundárias: iniciando a primeira palavra em maiúscula, negrito, corpo 12;

Anexos

A seção anexos, quando houver, deve ser precedida, 3 espaços abaixo da última linha textual, da palavra ANEXOS, centralizada, em maiúsculas, itálico e negrito, corpo 12, e seguida, 2 espaços após, do(s) anexo(s), devidamente identificados e numerados, separados entre si por 2 espaços.

Referências

A palavra REFERÊNCIAS deve ser digitada a 3 espaços da última linha textual ou dos anexos, centralizada, em maiúsculas, itálico, negrito e corpo 12, seguida, 2 espaços após, das referências bibliográficas. Inserir apenas as obras citadas, e não a totalidade das obras consultadas. Tais referências devem ter corpo 12, fonte Times New Roman e ser ordenadas alfabeticamente, em espaçamento 1,5 cm, à margem esquerda, conforme exemplos que seguem. Observação importante: independentemente da língua de origem da obra citada, apenas a primeira palavra dos títulos deve ser ­grafada

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com maiúscula; exceção feita, por razões óbvias, para substantivos próprios que estejam inseridos como parte dos títulos, ou para substantivos em língua alemã.

Livros com um autor

ALÓS, Anselmo Peres. A letra, o corpo e o desejo: masculinidades subversivas no romance latino-americano. Florianópolis: Mulheres, 2013.

Livros com até três autores

ORLANDI, Eni; GUIMARÃES, Eduardo; TARALLO, Fernando. Vozes e contrastes. São Paulo: Cortez, 1989.

Livros com mais de três autores

DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de linguística. São Paulo: Cultrix, 1987.

Capítulo de livro de um autor

ETIEMBLE, René. Crise de la littérature comparé? In: . Comparaison n’est pas raison. Paris: Gallimard, 1963. p. 23-58.

Capítulo de obra coletiva

FERREIRA, Maria Cristina Leandro. A antítese da vantagem e do jeitinho na terra em que Deus é brasileiro. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas: Pontes, 1993. p. 31-45.

Artigo de periódico

MATEUS, Maria Helena Mira. Unidade e variação na língua portuguesa: memória coletiva e memória fraccionada. Organon, Porto Alegre (UFRGS), v. 8, n. 21, p. 35-42, jan. 1994.

Documentos de internet (não utilizar sublinhado para os hiperlinks)

ALVES, L. R. G.; PRETTO, N. “Escola: espaço para a produção de conhecimento”. Disponível em: Acesso em: 02 de agosto de 2013.

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Filmes MADAME SATÃ. Direção e roteiro: Karim Aïnouz. Elenco: Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo e Flávio Bauraqui. Trilha sonora (não original): Bruno Barteli, Ismael Silva e Francisco Alves. Brasil, 2001, color., 105 min, 35 mm.

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