Expressões da estética descolonial na América Latina

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Expressões da estética descolonial na América Latina Barroco, Cultura e desobediência epistemológica

Expressions of decolonial aesthetics in Latin America Baroque, Culture and epistemic disobedience

Expresiones de estética decolonial en Latinoamerica Barroco, cultura y desobediencia epistemológica

TÓPOS V. 7, N° 2,

p. 113 - 130, 2013

Resumo Este trabalho analisa expressões barrocas Ibero Americanas segundo uma ótica da “descolonialidade”, procurando nesta corrente artística elementos para entender uma estética conceitual própria da América Latina em contraposição à racionalidade moderna. Entendendo que o Renascimento e a Modernidade são também frutos do processo de colonização e da condição de colonialidade, apresentamos argumentos no sentido de compreender também as originalidades, criações da resistência e apropriações da expressão que constituem uma forma de desobediência epistêmica no sub-continente Latino Americano. Para isso nos baseamos na expressão poética de Jose Lezama Lima e no Real Maravilhoso de Alejo Carpentier, mas indicamos também a necessidade de uma visão de estética expandida, nos modelos da “estética conceitual” apontada por Eduardo Viveiros de Castro, relacionando aqueles elementos com ideias referentes à criação do pensamento e da expressão latino americana e das teorias sobre a descolonização. Palavras-Chave Estética – América Latina – Descolonização – Barroco Abstract This work analyses the Ibero-American baroque expressions according with a decolonial optic, seeking in this artistic current elements to understand a conceptual aesthetics proper to Latin America in opposition to modern rationality. Assuming that Renaissance and Modernity are also fruit of the colonization process and of the condition of coloniality, we present arguments towards the comprehension the originality, creations of resistance, and appropriation of expressions which constitute a form of epistemic disobedience in the Latin American sub-continent. In order to do so, we base ourselves in the poetic expression of Jose Lezama Lima and in Alejo Carpentier's Real Marvellous, but also indicate the necessity of an expanded vision of aesthetics, in the way of a “conceptual aesthetics” pointed out by Eduardo Viveiros de Castro, interweaving those elements with referential ideas of the creation of the Latin American thought and expression and the theories on decolonization. Key Words Aesthetics – Latin America – Decolonization - Baroque

Resumen Este trabajo analiza las expresiones barrocas iberoamericanas según la óptica de la "decolonialidad", buscando en esta corriente artística elementos para comprender una estética conceptual propia de América Latina contrapuesta a la racionalidad moderna. Partiendo de que el Renacimiento y la Modernidad también son frutos de los procesos de colonización y de la condición de colonialidad, presentamos argumentos en el sentido de comprender originalidades, creaciones de resistencia, y apropiaciones de expresión, que constituyen una forma de desobediencia epistémica del latinoamericano. Para esto nos basamos en la expresión poética de José Lezama Lima, y "Lo real maravilloso" de Alejo Carpentier, pero señalamos también la necesidad de una perspectiva estética expandida a los modelos de "estética conceptual" sostenida por Eduardo Viveiros de Castro, relacionando aquellos elementos con ideas referentes a la creación de pensamiento y de expresión latinoamericana, y a la teorías de la descolonización. Palabras clave Estética, América Latina - Descolonización – Barroco

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Em sua famosa introdução à “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, Max Weber, examinando as heranças e consequências da racionalidade, se pergunta sobre “quais combinações de circunstâncias se pode atribuir o fato de na civilização ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como queremos crer, apresentam uma linha de desenvolvimento de significado e valor universais”. Helenismo, Cristianismo, Leis Romanas e a Renascença são creditadas de maneira a oferecer certo “espírito” a essa universalidade racional. Citando música, arquitetura, pintura e literatura, ele adiciona: “A mesma observação é válida no tocante às artes” (Weber, 1996:2). Em sua conclusão, Weber aponta o enclausuramento do homem, via esta ética do trabalho, em uma armadura de ferro onde é clara a dificuldade de expansão dos sentidos e ilustra o mundo da racionalidade ocidental como um de “especialistas sem espíritos e sensualistas sem coração”. Na história da América Ibérica uma outra forma de arte e expressão – a barroca – se expressa, segundo Jose Lezama Lima, enquanto “móveis para a vivenda, formas de vida e de curiosidade, misticismo que se prende a novos módulos para a prece, maneiras de saborear e de trarar os manjares, que exalam um viver completo, refinado e misterioso” (Lima, 1988:80). Tal estética cotidiana, ainda segundo o cubano, embora “amistosa da ilustração”, é descrita como uma arte da “contraconquista” antes do que uma da “contrareforma” católica oposta ao protestantismo. O “Senhor Barroco”, “primeiro americano (…) dominador de seus caudais”, recém independente, tem papel central em seu desenvolvimento e expressão. Do português barroco, notando-se o radical barr, se extrai o significado de “pérola de origem irregular” (Cunha, 1986), que, por sua vez, submete a ideia de um gosto discutível, de formação retorcida e, de um ponto de vista formalista, oposta à arte renascentista. Depreciativo em seu tom inicial, o termo somente terá uma revigoração e certo reconhecimento no final do século XIX e início do século XX.1 O outro significado original em disputa é o de um falso silogismo escolástico, que remeteria a um raciocínio deformado, caricatural, tortuoso (Woffling, 1950; Moisés, 2006). Essa percepção é também adotada por Benedetto Croce em Storia dell' Età barocca in Italia, que via no barroco uma “confusão gnóstica” e retomava o sentido escolástico da palavra para denotar seu caráter de imprecisão, feiura, desordem e estranhamento. Segundo Gombrich e seu “História da Arte” a primeira construção arquitetônica 1

Ver: Wölfflin, Heinrich. Principles of Art History. Translated by M. D. Hottinger. New York, 1950. Translation of Kunstgeschichtliche Grundbegriffe (1915); Renaissance and Baroque. Translated by Kathrin Simon. Ithaca, N.Y., 1966. Translation of Renaissance und Baroque (1888); Panofsky, Erwin. "What Is Baroque?" In Three Essays on Style, edited by Irving Lavin, pp. 19–88. Cambridge, Mass., 1995. Previously unpublished lecture from 1934

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posteriormente reconhecida e nomeada de Barroca, foi a Il Gesù, igreja projetada por Giacomo Della Porta por volta de 1575: “Era a igreja da recém-fundada Companhia de Jesus, uma Ordem na qual se depositavam grandes esperanças para combater a Reforma na Europa”. Da mesma maneira, a Iglesia de la Compañia, em Quito, Equador (Fig 1), expressão do barroco americano e cuja construção se estendeu de 1605 a 1765, compreendendo quase que todo o período que é reconhecido como o da arte barroca hoje em dia. As mais notadas figuras da expressão do barroco colonial Americano são a Mexicana Sor Juana Ines de la Cruz, o Mineiro Aleijadinho e o índio quechua Kondori.

Fig 1: Fachada da Iglesia de la Compañia, Quito, Equador. (http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7b/Quito-La_Compania-01.jpg)

Em função da unificação Ibérica (sendo este um fato importante da abrangência desta expressão tanto na América Portuguesa como na Espanhola), da contra-reforma e TÓPOS V. 7, N° 2,

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do conselho de Trento, da expansão imperial e da militância da companhia de Jesus, educação, ofício, crença e conquista se intensificam na luta Ibérica pelo engrandecimento dos domínios da razão e da sensibilidade. Marcado pela morte de Luiz Vaz de Camões em 1580, o barroco Português e Espanhol tem impulso sustentado pela necessidade não só da defesa do catolicismo, mas também pelo chamado imperial, ético, expansionista e moral que guiava o Ibérico em oposição à uma tendência individual, terrena, utilitária e laboral que guiava o protestante, como notado por Weber. A enciclopédia de Diderot de 1751 tem como verbete o baroche, que se define enquanto: “adj. Termo de pintor usado para explicar que o pincel não delineou claramente um contorno e que apresenta cores respingadas sobre o fundo” (Didetot, 1777:422). Antes disso porém, sabe-se que o termo du baroque foi aplicado em uma carta anônima ao jornal Mercure de France impresso em 1734 para referir-se a uma ópera (aparentemente Hippolyte et Aricie, de Jean Philipe Rameau) e classificando-a como uma obra na qual “...faltava melodia coerente, era impiedosa nas dissonâncias, mudava de tom e métrica constantemente e rapidamente ia por todos os dispositivos de composição” (Palisca, 2001:752). Outro enciclopedista, Jean Jacques Rousseau, em 1768, definia a música barroca como “aquela na qual a harmonia é confusa, carregada com modulações e dissonâncias, a melodia é áspera e pouco natural, a entonação difícil e o movimento é embaraçado” (Couart, 1989; Buelow, 2004:2). Nota-se naturalmente o aspecto de surpreender pela ousadia e dificuldade, por elementos insólitos, surpreendentes, de mesclas, movimentos e obscuridades desta expressão musical que foi definida em relação à época barroca. Em meio a uma disputa político-religiosa entre protestantismo e catolicismo que desmonta os valores da renascença, a forma das expressões parece refletir mais um mundo que virá do que um em que se vive. Ridículo, pitoresco, absurdo, grotesco: uma falta de gosto, um desapreço pelo belo e uma arte do impuro, desdenhada pelos filósofos e críticos subsequentes, o barroco foi então relegado à um entremeio do renascimento para o romantismo no qual o desconhecido e a mistura de referências se aproximava mais de uma obliteração da arte do que à expressão de um momento histórico. O que dá o tom do barroco é a conciliação “numa síntese utópica, a visão do mundo medieval, de base teocêntrica e a ideologia clássica, renascentista, pagã, terrena, antropocêntrica. (…) de forma que se operaria a espiritualização da carne e a correspondente carnalização do espírito” (Moisés, 2006:73). Há base para defender que o renascimento é, portanto, um regime intelectual que se difere do barroco, no sentido em que o primeiro é “Um movimento crítico-intelectual TÓPOS V. 7, N° 2,

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pan-europeu defendendo a tolerância religiosa, o liberalismo econômico, modernização do Estado, reforma fiscal e judicial e uma reavaliação da natureza humana em termos de uma visão mais otimista e secular dos destinos do homem” (Saisselin, 1992:5). Desta maneira o barroco apareceria, na mesma opinião de Rémy Saisselin, em conflito com o renascimento na medida em que “essa mentalidade esclarecida, como manifesto em sua análise e crítica das artes, sociedade e religião, fez possível separar o que no Barroco era percebido como unidade (…), a suposição Barroca da conjunção de realidade e aparência. A mente esclarecida penetrou em aparências para revelar as ficções da sociedade Barroca, assim fazendo distinções entre arte e luxo, gosto e moda, moralidade e estética, objeto e sujeito.” (Saisselin, 1992:6). O que o Esclarecimento e o Renascimento não abarcam, portanto, é uma unidade coexistente entre linguagem, mundo, mito e realidade presente no Barroco, que se inclina também em desfazer a dissociação entre sujeito e objeto. Como num desafio epistemológico, o barroco é classificado, como vimos, enquanto irregular, deformado, estranho, incoerente, retorcido e dissonante.

Tais

alegorias,

como

veremos,

demonstram

a

impossibilidade

de

compreensão daquilo que foge à catalogação ocidental, e com efeito, se encerra numa hierarquização das expressões que é sintoma de um poder colonial. Numa das obras mais famosas do Barroco Espanhol, o clássico Las Meninas, de Diego Velázquez, o que imprime o entusiasmo e a genialidade é um espelho. Espelho que não se vê, mas está presente na obra como forma revolucionária do olhar e do papel do observador, como nos lembra Foucault em “The Order of Things” (Foucault, 2004:7): “Um reflexo que nos mostra simplesmente, e nas sombras, para o que todos aqueles no plano de fundo estão olhando”. Esta obra, afirma o autor, é uma que remete à elementos clássicos, mas também aponta para uma simbologia moderna, em suas palavras, às “condições de possibilidade”, um devir. Outra amostra clássica do período é o Quixote de Cervantes, também analisado por Foucault onde, segundo este, o Quixote é um processo de produção e não uma personagem, resultado de imagens prévias e velhas categorias narrativas na qual “é feito de palavras tecidas: ele está se escrevendo, vagando através do mundo por entre a semelhança das coisas” (Foucault, 1998:51). A atenção e originalidade de Foucault é ver nestes exemplos (assim como vê em Borges), não formas estáticas de uma estética passada, mas signos que representam um momento contemporâneo, ou, por assim dizer um salto no tempo que promove sensibilidades à uma nova forma de encarar o mundo, projetando esta forma como sintoma de uma pósmodernidade. Em 1605 a obra de Cervantes foi trazida para a América e dois anos depois, “muito TÓPOS V. 7, N° 2,

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antes da segunda parte aparecer, um cavaleiro mascarado da triste figura gracejava nos carnavais de Lima” (Arciniegas, 1980). Também a metáfora do espelho foi extensamente usada como artifício para analisar a história da formação da América, especificamente em “O espelho de Próspero” de Richard Morse, “O espelho enterrado” de Carlos Fuentes (“El barroco es un arte de dislocamientos, semejante a un espejo en que, constantemente, podemos ver nuestra identidad en mudanza”) e “Enigmas do pensamento Latino Americano” de Octávio Ianni, onde diz sobre a “persistência e a recorrência de ideias relativas a 'ecletismo', 'mimetismo', 'espelhismo', 'ideias exóticas', 'ideias fora do lugar', 'autenticidade', 'inautenticidade' (Ianni, s\d). A noção de cultura, nos alerta Felix Guattari e Suely Rolnik, é “extremamente reacionária” (Guattari & Rolnik, 2006:27) e permite traçar um paralelo com a ideia de uma matriz de poder epistemológico colonial. Para os autores, o desenvolvimento do conceito culmina na separação de atividades semióticas das realidades políticas por meios de separações, isolamentos, catalogações, segregações e qualificações. Iniciando-se como forma de justificar o cultivo da mente por parte da burguesia européia e como meio de se livrar da rigidez hierárquica da nobreza, a cultura era vista como fruto de trabalho e conhecimento, dando espaço para uma separação entre pessoas (ou classes) com ou sem cultura. Posteriormente, a ideia de que todos têm cultura é desenvolvida igualmente como forma de dominação colonial etnocêntrica: atividades de semiotização complexas e heterogêneas são classificadas de acordo com os manuais da antropologia cultural, categorizando uma mente “primitiva” a partir de segmentações da mente “moderna”, empobrecendo as dinâmicas integradas de suas relações sociais e tecnológicas. Nossos dias, caracterizados pela cultura de massas e pela racionalização de mercados e instituições, carregam a ideia de cultura enquanto sistema onde se equiparam pessoas, valores, mercadorias e bens culturais como forma de dominação e controle da subjetividade, já chamado de “imperialismo cultural” e “cultura de massas”. Contrariamente, a ideia de estética, não livre dos seus componentes coloniais, parece-nos mais adequada para compreender certas maneiras de fazer e artes cotidianas relacionadas as expressões Americanas. Se observamos sob uma determinada perspectiva baseada no olhar, na imagem, na sensibilidade e na combinação de sentidos, veremos que a história colonial da América não só contribui para a formulação, durante o século XVIII, da noção moderna-colonial de estética, como nos permite também traçar linhas partindo daquele estranhamento inicial do primeiro contato e da colonização, de um campus confusionis marcado pelo desconhecido e pelo maravilhoso, onde o visão européia “forçava o estranho a se tornar familiar” (Kupperman, 1995). Sobre este aspecto, TÓPOS V. 7, N° 2,

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os relatos de navegação e crônicas do período da conquista nos oferecem claras amostras. O desconhecimento da separação iluminista e renascentista entre céu e terra, história e mito, verdade e ficção, arte e ofício e etc. foi marcante nos primeiros movimentos da colonização do continente. Sobre o relato da chegada de Colombo ao novo mundo, Rabasa escreve que os textos e as perspectivas sobre este novo mundo, enquanto “o sentido do maravilhoso”, “serve como molde semiótico para o factual enquanto que simultaneamente provê elementos e critérios para a produção de novos signos”, ilustrando um “sentido de abertura de novos mundos de natureza, lapidando novas parcelas de realidade” (Rabasa, 1993:59). Alternativamente, havia também o fenômeno da falta de palavras, dificuldade notada por muitos escritores latinoamericanos, que se inicia no exemplo de Cortez, conquistador do México, que naquele limite entre o maravilhoso e o compreensível, relata que “por não saber dar nomes à estas coisas, eu não as expresso”. Alejo Carpentier escreve que “se o surrealismo perseguia o maravilhoso, torna-se necessário dizer que em muito poucos momentos apanhou-o em sua realidade (…) o maravilhoso era, mais frequentemente fabricado de maneira premeditada” (Carpentier, 1987:24). Sua crítica é redigida aos clichês e truques pelos quais a Europa tenta sobremaneira atingir o maravilhoso transformando “taumaturgos” em “burocratas”. Para ele, o maravilhoso latino-americano é cotidiano e “para entender, interpretar este novo mundo, o homem precisaria de um novo vocabulário, porém mais que isso, pois um não existe sem o outro – uma nova ótica” (Carpentier, s\d). Seu “real maravilhoso” pressupõe um evento real (um sentido do real que engloba o incomensurável aspecto da razão) porém inesperado. Entre a crônica e a imaginação “a fatalidade da primeira é liberada pelo desejo da última”. Carpentier, em sua distinção entre o real maravilhoso e o surrealismo, se inclina ao barroco ao afirmar que “Nuestro arte siempre fue barroco: desde la espléndida escultura pre-colombiana y el de los códices, hasta la mejor novelística actual de América, pasándose por las catedrales y monasterios coloniales de nuestro continente”. Para além da restrição à uma “arte” barroca, ele se identifica com uma mescla de formatos e uma estranheza das sensações que caracteriza tanto o estilo e o pensamento como também a metáfora da América. A aberração, o inesperado, aquilo que “começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade, de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas da realidade” (Carpentier, 2009:9) é uma crônica que nega o TÓPOS V. 7, N° 2,

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esquematismo e o historicismo para dar pinceladas de sensações às relações entre visão, alma, natureza e paisagem. O barroco é portanto, o símbolo desta América que transita e se transforma, desde Mackandal que intensifica sua animalidade, tornando-se animal, até o Amo criolo, que se torna Montezuma nos bailes de Veneza. Carpentier usa fórmulas que são essencialmente confusões dos sentidos e significados: um tipo de sinestesia epistêmica, uma variação ou trânsito de sensações dentro de um universo particular de constituintes que é um modo de disputa de sentimentos que só pode ser notada com a estética que se torna palpável: “Nossa natureza é indômita, como nossa história, que é a história do real maravilhoso e do insólito na América (...) e se nosso dever é o de revelar este mundo, devemos mostrar, interpretar nossas coisas. E estas coisas se apresentam como coisas novas a nossos olhos. A descrição é inequívoca, e a descrição de um mundo barroco há de ser necessariamente barroca” (Carpentier, 1984).

F i g . 2 – G a l l o d e l C a r i b e , W i l fredo Lam, 1954. Alejo Carpentier, no prefácio de “O Reino de Este Mundo” escreve: “E teve que ser um pintor da América, o cubano Wilfredo Lam, quem nos ensinasse a magia da vegetação tropical, a desenfreada Criação de Formas da nossa natureza – com todas suas metamorfoses e simbioses -, em quadros monumentais de uma expressão única na pintura contemporânea” (Imagem retirada de: La Revista Orígenes y la Vanguaria Cubana. D.G.E. Ediciones/Turner. Madrid, 2000)

Enquanto que na Europa, após o Barroco, a arte de uma maneira geral foi enquadrada neste regime chamado “estética”, na América, queremos crer que o barroco e suas variantes vieram a transfigurar o conceito de estética e transformá-la em mais do TÓPOS V. 7, N° 2,

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que um campo restrito às artes. O enquadramento europeu se dá pela necessidade do século XVIII de re-organizar o pensamento e colocá-lo em bases materiais, históricas, lineares e formais. O ornamentado, decorativo, exuberante, excessivo, monstruoso, excêntrico, depois de passar por uma demonização que se estende até o pós II Guerra, só irá se reerguer no que se convencionou chamar de capitalismo tardio ou pósmodernidade. Não acidentalmente, inúmeras vezes a literatura e a história da América Latina é vista enquanto expressão deste mesmo pós modernismo, pós colonialismo, hibridismo e creolização: “mestiçagem, indigenismo, diversidade, creolidade, raça cósmica – vêm recentemente sendo marcado como um sintoma do momento pósmoderno, pós-colonial, pós-nacionalista (…) Noções de identidades referenciais ontológicas se metamorfoseiam num jogo conjuntural de identificações. Pureza cede espaço à 'contaminação'” (Stam, 1998). Crítico desta interpretação “pós-moderna” e “pós-colonial” da América Latina, o chamado Projeto Modernidade-Colonialidade, observa tais perspectivas enquanto visões eurocêntricas, baseadas na “matriz epistemológica” colonial. Defendendo uma “virada epistêmica descolonial” (Grosfoguel, 2007) e assumindo que a modernidade e suas ramificações econômicas, políticas e simbólicas (Capitalismo, Marxismo e Cristianismo, por exemplo) são fruto de uma “condição colonial” que se perpetua para além do perído histórico colonialista, teóricos como Walter Mignolo, Enrique Dussel, Santiago CastroGomez, Catherine Walsh, Arturo Escobar e Anibal Quijano esforçam-se em identificar as matrizes coloniais de poder, confrontando-as com perspectivas radicais, invertidas, fronteirícias, advindas das experiências políticas dos “condenados da terra” de Frantz Fannon. Neste sentido, a modernidade (complexo sócio-cultural, estético, político e institucional), via eurocentrismo, é a maior responsável por uma certa colonização do saber, sendo necessário uma “desobediência epistemológica” para a superação desta condição. German Arceniegas nota que a partir do fenômeno da colonização, a América opera um “embruxamento do idioma”, uma expansão do Castellano que indica uma expansão dos sentidos, o nascimento de uma nova literatura e de novas cosmologias. Um novo idioma, acrescentaria Jose Lezama Lima, que defende o barroco americano – diferentemente de uma perspectiva em que o barroco seria fruto da crise institucional, uma “linguagem performática” estritamente ligada com as cosmogamias católicas –, como “pobreza que dilata os prazeres da inteligência” que “trança e multiplica a linguagem ao desfrutá-la” (Lima, 1988:81). Lezama observa no barroco Americano, especificamente nas obras do índio Kondori, uma “tensão” entre as formas da natureza (a paisagem é um ente TÓPOS V. 7, N° 2,

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privilegiado no esquema de Lezama) e culturais e um “plutonismo” que desperta e jorra seus fragmentos. Ao índio Kondori se atribui a escultura da fachada da igreja de São Lourenço (Fig 3), em Potosí, Bolívia. Lezama vê na obra “uma forma oculta e hierática [d]a síntese do espanhol e do índio, da teocracia hispânica da grande época com o solene ordenamento pétreo do incaico”. A forma do barroco enceraria sínteses que se articulam entre a técnica (uma “escritura com que nossa alma submergiu os objetos”), o trabalho (“rostos de índios que refletem a desolação da exploração mineira” e “uma sereia com queixoso rosto mitaio”) e a estética (“a aquisição de uma linguagem que, (…) ia demonstrando, por sobre qualquer pessimismo histórico, que a nação tinha adquirido uma forma”).

F i g 3 : F a c h a d a d a I g r e ja de São Lourenço em Potosí, Bolívia. Nota-se à direita o símbolo incaico da Lua acima da sereia com “queixoso rosto mitaio” tocando o charango, e à esquerda a figura do anjo com feições indígenas (Retirado de: http://pablopoeta.blogspot.fr/2010/11/potosi.html)

Tal expressão da criação artística, seria também uma metamorfose do Renascimento espanhol, que em lugar de manifestações em território europeu se deram na América: “Depois do renascimento a história da Espanha passou à América”. Vale observar que a “idade de ouro” espanhola se inicia em 1492, com a reconquista e com a chegada na América de Colombo. Este esforço Lezamiano em dar forma à expressão Americana têm um componente fundamental na natureza e na paisagem, numa visão em que prevalece a celebração “da riqueza da natureza por sobre a riqueza monetária”, oferecendo uma visão oposta àquela Hegeliana, segundo a qual, a natureza Americana é agente a-histórico, sinônimo de atraso e empecílio para a entrada do espírito europeu. Este “esplêndido estilo surgido paradoxalmente de uma heroica pobreza” é dependente TÓPOS V. 7, N° 2,

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de uma paisagem que modifica o homem e de um homem que se transforma na interação com essa paisagem. A expressão criolla, o refinamento do homem primitivo contra as exigências da natureza, a relação da alma e do corpo com esta natureza são constitutivos do “devir” Americano e elementos que compõem sua “história tecida pela imagem” (Lezama Lima, 1988). Tais referências barrocas, contrastam com o “Arielismo” de Jose Enrique Rodo, que, em 1900 contrapõe o espírito que é olhos e ouvidos de Próspero, com Caliban, o nativo monstruoso e, de certa forma, barroco, da ilha caribenha criada por Shakespeare em “A Tempestade”. Ariel se relacionaria com a Alma europeia, a pureza e a cultura, em oposição à Caliban, referência à América do Norte, materialista e individualista. Antes de Fernandez Retamar assumir a identidade Latinoamericana no ensaio “Caliban”, o barroco já se fazia expressar na magia, no estranhamento e na resistência do nativo e daquilo que é nosso, numa linguagem que, antes de criada, é posta em movimento. Marca-se então uma virada epistemológica na forma de compreender as relações entre nós e eles e entre sujeito e objeto. Considerando a forma como elemento essencial para compreender o devir americano e o fato de que a colonização do continente prosperou em cosmologias, escrituras embruxadas, na noção de direitos humanos (Las Casas), na criação de uma incipiente antropologia, etnografia e ciências naturais (note-se a importância da América para a botânica, para a teoria da evolução e os relatos de viagem de Von Humbolt), há que se compreender que, além de uma virada linguística, o fato Americano foi também uma virada conceitual. Enquanto tal, e aqui notamos a importância do Projeto “Modernidade-Colonialidade”, o colonialismo em geral e a colonização da América em particular, é parte essencial da modernidade e da formação de seus conceitos. Não há modernidade sem colonialidade, e esta última, segundo Walter Mignolo, representa seu “lado obscuro”. A compreensão das necessidades e batalhas por uma “expressão americana”, passa, portanto, por uma necessária expansão da noção de estética. Mesmo compreendendo que a transformação que o fato americano propicia na mente europeia certamente contribui para a articulação moderna da noção de estética, esta é, ainda, permeada de restrições formais, diminuta em sua acepção e restrita em seus mecanismos políticos e epistêmicos. No entanto, o que chamamos de “estética conceitual”, permite uma articulação entre o “colapso da distinção entre epistemologia (linguagem) e ontologia (mundo), e a progressiva emergência de uma ontologia prática, da qual saber não é mais um modo de representar o (des)conhecido, mas senão, interagir com ele (…) um modo de TÓPOS V. 7, N° 2,

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criar antes de um modo de contemplar, repetir ou comunicar” (Castro, 2007: 7-8). Esta linguagem, não obstante, vai, como já mencionamos, para muito além do texto, referindose à um contexto onde interagem imagem, paisagem, oralidade, sensibilidade e política, dando à América a necessidade e a dependência de uma “história estética” mais do que uma “história cultural”. Tanto os relatos de navegação, o “maravilhoso” de Carpentier, a arquitetura mestiça e a oralidade dissonante, são traços desta “estética conceitual”. O termo é retirado da descrição do arsenal conceitual Deleuziano por Eduardo Viveiros de Castro, para quem esta nova estética se constitui numa elaboração que vai do vocabulário para “processos semióticos”, que inclui a obsolescência do “postulado da descontinuidade ontológica entre o signo e o referente, a linguagem e o mundo, que garantia a realidade da primeira e a inteligibilidade do segundo e vice-versa, e que serviu de fundamento e pretexto para tantas outras descontinuidades e exclusões — entre mito e filosofia, magia e ciência, primitivos e civilizados” (Castro, 2007:7). Com isso, há base para se pensar uma modificação do olhar em direção à compreensão da problemática histórica e política da América Latina bem como seu devir. Uma necessária ruptura epistemológica em direção à um projeto de descolonização baseado nas expressões e seus mecanismos técnicos, semânticos, simbólicos e artísticos. Enquanto a noção de cultura se preocupa mais em compartimentalizar antes de unificar, hierarquizar antes de diferenciar e justificar antes de conflitar, a estética, desvinculada da acepção restrita e ocidental em torno da “arte”, mas enquanto um “regime de distribuição do sensível” (Ranciere, 2005), aparece como campo de disputa política e de significado na qual a visibilidade, a comunicação e a sensibilidade emanam como forças de um mundo em que se necessita uma linguagem expandida. A submissão colonial evidentemente foi realizada com base na cruz, na espada, em cavalos e pólvora, mas também enquanto um sistema simbólico e um regime de entendimento. Neste sentido, a subalternidade proposta por Gramsci e desenvolvida por Gayatri Spivak precisa ser encarada de maneira não a se perguntar se os subalternos podem falar, mas sim sobre a partir de que ótica se deve compreender sua escritura, sistemas de comunicação, significados e sentidos de suas expressões. A existência de um modelo de pensamento e de uma linguagem hegemônica colonial e imperial ao mesmo tempo em que dificulta uma certa compreensão e produção de si mesmo, revela novas formas de pensar a resistência cotidiana e artes de fazer enquanto construções políticas e epistêmicas que desafiam o peso da linguagem ocidental.

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