Expressões de tempo e de espaço na música

July 16, 2017 | Autor: Yahn Wagner Pinto | Categoria: Musical Expression, Music Cognition, Cognição Musical, Time and Space in Music, Musical Expressivity
Share Embed


Descrição do Produto

Expressões de tempo e de espaço na música Yahn Wagner F. M. Pinto [email protected] Departamento de Música, Universidade Candido Mendes Resumo O campo das expressividades musicais tem sido alvo de inúmeras discussões nos estudos da música e da estética. Sob a luz das ciências cognitivas, principalmente a partir das áreas da filosofia, da psicologia e da semiótica, propomos uma revisão de conceitos pertinentes a essa discussão. Assim, sugerimos dois tipos básicos de expressões musicais, a expressão de tempo e a expressão de espaço, as quais constituem um primeiro nível representativo dos objetos musicais, enquanto entidades passíveis de representar algo diferente do som que os produz. É através da diferença entre estes dois tipos de expressão que entendemos um objeto musical, sobretudo sua relação com o ouvinte. Desse modo poderemos classificar a experiência com o objeto musical de modo mais interiorizada ou mais exteriorizada e, assim, discutir as possibilidades representativas da música.

Introdução No histórico da evolução humana, a habilidade de comunicação parece ter tido um papel fundamental para a permanência do homem como espécie macroscópica dominante. No geral, toda espécie animal que tem a habilidade de viver em comunidade depende de algum tipo de comunicação, seja ela baseada em química (como os feromônios dos insetos sociais) ou em ondas sonoras (como fazem as baleias e os homens). Comunicar é tornar algo comum, ou seja, fazer com que se tenha a sensação de que disponibilizamos para outros indivíduos da comunidade nossas idéias, emoções, conceitos, etc. Assim, estes indivíduos passam a ter uma experiência comum e, com isso, se tem a sensação de que algo é transmitido. É freqüente encontrarmos discussões acerca da música como um tipo de comunicação. Muitos são os que defendem a idéia de que algo é comunicado com a música, ou seja, algo que o compositor idealizou, sentiu e conceituou seria “transmitido” até o ouvinte, de algum modo. Como se tivéssemos um código musical comunicante claramente estabelecido. Este artigo trata de algumas possibilidades expressivas da música. O centro de nossa investigação é a possibilidade de algo ser musicalmente expressivo de uma mesma coisa para várias pessoas. O conceito de expressão está intimamente ligado ao conceito de representação, pois tudo o que é expresso não passa de representação, assim como também é representação este algo que desejamos expressar.

43

Representação como permanência

44

Entendemos por representação, o resultado cognitivo da atuação de um organismo no ambiente, ou do ambiente sobre o organismo. Nossa percepção do mundo só é possível pelas representações que fazemos dele. Nossos sentidos nunca atuaram de modo passivo no mundo, pois sempre estiveram ligados a um corpo que os conduzia às experimentações desse mundo. Assim, qualquer percepção de um organismo sobre o mundo sempre será ativa. No histórico das ciências cognitivas temos inúmeros experimentos que comprovam essa afirmação. Podemos citar como exemplo o clássico estudo realizado por Held e Hein (1958) com filhotes de gatos expostos à luz em condições controladas. Os gatos eram divididos em dois grupos, o primeiro podia circular livremente pelo ambiente arrastando um carrinho que continha um filhote do segundo grupo. Estes ficavam imóveis, mas compartilhavam das mesmas experiências visuais que os do primeiro grupo. Depois de algumas semanas os gatos foram soltos e, enquanto os filhotes do primeiro grupo se comportavam normalmente, os filhotes do segundo grupo se comportavam como se fossem todos cegos. Tropeçavam nos objetos, caiam pelas escadas, etc. Este estudo nos mostra a necessidade da ação para a formação da percepção e, por conseqüência, da representação. É bem provável que o primeiro esquema de representação tenha surgido como algo que confere ao corpo a possibilidade de dar à percepção a sensação de continuidade, pois embora nossa experiência com o mundo seja contínua, nossa consciência registra os eventos de maneira pontual e distinta em um plano espaço-temporal. Quando realizamos uma ação, realizamo-la em um tempo determinado e, assim, nos expressamos sobre esta ação de forma pontual. Contudo, necessitamos da sensação de continuidade em nossa percepção, pois é essa continuidade que nos possibilita a sensação de permanência em nossa consciência. Ou seja, se não pudéssemos perceber uma experiência de forma contínua nós não poderíamos ter uma consciência permanente, quer dizer, teríamos um corpo dotado de vários momentos distintos de consciência e não conectados. Desse modo, essa representação do contínuo parece ser uma espécie de “inferência lógica” que o corpo faz do mundo, através de duas ou mais experiências pontuais. A propriedade de permanência é fundamental para concebermos a idéia de tempo e para a constituição da memória. Segundo Immanuel Kant “o permanente (. . .) é a substância do fenômeno, quer dizer, o seu real, real que permanece sempre o mesmo como substrato de toda mudança” (Kant 2005,196). Dizemos também que quando há permanência há duração. Para Henri Bergson, o tempo é dado pela consciência e a memória é a duração dessa consciência, já que a memória é a progressão orgânica do passado para o presente e não um mero mecanismo de recordação que intui o presente segundo uma regressão ao passado.

Bergson faz distinção entre dois tipos de duração: duração espacializada e duração pura (Bergson 1927, 82). Os fenômenos que envolvem grandezas extensivas, ou seja, grandezas que podem ser medidas, necessitam de uma espacialização do tempo para que haja a percepção de duração. Parafraseando seu exemplo, para saber da hora quando escuto as badaladas de um relógio, preciso contar quantas são as badaladas. É necessário representar as badaladas em um espaço para que possamos contá-las. O ato de contar necessita então de uma percepção espacializada, pois, embora os badalos sejam percebidos em momentos temporais diferentes, o simples fato de perceber intervalos vazios entre os batimentos nos diz que é no espaço que a operação de contagem, no caso, se efetua, no contrário, seriam apenas pura duração e, dessa forma, contínuas e indistintas. De forma diferente, os fenômenos que envolvem grandezas intensivas, ou seja, não mensuráveis, propiciam em nós a percepção de duração através de uma “penetrabilidade” das partes. A esse tipo de duração, Bergson denomina de duração pura. Um de seus principais exemplos sobre o conceito de duração pura é, curiosamente, o da nossa percepção acerca da duração de uma música ou melodia. Assim, para que notas musicais tornem-se melodias, devo percebê-las uma na outra, penetrando-se e organizando-se entre si (. . .), de maneira a formar o que chamaremos de uma multiplicidade indiferenciada ou qualitativa, sem qualquer semelhança com o número: obterei assim a imagem da duração pura, mas também me terei afastado por completo da idéia de um meio homogêneo ou de uma quantidade mensurável (. . .). Logo, é preciso admitir que os sons se compunham entre si e agiam, não pela sua quantidade enquanto quantidade, mas pela qualidade que a sua quantidade apresentava, isto é, pela organização rítmica do seu conjunto. (ibid., 75-76)

A idéia de duração pura está diretamente relacionada ao conceito de memória aqui utilizado. É a memória que garantirá a penetrabilidade das partes que formam uma música. Ela é que propiciará que a primeira nota da música ainda esteja presente, de algum modo, na última nota dessa mesma peça. Desse modo, podemos entender a concepção de tempo bergsoniano como movimento intuído, em oposição ao paradigma tradicional que considera o tempo como ordem mensurável do movimento. Assim, Bergson determina que a intuição do movimento, ou seja, sua percepção clara e imediata, é possível apenas porque há persistência do passado sobre o presente. O tempo é, portanto, manifestação da memória, pois o passado sempre carregará as potencialidades ou virtualidades que se atualizarão e serão intuídas no presente. Uma melodia só dura porque percebemos movimento nela. Não percebemos o entrar e sair de notas como se fossem desconectadas, mas sim um fluxo contínuo que se desloca no tempo e no espaço virtualizado das alturas sonoras. É como um filme, no qual não percebemos os quadros e sim o movimento das imagens.

45

Nossa experiência no mundo resulta em representações. De acordo com Bergson, nossa interação com a matéria parece ter a propriedade de construir sistemas isoláveis. Assim, em suas palavras: 46

Os contornos distintos que atribuímos a um objeto, e que lhe conferem sua individualidade, não são mais que o desenho de um certo tipo de influência que poderíamos exercer em determinado ponto do espaço: é o plano de nossas ações eventuais que é devolvido aos nossos olhos, como que por um espelho, quando recebemos as superfícies e as arestas das coisas. (Bergson 2005, 12)

É essa característica que nos faz pontuar eventos em nosso contínuo de experiências e, assim, é o que possibilita que eventos sejam percebidos como durações espacializadas. Kant utiliza o conceito de representações a priori como aquelas que fundamentam toda e qualquer representação. Para ele, essas representações a priori são de tempo e de espaço. Segundo Kant, a intuição empírica se relaciona com os objetos, determinando-os, por meio da sensação, e os fenômenos são as indeterminações do objeto nessa intuição (Kant 2005, 65). Desse modo, o tempo é a representação do “eu mesmo” como objeto. É o nosso sentido interno. Por sua vez o espaço é a representação gerada pela intuição sensível de objetos que não pertençam ao “eu mesmo”. É o que possibilita a configuração, a relação e a grandeza do objeto. Apresenta-se como nosso sentido externo (ibid., 68-71). Todos os nossos sentidos operam em conjunto com outros, para poderem nos dar as percepções olfativas, palatinas, táteis, visuais e auditivas. Quando apreciamos o sabor de uma comida estamos, também, categorizando como gosto algumas impressões que são olfativas. A percepção visual também lida com informações provindas de outras fontes sensoriais. Segundo Varela, Thompson e Rosch, cerca de 80% do que as células do NGL (Núcleo Geniculado Lateral) recebem – região do tálamo que atua na percepção visual juntamente com o córtex visual –, provém de outras regiões do cérebro e apenas cerca de 20% provém da retina (Varela et al. 2003, 107). Assim, grande parte do conteúdo de nossa percepção é uma construção baseada no histórico de atuação de nosso corpo com o mundo. As representações parecem, portanto, ser as realizações das imagens que nosso corpo absorve do mundo. Essas imagens são interpretadas como objetos e para tal necessitam do intercruzamento de informações de ordens diversas, gerando uma realidade referente à ação de um corpo com todos os corpos ou com o mundo. Como menciona Peirce, representar é “estar no lugar de, isto é, estar numa tal relação com um outro que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse outro” (Peirce 2003, 61). Desse modo, pode-se considerar que nosso organismo possui representações do mundo, ou até mesmo podemos considerá-lo essencialmente como um núcleo de representações do ambiente. Enquanto nosso organismo vive e interage com a estrutura total do mundo, nosso pensamento está

condenado a entender o mundo pelas representações. O mundo só tem capacidade de existir para nós na medida em que temos a possibilidade de representá-lo.

Expressão musical Nossa ação no mundo, ou seja, nosso processo de produção de representações é uma forma de expressão. A matéria se exprime, ou melhor, é exprimível como um sistema com tendências a um fechamento, normalmente algum tipo de objeto (na acepção mais ampla que esse termo possa ter). Entendemos por fechamento, o limite que nossa consciência constrói nas representações da matéria, ou melhor, nas representações da experiência. As interações entre as ações da matéria terminam desencadeando imagens (no sentido bergsoniano) que são essas primeiras formas de expressão da matéria. A matéria se revela de alguma forma, ela assume os contornos que delimitam a ação de outro objeto sobre ela (Bergson, 2005). Tais contornos são determinados pelos fechamentos. Conseguimos delimitar o fechamento de um objeto e o início de outro por percebermos, de alguma forma, sentidos próprios e independentes que emergem desses diferentes objetos. O termo expressão possui variadas conceituações em diferentes doutrinas e correntes de estudo. No campo da semiologia, ele é cunhado por Louis Hjelmslev, ocupando o sentido anteriormente definido por Saussure como significante. Para Ferdinand Saussure o signo é entendido como uma entidade psíquica bilateral, formado por um conceito (significado) e uma imagem sonora (significante). Em Hjelmslev temos o signo sendo formado pela associação do conteúdo (antes significado) com a expressão (antes significante). Ele ainda propõe uma noção de estratificação do conteúdo e da expressão em três níveis: forma, substância e matéria (Nöth 1996, 57-58). Assim, o estrato de substância projeta a forma, na matéria. Por exemplo, a matéria de expressão é formada pelas possibilidades expressivas (fonéticas, gráficas, gestuais, etc.) do ser humano, enquanto que a substância de expressão é constituída pelas possibilidades fonéticas ou gráficas e ortográficas de uma língua específica. Já a forma de expressão é a transformação da substância de expressão em forma pura. Assim, “a língua falada e sua transcrição fonética um a um são duas substâncias manifestando uma forma” (ibid., 65), ou seja, a manifestação de uma língua específica. Hjelmslev utiliza então o termo expressão como algo que se refere a um conteúdo dentro do próprio signo e não a um conteúdo externo. Peter Kivy apresenta, em seu livro The corded shell (1980), uma teoria sobre expressividade musical, mais precisamente sobre a expressividade emocional. Kivy realiza, em sua teoria, uma distinção fundamental entre dois modos de utilização do termo expressão, que ele denomina “expressar” (algo) e “ser expressivo de” (algo) (Kivy 1980, 13). Assim, um compositor pode querer expressar uma determinada emoção em sua música, como tristeza, e, no entanto, essa música pode não ser expressiva dessa emoção. Assim, ser expressivo de é, em nossa acepção, a possibilidade que um dado objeto

47

ou sinal tem de significar algo. Esses dois modos de utilização refletem uma postura diversa da expressão em relação ao intérprete. Essa distinção fica muito clara nos exemplos por ele utilizados. Em suas palavras: 48

Se, sob as circunstâncias apropriadas, eu estiver incitado pela angústia a gritar e cerrar meu punho, eu poderia corretamente dizer que expressei minha emoção; e os atos de gritar e de cerrar o punho são corretamente ditos como o expressar ou expressões de minha angústia (. . .). Quando, ao contrário, nós descrevemos o rosto do São-Bernardo como um rosto triste, nós não estamos dizendo que ele expressa tristeza, mas, no entanto, que é expressivo de tristeza. (ibid., 12)

Com isso, podemos dizer que um objeto ou sinal pode ser formado em decorrência da expressão de um ou vários signos. Essa relação é similar à descrita por Roland Barthes como fundamento do processo de conotação. Para ele, a conotação é um signo secundário que tem como expressão (no sentido de Hjelmslev) um signo primário, denotativo, formado por uma expressão primária e um conteúdo primário (Nöth 1996, 134-135). Assim, quando temos a expressão de angústia, citada acima, com o grito e o cerramento do punho, estamos lidando com dois signos primários com significações inicialmente denotativas. O som do grito é sua expressão primária que se relaciona ao seu conteúdo inicial “grito”. A imagem visual do punho cerrado é sua expressão primeira e relaciona-se ao seu conteúdo inicial “mão fechada” ou “punho cerrado”. No entanto, a totalidade desses dois signos gera a expressão do signo secundário que tem como conteúdo (secundário) “homem angustiado”, pois foi através do punho cerrado e do grito que o homem angustiado expressou sua emoção. Todavia, esses dois signos, ou melhor, esses dois atos podem não ser expressivos da mesma emoção que fora expressa. Por exemplo, vamos imaginar que estamos assistindo a um filme que mostrasse o punho cerrado de algum homem juntamente com o som de seu grito e, em seguida, a cena nos mostrasse que este homem acabou de ganhar na loteria. Constatamos que esses atos não eram a expressão de angústia, embora talvez num primeiro momento eles pudessem ser expressivos dessa emoção, mas sim atos de expressão de euforia, alegria e felicidade. Quando as expressões em questão não são inteiramente codificadas, ou seja, não têm um significado (conteúdo) previamente estipulado através da consolidação de estereótipos, como é muitas vezes o caso da música de concerto, não temos como garantir que a emoção, idéia ou conceito que queremos expressar produza um resultado que seja expressivo desse mesmo conteúdo para qualquer outra pessoa. Também não se tem como garantir que pessoas de hábitos culturais semelhantes considerem uma música, ou trecho dela, como expressivos de um mesmo tipo de conteúdo. Contudo, existe uma tendência a formação de estereótipos que ficam mais fortes conforme os hábitos culturais e sociais sejam mais semelhantes. Tais estereótipos não são necessariamente códigos, entretanto, estes são formados por estereótipos de alto grau. Nas palavras de Edson Zampronha: O estereótipo é um grau avançado de cristalização de hábitos interpretativos que

resultam de um processo inteligente (não mecânico) de adaptação e ajuste, ou, se quisermos, de autocorreção, para a realização de construções mentais hipotéticas e falíveis do ambiente à nossa volta. (Zampronha 2000, 165)

Além dos elementos culturais, que possuem grande importância no processo de comunicação, existem também alguns elementos expressivos trans-culturais. Estes elementos retratam um estágio da comunicação ainda desprovido de códigos aprendidos e fundamentam a base de toda comunicação possível. A delimitação que fazemos, em objetos, das imagens que chegam a nós ocorre porque a matéria se expressa, ou melhor, é expressiva dessa mesma forma, inicialmente, para todos os seres de uma mesma espécie. É o que nos diz o princípio do Inatismo, bastante utilizado na psicologia da Gestalt. A esses elementos expressivos trans-culturais chamaremos de modos inatos de percepção.

O objeto musical e os modos inatos de percepção Para Bob Snyder, a principal questão a ser solucionada para a compreensão do funcionamento do sistema auditivo é o de saber como uma única variação contínua de pressão do ar que chega a cada um de nossos ouvidos pode se transformar em representações de distintas fontes sonoras presentes no ambiente (Snyder 2000, 31). O que observamos que acontece com as imagens que chegam a nós, tanto as visuais quanto as auditivas, é que elas são agrupadas, de algum modo, para gerar em nós a percepção de objetos distintos. Tal agrupação é, ainda nas palavras de Snyder, “a tendência natural do sistema nervoso humano de segmentar as informações acústicas do mundo externo em unidades, cujos componentes estejam relacionados formando algum tipo de todo” (ibidem). Assim o fenômeno da agrupação é entendido como inerente à estrutura de funcionamento da mente humana. Snyder diferencia esse tipo de agrupação, ao qual denomina também de agrupação primitiva, de outros tipos, chamados de agrupações aprendidas. Esse outro tipo de agrupação seria formado por uma grande influência de nossa memória aprendida (de curto e longo prazo), ao passo que a agrupação primitiva teria certa independência desses processos de memória, ela estaria ligada à memória da espécie, ou seja, a estrutura orgânica perpetuada durante a existência da espécie humana. Uma das correntes de pesquisa que busca explicar os processos de agrupação, como descritos por Snyder, é o estudo com bases na Psicologia da Gestalt. Os psicólogos da Gestalt propuseram leis que visavam explicar como a percepção está organizada (Gardner 2003, 126). Estas leis foram formuladas com bases em inúmeros estudos que puderam explicar a “aparência fenomênica” de certas “qualidades da forma” através de processos cerebrais análogos (ibidem). Bregman (1999) descreve os principais elementos da Gestalt além de relacioná-los à percepção auditiva. Contudo, não cabe ao âmbito do presente artigo uma discussão detalhada sobre os princípios de agrupação da Gestalt. Este já é um material bastante explorado por estudiosos do campo

49

de cognição musical e foge ao escopo de nossa discussão principal. No entanto, cabe enfatizar que procedemos nossas observações tendo em consideração as propriedades de agrupação desenvolvidas por essa vertente de estudo. 50

A todo o momento somos bombardeados por imagens, sejam elas de procedência visual, auditiva, ou relativa a algum outro sentido perceptivo. Para todas essas imagens construímos contornos e limites, que transformam a imagem do mundo em imagem dos objetos que compõem o mundo. Certa imagem visual só se torna imagem de algo quando passa a reter características do objeto ao qual ela corresponde, tornando-se assim uma representação. Essas são frutos de nossa ação sobre esses objetos. No caso das experiências auditivas lidamos com algo que não é material, o som. O som existe no mundo material e é produzido e difundido pela matéria, mas não é matéria e sim um efeito provocado por um tipo de movimento dela. O aparato auditivo é constituído de tal forma que capta esse tipo de movimento. O movimento de outros objetos excita as moléculas de ar que chegam a nós retransmitindo o tipo de “movimento sonoro” do objeto. Nesse caso então temos a sensação de que as imagens se dirigem ao nosso corpo trazendo-nos os objetos. Mas que objetos são estes? Na percepção visual temos a sensação (reforçada pelos outros sentidos) de que o objeto tem correspondência com a matéria, mas na percepção auditiva o objeto não tem como representar, de imediato, o mundo material. Ele pode até ser uma característica da ação de outros tipos de objeto, no mundo material, como exemplo o tique-taque de um relógio é decorrente da ação de seu pêndulo, mas se o pêndulo estiver em repouso não haverá o objeto sonoro do tique-taque. A matéria possui a potencialidade de gerar um som e para realizá-lo é necessária a ação entre propriedades do mundo material, que são entendidas como ações entre objetos materiais. Para a escuta de um fonograma, o som é produzido pela ação da membrana dos altofalantes no ar. Contudo, ao ouvirmos o som de um violino, escutamos e compreendemos este como fruto da ação do arco sobre a corda, mesmo numa gravação, o que gera para nossa percepção uma fonte material virtual. Mesmo quando não conhecemos a fonte virtual produtoras de um determinado som têm a tendência de experimentá-lo de acordo com nossas experiências passadas de ação sobre objetos materiais. A grande diferença entre a percepção visual e a percepção auditiva, em relação aos seus respectivos objetos, é que na primeira eles se confundem e se integram nas fontes materiais e na segunda eles não coincidem com suas fontes. Ao perceber o movimento de um objeto visual constatamos que há locomoção de sua fonte material, como um carro, por exemplo. Na percepção de movimento do objeto sonoro, a mudança espacial da fonte sonora não influi tanto na percepção do movimento do objeto, porém a mudança de alguns parâmetros qualitativos, como altura de nota, espectro harmônico e intensidade, geram a clara percepção de movimento do objeto.

Quando escutamos uma ambulância passando por nós, percebemos o movimento da fonte sonora (ambulância) passando, por exemplo, da nossa esquerda para a nossa direita, no entanto o principal movimento realizado pelo objeto sonoro é o “subir” e “descer” característico de qualquer sirene. É importante, portanto, entender e preservar a distinção entre movimento do objeto sonoro e movimento da fonte sonora. Este último poderá ser também entendido como movimento do objeto sonoro que, por sua vez, não implica a locomoção de sua fonte. Um estudo semântico da música de certo deve levar em consideração as possibilidades expressivas dos objetos sonoros utilizados. Todavia, tais possibilidades expressivas são extremamente particulares e imprecisas. Um mesmo objeto pode ser expressivo de algo para alguém num dado momento e num momento seguinte passar a ser entendido como expressivo de outro algo para este mesmo alguém. Assim a única possibilidade de um estudo semântico trans-cultural é o estudo dos objetos que darão suporte às significações. Só com o entendimento de tais objetos é que será realmente possível compreender que tipos de padrões de organização entre os objetos tenderão a possuir certa significação para certa cultura, ou certo estilo musical, ou certa pessoa. A música, num escopo mais amplo, é desprovida de códigos comunicacionais, ou pelo menos ela não possui códigos com o mesmo grau de objetividade que a comunicação oral ou verbal. Todavia, a experiência musical nos parece ser carregada de muitos sentidos. Estes são os sentidos que transformam os objetos sonoros em objetos musicais, ou seja, a possibilidade de se referenciar a outras experiências é o que confere a um objeto, inicialmente apenas sonoro, a capacidade de ser também um objeto musical.

Expressões de tempo e de espaço Quando percebemos algum objeto musical, temos, a princípio, a percepção de propriedades de objetos materiais. Embora o som não possua matéria, quando escutamos e percebemos algo – nos níveis de expressões de tempo e de espaço – estamos atribuindo a ele qualidades da matéria. Esse entendimento irá possibilitar a relação metafórica entre as idéias de tempo e de espaço geradas pela percepção do objeto sonoro e as idéias de tempo e espaço que julgamos associáveis a tal percepção. A partir desse ponto, os sentidos começam a ser muito mais afetados pela faculdade de julgamento individual. Como visto anteriormente, possuímos como representações a priori o tempo e o espaço. O tempo é o nosso sentido interno, a representação daquilo que julgamos ser o “eu mesmo” ou o self. O espaço é nosso sentido externo, a representação daquilo que julgamos que não pertença ao “eu mesmo”. Assim, que tipo de representações nós formulamos durante nossas experiências com a música? De acordo com o mencio-

51

52

nado aqui, as expressividades, em analogia às durações, se categorizam em dois tipos: as expressões de tempo e as expressões de espaço. Em cada uma dessas expressões irá predominar, respectivamente, as representações que geram nosso sentido interno e as que geram nosso sentido externo. A expressão é uma espécie de registro que as ações executadas pelas coisas acabam produzindo. Desse modo, quando falamos de expressões de tempo, estamos tratando de uma tentativa de comunicação que tem por objetivo exteriorizar as representações de tempo do ser que realiza o ato expressivo. Em contrapartida, tais expressões somente tornar-se-ão expressivas de tempo se forem intuídas como duração pura e, assim, aquele que as intui incorporará tal percepção para um sentido interno, somará tal intuição ao que ele determina como o “eu mesmo”. Desse modo irá intuir tal experiência não como um objeto exterior, uma nova sensação, mas sim como uma nova vivência, algo que somente ele tem condições de experimentar e sentir. Já as expressões de espaço, são tentativas de uma comunicação que visam exteriorizar as representações daquilo que não é percebido como o “eu mesmo” do sujeito que realiza o ato expressivo. Todavia, para que estas expressões de espaço se tornem expressivas de tal dimensão elas têm que ser intuídas como durações espacializadas. Assim o agente que irá “receber” estas expressões terá que interpretá-las à luz de suas representações a priori de espaço, o que significa entender os objetos assim percebidos como exteriores e, dessa forma, sendo compreendidos como objetos comuns a outros indivíduos. Desse modo, as representações que formulamos durante a experiência musical oscilam entre as representações dos sentidos internos e externos, tempo e espaço. Portanto, oscilamos nossa percepção entre uma experiência de vivência individual, egocêntrica, que contribuirá para a nossa construção do “eu mesmo”, e uma experiência com objetos exteriores, com sensações entendidas como compartilháveis, que contribuem para a nossa sensação de que há algo que se torna comum durante a tentativa do ato comunicativo. A percepção de mudança está claramente implícita na percepção de “duração espacializada” ou das expressões de espaço. Para que haja a possibilidade de uma percepção de “duração espacializada” é necessária a percepção clara de grupos, ou blocos, isolados que ocupem lugar no tempo e/ou no espaço. Com isso, a “duração espacializada” ganha uma percepção de movimento, ou então, a percepção de um movimento entre coisas diferentes gera a percepção de uma “duração espacializada”. É interessante notar que, embora o movimento esteja associado aqui à “duração espacializada”, é o sentido interno que abriga o ideal de movimento. Quando algo se move, ocorre sempre em relação ao “eu mesmo”. Aquilo que não se move em relação ao “eu mesmo” está, devidamente, estático. Entretanto, se a consciência de um indivíduo tiver a noção que esse “eu mesmo” está em movimento, as coisas que estão juntas ao “eu mesmo” tenderão a ser percebidas em movimento relativo a um mundo

externo, parado. Por exemplo, quando vejo um avião no ar tenho a percepção de seu movimento, no entanto embora o traçado de seu movimento possa ser descrito em vias espaciais, a sua percepção se dá em relação ao “eu mesmo”, em seu sentido interno. Assim, a percepção do movimento é uma espécie de ação individual sobre um espaço coletivo. Nosso corpo é um “centro de ação”. Ele recebe e devolve os movimentos, nessa mutua relação entre ser e ambiente. A partir dessas dimensões espaço-temporais, em suas formas expressivas, é que teremos as possibilidades de associações semânticas com outros domínios de experiência, como emotivas, ideológicas ou até mesmo referentes a outros tipos de sensação, como a visual, por exemplo. São essas estruturas que possibilitam à música soar não apenas como conjuntos de sons sintaticamente organizados, mas sim como uma experiência que possui formas análogas às nossas vivências com um mundo real. A pesquisa cognitiva nos oferece uma perspectiva real de investigação dos processos de significação musical que fundamentará futuras pesquisas para além das representações a priori aqui discutidas.

Referências bibliográficas Bergson, Henri. 1927. Ensaios sobre os dados imediatos da consciência. Tradução João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70. ———. 2005. A evolução criadora. Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes. Bregman, Albert S. 1999. Auditory scene analysis: the perceptual organization of sound. Cambridge, MA: MIT Press. Gardner, Howard. 2003. A nova ciência da mente. Tradução Cláudia Malbergier Caon. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Held, R., and A. Hein. 1958. Adaptation of disarranged hand-eye coordination contingent upon re-afferent simulation. Perceptual-Motor Skills 8: 87-90. Kant, Immanuel. 2005. Crítica da faculdade do juízo. Tradução Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Kivy, Peter. 1980. The corded Shell: reflections on musical representation. Princeton: Princeton University Press. Nöth, Winfried. 1996. A semiótica no século XX. São Paulo: Annablume. Peirce, Charles Sanders. 2003. Semióticas. São Paulo: Perspectiva. Snyder, Bob. 2000. Music and memory. Massachusetts: The Massachusetts Institute of Technology Press. Varela, Francisco, Evan Thompson, e Eleanor Rosch. 2003. A mente incorporada: ciências cognitivas e experiência humana. São Paulo: Artmed. Zampronha, Edson S. 2000. Notação, representação e composição. São Paulo: Annablume/Fapesp.

53

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.