EXPRESSÕES DISCRIMINATÓRIAS RELATIVAS A AFRODESCENDENTES NO BRASIL

June 2, 2017 | Autor: A. Santana de Souza | Categoria: Luso-Afro-Brazilian Studies, Racial and ethnic discrimination, Temática afrobrasileira
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EXPRESSÕES DISCRIMINATÓRIAS RELATIVAS A AFRODESCENDENTES NO BRASIL Antonio Carlos Santana de Souza1 [email protected]

No Brasil é comum se utilizar como prova contrária de qualquer expressão discriminatória o casamento entre brancos e negros, que seria resultado da miscigenação, como a mais evidente mostra de que o “paraíso” da democracia racial, é nosso país; ao mesmo tempo em que a sociedade brasileira mantém a estrutura de privilégio branco e a subordinação do negro, evita a consciência da raça, como princípio de identidade coletiva e ação política. A eficácia da ideologia racial manifesta-se na ausência de conflito racial aberto e na desmobilização política dos negros, fazendo como que os componentes racistas do sistema permaneçam incontestados, sem a necessidade de recorrer a um alto grau de coerção. Apesar de suas diferentes formas através do tempo e do espaço, o racismo caracteriza todas as sociedades capitalistas multirraciais contemporâneas. Esta visão do negro como inferior faz me lembrar de uma fala que marcou meus estudos de mais de 25 anos sobre o Negro no Brasil mais particularmente sobre Comunidades Negras Quilombolas no Brasil: “as causas principais da existência de alguns bolsões de pobreza no Brasil são de ordem ética e histórica. O Brasil foi colonizado por povos selvagens e o negro importado das colônias portuguesas na África. Esses povos apesar da robustez física eram primitivos que viviam no estágio neolítico e por isso incapazes de se adaptarem a uma civilização moderna e industrial. O negro mantido como escravo até o fim do século XIX, analfabeto e destinado a trabalhos braçais também não conseguiu integrar-se perfeitamente à civilização 1

Professor Adjunto da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Pós-Doutorando em Linguística pela UNEMAT-Cáceres. Doutor em Letras pela UFGRS (2015). Mestre em Linguística e Semiótica Geral pela FFLCH-USP (2000). Bacharel em Português e Respectivas Literaturas pela FFLCH-USP (1998). Bacharel em Hebraico pela FFLCH-USP (1998). Licenciado em Letras pela FE-USP (1998). Pesquisador do Grupo de Estudos de Línguas Africanas do Departamento de Linguística da FFLCH-USP. Pesquisador do ALMA LINGUAE: Variação e Contatos de Línguas Minoritárias do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisador Líder do Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguístico, Dialetológicos e Discursivos do Cnpq. Avaliador de Cursos do INEP/MEC. Editor-chefe da Web- Revista SOCIODIALETO (ISSN 21781486, www.sociodialeto.com.br, Qualis B4) desde 2010. Membro do Conselho Editorial da Web-Revista DISCURSIVIDADE Estudos Linguísticos (QUALIS). Membro da Comissão Editorial da Revista transdisciplinar de Letras, Educação e Cultura da UNIGRAN - InterLetras (QUALIS). Áreas de interesse: Linguística Geral com ênfase em Sociolinguística e Dialetologia. Temas de interesse: português falado; contatos linguísticos; línguas africanas; línguas ameríndias; diversidade sociocultural.

moderna. São esses povos índios, negros e mulatos que constituem a grande parte da massa da pobreza no Brasil, no campo e nas favelas”. E isso não faz muito tempo não, apenas 30 e poucos anos atrás no lapso temporal. Esse caso é um exemplo, entre dezenas de atitudes, de toda essa realidade discriminatória, preconceituosa e repressiva que se perpetua como resíduo do antigo regime colonial estúpido. Além dos efeitos do comportamento discriminatório, uma organização social racista limita também a motivação e o nível de aspiração dos negros, neste ponto eu me incluo como exemplo. No entanto, o que mais me entristece são alguns negros que alcançam “espaço de poder” agem da mesma forma. O que reforça as práticas discriminatórias, que dificultam a ascensão social do negro, que são por ele próprio incorporadas, criando uma autoimagem desfavorável neste contexto. A forma complexa como esses mecanismos funcionam e se reforçam mutuamente, leva normalmente negros e mulatos a regularem suas aspirações, de acordo com o que é culturalmente imposto e definido como “lugar apropriado” para os negros. Uma pessoa que espera passar sua vida toda na dependência, sem possibilidades, tende a reduzir suas expectativas, visto que só essa atitude assegura sua sobrevivência nas condições vigentes. Em termos de oportunidade de mobilidade social ascendente, negros e mulatos experimentam uma dupla desvantagem. A primeira deve-se à sua baixa origem social e a segunda advém da desvantagem competitiva, sofrida do nascimento até a morte, que resulta da negação da própria raça. O tipo sutil e disfarçado, contudo não ineficaz, de discriminação racial no Brasil, parece estar intimamente associado ao (e em certo sentido é consequência do) baixo nível de mobilização política dos negros brasileiros. “Uma ideologia que nega existência de discriminação baseada na raça será difícil de ser atacada, mas por este mesmo fato não pode ser usada para mobilizar os membros do grupo dominante”. Incorporando a idéia de que negro não serve para nada, o objetivo do negro passa a ser “torna-se branco”, melhorar a raça, na busca de um embranquecimento social. O “ideal” de branqueamento, levado a tais limites, provoca, evidentemente, alguns desequilíbrios no seio do grupo discriminado. Assim, temos como consequência do branqueamento social, a divisão interna entre negros e mulatos que promove as

manifestações de preconceito de mulatos ascendentes contra negros. Por exemplo, a mulher mulata não quer nunca ser confundida com mulher negra. O consenso generalizado entre brancos, no sentido de que o país não tem problema racial, impediu a formação de coalizões com organizações, que sob outras circunstâncias poderiam ter sido mais receptivos às demandas dos movimentos sociais negros, e que resultou no que Florestan Fernandes adequadamente descreve como isolamento político dos negros. O caso dos movimentos de protesto negro em São Paulo, durante a Primeira República e início da década de 1930, é ilustrativo dessa situação. Esses movimentos ou se defrontam com a indiferença dos brancos ou então eram condenados como expressões de “intolerância e racismo negro” que ameaçavam a paz social. O resultado do consenso ideológico branco, a respeito de questões raciais, foi a neutralização do “meio negro” como coletividade ou categoria racial para qualquer processo dotado de real eficácia política. Apesar das dificuldades de integração política com as outras organizações sociais mais amplas, não significa que os negros brasileiros sejam desprovidos de forma de associações próprias. Muito pelo contrário, tem uma rica tradição de vida associativa, em grande parte centrada em torno de instituições religiosas e recreativas. Essas instituições, no entanto, raramente praticaram uma política de exclusivismo racial e sua evolução durante o século XX está marcada pela transição de uma situação inicial, em que eram objeto de desconfiança dos brancos, frequentes invasões políticas, combate a suas manifestações culturais e controle social pelo grupo dominante branco. Durante as primeiras décadas do século XX, batuques, e congadas bem como o samba eram originalmente expressões culturais do negro. Com o passar do tempo essas manifestações culturais negras foram incorporadas com parte legítima da cultura nacional. Um processo semelhante ocorreu com as instituições religiosas e recreativas afro-brasileiras, que em primeiro aceitaram a presença da classe branca e mais tarde incluíram brancos de classe média e patrocinadores ricos. Esta convergência de uma insatisfeita massa com a elite militante resultou na reprodução, embora descontínua, da publicação de jornais negros durante a década de 1920 e 1930 e na criação de algumas organizações negras, das quais a mais importante, a Frente Negra Brasileira foi fundada em 1931. Os temas mais recorrentes e os objetivos manifestos da elevação moral, educacional e social dos negros (um apelo especificamente dirigido ao público negro); a demanda de igualdade social, econômica e

política com os brancos e a denúncia do preconceito de cor, um conceito que no uso brasileiro inclui o preconceito e a discriminação. E essa frustração pela falta de mobilidade social que levará negros a organizarem movimentos de protesto reivindicando uma “Segunda Abolição”. Durante o meu Mestrado percebi que Florestan Fernandes mostrou convincentemente a falta de receptividade às demandas dos movimentos negros pelo grupo dominante branco, embora argumente que tais movimentos exerceram uma influência socialmente construtiva entre negros e mulatos em São Paulo. O desaparecimento das organizações negras no fim da década de 1930 ilustra os mecanismos políticos ativados no Brasil quando os controles ideológicos mostram-se inadequados para conter as demandas dos grupos subordinados: quando em 1937 a Frente Negra Brasileira ameaçou com possibilidade de transformar-se num partido político foi posta na ilegalidade pelo regime da Vargas. As restrições à existência de cidadania e a pouca tolerância mostrada pelas sucessivas coalizões no poder às pressões de baixo então entre os traços mais persistentes no sistema político brasileiro. De fato, a evolução política do Brasil após o fim do império é a história dos esforços bem sucedidos dos grupos política e economicamente dominantes, no sentido de instaurar a modernização econômica do País e simultaneamente de controlar e adiar a mobilização política dos grupos e classes sociais subordinados. Contudo, a história parece que foi às vezes utilizada, uma delicada mistura de controles ideológicos e cooptação social, foi instrumento mais bem sucedido para obter a aquiescência dos brasileiros negros. Para todos os grupos subordinados, as mudanças de regime político foram muito menos importantes que os traços permanentes da comunidade política brasileira, traços que definem sua condição não escrita: autoritarismo difuso e, quando necessário, repressão. O negro e o mulato tiveram que esforçar-se bastante para começar a organizar as suas atividades de forma independente do branco. Tem sido um dos aspectos mais notáveis e dramáticos a luta do negro e do mulato para desvencilharem-se das ambiguidades encerradas na idéia de democracia racial, da igualdade de todos. Para reconhecer e proclamar as desigualdades de condições em que se acham em face do branco, têm precisado realizar um trabalho especial de desmascaramento da forma pela qual o branco pensa. Para conquistar uma nova cidadania, o negro e o mulato estão começando a reconhecer e a denunciar a cidadania subalterna que é “outorgada” pelo branco.

A participação da população negra não tem sido passiva diante dos diversos tipos de violência, a luta tem sido exaustiva, nos movimentos sociais, nos sindicatos, nos sistemas educacionais e produtivo e especificamente no Movimento Negro Unificado, criado em 1978, seu objetivo é lutar contra o preconceito e a discriminação raciais, o MNU passou a ser forte instrumento de luta permanente da Comunidade Negra, promovendo o debate, a informação, a conscientização e organização da Comunidade Negra, tornando-se um movimento de denúncia, combate e ativo, para que o negro possa participar em todos os setores da sociedade brasileira. Em Mato Grosso do Sul desde a década de 80 o Movimento Negro principalmente o grupo Trabalho e Estudo Zumbi (grupo TEZ), o Conselho Estadual de Desenvolvimento e Defesa dos Direitos do Negro (CEDINE) e a Pastoral da Consciência Negra (APN), participam ativamente nas Comunidades Negras Urbanas e Rurais de Mato Grosso do Sul, levando a discussão da questão racial, trazendo para os descendentes a reflexão sobre o problema. Em meado da década de 90, criou-se o Instituto Casa da Cultura Afro-Brasileira (ICCAB) e o Coletivo de Mulheres Negras de Mato Grosso do Sul “Raimunda Luzia de Brito” (CMNegras), que vieram juntar-se às discussões e às reflexões. É o Movimento Negro atuando na busca de levar o seu povo a se sentir diferente, porém igual. É diferente pela cor, mas igual por ser gente e com os mesmos direitos constitucionais do branco.

Uma pequena revisão de literatura Donald Pierson (1971) que inaugurou uma tradição disciplinar de estudos sobre relações raciais brasileiras. A influência da Escola de Chicago orientou-o para a preocupação quanto à assimilação cultural do negro à sociedade moderna e urbana. Para Pierson os grupos raciais ou étnicos seriam grupos de pertença identitária desvendados a partir da autoclassificação dos indivíduos. Os grupos de cor seriam meros epifenômenos das classes sociais. Para ele não poderia haver no Brasil discriminação de raça, mas apenas discriminação de classe uma vez que o país havia sido bem sucedido em desfazer as castas raciais da escravidão e em estabelecer uma sociedade multirracial de classes. No país, os grupos de cor pertenceriam a uma ordem de classe e não a uma ordem de casta, consequentemente seriam grupos abertos, mais ainda, no sentido estrito sequer seriam grupos por que aos seus membros faltaria consciência coletiva. Sob esta

ótica, a raça não se definiria somente pela cor, mas também por critérios sociais como riqueza e educação. A cor, enquanto categoria nativa, seria algo mais que a pigmentação, mas também um certo tipo de características físicas (como tipo de cabelo) e traços fisionômicos. Outros pesquisadores como Marvin Harris, Oracy Nogueira, Thales de Azevedo e Florestan Fernandes tomaram como ponto de partida para suas análises a posição de Donald Pierson. Marvin Harris (1974) aceitou as raças como categorias nativas de pertença identitária negando-lhes o estatuto de grupos sociais. Segundo este autor, os fatores demográficos e econômicos peculiares ao desenvolvimento do país forçaram as elites a definir seus privilégios a partir de uma linha de classe, abandonando uma linha de cor. Para Harris não fazia sentido falar em discriminação no Brasil, uma vez que inexiste uma regra clara para a pertença a grupos raciais ou de cor, e na medida em que as diferenças de status e de classe são suficientes para manter a dominação de uma elite branca. Para ele, assim como para Donald Pierson, o caso brasileiro era sempre contrastante numa problemática universalista das relações raciais. Oracy Nogueira (1985) situa o preconceito racial brasileiro como um preconceito de marca (cor) e não de origem (raça) posicionando-se no campo da teoria do preconceito racial. Para ele, nós conheceríamos um preconceito racial diferente do norte americano que teria consequências menos graves sobre as oportunidades de vida de pretos e mulatos. Thales de Azevedo (1966) redefine a natureza do grupo de pertença dos negros, deslocando-o da classe para o grupo de status. A inovação deste autor consiste em teorizar a transição do Brasil colonial e arcaico para um Brasil moderno e capitalista, em termos de uma passagem de uma sociedade de status para uma sociedade de classes (o que toma emprestado da Sociologia Alemã de Weber e Tönnies). Entretanto, a associação entre status e cor permanece intacta nessa transição. Para ele há um círculo de relações pessoais, definido a partir da cor e da origem familiar, que configura uma verdadeira comunidade de status, fazendo dos brancos ricos e dos pretos pobres. Segundo este autor, a cor no Brasil, além dos traços já identificados por Pierson, incluía marcas não corporais como vestimenta, modo de falar e boas maneiras.

A análise de Florestan Fernandes (1965, 1972) sofrerá também grande influência de seu contato com Roger Bastide (1955) e Pierre Van den Berghe (1967). Este último entendia que as relações raciais em países com passado escravista seriam herdeiras de relações de castas. O caso brasileiro é concebido como uma formação paternalista em oposição às formações competitivas identificadas nos EUA e na África do Sul (BARCELLOS, 1996). Caio Prado Júnior (1965) afirma a existência do preconceito racial e por consequência reconhece implicitamente a sobreposição de duas ordens: econômica e racial. Desta maneira ele abre a possibilidade teórica de analisar empiricamente as relações entre essas duas ordens que serão exploradas por Thales de Azevedo (1966) e o próprio Florestan Fernandes (1965,1972). Na obra deste último, o preconceito racial existente no presente seria uma tentativa das oligarquias dominantes, da elite branca e não do povo, de preservar os privilégios de uma ordem social arcaica, fundada no prestígio de posições herdadas, opondo-se às novas relações sociais próprias de uma ordem social competitiva. Trata-se, na verdade, de uma passagem incompleta à ordem social competitiva que preservou o padrão de relações raciais do período escravocrata. Haveria uma confluência de barreiras de classe e de cor à mobilidade social e a integração do negro nesta nova ordem . Para Florestan, assim como para Bastide, os grupos raciais eram fenômenos da estrutura social, locais definidos numa estrutura de posições. O preconceito racial brasileiro se revestiria de um caráter oculto, pois o branco que ocupa uma posição social superior não reconhece no negro um competidor, mas alguém inferior que está deslocado de lugar. Perdurava o antigo modelo de absorção gradativa dos elementos de cor que se identificassem e se mostrassem mais leais aos valores e interesses dos círculos dirigentes da raça dominante. Essa orientação alimentou a ilusão de que as relações entre brancos e negros se adaptava à nova ordem social democrática – o mito da democracia racial. Esse mito se torna um sistema de referência consistente com o regime republicano. Atribuía-se ao negro a sua sorte, ao mesmo tempo que isentava-se o branco de sua responsabilidade para com este após a abolição da escravatura. Reforçou-se assim a forma de avaliação das relações entre brancos e negros através de sinais exteriores e aparentes das interações e ajustamentos raciais, fazendo com que se pensasse que o negro não tem problemas no Brasil uma vez que inexistem distinções raciais e que as oportunidades de

prestígio e riqueza foram indistinta e igualmente acessíveis a todos durante a expansão urbana e industrial de São Paulo (local escolhido por Florestan para desenvolver sua análise). Portanto, não haveria motivo para o preto estar insatisfeito com a sua condição de vida, já que o único problema de justiça social que lhe tocava havia se resolvido com o fim da escravidão. O mito da democracia racial, no entanto, não pode ser utilizado pelos negros como forma de promover o desenvolvimento nas relações raciais, visto que ele não se constituiu com um ideal da sociedade, mas como uma falácia que buscava encobrir e adiar as mudanças no padrão de interações entre brancos e negros. Lívio Sansone (1999) nos chama atenção para o fato de que toda e qualquer comparação das relações raciais traz implícita ou explicitamente o olhar do pesquisador que é composto por, pelo menos, três elementos: sua agenda político- cultural, a tradição colonial de seu próprio país e a sua consciência étnica. Nesse sentido, ele mostra que muitos dos pesquisadores americanos que estudaram as relações raciais brasileiras buscavam sobretudo respostas para os problemas enfrentados no seu país de origem. Entre os franceses percebe-se aquilo que ele vai chamar de “mal d'Afrique”. Os negros brasileiros são vistos como depositários de algo que é essencialmente africano e que no contexto cultural brasileiro tende a se miscigenar. Florestan Fernandes conseguiu reunir em suas reflexões tanto as aspirações por igualdade social reivindicadas pelos intelectuais negros quanto o desejo de desenvolvimento dos intelectuais nacionalistas. Essa agenda de pesquisa acabou por congregar a grande maioria dos estudiosos das relações raciais brasileiras nos anos cinquenta e sessenta. Oracy Nogueira e Thales de Azevedo embora muito próximos à posição de Donald Pierson também aderiram a esse movimento (GUIMARÃES, 1999). Escrevendo na década de setenta, Ortiz (1991) dialoga com essas tendências teóricas ao defender que a Umbanda foi obrigada a integrar a sua cosmologia às contradições de uma sociedade de classe, que reserva ao negro uma posição subalterna dentro de um mundo de dominância branca. A partir daí, como o próprio autor reconhece, começa a se esboçar no cenário brasileiro um fenômeno que muitos intelectuais denominaram de “reafricanização” de várias manifestações culturais. Esse processo é simultâneo ao surgimento de movimentos negros que denunciam o racismo na sociedade brasileira, alçando uma consciência étnica a diversas manifestações

culturais. O crescimento de estudos no campo das manifestações culturais negras é bastante acelerado desde então. Sobre esse período, Arruti (1997) argumenta que ocorreu uma mudança no campo de estudos raciais, inclusive na questão que funda o mesmo. Essa transformação se dividiria em dois momentos. O primeiro se caracterizaria pela realização de estudos sobre comunidades rurais que teriam a particularidade de serem negras. Ao longo da década de oitenta, surgem uma série de estudos interligados na USP que passam a operar com o conceito de “etnicidade”. Donald Pierson (1971) que inaugurou uma tradição disciplinar de estudos sobre relações raciais brasileiras. A influência da Escola de Chicago orientou-o para a preocupação quanto à assimilação cultural do negro à sociedade moderna e urbana. Para Pierson os grupos raciais ou étnicos seriam grupos de pertença identitária desvendados a partir da autoclassificação dos indivíduos. Os grupos de cor seriam meros epifenômenos das classes sociais. Para ele não poderia haver no Brasil discriminação de raça, mas apenas discriminação de classe uma vez que o país havia sido bem sucedido em desfazer as castas raciais da escravidão e em estabelecer uma sociedade multirracial de classes. No país, os grupos de cor pertenceriam a uma ordem de classe e não a uma ordem de casta, consequentemente seriam grupos abertos, mais ainda, no sentido estrito sequer seriam grupos por que aos seus membros faltaria consciência coletiva. Sob esta ótica, a raça não se definiria somente pela cor, mas também por critérios sociais como riqueza e educação. A cor , enquanto categoria nativa, seria algo mais que a pigmentação, mas também um certo tipo de características físicas (como tipo de cabelo) e traços fisionômicos. Outros pesquisadores como Marvin Harris, Oracy Nogueira, Thales de Azevedo e Florestan Fernandes tomaram como ponto de partida para suas análises a posição de Donald Pierson. Marvin Harris (1974) aceitou as raças como categorias nativas de pertença identitária negando-lhes o estatuto de grupos sociais. Segundo este autor, os fatores demográficos e econômicos peculiares ao desenvolvimento do país forçaram as elites a definir seus privilégios a partir de uma linha de classe, abandonando uma linha de cor. Para Harris não fazia sentido falar em discriminação no Brasil, uma vez que inexiste uma regra clara para a pertença a grupos raciais ou de cor, e na medida em que as diferenças de status e de classe são suficientes para manter a dominação de uma elite

branca. Para ele, assim como para Donald Pierson, o caso brasileiro era sempre contrastante numa problemática universalista das relações raciais. Oracy Nogueira (1985) situa o preconceito racial brasileiro como um preconceito de marca (cor) e não de origem (raça) posicionando-se no campo da teoria do preconceito racial. Para ele, nós conheceríamos um preconceito racial diferente do norte americano que teria consequências menos graves sobre as oportunidades de vida de pretos e mulatos. Thales de Azevedo (1966) redefine a natureza do grupo de pertença dos negros, deslocando-o da classe para o grupo de status. A inovação deste autor consiste em teorizar a transição do Brasil colonial e arcaico para um Brasil moderno e capitalista, em termos de uma passagem de uma sociedade de status para uma sociedade de classes (o que toma emprestado da Sociologia Alemã de Weber e Tönnies). Entretanto, a associação entre status e cor permanece intacta nessa transição. Para ele há um círculo de relações pessoais, definido a partir da cor e da origem familiar, que configura uma verdadeira comunidade de status, fazendo dos brancos ricos e dos pretos pobres. Segundo este autor, a cor no Brasil, além dos traços já identificados por Pierson, incluía marcas não corporais como vestimenta, modo de falar e boas maneiras. A análise de Florestan Fernandes (1965, 1972) sofrerá também grande influência de seu contato com Roger Bastide (1955) e Pierre Van den Berghe (1967). Este último entendia que as relações raciais em países com passado escravista seriam herdeiras de relações de castas. O caso brasileiro é concebido como uma formação paternalista em oposição às formações competitivas identificadas nos EUA e na África do Sul (BARCELLOS, 1996). Caio Prado Júnior (1965) afirma a existência do preconceito racial e por consequência reconhece implicitamente a sobreposição de duas ordens: econômica e racial. Desta maneira ele abre a possibilidade teórica de analisar empiricamente as relações entre essas duas ordens que serão exploradas por Thales de Azevedo (1966) e o próprio Florestan Fernandes (1965,1972). Na obra deste último, o preconceito racial existente no presente seria uma tentativa das oligarquias dominantes, da elite branca e não do povo, de preservar os privilégios de uma ordem social arcaica, fundada no prestígio de posições herdadas, opondo-se às novas relações sociais próprias de uma ordem social competitiva. Trata-se,

na verdade, de uma passagem incompleta à ordem social competitiva que preservou o padrão de relações raciais do período escravocrata. Haveria uma confluência de barreiras de classe e de cor à mobilidade social e a integração do negro nesta nova ordem . Para Florestan, assim como para Bastide, os grupos raciais eram fenômenos da estrutura social, locais definidos numa estrutura de posições. O preconceito racial brasileiro se revestiria de um caráter oculto, pois o branco que ocupa uma posição social superior não reconhece no negro um competidor, mas alguém inferior que está deslocado de lugar. Perdurava o antigo modelo de absorção gradativa dos elementos de cor que se identificassem e se mostrassem mais leais aos valores e interesses dos círculos dirigentes da raça dominante. Essa orientação alimentou a ilusão de que as relações entre brancos e negros se adaptava à nova ordem social democrática – o mito da democracia racial. Esse mito se torna um sistema de referência consistente com o regime republicano. Atribuía-se ao negro a sua sorte, ao mesmo tempo que isentava-se o branco de sua responsabilidade para com este após a abolição da escravatura. Reforçou-se assim a forma de avaliação das relações entre brancos e negros através de sinais exteriores e aparentes das interações e ajustamentos raciais, fazendo com que se pensasse que o negro não tem problemas no Brasil uma vez que inexistem distinções raciais e que as oportunidades de prestígio e riqueza foram indistinta e igualmente acessíveis a todos durante a expansão urbana e industrial de São Paulo (local escolhido por Florestan para desenvolver sua análise). Portanto, não haveria motivo para o preto estar insatisfeito com a sua condição de vida, já que o único problema de justiça social que lhe tocava havia se resolvido com o fim da escravidão. O mito da democracia racial, no entanto, não pode ser utilizado pelos negros como forma de promover o desenvolvimento nas relações raciais, visto que ele não se constituiu com um ideal da sociedade, mas como uma falácia que buscava encobrir e adiar as mudanças no padrão de interações entre brancos e negros. Lívio Sansone (1999) nos chama atenção para o fato de que toda e qualquer comparação das relações raciais traz implícita ou explicitamente o olhar do pesquisador que é composto por, pelo menos, três elementos: sua agenda político- cultural, a tradição colonial de seu próprio país e a sua consciência étnica. Nesse sentido, ele mostra que muitos dos pesquisadores americanos que estudaram as relações raciais brasileiras buscavam sobretudo respostas para os problemas enfrentados no seu país de

origem. Entre os franceses percebe-se aquilo que ele vai chamar de “mal d'Afrique”. Os negros brasileiros são vistos como depositários de algo que é essencialmente africano e que no contexto cultural brasileiro tende a se miscigenar. Florestan Fernandes conseguiu reunir em suas reflexões tanto as aspirações por igualdade social reivindicadas pelos intelectuais negros quanto o desejo de desenvolvimento dos intelectuais nacionalistas. Essa agenda de pesquisa acabou por congregar a grande maioria dos estudiosos das relações raciais brasileiras nos anos cinquenta e sessenta. Oracy Nogueira e Thales de Azevedo embora muito próximos à posição de Donald Pierson também aderiram a esse movimento (GUIMARÃES, 1999). Escrevendo na década de setenta, Ortiz (1991) dialoga com essas tendências teóricas ao defender que a Umbanda foi obrigada a integrar a sua cosmologia às contradições de uma sociedade de classe, que reserva ao negro uma posição subalterna dentro de um mundo de dominância branca. A partir daí, como o próprio autor reconhece, começa a se esboçar no cenário brasileiro um fenômeno que muitos intelectuais denominaram de “reafricanização” de várias manifestações culturais. Esse processo é simultâneo ao surgimento de movimentos negros que denunciam o racismo na sociedade brasileira, alçando uma consciência étnica a diversas manifestações culturais. O crescimento de estudos no campo das manifestações culturais negras é bastante acelerado desde então. Sobre esse período, Arruti (1997) argumenta que ocorreu uma mudança no campo de estudos raciais, inclusive na questão que funda o mesmo. Essa transformação se dividiria em dois momentos. O primeiro se caracterizaria pela realização de estudos sobre comunidades rurais que teriam a particularidade de serem negras. Ao longo da década de oitenta, surgem uma série de estudos interligados na USP que passam a operar com o conceito de “etnicidade”. Fontes para Consulta: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: Quilombos. Identidade étnica e territorialidade. Eliane Cantarino O'Dwyer (Org.). Rio de Janeiro: Editora FGV/ ABA, 2002. ARRUTI, José Maurício Andion. A emergência dos "Remanescentes ": Notas para o diálogo entre indígenas e quilombolas. In: Mana. Estudos de Antropologia Social. PPGAS -UFRJ. 3/2. Rio de Janeiro : PPGAS , 1997.

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