Extensão Universitária e Identidades Dissidentes: uma experiência concreta de reposicionamento crítico.

June 15, 2017 | Autor: Júlia Silva Vidal | Categoria: Extensão Universitária, Programa Pólos De Cidadania, Travestilidades
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Universidade Federal da Bahia, 4 a 7 de setembro de 2015

EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, GÊNERO E SEXUALIDADES: ENGAJAMENTO POLÍTICO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E IDENTIDADES DISSIDENTES: UMA EXPERIÊNCIA CONCRETA DE REPOSICIONAMENTO CRÍTICO. Júlia Silva Vidal1 Palavras-chave: extensão, invisibilidade, formação jurídica, identidades dissidentes. A escassez de estudos sobre diversidade de gênero e sexualidade nas Universidades, principalmente nas Faculdades de Direito do Brasil, evidencia a condição de invisibilidade social enfrentada por sujeitos concernidos por essas questões, especificamente a comunidade LGBT. Referida temática, apesar de se inserir no âmbito dos direitos fundamentais e cidadania, é pouco abordada até mesmo nos programas de extensão universitária, considerados, no entanto, como locus privilegiado para o acolhimento de tais questões. Nesse ensejo, o presente relato pretende desvelar o percurso de reflexão no seio de um programa de extensão, inserido em uma Faculdade de Direito, para o desenvolvimento de estudos que visibilizem a vivência do segmento LGBT, bem como os desdobramentos daí advindos. A inserção tardia dessa temática no âmbito da extensão universitária corrobora a tese de que a reivindicação e a construção das narrativas em prol da efetividade dos direitos fundamentais são, em regra, feitas de maneira seletiva e tendem a excluir temáticas essenciais à transformação social (CARDARELLO; FONSECA, 1999). Para Fonseca (1999), o lema dos direitos humanos em sua forma abstrata e descontextualizada pouco significa, visto que esse é um discurso produzido num contexto específico por determinadas pessoas. Nesse sentido, a autora destaca que “o

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Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista extensionista do Programa Polos de Cidadania. Email: [email protected]

processo de formulação desses princípios (referentes aos direitos humanos) refletiam, antes de tudo, os valores de homens brancos (e heterossexuais) das classes dominantes.” (FONSECA, 1999, p. 3). Referida análise, interpretada a partir dos estudos de gênero, parece, cabível de ser expandida para os valores de homens brancos, heterossexuais e cisgêneros2. Inscrito nessa lógica, o Direito tende, muitas vezes, a privilegiar os indivíduos que respondem a um padrão binário e heteronormativo e a negar a existência daqueles que vivenciam múltiplas experiências relacionadas ao gênero e à orientação sexual. A partir de uma tendência a estabelecer e a reconhecer pessoas “mais e menos humanas” (CARDARELLO; FONSECA, 1999), a ordem jurídica deixa os aspectos de gênero e sexualidade à margem de suas preocupações tradicionais, forjando cada vez mais um hiato entre a reivindicação e a conquista de direitos fundamentais para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. No âmbito das Faculdades de Direito, a ausência desse debate é sentida até mesmo nos programas de extensão, historicamente comprometidos com a efetivação dos direitos fundamentais e cidadania e constantemente atentos à realidade em que se inserem. Apesar de sua consagração constitucional3 – ao lado do ensino e pesquisa – como linha que deve nortear a política universitária, a extensão, a despeito de seu potencial crítico, pouco tem contribuído na construção de um saber múltiplo e dialógico sobre gênero e sexualidade, com vistas à transformação social. Nesse sentido o relato da experiência do Programa de Pesquisa e Extensão ‘Polos de Cidadania’ da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas (UFMG) torna-se pertinente, uma vez que o mesmo pauta a questão LGBT em sua atuação, especificamente a questão trans4. Desde o seu surgimento, em 1995, o Programa busca a efetivação de direitos fundamentais e cidadania, e desenvolve um trabalho multidisciplinar, ancorado nos conceitos de cidadania, subjetividade, emancipação e reconhecimento. Esses marcos norteiam as atividades do Programa, que atua em diversas frentes: trabalho em prol da capacidade organizativa e desenvolvimento de pesquisa de história de vida; assessoria a 2

Utilizou-se o termo cisgêneros para evidenciar a posição privilegiada destes indivíduos em detrimento daqueles que vivenciam experiências relacionadas à identidade trans. 3 A Constituição Federal de 1988 prevê em seu artigo 207 que: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.’’ (BRASIL, 2005, p.183). 4 Utilizou-se o termo questão trans como referência ao complexo de vivências e desafios encontrados pela população de travestis e transexuais no pleito à cidadania e direitos fundamentais.

movimentos sociais e comunitários; organização e mobilização popular; atendimento psicossocial e jurídico; encaminhamentos de casos; esquetes e encenações teatrais populares de rua; promoção de cursos, palestras, seminários e capacitações com a temática dos direitos humanos, mediação de conflitos, dentre outros. As ações empreendidas são efetuadas por seis equipes que compõem o Programa, denominadas: Pop de Rua; Trupe a Torto e a Direito; Ensino e Educação à Distância (EAD); Vila Acaba Mundo; Aglomerado da Serra e Santa Lúcia, localizadas na cidade de Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais. Apesar dos 20 anos de existência do Polos de Cidadania, raros tinham sido, até aqui, os recortes de gênero e sexualidade realizados nas suas atuações junto à comunidade. O desenvolvimento dessa temática iniciou-se a partir de demandas trazidas pelos próprios indivíduos inseridos no escopo de atuação do Programa Polos. Um dos primeiros contatos estabelecidos deu-se a partir da solicitação de uma mulher transexual, moradora da Vila Acaba Mundo5, que trouxe demandas pessoais relacionadas à retificação de seu registro civil. A partir daí, iniciou-se um processo constante de autocrítica e de reformulação das estruturas de trabalho do Programa, específica e primeiramente relacionadas ao instrumento da Ficha de Atendimento à população, que não possuía um campo para o nome social e identidade de gênero dos atendidos. Apesar de pontual, a deflagração dessa situação prestou-se a evidenciar a própria desconsideração do Programa acerca da existência de indivíduos situados fora do padrão binário de gênero. Com o intuito de iniciar a construção de um canal permanente de reflexão sobre a temática, estagiários se empenharam no fomento à discussão e provocação das demais instâncias do Programa Polos. Atentou-se para a importância da realização de atividades que visibilizassem a vivência de travestis e transexuais na cidade de Belo Horizonte e impulsionassem o debate para além dos estigmas e preconceitos. O objetivo era promover espaços de reflexão no tocante à emancipação de identidades ainda consideradas dissidentes, confirmando a necessidade de entrada e desenvolvimento da temática na agenda institucional do Polos. Nesse ensejo, os estagiários do Programa Polos se organizaram na construção do “Ciclo de Diálogos, Travestilidade & Transexualidade”, com o intuito de visibilizar as realidades do cotidiano de travestis e transexuais e fomentar a construção de um 5

A Vila Acaba Mundo é um aglomerado localizado no bairro Sion, do município de Belo Horizonte, Minas Gerais. Atualmente 300 famílias residem nesse local.

pensamento social crítico e sensível. O evento que integrou a comemoração dos 20 anos do Programa foi realizado nos dias 10, 17 e 24 de abril de 2015, na Faculdade de Direito e na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais e contou, dentre outras, com a participação da pesquisadora e professora da UnB, Jaqueline Gomes e, da presidenta do CELLOS (Centro de Luta pela Livre Orientação), Anyky Lima. Como resultado do evento, foi possível estabelecer uma relação entre os conhecimentos e vivências compartilhados pelos presentes e a realidade de trabalho das diversas frentes de atuação do Programa Polos. Além de suscitar a interação entre movimentos sociais, organizações não-governamentais e atores da sociedade civil, foi possível estabelecer um diálogo com diversas entidades do poder público, a fim de que as demandas da população de travestis e transexuais tivessem visibilidade perante tais órgãos. Por outro lado – e isso não é menos importante – vale ressaltar que a própria ocupação de espaços (universitários) pela comunidade LGBT constitui uma ação simbólica capaz de dar visibilidade e voz a sujeitos historicamente silenciados frente às opressões perpetuadas por esses locais. Além disso, na esteira dessa atuação, foi iniciada a construção de um projeto de pesquisa6, cujo objetivo é analisar os desdobramentos oriundos do cruzamento de marcadores da diferença existentes na inteligibilidade do gênero no interior de uma favela, especificamente na Vila Acaba Mundo, já citada anteriormente. Intitulado “Quando os marcadores da diferença se cruzam: estudo de caso sobre a transexualidade na Vila Acaba Mundo” o projeto visa abrir pistas de reflexão sobre os aspectos que compõem a construção e vivência identitária transexual naqueles espaços. Ao desvelarmos o percurso de reflexão do Programa Polos de Cidadania, podemos sondar sobre a relevância do debate de gênero e sexualidade e o contexto de invisibilidade acadêmica deste tema no âmbito jurídico. A demora em inserir referida reflexão na extensão universitária corrobora a tese, evocada neste trabalho, de que as narrativas sobre direitos humanos são produzidas em contextos determinados, por pessoas específicas (FONSECA, 1999) e que suas abordagens, na maioria das vezes, tendem a excluir e a silenciar as realidades e demandas de alguns grupos minoritários, no caso em tela, a população de travestis e transexuais.

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Tal projeto de pesquisa, ainda em processo de desenvolvimento, está sendo desenvolvido pela autora desse resumo, Júlia Silva Vidal, sob orientação da Prof.ª Dra. Camila Silva Nicácio da Faculdade de Direito da UFMG, ex-coordenadora metodológica do Programa Polos de Cidadania.

A partir dos desdobramentos oriundos da inserção da temática na pauta de reflexão e ação do Programa Polos foi possível perceber a contribuição alcançada, principalmente na formação dos seus integrantes para a promoção da cidadania de travestis e transexuais. O papel e a missão extensionistas do Polos, frente à necessidade de reconhecimento e respeito da diversidade sexual e de gênero, cumpre-se quando da possibilidade de articulação de debates, com vistas a contribuir para a efetivação da cidadania e emancipação dos sujeitos. A partir desses resultados favoráveis é possível perceber que o recorte de gênero e sexualidade, na realidade da extensão universitária, deve fornecer subsídio para a realização de novas ações, bem como ser constantemente fomentado. Além de contribuir para o pleno exercício da cidadania, a extensão constitui elemento essencial para a efetivação dos direitos fundamentais, principalmente em uma realidade que divide os sujeitos em “mais e menos humanos”.

REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 2005, 292 p. CARDARELLO, Andrea; FONSECA, Claudia. “Os direitos dos mais e menos humanos”. Horizontes Antropológicos, vol.10, p. 83-122, 1999. FONSECA, Claudia. “Direitos humanos, diversidade cultural e diálogo”. Palestra proferida durante a IV Semana de Antropologia: Cidadania e o (re)conhecimento do outro, Universidade Católica de Goiás, 1999, 16-20 de agosto.

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