Falacias Academicas: ensaios sobre alguns mitos persistentes (draft book, 2010)

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Paulo Roberto de Almeida

Falácias Acadêmicas Ensaios sobre alguns mitos persistentes

Edição do Autor 2010

Falácias Acadêmicas Ensaios sobre alguns mitos persistentes

Copyright © Paulo Roberto de Almeida, 2010

Contatos com o autor: www.pralmeida.org [email protected]

Paulo Roberto de Almeida Doutor em ciências sociais. Mestre em economia internacional. Diplomata.

Falácias Acadêmicas Ensaios sobre alguns mitos persistentes

Edição do Autor 2010

© Todos os direitos reservados. Nos termos da lei que resguarda os direitos autorais é proibida a reprodução total ou parcial deste livro, de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, sem permissão por escrito do Autor.

CIP – Brasil. Catalogação na fonte SIB – Sistema de Bibliotecas Axxxn Almeida, Paulo Roberto de Falácias Acadêmicas: ensaios sobre alguns mitos persistentes / Paulo Roberto de Almeida. — Brasília: Edição do autor, 2010. xxx p. ISBN: 85-xxxxxxxx-x 1. Política internacional. 2. Relações internacionais. 3. Economia. 4. História. 5. Sociologia. 6. Globalização 7. Brasil. 8. Marxismo. 9. Título CDU:

Informação sobre a capa: (...)

Facts are stubborn things; and whatever may be our wishes, our inclinations, or the dictates of our passions, they cannot alter the state of facts and evidence. John Adams

“There are four types of most common fallacies: 1. Zero-Sum Fallacy; 2. Fallacy of Composition; 3. Chess-Pieces Fallacies; 4. Open-ended Fallacy.” Thomas Sowell, Economic Facts and Fallacies (New York: Basic Books, 2008), p. 3-10

Sumário

Prefácio Introdução: o que são falácias e como incorrem nelas os acadêmicos... 1.

O mito do neoliberalismo

2.

O mito do Consenso de Washington

3.

O mito do marco teórico

4.

O mito do Estado corretor dos desequilíbrios de mercado

5.

O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres

6.

Os mitos da Revolução Cubana

7.

Os mitos em torno do movimento militar de 1964

8.

Os mitos da utopia marxista

9.

O mito do socialismo do século 21

10. Mitos sobre o sistema monetário internacional 11. O mito da transição do capitalismo ao socialismo 12. O mito da exploração capitalista 13. O mito do socialismo de mercado na China Conclusão: como não incorrer em falácias, sem deixar de ser acadêmico...

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Índice Prefácio Introdução: o que são falácias e como incorrem nelas os acadêmicos... 1.

O mito do neoliberalismo Da pouco nobre arte de ser falaz As novas roupas do velho imperialismo, em sua fase neoliberal O neoliberalismo como produto de uma imaginação confusa O neoliberalismo produz miséria e é sinônimo de barbárie? O neoliberalismo é um mito, mas alguns ingênuos não sabem disso

2.

O mito do Consenso de Washington Mais um poderoso inimigo, mas algo fantasmagórico As famosas regras do Consenso de Washington, em versão resumida As regras do Consenso de Washington, explicadas em detalhe 1. Disciplina fiscal 2. Prioridades nas despesas públicas 3. Reforma tributária 4. Taxa de juros de mercado 5. Taxa de câmbio competitiva 6. Política comercial de integração aos fluxos mundiais 7. Abertura ao investimento direto estrangeiro 8. Privatização de estatais ineficientes 9. Desregulação de setores controlados ou cartelizados 10. Direitos de propriedade O que aconteceu, antes e independentemente do Consenso de Washington? Concluindo de forma inconclusiva: não existem soluções-milagre em economia

3.

O mito do marco teórico Tente entender... A praga do marco teórico O que é e o que não precisa ser o tal de marco teórico

4.

O mito do Estado corretor dos desequilíbrios de mercado Os mercados sempre provocam desequilíbrios e crises? Os mercados são incapazes de se auto-corrigirem? São os Estados os “corretores” ideais dos desequilíbrios de Mercado? O sistema financeiro só funciona bem com muita regulação dos Estados?

5.

O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres A busca de culpados (sempre deve existir algum...) Friedrich List: versão século 21 Uma história secreta do capitalismo? Políticas estatais como fator de desenvolvimento? A arte de chutar escadas: uma fábula fabulosa

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6.

Os mitos da Revolução Cubana O mito fundador: a revolução que se transformou em reação A especificidade cubana: uma ilha que é quase uma fazenda pessoal Os mitos entretidos pelo regime e por seus admiradores O mito do socialismo O mito das conquistas sociais O mito do imperialismo como ameaça À guisa de conclusão: um manifesto a favor do povo cubano

7.

Os mitos em torno do movimento militar de 1964 Ossificação ideológica e revisionismo histórico: interpretações abertas O maniqueísmo em torno do golpe de 1964: triunfo de uma escola Mitos do governo Goulart: reformas de base e autonomia frente ao império Desmontando os mitos: instabilidade política e incapacidade de reformar Desmontando os mitos: uma análise das ‘reformas progressistas’ Balanço econômico do governo Goulart: uma visão pouco complacente

8.

Os mitos da utopia marxista O que é uma utopia e como o marxismo se encaixa no molde? Utopia marxista e falácias acadêmicas: qual sua importância relativa? Quais são os mitos da utopia marxista? As falácias econômicas do marxismo

9.

O mito do socialismo do século 21 O que é o socialismo original e quais as suas definições básicas? Quais são as características do alegado socialismo do século 21 e em que medida ele difere do original? Quão novo é, de fato, o socialismo do século 21 e quais suas chances de dar certo, onde o velho fracassou miseravelmente? Do socialismo mais eletricidade do século 20 para o socialismo mais informática do século 21: alguma inovação genial? A história se repete? Talvez, mas não precisaria ser como tragédia...

10. Mitos sobre o sistema monetário internacional Os órfãos de Keynes em busca de um Bretton Woods mítico A ilusão da liquidez perfeita, do equilíbrio contínuo e da moeda estável À procura de uma ‘tia rica’ para cobrir o seu déficit de pagamentos OK: na ausência de uma nova moeda internacional, usemos as moedas locais Um outro Bretton Woods é possível?; não é proibido sonhar... 11. O mito da transição do capitalismo ao socialismo O socialismo vai emergir a partir do capitalismo? A teoria da transição e os caminhos divergentes do socialismo e do capitalismo A China e a maior ‘invenção’ da humanidade: capitalismo ou socialismo? A Rússia e a maior ‘catástrofe’ do século 20: 1991 ou 1917? A transição inexistente: enterrando um mito conceitual 12. O mito da exploração capitalista De que exploração estamos falando?

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O caráter historicamente necessário da exploração do homem pelo homem O progresso civilizatório e os sistemas imperiais (mas não apenas eles) Existiria progresso humano sem exploração?: dificilmente Eliminando um mito marxista: a exploração como dominação 13. O mito do socialismo de mercado na China Introdução: uma falácia legitimadora da transição ao capitalismo O surgimento do socialismo na China: uma parte dos equívocos do século 20 Os desastres verdadeiramente desastrosos e cumulativos do socialismo chinês A longa marcha da China em direção ao capitalismo: nada de muito glorioso Existe “socialismo de mercado” na China?; se existe, não é socialismo Reconciliando o mito com a realidade: de volta ao velho e duro capitalismo Conclusão: como não incorrer em falácias, sem deixar de ser acadêmico...

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Prefácio Thomas Sowell é um acadêmico americano, nem por isso sujeito a certas peculiaridades típicas da comunidade acadêmica: (continuar, terminar...)

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Introdução: o que são falácias e como incorrem nelas os acadêmicos... Falácias constituem um dos erros mais comuns do ‘trabalhador acadêmico’, na verdade, do cidadão comum, embora muitos não percebam que estão incorrendo em alguma falácia. (continuar, terminar...)

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1. O mito do neoliberalismo

Da pouco nobre arte de ser falaz Falácia, segundo os bons dicionários, é a qualidade ou o caráter do que é falaz, que, por sua vez, é um adjetivo sugerido como sendo o equivalente de enganador, ardiloso ou fraudulento, ou, ainda, quimérico, ilusório ou enganoso. Pois bem, ao longo de minhas “peregrinações” acadêmicas, tenho tido a oportunidade de deparar-me com exemplos de afirmações, argumentos, postulações, teses ou artigos inteiros que correspondem ao caráter enganador ou, até mesmo, fraudulento contido nesse adjetivo. Comecemos esta série por um dos mais recorrentes em nossos tempos. Como sabem todos aqueles que convivem com a literatura acadêmica na área de ciências sociais, nenhum conceito tem sido tão equivocadamente mencionado no ambiente universitário, nas últimas duas décadas, quanto o epíteto “neoliberal”, junto com o seu correspondente coletivo e doutrinal, o “neoliberalismo”. A incidência estatística de seu (mau) uso é tão notória, que se poderia falar de uma verdadeira epitetomania anti-neoliberal, dirigida contra todas as políticas econômicas associadas, de perto ou de longe, ao chamado mainstream economics, este representado pelas correntes ortodoxas de pensamento e suas práticas econômicas correspondentes. Junto com o substantivo usado e abusado de globalização, ou, ainda, o tão mais detestado quanto praticamente desconhecido programa econômico do “consenso de Washington”, o neoliberalismo converteu-se, simultaneamente, em um xingamento e em um slogan de uso praticamente obrigatório por todos aqueles que pretendem desqualificar e condenar as políticas e as práticas da escola econômica convencional. Eles o fazem, supostamente em nome de uma outra orientação, de uma doutrina ou de uma escola, que seriam, alegadamente, heterodoxas, alternativas e até mesmo opostas às primeiras. Os argumentos e teses utilizados para esse tipo de condenação são pouco compatíveis com um trabalho analítico sério, ou seja, capazes de passar pelos testes da coerência, relevância, compatibilidade com os dados da realidade e passíveis de aferição, independentemente dos próprios argumentos que sustentam a acusação. Nesse sentido, o neoliberalismo já se converteu em um mito acadêmico, isto é, deixou de significar uma realidade empírica, aferível por dados extraídos de alguma situação

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concreta, para passar a representar uma entidade nebulosa, definida de modo muito pouco precisa, aplicada a diferentes conjunturas de países e políticas vagamente caracterizadas como pertencendo ao domínio dos “livres mercados”, em oposição ao que seria uma regulação estatal mais estrita. Não se é neoliberal por vontade própria, mas apenas por ter sido assim catalogado por aqueles que detêm o monopólio dessa classificação, que são, invariavelmente, os opositores de supostas idéias “neoliberais”. Por certo, existem muitos outros abusos acadêmicos em relação a diversos conceitos que são usados indevidamente no panorama pouco rigoroso das nossas “humanidades”, entre eles o de classe, o de imperialismo, o de burguesia e vários do mesmo gênero. Contudo, o manancial de falácias que brota sem cessar a partir do uso inadequado do adjetivo “neoliberal” é provavelmente o mais abundante e o mais disseminado de que se tem registro desde os anos 1980. São tantas as variedades de uso e as manifestações qualitativas – ainda que superficiais – em torno desse termo, que fica difícil ignorá-lo como o campeão absoluto de referências numa série analítica que pretende, justamente, examinar alguns exemplos de falácias acadêmicas. Seu uso é tão corrente e banal que pode ser espinhoso selecionar uma “falácia” representativa de toda uma corrente de pensamento que se propõe aqui submeter ao crivo da crítica argumentada e sistemática. Encontrei, porém, no contexto de minhas leituras, um texto suficientemente representativo de uma falácia acadêmica associada ao dito conceito e perfeitamente ilustrativo do mito mencionado no título deste ensaio. Vou proceder à citação do texto em questão, submetendo o trecho selecionado à crítica que pretendo fazer de toda uma orientação doutrinal muito comum nos meios ligados à comunidade universitária que se move em torno das chamadas humanidades. Os únicos critérios que me guiam na releitura crítica do texto em questão são aqueles que se espera encontrar em todo e qualquer trabalho acadêmico: clareza na descrição ou exposição dos fatos, coerência na apresentação dos argumentos, relevância do discurso para a realidade de que se pretende tratar e sua adequação aos dados dessa própria realidade. As novas roupas do velho imperialismo, em sua fase neoliberal Deparei-me, num típico volume que deve figurar entre as leituras obrigatórias ou recomendadas de vários cursos dentro dessa área, com a seguinte afirmação:

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“...o produto social da globalização, o neoliberalismo tem sido o mais dramático possível. Em pouco tempo esse novo regime de acumulação desagregou sociedades, tornou os ricos mais ricos e ampliou a pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente as nações da periferia, onde a barbárie social vem esgarçando o tecido social e incrementando a violência em todos os sentidos.” (autor: Edmilson Costa; artigo: “Para onde vai o capitalismo? Ensaio sobre a globalização neoliberal e a nova fase do imperialismo”; in Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari (coord.), Relações Internacionais: Múltiplas Dimensões; São Paulo: Aduaneiras, 2004, p. 201-233; cf. p. 206.)

Existe ainda outra frase extraída do mesmo artigo que me parece adequada ao propósito de avaliar criticamente o mito do neoliberalismo em certo pensamento acadêmico contemporâneo, embora esta acima me pareça uma perfeita síntese de tudo o que existe de equivocado e falacioso no “pensamento” universitário em torno desse conceito onipresente e polivalente. Vejamos em todo caso o complemento ideal a ela: “O neoliberalismo é a síntese de todo esse processo de mudanças profundas que estão ocorrendo no sistema capitalista: funciona como uma espécie de gerenciador ideológico, político, econômico, social e cultural dessa nova fase do imperialismo. Trata-se de uma ideologia primitiva para os tempos atuais, com postulados do século XVIII e meados do XIX, época do capitalismo concorrencial, mas com um apelo espantoso ao senso comum. A ideologia neoliberal procura manipular os sentimentos mais atrasados das massas, revigorando os preconceitos, açulando o individualismo, distorcendo o significado das coisas, reduzindo os fenômenos à sua aparência, de forma a ganhar os corações e mentes para o jogo do livre mercado e da livre iniciativa.” (Idem, op. cit., p. 219)

Não vale a pena alertar para a incoerência de se destacar o caráter “primitivo” de uma ideologia que, sendo de meados do século XIX, tem mais ou menos o mesmo grau de “primitivismo” que o marxismo, nem para a inconsistência de se vincular a defesa do livre mercado e da livre iniciativa a “sentimentos atrasados das massas”, já que a mesma ideologia estaria, supostamente, “açulando o individualismo”. Pedir um mínimo de coerência analítica seria exigir demais de um autor que, manifestamente, distorce o “significado das coisas”, reduz o fenômeno do liberalismo à sua aparência, com o provável objetivo de ganhar os corações e mentes de alguns estudantes para o livre jogo dos seus argumentos ilusórios. Passemos, portanto, a examinar cada uma das partes dessas afirmações, elas mesmas

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espantosas, em relação ao neoliberalismo, com a atenção que nos requer este exemplo consumado de fraude intelectual (se é verdade que este último adjetivo se aplica ao caso em questão). O neoliberalismo como produto de uma imaginação confusa Em primeiro lugar, o neoliberalismo nunca foi um “produto social da globalização”. Esta é um processo tão velho quanto os empreendimentos marítimos dos mercadores fenícios da antiguidade e as aventuras em mares desconhecidos dos navegadores ibéricos do final do século XV. Em suas manifestações mais comuns, ela vem sendo aceita tranquilamente até pelos mais empedernidos opositores desse processo, aqueles que, sob inspiração francesa, acreditam que “um outro mundo é possível” e que pedem por “uma outra globalização”, que deveria ser não assimétrica e, preferencialmente, não capitalista. Quanto ao neoliberalismo, a rigor, ele não tem nada a ver com a globalização, podendo ser teoricamente encontrado em diversos sistemas econômicos, bastando com que as práticas econômicas se ajustem ao que se tem, via de regra, como os fundamentos do sistema liberal: liberdade de iniciativa, pleno respeito à propriedade privada e aos contratos, defesa do individualismo contra as intrusões do Estado e, de modo amplo, um conjunto de instituições e práticas que buscam garantir, tanto quanto possível, a liberdade dos mercados. A rigor, o neoliberalismo não existe, sendo apenas e tão somente um revival, ou renascimento, de uma velha escola de pensamento econômico e de orientações em matéria de políticas econômicas que se filiam ao antigo liberalismo doutrinal que surge na Grã-Bretanha a partir dos séculos XVII e XVIII. Aliás, nenhum “neoliberal” consciente e conseqüente se classificaria dessa maneira: ele apenas diria que segue os princípios do liberalismo (econômico ou político, não vem ao caso diferenciar aqui os dois sistemas, que não são idênticos, mas tampouco estranhos um ao outro) e ponto final; todo o resto seria dispensável. Neoliberal é, como já referido, um epíteto criado pelos opositores do liberalismo ou, se quisermos, um conceito que busca evidenciar, justamente, o retorno do antigo liberalismo, depois de um longo intervalo marcado por práticas e orientações claramente intervencionistas e estatizantes. Mas continuemos. Deixemos de lado a caracterização de “dramático” aplicada a esse “produto”, pois isto corresponde a uma apreciação inteiramente subjetiva do autor, carente de qualquer fundamentação empírica. Esclareça-se, de imediato, que o “produto” não conforma,

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absolutamente, um “novo regime de acumulação”, que seria, supostamente, uma forma de organização social da produção e da distribuição de bens e mercadorias historicamente inédita para os padrões conhecidos do capitalismo. Ora, o liberalismo – e seu sucedâneo contemporâneo, que seria “neo” – está longe de ser novo e menos ainda de conformar um regime de acumulação, posto que configurando uma filosofia ou orientação geral nos terrenos da política e da economia. Acumulação é um termo geralmente associado ao pensamento econômico marxista, que denota formas genéricas de apropriação dos resultados sociais do processo de produção, o que pode ocorrer em regime de livre concorrência, de monopólio, de propriedade

estatal

ou

de

modalidades

mistas

dessas

configurações

produtivas.

Aparentemente este autor demonstra pouco rigor na sua utilização do ferramental conceitual marxista; em benefício próprio, deveria ser mais cuidadoso com sua terminologia estereotipada. Pretender, agora, que esse “novo regime” desagregou sociedades equivaleria a afirmar que o neoliberalismo foi responsável pela desestruturação de várias nações que conheceram a aplicação de políticas neoliberais. Olhando-se, honestamente, um mapa dinâmico do planeta, o que poderíamos constatar é que as únicas sociedades verdadeiramente desestruturadas da atualidade são algumas nações africanas que conheceram processos traumáticos de instabilidade política e social, algumas até atravessando guerras civis abertas e conflitos étnicos ou religiosos intermitentes, ou surtos violentos de conflitos tribais que se arrastam na quase indiferença das nações mais ricas do planeta, estas efetivamente “neoliberais” ou simplesmente liberais. Com efeito, se podemos caracterizar algumas sociedades como mais liberais do que outras, estas parecem ser as nações do chamado arco civilizacional anglo-saxão (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia), sendo elas seguidas como menor rigor doutrinal (e maior pragmatismo) pelos países nórdicos ou escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia). Quanto aos países da Europa ocidental, essencialmente capitalistas em seu “modo de produção”, eles têm alternado práticas e políticas liberais – ou politicamente “direitistas”, para sermos simplistas – com outras tantas práticas e políticas mais social-democráticas, geralmente conduzidas por partidos de esquerda ou progressistas. No fundo, não se vê bem como distinguir essas políticas entre elas, a não ser no plano da retórica eleitoral.

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Em nenhum outro continente ou região podemos distinguir países e sociedades verdadeiramente “neoliberais”, se formos rigorosos na utilização desse conceito. De fato, pretender que países latino-americanos, que empreenderam programas de ajuste e de estabilização macroeconômica depois de longas e recorrentes crises econômicas trazidas por processos inflacionários e de desequilíbrio no balanço de pagamentos, sejam ou tenham sido “neoliberais” – qualquer que seja o entendimento que se dê a esse conceito – representaria abusar em demasia desse conceito, retirando-lhe qualquer precisão metodológica e adequação à realidade empírica que nos é dada observar ao longo das últimas décadas. Olhando com lupa, talvez se pudesse dizer que o Chile se apresenta como um país mais “neoliberal” do que a média dos latino-americanos. Ora, não se pode dizer que a sociedade chilena esteja “desestruturada”, a qualquer título. Colocando a lupa em outras sociedades da região, o que se observa é que existem, sim, alguns países bem mais desestruturados: os primeiros que aparecem são a Bolívia, a Venezuela e o Equador, com a possível inclusão da Argentina nesse conjunto. Pois bem, dificilmente se poderia dizer que eles estão assim por causa do neoliberalismo. Ao contrário. Em cada um deles, o que se observou, ao longo dos últimos anos, por acaso coincidentes com seus respectivos processos de desestruturação, foi, justamente, a aplicação de políticas dirigistas, estatizantes, intervencionistas, heterodoxas e, até, socialistas; ou seja, tudo menos políticas liberais. O autor deve estar com suas lentes embaçadas por preconceitos ideológicos, o que o impede de constatar a simples realidade de políticas econômicas que são efetivamente aplicadas nos diversos países considerados. O neoliberalismo produz miséria e é sinônimo de barbárie? O que dizer, em seguida, da suposta ação do neoliberalismo, que teria ampliado “a pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente as nações da periferia”? Trata-se, mais uma vez, de afirmação desprovida de qualquer fundamentação empírica, não se podendo apoiá-la em praticamente nenhum exemplo de sociedade reconhecidamente “neoliberal”, qualquer que seja. A África, como vimos, afundou de fato na pobreza e na desesperança – embora ela venha crescendo novamente nos últimos anos –, mas essa evolução dificilmente poderia ser creditada à ação do neoliberalismo. Desafio o autor do texto selecionado a provar o contrário.

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Quanto às duas nações “periféricas” que mais progressos fizeram na elevação gradual de uma miséria abjeta para uma pobreza aceitável, a China e a Índia, o que se observou, nas últimas duas décadas, foi um conjunto de reformas, várias ainda em curso, conduzidas justamente na direção de mecanismos de mercado, não de orientações estatizantes ou de planejamento centralizado. A renda per capita tem se elevado, progressivamente, em ambos os países, especialmente na China, que deu saltos espetaculares na redução da pobreza e na abertura de setores inteiros de sua economia à livre iniciativa e ao capital estrangeiro (todo ele capitalista e, supostamente, neoliberal). Quanto à Cuba socialista, ela conseguiu realizar a proeza de passar da maior renda per capita da América Latina em 1960 – não escondendo o fato de que ela era bem mal distribuída – para um patamar abaixo da média, em 2006, confirmando o consenso de que o socialismo é bem mais eficiente em repartir de modo relativamente igualitário a pobreza existente do que em criar novas riquezas. Pode-se, talvez, alegar que as mudanças econômicas ocorridas na China vêm sendo feitas sob a égide do planejamento estatal e sob a firme condução do Estado chinês, que mantém controle sobre setores ditos estratégicos da economia do país. Essa realidade não elimina o fato de que todas as reformas operadas apresentam um caráter essencialmente capitalista e, portanto, tendencialmente neoliberal, ainda que não na versão “quimicamente” pura do modelo original anglo-saxão. O estilo ou a forma não pode sobrepor-se à essência do sistema, caberia registrar. Neste caso, nosso autor ou é cego ou é intelectualmente desonesto, ao não querer reconhecer esses dois processos de “enriquecimento capitalista”, que se desenvolvem sob os olhos de todo o planeta há aproximadamente duas décadas. Suas lentes estão completamente fora de foco ou muito sujas, aparentemente. Um pouco de estatística não lhe faria mal. O fato de que, em vários desses processos – tanto em países desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento –, os ricos estejam se tornando mais ricos não impede o outro fato concomitante de que os pobres estejam se tornando menos miseráveis. Quem não quiser tomar minha afirmação como um argumento de fé, pode conferir os dados apresentados por estudiosos da distribuição mundial de renda, como Xavier Sala-i-Martin, cujas evidências e conclusões já resumi num artigo a esse respeito.1

1

Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Distribuição mundial de renda: as evidências desmentem as teses sobre concentração e divergência econômica”, Revista Brasileira de Comércio Exterior (Rio de

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Se existem sociedades nas quais a “barbárie social vem esgarçando o tecido social e incrementando a violência em todos os sentidos”, como pretende o autor, elas estão longe de representar um modelo de “acumulação” ou de organização social da produção que seja liberal ou neoliberal, sendo mais efetivamente caracterizadas pelo autoritarismo político e pelo extremo intervencionismo econômico do Estado, quando não entregues à violência política, religiosa ou tribal, pura e simples, como parece ser o caso de alguns países do continente africano ou do Oriente Médio. A afirmação carece, assim, de qualquer embasamento na realidade, sendo uma construção puramente mental de um autor manifestamente enviesado contra o que ele crê ser “neoliberalismo”, quando nenhum exemplo concreto desse sistema é discutido ou sequer aventado. Para um autor como esse, ser contra o neoliberalismo significaria se posicionar contra o livre comércio, contra o ingresso do capital estrangeiro, contra a administração em bases de mercado de inúmeros serviços públicos, contra a fixação dos juros e da paridade cambial pelo livre jogo da oferta e demanda de crédito e de moeda, enfim, preservar o controle estatal de inúmeras atividades com impacto social. Se formos examinar, contudo, os dados econômicos relativos à renda, riqueza e prosperidade de um conjunto significativo de países, estabelecendo duas colunas, nas quais se colocaria, de um lado, os mais “neoliberais” – abertura ao comércio e aos investimentos, menor regulação estatal de atividades de produção e distribuição, fluxo livre de capitais e fixação dos juros e câmbio pelo mercado – e, de outro, os países menos propensos à abertura e mais inclinados à regulação estatal, e certamente quanto ao movimento de capitais – como são em grande medida os da América Latina, do Oriente Médio e da quase totalidade da África – teríamos uma correspondência quase perfeita entre maiores coeficientes de abertura, isto é, maior grau de “neoliberalismo”, e maior renda e prosperidade. O “quase perfeita” vem por conta de países de grande mercado interno – como os EUA – que apresentam pequeno coeficiente de abertura externa (apenas no que tange ao peso do comércio exterior no PIB), sem no entanto deixar de serem abertos às importações e atrativos aos capitais estrangeiros. Ou seja, a liberalização em comércio e em investimentos e um ambiente de negócios favorável à iniciativa privada constituem, sim, poderosas alavancas para a formação de riqueza e a distribuição de prosperidade. Janeiro: Funcex, ano XXI, n. 91, abril-junho 2007, p. 64-75; disponível: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1716DistMundRendaRBCE.pdf).

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O neoliberalismo é um mito, mas alguns ingênuos não sabem disso Em qualquer hipótese, porém, o neoliberalismo é um mito, tanto pelo lado das acusações infundadas dos anti-neoliberais, como pelo lado dos promotores da própria doutrina liberal, uma vez que todos os Estados modernos, sem exceção, apresentam graus variados de intervenção no sistema econômico e de regulação da vida social. Uma série estatística sobre níveis de tributação e gastos públicos, ao longo do século XX, revelaria um avanço regular e constante da intermediação estatal nos fluxos de valor agregado e de dispêndio total, confirmando o papel sempre relevante do Estado na repartição setorial da renda total e na correção das desigualdades mais gritantes introduzidas pelos regimes puros de mercado. Aliás, falar em “Estado liberal” é uma total contradição nos termos, tanto o substantivo desmente o seu suposto adjetivo. O que estava, contudo, em causa na análise conduzida neste ensaio de simples avaliação crítica de um dos mitos mais difundidos na academia não era, propriamente, a evolução econômica das modernas sociedades de mercado, e sim a afirmação – que vimos totalmente desprovida de qualquer fundamentação empírica – de que existe algo chamado neoliberalismo sendo ativamente praticado pelos Estados modernos e de que essa doutrina e prática seriam responsáveis por todas as misérias da sociedade contemporânea. Trata-se de uma das fabulações mais inconsistentes de que se tem notícia na produção acadêmica tida por séria e responsável. Os dados disponíveis, revelados por organismos internacionais e por uma variedade razoável de organizações independentes, confirmam a melhoria sustentada dos padrões de vida em diferentes regiões do planeta, tanto mais rápida e disseminada quanto mais integrados estão esse países e regiões aos fluxos mundiais de comércio, tecnologia e investimentos. Assim, considerar que a “acumulação” neoliberal ampliou a pobreza em todos os cantos do mundo, aprofundou as desigualdades e provocou o cortejo de misérias que são registradas em áreas jamais tocadas por políticas e práticas neoliberais – qualquer que seja o entendimento que se dê ao conceito em questão –configura um tipo de fraude que só consegue ser repetido impunemente em salas de aula universitárias porque a academia brasileira é pouco responsável no “controle de qualidade” dos cursos da área de humanas e nos métodos de avaliação de docentes manifestamente despreparados para cumprir o programa do qual são encarregados. Para sermos mais precisos, estamos em face de uma

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desonestidade intelectual que só encontra paralelo em apresentações de mágicos de circos mambembes. Termino por aqui minha primeira análise de uma falácia acadêmica detectada em livros utilizados em universidades brasileiras. De fato, o mito do neoliberalismo – que não guarda a mínima correspondência com a realidade verificável – oferece um exemplo concreto desse tipo de prática, mais comum do que se pensa, aliás, em nosso ambiente universitário. A um simples trecho selecionado de um artigo do autor aqui examinado pode-se aplicar o conjunto de caracterizações dicionarizadas e conectadas ao termo “falácia”: enganador, ardiloso, fraudulento, quimérico e ilusório. Outros exemplos certamente existem: eles também serão trazidos a exame no momento oportuno. Concluo com um aviso à maneira dos franceses: à suivre... Brasília, 26 de julho de 2008.

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2. O mito do Consenso de Washington

Mais um poderoso inimigo, mas algo fantasmagórico Continuando minha série sobre as “falácias acadêmicas” – inaugurada por artigo sobre o mito do neoliberalismo2 – pretendo agora tratar do segundo mito mais abusado dos últimos 20 anos, aquele que pretende que, em algum momento, a América Latina se dobrou a um conjunto de injunções vindas de Washington e aplicou esse pacote “neoliberal” com uma inconsciência ingênua que teria beirado a irresponsabilidade. Esse “pacote” de prescrições relativas à condução macroeconômica nos países latino-americanos recebeu o nome – inclusive porque ele foi auto-atribuído – de “Consenso de Washington” (doravante: CW). Os problemas reais e supostos do CW – e o mito daí decorrente – começam justamente por esse “acidente geográfico”, não puramente circunstancial, posto que reveladores de uma coincidência infeliz: o selo de origem o condenou a ser visto, desde o início, com desconfiança, quando não o situou no limite da rejeição e do repúdio ideológico por parte de toda uma categoria de “produtores acadêmicos”. Caberia registrar, com efeito, que as famosas regras de política econômica – na verdade, tão desconhecidas quanto vilipendiadas – jamais teriam assumido a importância que podem ter assumido no debate político-midiático do continente se o fato de elas terem sido elaboradas (não necessariamente aplicadas concretamente) e divulgadas a partir da “capital do Império” não trouxesse esse estigma de nascimento, quase um pecado original, que praticamente converteu o CW numa entidade virtual, numa figura metafísica, geralmente vazia de conteúdo, mas inacreditavelmente repleta de ataques condenatórios e de slogans acusatórios que beiram o ridículo, pela superficialidade das diatribes e a inconsistência das acusações. Leio, por exemplo, num livro do marxista paquistanês, mas exilado em Londres desde sempre, Tariq Ali, recentemente editado no Brasil, Piratas do Caribe (Rio de Janeiro: Record, 2008), o seguinte trecho: “A América Latina é um continente em que uma alternativa essencialmente social-democrata ao capitalismo neoliberal está crescendo a partir das bases e contaminando a política por todos os lados.” (p. 9) 2

Ver na Espaço Acadêmico n. 87, agosto de 2008, link: http://www.espacoacademico.com.br/087/87pra.htm.

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Como alternativa, Tariq Ali se refere aos atuais “piratas” do Caribe: Hugo Chávez, da Venezuela, Daniel Ortega, da Nicarágua, Rafael Correa, do Equador, e Evo Morales, da Bolívia. Os dois últimos, aliás, seriam dificilmente enquadráveis na categoria “piratas do Caribe”, mas podemos deixar esse outro acidente geográfico de lado e ir ao essencial, uma vez que esse livro representa uma condenação explícita do CW e um libelo contra as políticas e medidas econômicas identificadas com tal “receituário neoliberal”. O mais surpreendente no livro de Tariq Ali – provavelmente decepcionante para o governo brasileiro – é a condenação formal da administração em curso no Brasil, como estando justamente identificada com o CW. O que afirma Ali, que deve descontentar absolutamente os governantes atuais do Brasil? “Há uma ironia no fato de que tanto seus aliados em Washington e na Europa quanto seus opositores em casa concordam em ver Lula como um Tony Blair tropical. Como seu equivalente inglês [Ali escreveu quando Blair ainda era o primeiro-ministro britânico], está pronto a agradar praticamente em qualquer nível, cercado de assessores e camaradas totalmente leais ao CW e corruptos até a alma”. (p. 53) [Lula] “De fato se tornou um Tony Blair tropical, sucedendo a Tatcher protagonizada por Fernando Henrique Cardoso.” (p. 54) Acredito que muitos no Brasil, e em outros países da América Latina, tenderiam a concordar com o que escreveu Tariq Ali, uma vez que os “manifestos de oposição” contra a política econômica do governo Lula – muitos deles circulando pouco tempo depois da inauguração do governo – receberam significativo volume de assinaturas, demonstrando grande adesão nas faculdades de ciências sociais aplicadas e de humanidades em geral.3 Acredito, também, que a rejeição demonstrada por esses acadêmicos à política econômica do governo brasileiro atual – e, de forma geral, aos supostos ditames do CW – represente, em primeiro lugar, uma ignorância parcial ou total do que sejam, efetivamente, as medidas de política econômica preconizadas no tão famoso quanto desconhecido consenso. Em vista dessa realidade, pretendo, no presente ensaio, apresentar o CW em sua integralidade original e discutir, em seguida, alguns exemplos práticos de sua aplicação (ou falta de) em países selecionados, tratando inclusive de alguns casos considerados paradigmáticos. Estes estão muito próximos de nós, sendo representados, respectivamente, pelo Chile – como suposto exemplo de adesão ao CW – e pela Argentina, que seria um 3

Para uma visão geral dos argumentos mais recorrentes nesses manifestos, e uma crítica a eles, remeto a meu artigo: “Onde foram parar os manifestos econômicos de oposição?”, Espaço Acadêmico, nº 41, outubro de 2004; link: http://www.espacoacademico.com.br/041/41pra.htm.

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eloqüente exemplo de seu fracasso. O mesmo Tariq Ali, por acaso, afirma o seguinte sobre a Argentina: “A Argentina é um caso interessante a ser estudado. O seu colapso foi uma mensagem para o mundo como um todo, não apenas para a América Latina. Se você seguir os ditames de Washington, isso é o que pode acontecer também com você.” (p. 57). Tariq Ali está, obviamente, equivocado sobre o que ocorreu exatamente na Argentina, mas o seu “indiciamento” constitui, aliás, um típico exemplo da superficialidade, dos equívocos e da ignorância sobre o CW, de resto fartamente exibidos por outros críticos em nossas academias. Tendo já abordado, parcialmente com base nas regras do CW, da suposta adesão do Brasil ao que seria o “neoliberalismo” desenhado em Washington – ver meu artigo “A indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil: uma avaliação econômica e política da era neoliberal”4 – pretendo dispensar aqui um novo tratamento do caso brasileiro, pelo menos em detalhe. Vamos ao que interessa, portanto, em relação a essas famosas regras. As famosas regras do Consenso de Washington, em versão resumida Trata-se de dez regras de ajuste econômico, formalizadas por ocasião de um seminário realizado em Washington, no final dos anos 1980, ao cabo de dez anos de reformas econômicas conduzidas em diversos países da América Latina. O encontro tentava, justamente, fazer o balanço do que, exatamente, tinha sido aprendido na região (e fora dela) como experiência prática da penosa fase de crises recorrentes dos anos (e décadas) anteriores, ademais dos problemas estruturais e características sistêmicas desde sempre: inflação renitente, emissionismo irresponsável, choques do petróleo, crise da dívida, moratória, desequilíbrios cambiais e de balanço de pagamentos, pobreza generalizada, desigualdades extremas etc. O que ocorreu, portanto, não foi uma decisão dos órgãos oficiais de Washington, vinculados de alguma forma à elaboração de “prescrições” de política econômica – que seriam as duas “sisters in the woods”, FMI e BIRD, e o Departamento do Tesouro dos EUA – , mas sim um “resumo-síntese” de um consenso puramente acadêmico, que não pretendia ser apresentado como “receituário” obrigatório de implementação de políticas econômicas “neoliberais. Tratava-se apenas como um trabalho de reflexão e uma colaboração intelectual ao esforço de ajuste e de reformas. 4

In Espaço Acadêmico, nº 10, março de 2002, link: http://www.espacoacademico.com.br/010/10almeida.htm.

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O CW deve, portanto, ser entendido exatamente pelo que ele foi, ou é, e não pelo que seus supostos inimigos ideológicos pretendem que ele seja: uma contribuição ao esclarecimento de políticas que “deram certo”, não um “pacote” imposto desde o alto. Este é o quadro situacional e o contexto intelectual pelos quais devem ser avaliados o CW – e seus desenvolvimentos posteriores – e como tais considerados em qualquer trabalho de avaliação que se pretenda fazer em torno dele, como o que agora se empreende. Vamos, agora, à sua substância. Resumidamente, ele toca nos seguintes pontos: disciplina fiscal, reorientação das despesas públicas, reforma tributária, liberalização financeira e comercial, taxa cambial, abertura aos investimentos estrangeiros, privatização, desregulação e garantia de contratos e direitos de propriedade. Caberia recordar, desde já, que as regras do CW não foram estabelecidas por economistas liberais para orientar governos desejosos de uma política econômica “ortodoxa”. Trata-se de um conjunto de prescrições de política econômica, formalizadas a posteriori – como acontece geralmente com os modelos econômicos, que nada mais são do que a formalização genérica de uma experiência passada, geralmente bemsucedida, pois raramente se constroem modelos a partir de fracassos –, para tentar sintetizar o que estava acontecendo com países como Chile e México, que desde o início dos anos 1980 tentavam enquadrar-se no chamado mainstream economics, depois de décadas de políticas erráticas e experiências substitutivas. O autor das propostas foi o economista John Williamson, que, num artigo intitulado “O que Washington entende por reforma da política [econômica]”,5 fazia o balanço de quase dez anos de ajuste na América Latina, depois da crise da dívida externa, em 1982. Os países mais avançados nesse processo de ajuste eram o Chile e o México. Ao contrário do que muitos pensam, portanto, foram as políticas já adotadas de forma independente por países da região que serviram de “modelo” para que o economista, a partir das medidas concretas de política econômica de seus governos, apresentasse seu esquema de “receitas bem-sucedidas de ajuste”. Essas receitas cobriam dez áreas de reformas econômicas e políticas, nomeadamente as seguintes: 1) disciplina fiscal; 5

Cf. Williamson, John, “What Washington Means by Policy Reform”, in idem (org.), Latin American Adjustment: How Much Has Happened? (Washington: Institute for International Economics, 1990, p. 7-20): http://www.petersoninstitute.org/publications/papers/paper.cfm?ResearchID=486; acesso em setembro de 2008.

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2) prioridades nas despesas públicas; 3) reforma tributária; 4) taxa de juros de mercado; 5) taxa de câmbio competitiva; 6) política comercial de integração aos fluxos mundiais; 7) abertura ao investimento direto estrangeiro; 8) privatização de estatais ineficientes; 9) desregulação de setores controlados ou cartelizados; 10) direitos de propriedade. Em sua versão original, as regras enunciadas por Williamson pouco se ocupavam de equilíbrio no balanço de pagamentos, da liberalização financeira, de desregulação bancária, não implicavam a diminuição do papel do Estado (como acusam, sem razão, muitos críticos apressados) e não necessariamente condicionavam o sucesso dessas políticas à manutenção de uma baixa taxa de inflação. John Williamson afirmava expressamente que suas regras eram mais “instrumentos de política”, do que um conjunto de objetivos ou resultados que devessem ser elevados à categoria de dogma. Elas estavam longe, portanto, de representar um remédio para economias doentes, pois que tinham sido concebidas como um conjunto de princípios para, justamente, manter as economias latino-americanas em estado “saudável”, sem a necessidade de correções de rumo brutais, com intervenção do FMI e pacotes de ajuda “impostos de fora”. Em relação à acusação de que essas regras condenavam as economias latinoamericanas à recessão, cabe registrar que o CW nunca pretendeu, nem poderia, ser um “receituário de desenvolvimento”; ele estava unicamente destinado a fornecer “instrumentos de política econômica” para facilitar o processo de reformas e de ajuste num momento de crise, como era o caso da dívida externa. Esses instrumentos deveriam, assim, fornecer as condições mínimas da estabilidade, após a qual políticas especificamente desenhadas para estimular ou facilitar o desenvolvimento econômico deveriam ser concebidas e implementadas pelos governos da região. As regras do Consenso de Washington, explicadas em detalhe Vejamos agora cada um dos pontos de maneira mais argumentativa.

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1. Disciplina fiscal Todos aqueles que conhecem a história econômica da América Latina têm presente o quadro de descalabro financeiro cercando as finanças públicas da maior parte dos países. Na verdade, nem precisaria conhecer essa história trágica para saber que desequilíbrios orçamentários levam à acumulação de dívida pública, sustentada em emissões contínuas de títulos governamentais, daí à elevação dos juros e a um ciclo infernal de novas emissões apenas para cobrir o serviço (juros) da dívida. Basta considerar apenas o orçamento doméstico, ou suas próprias receitas e despesas, para saber que déficits contínuos na conta corrente produzem uma conta salgada que corre o risco de se tornar inadministrável. Como, a rigor, governos não vão à falência, e sempre possuem a capacidade de avançar sobre as rendas dos cidadãos e das empresas, o processo pode levar a conseqüências extremas, deixando uma “herança maldita” para o governo seguinte ou as futuras gerações. Não se trata, propriamente, de um problema confrontando escolas econômicas ou orientações políticas distintas, ainda que o próprio Williamson se permita cutucar alguns crentes do “estímulo fiscal”. Diz ele que “os crentes de esquerda no estímulo keynesiano, por meio de grandes déficits orçamentários, são quase uma espécie em extinção”. Trata-se, basicamente, da sustentabilidade das contas públicas, e aqui o ideal seria não permitir que o déficit orçamentário não excedesse uma dada relação entre a dívida pública e o PIB. Pelos critérios de Maastricht, como se sabe, o déficit orçamentário permitido é de, no máximo, 3% do PIB, sendo que a dívida pública não deveria exceder 60% do PIB. Talvez sejam relações razoáveis, mas tudo depende de como está sendo construído esse déficit – se for para investimento é obviamente melhor do que para novas despesas correntes continuadas – e de qual é o perfil da dívida em função do nível dos juros e do calendário de amortização. Uma trajetória que contemple, por exemplo, aumentos generosos de salários para o funcionalismo público – em total desproporção do que se paga no setor privado – e criação de novos cargos públicos em função de critérios totalmente políticos, sem correspondência quanto ao nível e qualidade dos serviços públicos, pode constituir uma receita segura para uma bomba-relógio de natureza fiscal, da mesma forma como a concessão de aposentadorias e pensões em clara dissociação com os recolhimentos havidos na fase ativa dos beneficiários. O Brasil, justamente, parece enfrentar alguns desses problemas na presente fase, o que certamente vai ter repercussões mais graves alguns anos mais à frente. Tampouco adianta,

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como também se pratica por aqui, cobrir essas novas despesas buscando novas fontes de arrecadação ou aprofundando a “extração” fiscal sobre os contribuintes e as empresas: o único resultado desse tipo de medida é reduzir o espaço da poupança privada – que deveria ser usada para o investimento empresarial – o que obviamente terá efeitos negativos sobre a taxa de criação de empregos, de crescimento da renda e outros impactos que os economistas chamam de convite à irresponsabilidade política: inflação e fuga de capitais. 2. Prioridades nas despesas públicas Deixando de lado despesas militares – que são consideradas um domínio da segurança nacional, fora, portanto, do alcance de simples tecnocratas – todas as outras despesas são passíveis de racionalização e, eventualmente, de redução, pela via dos ganhos de eficiência. Existem três fontes de gastos públicos que parecem inevitáveis em toda e qualquer circunstância: gastos previdenciários (supondo-se um regime de repartição, e não de capitalização); investimentos públicos, sobretudo em infra-estrutura; saúde e educação, considerados corretores de desequilíbrios existentes no mercado (devendo, portanto, beneficiar os mais pobres). É óbvio, mesmo para o mais “direitista” dos economistas, que prioridade nas despesas públicas não quer dizer redução de gastos sociais, e sim eliminação ou pelo menos diminuição de outras despesas evitáveis, como os subsídios públicos. Existem muitos subsídios, diretos e indiretos, que poderiam ser cortados ou reduzidos, e nem todo mundo têm consciência de que eles existem. Quando o governo, por exemplo, escolhe não aumentar o preço da gasolina em compasso com a cotação do petróleo nos mercados internacionais, ele pode estar subsidiando o transporte da classe média, em detrimento do número muito maior que usa transporte público. Quando ele concede empréstimos governamentais a industrias “estratégicos”, aplicando uma taxa de juros que é a metade daquela que ele mesmo usa para remunerar seus títulos da dívida pública, ele está subsidiando uma categoria privilegiada da população. Mas mesmo os gastos com saúde e educação podem estar profundamente distorcidos por um perfil exageradamente concentrado destes últimos na educação superior, por exemplo, que no Brasil contempla, como sabemos, muito mais recursos do que os alocados aos dois níveis anteriores. Da mesma forma, quando o governo permite que operações de mudança de sexo sejam cobertas pelo sistema geral de saúde pública ele pode estar, ipso facto, retirando

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recursos que poderiam ir para cuidados preventivos ou saneamento básico para populações de baixa renda. 3. Reforma tributária Não existe, a rigor, nada de liberal no sistema tributário, um expediente a que recorrem todos os governos conhecidos desde a noite dos tempos. Trata-se de uma extração forçada, para fins supostamente públicos, mas cuja incidência repercute de modo diferenciado segundo a base escolhida e a forma de “captura” da renda pessoal. Existem, basicamente, duas grandes formas de coleta de recursos pelo Estado: de maneira direta sobre a renda dos cidadãos individualizados (com uma aplicação progressiva das alíquotas definidas), e de maneira indireta sobre o consumo de todos os cidadãos (o que recomendaria taxar menos produtos básicos, que serão os mais amplamente, e talvez exclusivamente, adquiridos pelos mais pobres, e de forma mais “agressiva” produtos supérfluos ou de consumo conspícuo). Outras taxas são cobradas sobre serviços específicos, dependendo de quem os use (estradas, aeroportos, etc.). Com relação ao imposto de renda, o consenso parece ser de que a base deveria ser ampla e as alíquotas marginais reduzidas (para evitar elisão e evasão fiscal, fuga de capitais, etc.). Por outro lado, impostos indiretos excessivos acabam penalizando os mais pobres de maneira desproporcional, que podem pagar mais impostos (em relação à renda pessoal) do que os ricos. Esse fenômeno é muito conhecido em vários países latino-americanos, mas poucos governos têm a coragem de enfrentá-lo, uma vez que os impostos sobre os consumos são mais fáceis de cobrar e passam quase despercebidos (quando sua incidência não está expressa no preço dos produtos). Não é preciso dizer nada sobre o imposto de transações financeiras, que é cumulativo ao longo da cadeia produtiva e, portanto, altamente irracional do ponto de vista social e da capacidade competitiva de um país. 4. Taxa de juros de mercado Isto significa, simplesmente, que ela não dever ser manipulada pelos governos e sim determinada pelo equilíbrio da oferta e da procura por dinheiro na economia. Se o governo precisa fixar alguma taxa, que ela seja positiva (ou seja, superior à inflação, caso contrário provocaria fuga de capitais). Ela também deve ser moderada, de forma a estimular o investimento e, se possível, neutra entre os desejos dos poupadores por uma taxa estimulante

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e os dos investidores por uma taxa adequada ao seu retorno. Uma taxa muito “positiva” pode ter um efeito devastador sobre a dívida pública. Um mercado de créditos extremamente concentrado ou cartelizado tende a produzir altas taxas de juros, razão pela qual um setor financeiro aberto à competição representa um bom estímulo à manutenção de taxas de mercado moderadas. Se o governo, por outro lado, pretende determinar de forma muito intrusiva o que os banqueiros podem ou devem fazer com seus depósitos – ou seja, estabelece muitas regras para o crédito direcionado a setores, ademais do alto volume de depósito compulsório – ele pode contribuir para juros anormalmente elevados. 5. Taxa de câmbio competitiva Da mesma forma como os juros, o câmbio também deve ser determinado pelo mercado, o que parece coincidir com a escolha da vasta maioria dos países que adota o regime de flutuação de suas moedas. John Williamson diz preferir uma “taxa de câmbio em equilíbrio fundamental”, o que, no caso de um país em desenvolvimento, significa que ela deve ser “suficientemente competitiva para promover uma taxa de crescimento das exportações que faça a economia crescer à taxa máxima permitida pelo seu potencial de oferta, ao mesmo tempo em que mantém o déficit de transações correntes em uma proporção tal que possa ser financiado em bases sustentáveis”. Ele acrescenta que a taxa de câmbio não deveria ser mais competitiva do que essa relação; do contrário, ela poderia produzir pressões inflacionárias desnecessárias, assim como limitar os recursos disponíveis para o investimento doméstico. Essa taxa de câmbio competitiva é o elemento essencial de uma política econômica orientada para fora, na qual as restrições de balanço de pagamentos são superadas essencialmente pelo crescimento das exportações, não por um programa de substituição de importações. Uma orientação para fora e exportações crescentes – sobretudo em setores não tradicionais – constitui uma fórmula de sucesso para uma economia dinâmica. 6. Política comercial de integração aos fluxos mundiais A visão mercantilista da maior parte dos políticos – em especial na América Latina – faz com que eles vejam com bons olhos as exportações, mas condenem como se fosse um pecado as importações. Na verdade, abertura às importações é relevante para ajustar o setor

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produtivo a um setor exportador que possa ser competitivo internacionalmente, do contrário o excesso de proteção penalizará a oferta doméstica e tornará o país mais pobre. Licenciamento de importações constitui, aliás, uma fonte inevitável de corrupção, cabendo tão somente um sistema tarifário transparente. 7. Abertura ao investimento direto estrangeiro Como já indicado, a liberalização dos fluxos financeiros não é considerada uma prioridade. Em contrapartida, o fechamento ao investimento direto estrangeiro pode ser visto como propriamente contraproducente. O IED traz não apenas capital, mas conhecimento e é um grande indutor de ganhos de produtividade. Ele pode ser conseguido, também, por conversão da dívida; mas tende a ser desestimulado em virtude de reações nacionalistas que podem ser economicamente prejudiciais. Em geral, empresas estrangeiras contribuem muito mais para o desempenho exportador e, portanto, o IED é também um gerador de divisas. 8. Privatização de estatais ineficientes Como regra geral, empresas privadas são geridas de forma mais eficiente do que suas equivalente estatais, inclusive por uma questão de estímulos ligados ao lucro e pela falta de uma fonte fácil de recursos baratos. A privatização também traz ganhos fiscais diretos e indiretos, uma vez que o Estado se desobriga de fazer investimentos para os quais o seu Tesouro pode estar depauperado. Com exceção de muito poucos setores públicos (como o fornecimento de água, por exemplo), serviços “coletivos” podem ser fornecidos de maneira eficiente por empresas privadas, sob um regime de concessão monitorado por um sistema regulatório preferencialmente aberto a regras de competição em mercados relativamente abertos. Não é necessário, tampouco, lembrar o assalto a empresas públicas conduzido por políticos ávidos por práticas clientelísticas, o que por sua vez redunda em desvios financeiros, quando não em corrupção aberta. Empresas públicas tendem a distorcer as condições de concorrência e as regras do jogo num setor determinado, em função do acesso que elas podem conseguir aos mecanismos decisórios do Executivo. Por fim, nas condições atuais de capacitação técnica e educacional dos recursos humanos e de amplo acesso a capitais e tecnologia, a rationale que presidiu ao estabelecimento de tantas estatais na América Latina e

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alhures – qual seja: a falta de capacidade técnica e de capitais no setor privado – não mais se justifica em bases racionais. 9. Desregulação de setores controlados ou cartelizados A América Latina é uma das regiões mais reguladas e burocratizadas no plano internacional, com tantos controles estatais que o “capitalismo de compadrio” e os estímulos à corrupção aparecem quase como inevitáveis. Monopólios e cartéis, ou seja, falta de competição, são uma das fontes mais comuns de preços altos, má qualidade nos produtos e serviços, corrupção e comportamentos rentistas inaceitáveis numa economia moderna. A regulação não se exerce apenas no fornecimento de bens ou serviços, mas também no cipoal de regras que determinam a entrada e saída de capitais, a remessa de lucros, os fluxos de tecnologia sob licenciamento, o ingresso de investimentos diretos, a existência de barreiras à entrada em novas atividades, bem como taxas e contribuições de todo tipo. Para exercer o devido controle – que ele mesmo se impôs – sobre todos esses setores, o Estado precisa contar com um exército de funcionários, nem sempre pagos adequadamente e, portanto, abertos, em princípio, a possibilidades de corrupção ou a condutas pouco transparentes. A desregulação não significa descontrole ou ausência de regras; ao contrário: ela costuma andar junto com agências reguladoras, criadas em função de uma visão de longo prazo das necessidades do país, não na perspectiva de um governo temporário, e mantidas de forma independente à equipe que ocupa por um tempo limitado os mecanismos do Estado. 10. Direitos de propriedade O CW não pretende tanto se referir aqui à propriedade intelectual – embora esta também seja insuficientemente protegida na América Latina – quanto chamar a atenção para o respeito aos contratos e para a estabilidade de regras. A instabilidade jurídica aumenta os custos de transação e é responsável por uma perda concomitante do PIB da região. Juízes que pretendem fazer justiça social terminam por “criar” leis, em lugar de apenas interpretar e aplicar a legislação em vigor. O que aconteceu, antes e independentemente do Consenso de Washington? A “interpretação” deformada feita por certos setores acadêmicos na América Latina a propósito de processos de ajuste e reforma empreendidos por alguns países pretende que o

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CW tenha sido responsável por todos os problemas acumulados na região ou pelos desafios na agenda dos atuais governantes. Eles atribuem a “onda neoliberal” que percorreu alguns países desde o início dos anos 1980 a uma espécie de diretiva emitida em Washington e implementada de forma canônica por governos submissos ou suficientemente enfraquecidos economicamente para não resistir às pressões combinadas dos EUA e das entidades do capitalismo global. Como vimos anteriormente, o CW foi, na verdade, estabelecido a posteriori, depois que alguns países decidiram se lançar na penosa via dos ajustes e da reforma, a começar pelo México – a primeira vítima da crise da dívida de 1982 – e depois pelo Chile – o que não tem nada a ver com a ditadura de Pinochet, orientada por uma visão anacrônica, tão dirigista e estatizante quanto certos modelos “desenvolvimentistas”, estimulados antes e depois desses experimentos inovadores. Como todo modelo, o CW é em grande medida artificial, consistindo numa tentativa de síntese das medidas que supostamente teriam resultado em desempenho econômico satisfatório nas fases seguintes. Trata-se, obviamente, de uma simplificação de uma complexa realidade e de um conjunto de variáveis bastante sensíveis a um “mix” determinado de políticas, que jamais pode se desenvolver da mesma forma em dois países diferentes. Interpretações de processos complexos são naturalmente sujeitas a caução, na medida em que não se pode isolar experimentos reais para fins de simulação ou teste controlado. Espíritos ingênuos tendem a confundir o CW com essa coisa diáfana chamada neoliberalismo e este, a rigor, não tem quase nada a ver com o CW, pois eles pertencem a dois universos diferentes. Em todo caso, em qualquer discussão sobre o “neoliberalismo” latino-americano sempre são trazidos em evidência os casos da Argentina, como exemplo de “fracasso”, o do Chile, como modelo supostamente bem sucedido – embora nem sempre com medidas em sintonia com a “ortodoxia” presumida do CW – e, eventualmente, o do México, o país que, alegadamente, teria iniciado o ciclo de conversões “neoliberais” desde o início dos anos 1980. O que parece evidente, numa análise prima facie, é que há uma concentração quase obsessiva sobre o caso argentino para “demonstrar” o fracasso das receitas “neoliberais” para promover crescimento e igualdade na América Latina. Não se pode analisar em profundidade o desenvolvimento do ciclo completo do ajuste e reformas nessa vasta região; mas se pode, ao menos, examinar o caso argentino, para verificar se ele se conforma, ou não, ao suposto

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modelo prêt-à-porter, que seria disseminado pelos “profetas” de Washington como via milagrosa para o crescimento sustentado. Vejamos, portanto, como se pode avaliar a experiência argentina, em função dos mesmos critérios que orientaram a primeira versão do CW (existem, pelo menos, duas outras, mais centradas sobre as políticas sociais ou sobre o papel das instituições na implementação das políticas recomendadas). Como julgar a Argentina, por meio do benchmark das regras estabelecidas no CW? O “neoliberalismo” argentino: 1) disciplina fiscal: a Argentina esteve longe de cumprir este requisito básico do CW, de que são prova os contínuos déficits provinciais – problema associado ao federalismo também presente em outros países –, bem como o crescimento irresponsável da dívida pública, até o ponto inevitável da ruptura e do calote; 2) prioridades nas despesas públicas: o governo do presidente Menem passou toda a primeira metade dos anos 1990 empenhado em modificar a Constituição para sustentar seu projeto de reeleição, embora não tenha obtido um mandato com a mesma extensão que pretendia; 3) reforma tributária: ela foi feita de forma parcial, tanto que a capacidade “extratora” do Estado argentino sempre foi muito baixa, comparativamente com a carga fiscal do Brasil, cuja burocracia da Receita sempre foi muito eficiente para fechar vários “buracos” na teia tributária; 4) taxa de juros de mercado: de fato, os juros foram liberalizados, mas os desequilíbrios crescentes acumulados do lado fiscal e a falta de competitividade dos produtos argentinos, por força de uma inflação ainda importante, levaram o Estado a aumentar progressivamente o nível dos juros, em descompasso com as necessidades de investimento no país; 5) taxa de câmbio competitiva: trata-se, provavelmente, da mais eloqüente negação de uma regra tida como essencial pelo autor do CW. A Argentina, ou melhor, o ministro Domingo Cavallo, fixou formalmente o valor do peso em dólar (1 por 1), no plano que teve início em 1991, preservando a mesma camisa de força durante dez anos seguidos. O regime de conversibilidade, assegurado por um sistema de “currency board”, constituiu, provavelmente, a mais significativa ruptura da Argentina com um elemento central do CW;

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6) política comercial de integração aos fluxos mundiais: de fato, ocorreu uma significativa liberalização comercial ao início do processo de estabilização; mas os desequilíbrios cambiais e inflacionários acumulados ao longo do tempo levaram a forte perda de competitividade externa, o que determinou nova onda de protecionismo tarifário, de expedientes para-tarifários (como uma “taxa de estatística”, por exemplo), além de outros mecanismos defensivos (antidumping e salvaguardas extensivas); 7) abertura ao investimento direto estrangeiro: de fato ocorreu, numa primeira fase, mas inviabilizada depois pela alta valorização do peso e a perda de competitividade adquirida em função da amarra cambial; 8) privatização de estatais ineficientes: o processo ocorreu, nem sempre de forma transparente, ou aberta à concorrência pública, e os recursos auferidos não serviram de abatimento da dívida pública, que continuou numa trajetória de crescimento; 9) desregulação de setores controlados ou cartelizados: ela foi conduzida sem preparação ou planejamento adequados, processo que resultou em novos monopólios privados, não controlados por nenhuma agência reguladora; 10) direitos de propriedade: o “capitalismo de compadrio”, a transformação dos sindicatos em negócios rendosos para as máfias nele encasteladas e diversas outras práticas arbitrárias dos agentes públicos continuaram a alimentar um ambiente de negócios pouco propício a um crescimento sustentável no país platino. Muito antes desses processos pouco condizentes com a estrita racionalidade econômica ocorrerem na Argentina, o Chile já tinha enveredado pelo caminho dos ajustes e da reforma, itinerário por certo facilitado pela ausência de “perturbações” democráticas, mas nem por isso isento de percalços próprios da ideologia militar, tão centralizadora, estatizante e dirigista quanto a ideologia econômica de outros regimes militares na região. Na verdade, o processo de “disciplinamento” econômico dos militares chilenos se deu apenas após uma grave crise bancária, a persistência de focos inflacionários importantes, alto desemprego e desequilíbrios no abastecimento alimentar, o que determinou o apelo a economistas identificados com a “escola de Chicago” e os princípios liberais da escola “austríaca” de Von Mises e Hayek. O importante a registrar é que muito tempo antes de qualquer “consenso” se formar em Washington, ou de técnicos do FMI ou do Tesouro americano virem a Santiago – o que,

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aliás, nunca ocorreu, fora das visitas de trabalho do FMI para fins de artigo IV – formular recomendações ou prescrições de política econômica, o Chile já tinha decido empreender vasta reforma de seu sistema econômico, num sentido amplamente liberalizante. Em outros termos, foi o Chile quem deu a “receita” para a construção de um “modelo” de ajuste e reformas, não o contrário. Foram essenciais em seu processo de ajuste e reformas, a manutenção da disciplina fiscal, a liberalização comercial e financeira – o que não significou, em absoluto, liberdade completa para os capitais, mas, sim, mecanismos de esterilização dos fluxos puramente financeiros, como a famosa “quarentena” –, políticas de atração de investimentos diretos e uma cuidadosa gestão monetária que trouxe a inflação chilena a níveis “europeus”. Em suma, o Chile fez o seu “dever de casa”, mas isso não significou converter-se de forma acrítica ao “neoliberalismo”, seja lá o que isso queira dizer. O Chile de fato desregulou, privatizou, liberalizou, mas tudo isso de forma planejada, consciente e administrada pelo Estado. A julgar pelo desempenho respectivo de cada um dos países, não é preciso lembrar quem acumulou crescimento ao longo de mais de dez anos6 – a ponto de ter sido chamado de “tigre” ou “puma” latino-americano – e quem soçobrou na crise e na moratória, derrubando presidentes como quem brinca com um castelo de cartas. Longe de representar uma “derrota” do neoliberalismo, como pretendem alguns, de forma totalmente equivocada, o caso argentino é um exemplo cabal de reformas incompletas, mal conduzidas ou de erros primários de gestão macroeconômica, a começar pelo câmbio fixo e pela indisciplina fiscal, em total desacordo com as prescrições – se houvesse – do CW. De outra parte, longe de representar qualquer tipo de “vitória” para o mesmo CW, o caso do Chile é um modelo de pragmatismo e de cautela da implementação de medidas – elas sim – ortodoxas de política econômica, que asseguraram seu crescimento durante praticamente toda a década de 1990 e a estabilidade do poder de compra de sua moeda. Concluindo de forma inconclusiva: não existem soluções-milagre em economia Como examinado ao longo deste breve ensaio analítico do famoso CW e sua nãoaplicação, de fato, na maior parte dos paises latino-americanos, o panorama regional é 6

A economia chilena foi a economia que mais cresceu comparada com as grandes economias latinoamericanas: no período entre 1983-2007, ou seja, em 25 anos, o Chile cresceu 230%. E foi, também, o país que mais absorveu, em termos relativos, investimentos estrangeiros.

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suficientemente diversificado para descartar qualquer explicação simplista do tipo pretendido por certos “analistas acadêmicos” para o sucesso de alguns e o fracasso de outros. A Argentina não fracassou devido ao CW, assim como o Chile não foi bem sucedido devido a uma aplicação submissa de suas recomendações, ainda que muitas das “receitas” empregadas neste país andino guardem uma grande interface filosófica e prática com aquelas regras (mais de puro bom senso, ou de julgamento sereno das experiências econômicas bem sucedidas, do que de aplicação cega de alguma “pomada maravilha” macroeconômica). Muito da “agitação intelectual” em torno do suposto neoliberalismo desses países não encontra, assim, suporte na realidade. Dessa forma, o mito do CW pode ser considerado uma criação da esquerda latino-americana, que precisava dispor de um novo inimigo ideológico, na figura do neoliberalismo, depois que outros velhos mitos – como, por exemplo, aquele preferido pelo mais “perfeito idiota latino-americano”, o escritor uruguaio Eduardo Galeano: o do subdesenvolvimento induzido pela dominação imperialista – entraram em desuso, por uso e abuso na fase anterior. O que sobrou, finalmente, de toda essa agitação em torno de um conceito que não merecia essa publicidade mal concebida e mal dirigida? Praticamente nada, a não ser: slogans de um lado, e silêncio do outro. Isso não impediu, obviamente, o manancial de bobagens que continuam a ser disseminadas em torno de um suposto neoliberalismo dominador, que teria ocupado todos os desvãos das políticas econômicas dos países latino-americanos ao longo de duas décadas. Quando se vai examinar a realidade, a única constatação possível de ser extraída é que os supostos inimigos ideológicos do neoliberalismo e do CW não sabem do que estão falando, nem apresentam dados fiáveis para confrontá-los à realidade. Nessas condições, qualquer diálogo racional é impossível. Mas diálogo é provavelmente a última coisa que desejam os agitadores de slogans... Brasília, 3 de setembro de 2008

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3. O mito do marco teórico

Tente entender... Veja, caro leitor, se você consegue entender este filósofo francês, muito lido e muito citado em certos círculos acadêmicos: “Assim, por um lado, a repetição é isso, sem o que não haveria verdade: a verdade do ente sob a forma inteligível da idealidade descobre no eîdos o que pode se repetir, sendo o mesmo, o claro, o estável, o identificável em sua igualdade a si. E apenas o eîdos pode dar lugar à repetição como anamnésia ou maêutica, dialética ou diática. Aqui a repetição se dá como repetição de vida. A tautologia é a vida, só saindo de si para voltar a entrar em si. Mantendose junto a si na mnéme, no lógos e na phoné. Mas, por outro lado, a repetição é o próprio movimento da não-verdade: a presença do ente perde-se nele, dispersa-se, multiplica-se por mimemas, ícones, fantasmas, simulacros etc.” (J. Derrida, A Farmácia de Platão. SP: Iluminuras, 2005, p. 122).

Entendeu, leitor? Provavelmente não, mas não se preocupe, eu também não entendi nada, mas não me preocupo mais com isto: há muito tempo desisti de tentar entender esses filósofos franceses, que converteram em hábito – praticamente uma profissão – os atos de escrever difícil e de falar complicado, apenas para épater la galerie e impressionar o distinto público, no que eles foram, aparentemente, bem sucedidos (alguns ficaram ricos e famosos com toda essa empulhação). Aliás, acredito que esse autor não estava querendo explicar absolutamente nada a ninguém: estava apenas gozando da cara de eventuais alunos e de leitores desprevenidos. No que me concerne, não me deixo impressionar por falcatruas intelectuais. Agora, considere este outro filósofo francês, ainda mais lido e mais citado nos mesmos meios (provavelmente não pelas boas ou corretas razões), e que se converteu em verdadeiro paradigma das ditas ciências sociais, quando ele, na verdade, é apenas um comentarista filosófico da história (o que não o impediu de monopolizar várias áreas das ciências humanas, impregnando todo o discurso acadêmico durante mais de uma geração): “Deveríamos fazer uma tentativa de estudar o poder não a partir dos termos primitivos da relação de poder, mas a partir da relação de poder em si, na medida que ela mesma determina os elementos sobre os quais se estabelece: em lugar de pensar em indivíduos ideais aos quais se pede que cedam algo de si mesmos ou de seus poderes para serem submetidos, deveríamos indagar como as relações de dominação podem por si mesmas construir os indivíduos. Da mesma forma, em vez de investigar a única forma, o ponto central ao qual todas as formas de poder derivam como conseqüência ou como desenvolvimento, deveríamos abordar sua

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multiplicidade, suas diferenças, suas especificidades, sua reversibilidade: estudá-las, portanto, como relações de força que se entrecruzam, se excluem mutuamente, convergem ou, ao contrário, se opõem e tendem a se anular. Em resumo, em lugar de considerar a lei uma manifestação do poder, nos seria talvez mais útil tentar descobrir as diferentes técnicas de coerção que coloca a lei em funcionamento.” (Michel Foucault, trecho do Résumé des Cours; Paris: Collège de France, 1989)

Bem mais compreensível, não é mesmo, caro leitor? Você acha que poderia “trabalhar” com ele, por exemplo, para sustentar a argumentação teórica de algum ensaio acadêmico, talvez “encomendado” ou sugerido pelo seu professor orientador? Textos como este, de Michel Foucault – sem falar de outros, mais enfadonhos ou mais excitantes, de Pierre Bourdieu, de Jürgen Habermas e de vários outros encore – têm sido usados de modo recorrente na academia, provavelmente mais para torturar alunos (ainda que de forma involuntária) do que para ensinar-lhes algo, de verdade. Textos como esses, escolhidos por professores de metodologia – por vezes, apenas trechos selecionados desse tipo de texto, oferecidos aos alunos por professores das disciplinas setoriais de ciências humanas – têm a função de servir de suposto suporte teórico para a confecção de trabalhos acadêmicos: monografias, dissertações, talvez até mesmo teses doutorais. Pessoalmente, não tenho nada contra Bourdieu, Foucault, Habermas, Derrida e outras sumidades do mundo acadêmico (enfim, os dois primeiros até podem ser leituras agradáveis, mas os dois últimos são simplesmente aborrecidamente prolixos, ou francamente ilegíveis). Apenas acho que estes e outros autores do mesmo naipe são usados indevidamente por professores acomodados à bibliografia convencional e que não se preocupam em buscar explicações mais convincentes aos problemas-temas do trabalho de seus orientandos. Eles recorrem assim às “vacas sagradas” consagradas da conjuntura acadêmica dominante, como uma espécie de solução de facilidade – para eles, obviamente – ao mesmo tempo em que jogam os estudantes numa camisa de força conceitual que pode servir para muitas coisas, menos para o enriquecimento intelectual destes últimos. A praga do marco teórico A primeira responsabilidade do trabalhador acadêmico está constituída pela honestidade intelectual, o que implica a consideração de todos os elementos possíveis de serem usados numa análise abrangente de qualquer problema social, não apenas daqueles que correspondem às suas preferências políticas ou simpatias filosóficas do momento. Considero este critério o mais relevante no trabalho científico, aliás, o único relevante no campo das

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ciências humanas ou sociais, e é em torno dele que eu gostaria de formular estes comentários a mais uma das falácias acadêmicas. De minha parte, em meus trabalhos de investigação histórica (estritamente factual), de observação política (e, portanto, algo subjetiva) e de análise sociológica (que, gostaria fosse a mais objetiva possível), não tenho por hábito preocupar-me além da conta (talvez mesmo nada) com a teoria, qualquer que seja ela. Não creio, sinceramente, que ela seja indispensável no (e ao) desenvolvimento de todos os tipos possíveis de trabalho intelectual. Vou ser claro: em nossos trabalhos de elaboração intelectual, todos nós “partimos” de alguma teoria, mesmo de forma inconsciente. Mas isso não tem nada a ver (ou, pelo menos, não deveria ter) com a “necessidade” de expor sua teoria previamente ao trabalho com os fatos. Prefiro deixar que os fatos falem por si, e se alguém quiser, depois, aplicar alguma teoria a eles, que o faça por sua própria conta e risco. Eu não vou me preocupar em desenvolver nenhuma nova teoria para tentar encaixar, ou amoldar, os fatos dentro dessa nova camisa de força conceitual. Podem me acusar de radical anti-teórico, mas é assim que vejo o mundo> desculpem-me os muito acadêmicos, mas estou me lixando para suas preocupações Esta é também uma das razões pelas quais eu praticamente passo por cima dos capítulos teóricos nas dissertações e teses para cuja avaliação eu sou convidado. Acho que os professores “torturam” os seus alunos, obrigando-os a encontrar o famoso “quadro teórico” da sua pesquisa, quando os pobres alunos mal dão conta do emaranhado de fatos brutos que devem processar. Mas isso é uma outra discussão que farei em outra oportunidade. Para confirmar quão comum é esse tipo de atitude, permito-me transcrever aqui uma das muitas mensagens que recebo de alunos quase desesperados com essa “obrigação”. Esta é uma das mais recentes (11/09/2008, at 08:49, xxx wrote:): “…sou acadêmica do curso de Relações Internacionais da Universidade xxx, estou no sétimo período já fazendo o meu projeto de monografia. O meu tema é: Política Externa do Governo Lula (2003-2008) o acordo IBAS ( Índia, Brasil e África do Sul ) como instrumento de cooperação via Sul-Sul. Venho através deste lhe solicitar um auxílio de materiais sobre este assunto, estou com dúvida também de qual teoria das Relações Internacionais eu posso usar, porque meu professor me indicou Teoria da Interdependência, outros já me indicaram Intergovernamentalismo (o qual ainda não encontrei material o suficiente) e até mesmo o Institucionalismo, então não sei realmente o que aplicar, uma vez que quero trabalhar o que levou esses países a cooperarem, quero verificar se realmente esse acordo está contribuindo para uma maior inserção destes países emergentes em âmbito internacional. Espero ter sido clara o suficiente e que você com toda sua experiência possa me fornecer um auxílio. Desde já muito obrigada pela sua presteza e tenho certeza que seu auxílio contribuirá muito com minha formação. Grata mais uma vez, xxx”

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O que é que eu respondi a este aluno desesperado? Isto: PRA: “Vou ser bastante franco com você, xxx. Uma iniciativa concreta de diplomacia, neste caso a decisão do governo Lula de empreender um programa reforçado de cooperação com dois outros países considerados ‘parceiros estratégicos’, não precisa ter nenhuma justificativa teórica, nem se sustentar em nenhum quadro conceitual vigente, para existir e se desenvolver de fato. Essa ‘ditadura do marco teórico’, que professores exigem de alunos que iniciam um trabalho acadêmico, é um verdadeiro absurdo, uma camisa de força que não encontra respaldo em nenhuma regra acadêmica, ou formalização conceitual. Se trata de uma exigência que se justifica por ela mesma, e que, portanto, é irracional, e se a exigência é incontornável ela se torna estúpida. Não possuo e não conheço nenhuma teoria que possa sustentar o IBAS, e não dou a mínima importância para isso. Uma iniciativa diplomática não precisa passar pelo moedor de carne dos rituais acadêmicos para existir e, portanto, pode ser perfeitamente dispensável o tal de marco teórico. Pode dizer isto ao seu professor; eu recomendo que você faça um trabalho intelectualmente honesto sobre o IBAS, considerando todos os elementos factuais de que você dispõe, sem precisar rechear o assunto com qualquer penduricalho acadêmico que possa existir.”

Também sou habitualmente convidado a emitir pareceres sobre artigos acadêmicos submetidos a revistas convencionais desse campo, o que se aproxima bastante do tipo de exercício a que sou convidado exercer quando desse tipo de consulta individual. Vejamos um exemplo recente desse tipo de consulta. Pergunta: “O artigo é bem escrito? Baseia-se em pesquisa bem feita, com utilização de fontes apropriadas? Suas conclusões são justificadas? Sua estrutura organizacional e argumentação são claras?” PRA: Sim, o artigo é bem escrito; existe, talvez, certo pedantismo na análise, que não precisaria passar pelo famoso “marco teórico”, que o autor escolheu na obra de Derrida, a rigor irrelevante para se analisar o discurso de Xxxx sobre o terrorismo, mas se trata, provavelmente, de ritual imposto por algum professor viciado em desconstrucionismo. Pergunta: “O artigo dá uma contribuição para o seu campo de estudo? De que maneira pode ser considerado original?” PRA: Não creio que se necessite recorrer a um pensador deliberada e voluntariamente obscuro, como Derrida, para explicar discursos políticos sobre o fenômeno do terrorismo, discursos que necessariamente carregam as ambigüidades de uma indefinição persistente e inevitável, em vista da complexidade do conceito e do fenômeno. Trata-se de um filósofo “obscurantista”, que busca, expressamente, uma linguagem pretensamente complicada, críptica, desnecessariamente prolixa e falsamente empolada, apenas para impressionar os incautos: ele será esquecido e remetido à lata de lixo da filosofia assim que os franceses recobrarem a razão. (...) Ele apenas satisfaz egos filosóficos ingenuamente encantados com filosofices inúteis de um pensador futuramente descartável.

Enfim, não pretendo deter a chave do conhecimento filosófico ou sair por aí atirando um ou outro philosophe em alguma lata de lixo, mas eu constato que muitos professores falam de um “marco teórico” como algo “indispensável” ao trabalho do mestrando ou

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doutorando. Com isso, eles conseguem tirar várias noites de sono do candidato, que adentra na selva selvaggia da bibliografia pertinente – geralmente restrita a poucos “barões” da teoria em ciências humanas, de extração francesa ou alemã – em busca de algum enquadramento teórico para o objeto escolhido. A maior parte dos pobres alunos sai dessa selva arranhada, com urticária metodológica e sérios problemas para retomar o fio da meada de seu objeto próprio. O que é e o que não precisa ser o tal de marco teórico O marco teórico normalmente faz parte daquela seção metodológica que se segue à introdução nos trabalhos de candidatos. A discussão da metodologia a ser empregada na pesquisa compreende, por sua vez, algumas hipóteses de trabalho que normalmente se apóiam em alguma teoria disponível no supermercado acadêmico. A teoria certamente ajuda a pensar, mas ela não deve representar uma camisa de força, que obrigue o candidato a enquadrar o seu tema em alguns dos molhos prêt-à-porter que estão disponíveis nas estantes pertinentes do supermercado. Um candidato desprevenido, que pretenda, por exemplo, fazer uma dissertação sobre a informalidade laboral no Brasil, não precisa necessariamente se interrogar sobre o que o inefável Foucault teria a dizer sobre isso. Não creio, pessoalmente, que o “marco teórico” deva ser um monstro metafísico que ameace engolir o candidato se ele se sentir desconfortável com o tal de “enquadramento conceitual” do seu objeto: determinados temas, bem mais “pedestres” em sua concepção e desenvolvimento, podem dispensar essas filigranas teóricas. A metodologia é, sobretudo, uma ferramenta analítica utilizada para descrever e discutir o objeto escolhido e a teoria é uma espécie de fundamentação conceitual desse objeto, com algumas generalizações sobre o tema em espécie. Estudos de caso e pesquisa empírica são sempre bem-vindos, mesmo se eles não se encaixam em algum molde conceitual – o famoso “marco teórico” – que o professor acha que o candidato deva obrigatoriamente exibir. Na elaboração metodológica, o candidato deve eventualmente se propor algumas hipóteses de trabalho que serão, no decurso do trabalho, confirmadas ou desmentidas pelo tratamento oferecido ao tema escolhido. Mas essa “fundamentação teórica”, que os professores exigem dos candidatos, não precisa ser considerada um elemento absolutamente indispensável do trabalho acadêmico,

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pois nem sempre é o caso. Ou seja, o trabalho pode ser – este é um direito do candidato – simplesmente expositivo-descritivo, sem referência a qualquer autor famoso na comunidade acadêmica, posto que um determinado tema escolhido se presta, hipoteticamente, a uma descrição empírica de fatos da vida real. Ou, então o candidato pode ter decidido, por exemplo, fazer uma síntese da literatura existente a respeito do seu tema, sem maiores inovações teóricas. Por causa dessa obsessão com o marco teórico alguns alunos tropeçam feio nessa parte, e acabam escrevendo uma “metodologia” que tem pouco a ver, finalmente, com o conteúdo em si do trabalho. Resumindo: metodologia é simplesmente a forma como o autor organiza os seus dados, seus materiais primários, seus elementos empíricos, e até suas leituras, e os apresenta em seguida na discussão fundamentada da terceira parte, com análise crítica e um levantamento de outros problemas que tenha detectado em sua pesquisa. O autor pode, também, aproveitar essa parte para dizer como outros analistas do mesmo problema estudaram a questão, se concorda com eles, se utilizará métodos já empregados anteriormente, etc. Conseguindo cumprir essa etapa do ritual, o candidato se descobre então um feliz sobrevivente de uma navegação acadêmica que costuma fazer naufragar alguns outros colegas que seguem o mesmo caminho. Depois disso, basta escrever e, se não for pedir muito, sobreviver ao esforço acadêmico... Buenos Aires-Brasília, 30 de setembro de 2008

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4. O mito do Estado corretor dos desequilíbrios de Mercado

Dando continuidade ao exame crítico dos equívocos conceituais e empíricos mais facilmente encontráveis na academia – cuja série já contemplou questões como os mitos do neoliberalismo, o do Consenso de Washington e o do marco teórico7 –, vamos tratar agora de uma das falácias mais disseminadas e recorrentes na imprensa e nos artigos de universitários que circulam pela internet atualmente: o mito do Estado como “salvador” de economias supostamente contaminadas pelos “desequilíbrios” de mercado e como “garantidor” de sistemas financeiros estáveis e mais previsíveis. O argumento levantado segue uma linha conhecida: já que a crise financeira se aprofunda e cria o espectro de uma nova depressão ao estilo daquela dos anos 1930, os “analistas” da crise do capitalismo liberal proclamam recorrentemente a notória incapacidade dos mercados se auto-regularem, o que cria, portanto, a necessidade de o Estado corrigir os desvios nocivos do “laissez-faire” mediante medidas apropriadas de controle. Não apenas isso: criticam-se os excessos da fase anterior, supostamente “desregulamentada”, e se pede uma estrita regulamentação dos mercados, para – ao que se proclama – impedir que as bolsas e os mercados financeiros se transformem no que foi chamado de “cassinos abertos à jogatina dos especuladores”. A rigor, a questão aqui selecionada para análise tem a ver com existência de várias outras falácias que continuam a freqüentar o discurso acadêmico, como: o mito da especulação; o da mão invisível do mercado (e sua contraparte funcional: o mito da mão visível do Estado); o mito da volatilidade financeira e o próprio mito mais “mitômano” – se me permitem a redundância – que possa existir: o mito das crises terminais do capitalismo. Trataremos de todos eles oportunamente, mas, tendo em vista, justamente, as demandas reiteradas por maior regulação estatal dos mercados financeiros, examinaremos agora a falácia em questão com maior grau de detalhe. Vou proceder, como de hábito, por meio de afirmações ou de questionamentos que repetem os argumentos mais usados no período recente, submetendo-os, de minha parte, a outros questionamentos com base em dados empíricos aferíveis e levando em conta a 7

Disponíveis, respectivamente, em: http://www.espacoacademico.com.br/087/87pra.htm, http://www.espacoacademico.com.br/088/88pra.htm e http://www.espacoacademico.com.br/089/89pra.htm.

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experiência histórica do capitalismo no último século, deixando de lado as explicações “doutas” que não fazem senão repetir opiniões consolidadas no imaginário coletivo de economistas de academia (nem por isso menos equivocadas). De fato, o que mais se ouviu ou se leu, nos últimos tempos, foram invectivas contra os mercados e demandas por intervenção estatal. Como se as crises financeiras deslanchadas nos EUA em 2007, agravadas em 2008, e que acabaram atingindo um pouco todo mundo nos meses de setembro-outubro desse ano, tivessem sido causadas exclusivamente pelos mercados “desregulados”, bastando agora submeter todo o setor a normas estritas de vigilância governamental – ou internacional – para que o sistema passasse a funcionar de forma perfeitamente equilibrada e tranqüila. Acredito que seja importante abalar essas convicções equivocadas, introduzindo algumas pitadas de contestação intelectual a esse tipo de déjà-vu falacioso. Os mercados sempre provocam desequilíbrios e crises? Provavelmente, mas nem sempre... Instabilidade e desequilíbrios são inerentes a toda e qualquer economia dinâmica (como costumam ser as economias de mercado). Estas inversões de ciclos ascendentes e descendentes constituem, justamente, algumas de suas características mais interessantes e, ao mesmo tempo,... mais desejáveis. O que caracteriza uma economia de mercado é a tensão constante entre: de um lado, desejos infinitos – como podem ser as “necessidades” humanas em bens “supérfluos”; de outro, as possibilidades limitadas – dadas as restrições físicas e as limitações tecnológicas (temporárias) – de aumento imediato da oferta. Normalmente, o detentor de um bem valioso – provavelmente escasso, ou resultante de alguma inovação tecnológica que torna esse bem atraente – estará em condições de “extrair” renda do conjunto dos compradores e, com isso, maximizar a sua renda e bem-estar. Como outros produtores e inovadores desejarão igualmente aumentar a sua renda, logo haverá uma corrida para aquele setor com taxa de retorno mais elevada, equalizando, portanto, o nível de lucros e aumentando a satisfação de todos. Os mercados financeiros costumam atuar da mesma maneira, com algumas variantes: poupadores preferirão investir seus recursos em ativos de maior rendimento relativo – ouro, terras, imóveis, moedas ou, mais freqüentemente, em economias dinâmicas, ações de companhias de bom desempenho – ao passo que os investidores, ou seja, os tomadores desses recursos querem ativos ao menor

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custo possível. Dessa interação resulta a taxa de juros de mercado, que tende a ser aquela de equilíbrio entre a quantidade de ativos oferecida e a demanda por crédito de alguns agentes. Em economias de mercado aberto – isto é, sem barreiras políticas ao ingresso de novos competidores – essas taxas se formam pelo livre jogo da competição, entre a “ganância” dos poupadores por um rendimento máximo pelos seus ativos e o cálculo racional dos tomadores quanto ao retorno dos seus investimentos. Um sistema desse tipo poderia funcionar numa perspectiva ascensional sem maiores turbulências, se não fosse: por um lado, a “cupidez” de alguns por uma taxa de retorno mais elevada – daí a colocação de sua poupança em ativos de maior possibilidade de lucro e, portanto, com maiores riscos, igualmente, como podem ser certas ações; e, por outro lado, a interferência dos governos nos mercados de capitais. Governos atuam de maneira desastrada, seja ao manter taxas de juros artificialmente reduzidas, seja ao produzir déficits orçamentários, que depois precisam ser financiados com a tomada de recursos na economia a taxas de juros mais elevadas do que o mercado normalmente pagaria. Déficits fiscais e juros irrealistas estão entre as causas mais freqüentes dos desequilíbrios de mercado, como os recentemente observados em economias de países ricos. O próprio sistema econômico de mercado vive em instabilidade estrutural, posto que convivendo sempre com assimetrias de informação entre os detentores de ativos, de um lado, e os tomadores de crédito, de outro. O capitalismo – nada mais do que uma economia de mercado – apresenta, portanto, a característica de instabilidade constante. Mas é isso que o torna particularmente interessante. Como as perspectivas de crescimento são sempre mais freqüentes do que aquelas de descenso ou de estagnação, todos os agentes são levados a acreditar que, sim, poderão obter lucros excepcionais de algum investimento arriscado, que, sim, poderão adquirir aquele bem mais desejado – casa, carro, objetos de luxo –, antecipando gastos que só serão pagos com a renda futura, o que é permitido justamente pelo mercado de créditos. Resumindo: economias dinâmicas produzem tensões entre os detentores de diferentes tipos de ativos – alguns mais líquidos, outros existindo em estado “virtual”, ou seja, sob a forma de riqueza futura – , tensões que podem ser acomodadas em fases de crescimento, isto é, quando todos acreditam que ganharão. Quando alguém duvida de que o retorno não será aquele esperado e opera uma saída repentina do mercado em questão, o pânico pode se instalar e todos acabam perdendo, pois a crise de confiança se instala no coração do sistema.

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Esta é a origem mais freqüente desses surtos de queda brusca dos mercados, que são sempre precedidos por uma abundância inusitada de capitais – privados, ou produzidos inflacionariamente pelos governos. O resultado é o enxugamento temporário de parte da liquidez – certamente aquela parte valorizada artificialmente, mas algum patrimônio real, também – até que o ciclo seja retomado mais adiante, com nova euforia de crédito e possível crise mais adiante. Este é o destino de (quase) todas as economias de mercado, pelo menos as mais dinâmicas. Um sistema blindado contra crises e turbulências certamente não será um sistema de mercado aberto, mas um fortemente regulado pelo Estado. Se a regulação estatal fosse garantia de crescimento infinito, sem crises, então os sistemas socialistas – que foram os mais pesadamente regulados pelo Estado que se conhecem na história econômica mundial do século XX – teriam sido as economias mais ricas e poderosas do planeta, e não o desastre econômico e tecnológico – sem mencionar os custos humanos e políticos da falta de liberdade e da opressão – que foram, de fato. O socialismo, pela “estabilidade” que pretendia criar, foi direto da história das utopias políticas do século XX para a paz dos cemitérios dos modos de produção... Os mercados são incapazes de se auto-corrigirem? Absolutamente errado: os mercados sempre corrigem a si mesmos, em toda e qualquer circunstância. Esse tipo de frase, não sob a forma de pergunta, mas de afirmação presunçosa, não poderia estar mais errada, conceitual ou empiricamente. São os governos ativistas que, atendendo aos apelos de cidadãos, empresas e bancos, eventualmente desesperados pela corrida para o “abismo”, impedem os mercados de se auto-corrigirem. Se os mercados produzem desequilíbrios, como explicado acima, e até crises – algumas devastadoras –, é óbvio e ululante que esses mesmos mercados corrigirão os excessos, podando o retorno de alguns, cortando o lucro esperado de outros, ou seja, destruindo e redistribuindo ativos líquidos e até bens físicos. Sempre é assim e sempre será assim, não fosse a interferência dos governos. Estes impedem os mercados de se autocorrigirem pela eliminação “natural” dos desequilíbrios, mas num outro patamar, não previamente determinado, de criação e de destruição de riquezas. A realização dos lucros de mercado será integral para os que conseguiram antecipar o movimento inverso, e fatalmente punirá os incautos ou simplesmente lentos e mal informados.

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Os mercados não são entidades morais e, por isso, não são automaticamente inclinados a premiar alguns e a destruir ativos da maioria. Eles atuam de forma cega, como sempre, mas alguns “sábios” pretendem corrigir isso. Justamente, economistas “morais” – e alguns tecnocratas de governo, que são convencidos pelos primeiros – pretendem corrigir essas “imperfeições” de mercado, sugerindo ações governamentais que aumentem retornos e minimizem perdas de mercados (que são inerentemente instáveis). O que eles conseguem fazer é retirar do mercado aqueles fatores dinâmicos que, justamente, permitiram a criação de riquezas, mesmo que de forma arriscada. Governos sensatos – mas nem todos o são – normalmente não interferem nos movimentos dos mercados de valores mobiliários, como as bolsas de ações. Ascensos e descensos nos valores mobiliários são constantes e inevitáveis, indo desde o anúncio de balanços de empresas, até movimentos mais importantes nos valores de um setor da economia, como um todo. Nem por isso os agentes econômicos acreditam estar sendo manipulados por um bando de capitalistas inescrupulosos (embora possa haver, também). Independentemente dessa volatilidade natural dos mercados de ações, as pessoas continuam a depositar confiança nesse tipo de investimento, entregando suas poupanças aos emissores de títulos (uma ação sem retorno, isto é, unilateral, baseada unicamente na confiança de um retorno futuro). De fato, países que possuem esse tipo de mercado em larga escala, são os que criam mais riqueza e empregos, posto que as ações sempre se valorizam mais do que quaisquer outros ativos, no longo prazo. Diferente, obviamente, é a situação dos mercados financeiros, em especial do setor bancário, pois aqui estamos falando de “bens públicos”, como podem ser as moedas nacionais e os sistemas de poupança e de crédito, que atuam de forma muito interligada, tanto no plano nacional, como em escala mundial. Ou seja, perturbações nesses mercados são suscetíveis de enviar ondas de choque muito além do próprio setor bancário e por cima das fronteiras nacionais, com efeitos potencialmente graves para tomadores e provedores de crédito. Não que os mercados sejam incapazes de se auto-corrigirem neste caso também, pois eles podem fazê-lo, eventualmente com a quebra de alguns bancos e o desaparecimento das poupanças de milhares de pessoas. A auto-correção, neste caso, pode ser devastadora para muitas famílias e as próprias contas públicas, que normalmente se abastecem nos mercados privados (emitindo títulos para o financiamento de investimentos de mais longo prazo,

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embora alguns governos o façam também para gastos correntes, numa típica irresponsabilidade que mereceria, sim, ser sancionada pelos mercados). Essa característica específica dos mercados de créditos – economistas dizem que o crédito é o sangue que circula nas veias de qualquer sistema econômico – é que explica a ação dos governos no sentido de “injetar liquidez” quando ocorre uma crise desse tipo, embora a causa dos desequilíbrios tenha sido exatamente um excesso de liquidez, na fase anterior, e, conseqüentemente, com investimentos arriscados feitos por particulares, banqueiros e os próprios governos. Registre-se que os mercados não foram deixados ao seu “bel prazer”, como acreditam alguns, posto que regulamentos nacionais e alguma regulação internacional (normas prudenciais ditas de “Basiléia 2”) existem para serem cumpridas. Pode ocorrer que elas não sejam observadas por alguns atores do jogo, mas muitos governos não exercem o seu papel fiscalizador. Ao contrário, governos podem criar ou agravar o problema, ao manter juros artificialmente baixos durante muito tempo – aumentando, portanto, a liquidez do sistema – e, depois, injetando mais recursos quando crises de solvência de bancos mais frágeis se colocam concretamente. São os governos que criam o chamado moral hazard, ou seja, a incitação à irresponsabilidade. O Federal Reserve, por exemplo, manteve o juro em 2% durante praticamente três anos (de 2002 a 2005), incitando ao crescimento desmesurado do mercado imobiliário, além da capacidade dos tomadores de honrar seus compromissos em caso da subida de juros (o que ocorreu em 2005). Se os mercados fossem verdadeiramente livres, os juros JAMAIS teriam sido mantidos a um nível inferior a um piso real – que historicamente, no capitalismo, se situa em torno de 3,5% reais, ou seja, 5 a 6% nominais – e empresas garantidoras de crédito – obviamente não apoiadas pelo governo, como era o caso da Fannie Mae e do Freddie Mac – JAMAIS teriam alavancado hipotecas em um nível desproporcional às suas garantias em capital próprio. Ou seja, na ausência de sinalizações inadequadas dos governos, os mercados SEMPRE se corrigem naturalmente, embora possam fazê-lo em bases realistas, isto é, penosas para os incautos e os espíritos especuladores... São os Estados os “corretores” ideais dos desequilíbrios de Mercado? Talvez, mas não necessariamente da forma mais eficiente possível. A rigor, não se pode falar aqui do Estado, entidade inerentemente abstrata e impessoal, mas do governo, que

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é o Estado posto em movimento por um grupo de pessoas, comandadas por algum líder vitorioso nas eleições ou por um partido político que conseguiu reunir a maioria no parlamento. Esses detentores ocasionais do “poder de Estado” adotam medidas com base em sua percepção do que sejam “desequilíbrios de Mercado” e de quais ações seriam as mais apropriadas para remediá-las. Eles o fazem misturando uma parte de ideologia políticoeconômica e outra de pragmatismo circunstancial. Keynes já havia afirmado que os decisores políticos são sempre prisioneiros de algum economista defunto. Aparentemente, todos agora são prisioneiros do próprio Keynes e de suas receitas “anti-cíclicas”, mesmo quando foram elas, justamente, que provocaram os problemas enfrentados atualmente. A força dos mitos é tão poderosa que não se quer reconhecer que as medidas keynesianas adotadas por quase todos os governos – estímulo à construção civil, teoricamente para estimular um importante setor da economia; manutenção de juros baixos para induzir investimentos (mesmo sob risco de desestimular a poupança); gastos governamentais além e acima das receitas correntes (gerando, portanto, déficit e dívida pública); políticas de salário real protegido da inflação, para estimular o consumo; enfim, um manancial completo de ferramentas anti-cíclicas – estiveram em vigor durante muito tempo em todas essas economias, que de resto convivem há muito tempo com o peso avantajado do Estado – em média 38% do PIB – para serem tachadas, a qualquer título, de “liberais”. Aliás, essa noção de “Estado liberal” é uma contradição nos termos: nenhum Estado é liberal, por mais liberais, ideologicamente falando, que sejam os ocupantes ocasionais de funções estatais. A lógica estatal é a da concentração de poderes, tanto no plano político como no econômico, o que significa ausência de competição, práticas conservadoras de gestão, imposição de barreiras ao ingresso de novos competidores e uma série de outras medidas que estão no exato oposto de uma economia de mercado animada por princípios liberais. Ideólogos ingênuos acreditam que capitalistas sejam “naturalmente” liberais, quando na verdade todo capitalista concreto aspira ao monopólio em seu setor de atividade, de preferência com a ajuda da mão visível do Estado. De fato, o capitalista só se sente realizado quando ocupa o Estado, quando consegue “ser” o Estado. A outra ilusão de alguns acadêmicos ingênuos é a de acreditar que os Estados, por meio dos seus tecnocratas e outros responsáveis setoriais, consigam fazer com que os mercados funcionem “melhor”, ou em todo caso sem os sobressaltos trazidos pelas crises financeiras recorrentes. (Parênteses: se medidas de regulação estatal, que vêm sendo

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aperfeiçoadas desde o New Deal, servissem de obstáculo a crises financeiras, o mundo não teria conhecido as crises que conheceu em 1971-73, em 1987, nos anos 1994 a 2001 e novamente a partir de 2007-2008; mas, claro, alguns sempre poderão argumentar que essa regulação não foi ainda “suficiente”.) De fato, com a exceção da liberalização relativa dos fluxos de capitais – que também corresponde a uma política por parte dos Estados, tendente simplesmente a reconhecer que nenhum Estado comprometido com a economia de mercado consegue, na verdade, controlar esses fluxos, pois teria de manter juros permanentemente altos e taxas de câmbio sempre baixas –, a maior parte das atividades do setor financeiro já se encontra regulada, tanto por normas nacionais como por regras multilaterais (como as já referidas “medidas prudenciais” de Basiléia, aliás, aplicadas pelo Brasil acima dos requisitos). Trata-se, efetivamente, de uma ilusão acreditar que normas traçadas no plano legal por burocratas nacionais – ou mesmo internacionais – consigam controlar toda uma indústria financeira extremamente flexível, inovadora e, por definição, volátil. Na verdade, não é o setor financeiro que se torna volátil por deformação congênita, posto que capitais líquidos estão sempre circulando de um canto a outro do planeta, em busca da melhor remuneração possível, já que isto corresponde à sua natureza intrínseca. São os legisladores e burocratas nacionais que criam a volatilidade, quase que por acaso, ao pretenderem, justamente, controlar as regras do jogo econômico e impor condições restritivas aos detentores do capital, que decidem, assim, “evadir-se” de tais controles. Não é segredo para ninguém que os países dotados de maiores índices de volatilidade são, justamente, aqueles mais restritivos no plano financeiro, como uma consulta ao Economic Freedom of the World: 2008 Annual Report pode facilmente comprovar (www.fraserinstitute.org e www.freetheworld.com). Deveria, por outro lado, ser matéria de simples bom senso uma constatação facilmente verificável quanto à capacidade de os mercados se auto-corrigirem muito mais facilmente e mais rapidamente do que pela via dos Estados: enquanto aqueles distribuem rapidamente ganhos e perdas, realizando num curto espaço de tempo os lucros (ou prejuízos) associados aos investimentos (bons ou maus) efetuados, estes precisam enfrentar a via crucis do debate legislativo (em regimes democráticos, entenda-se). É evidente que existem países onde o processo é efetuado por simples decreto executivo, muito mais autoritário, pouco transparente (e, portanto, sujeito ao jogo da corrupção) e mais arbitrário do que no primeiro caso. As normas reguladoras da atividade financeira então implementadas dificilmente conseguem ser

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mudadas rapidamente, caso a dinâmica econômica assim o aconselhe. Os mercados o fazem de forma muito mais rápida – ainda que não sem dor – daí sua vantagem relativa: enquanto a retomada pode ser delongada durante anos a fio, no caso de sistemas muito regulados, os mercados operam uma reversão mais imediata ao crescimento. É evidente, aos olhos de qualquer pessoa medianamente bem informada, que as condições econômicas estão permanentemente mudando em qualquer país – pelo menos naqueles de economia não estagnada ou totalmente fechada –, em função do ritmo de crescimento econômico, dos ganhos de produtividade e de competitividade e de rendas extraídas do sistema internacional, todos esses fatores podendo ser medidos facilmente através dos principais indicadores das contas nacionais, dos movimentos cambiais e do balanço de pagamentos. Parece, também, evidente que nenhum governo moderno, por mais eficiente que seja, consegue acompanhar essa dinâmica, se tiver de regular toda e qualquer atividade por via legislativa, para levar em conta inumeráveis fatores e variáveis que intervêm no jogo econômico real. É igualmente evidente que os países mais “livres” – como registrados no relatório anteriormente citado – são os que ostentam os mais altos níveis de renda per capita e de bem-estar, na medida em que eles conseguem, justamente, “capturar” parte da riqueza circulando no mundo através de sistemas financeiros modernos, flexíveis e, sobretudo, livres. Acreditar, nessas condições, que Estados “bem intencionados” conseguirão, por meio de medidas legais de disciplinamento do sistema financeiro, criar riqueza e prosperidade e, ao mesmo tempo, garantir a estabilidade operacional do sistema como um todo parece uma manifestação de suprema ingenuidade. O que esses Estados conseguem fazer, na verdade, é encerrar seus banqueiros e financistas numa camisa de força legal, atar seus pés com bolas de ferro regulatórias, tornando, assim, todo o sistema bem mais pesado, mais lento e menos eficiente, pouco apto, portanto, a cumprir sua função de prover liquidez rapidamente a todos os agentes econômicos desejosos de ter acesso a um mercado de capitais dinâmico, flexível e irrigado com um fluxo regular e permanente de novos recursos. Não se trata aqui de uma opinião pessoal, mas de uma simples constatação empírica… O sistema financeiro só funciona bem com muita regulação dos Estados? Duvidoso que assim seja, e mesmo que assim fosse, deve-se pensar, também, no custo-oportunidade... Talvez sistemas financeiros regulados possam desempenhar seu papel

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com menos exposição a riscos e turbulências, mas será certamente um sistema muito lento para disseminar recursos e para oferecer oportunidades de novos negócios a empreendedores especialmente ativos em aproveitar as chances de ganhos que são criadas – geralmente por falhas de governo, embora possa haver, também, as falhas de mercado – intempestivamente, numa rápida mudança dos equilíbrios de mercado (por fatores naturais, como colheitas ou descobertas de novos recursos, ou sociais, como anúncios de balanços de empresas, de taxas de inflação ou resultados de contas correntes). O custo-oportunidade pode ser definido, precisamente, como o valor associado a uma renúncia deliberada ou involuntária – como no caso de uma regulação muito estrita nos mercados financeiros – a uma determinada aplicação ou investimento, ou, então, a perda acarretada pela não possibilidade de se empreender uma determinada atividade alternativa, em face, justamente, de barreiras levantadas por um ambiente regulatório extremamente intrusivo e restritivo. Esse tipo de situação parece tão óbvio no caso do Brasil que nem seria preciso mencionar os mais gritantes: produtores e comerciantes perdem dinheiro pela carência da infra-estrutura nacional, não apenas pelos custos incorridos da não existência de boas estradas e bons portos, como também pela impossibilidade de investir nesse tipo de atividade, que continua sob estrito controle estatal. As telecomunicações, também, no regime anterior, eram um exemplo notório de custo-oportunidade, assim como são, ainda hoje, as mesmas telecomunicações, que foram liberalizadas parcialmente, mas que continuam sendo exemplos de cartéis ultra-regulados pelo Estado, ao lado do transporte aéreo comercial, que se especializam, na verdade, na extorsão do cidadão, antes que no provimento de serviços abundantes e baratos. É claro e notório que a abertura desses setores a maior número de empresas redundaria em maior benefício ao consumidor, algo que não parece estar previsto nos planos do Estado regulador. Pode-se alegar que o sistema financeiro constitui um “serviço especial”, que não pode se submeter às mesmas regras da plantação de trigo ou da fabricação de pão, mas é duvidoso que seja assim. O Brasil ostenta um dos sistemas financeiros mais regulados do mundo, com alto nível de depósito compulsório sobre os valores à vista deixados pelos clientes dos bancos, o que redunda, obviamente em taxas de juros mais elevadas. Ele também tem notórias barreiras à entrada de novos ofertantes de serviços financeiros em geral, o que resulta nas mais altas tarifas bancárias que se conhecem: estes são dois exemplos de custooportunidade em detrimento dos consumidores. Não podemos escapar dos juros altos – em

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grande medida determinados pelo governo e sua enorme dívida pública – como tampouco conseguimos escapar das tarifas bancárias, posto que não existem alternativas fáceis, dada a cartelização do setor. No plano internacional a situação pode não ser exatamente a mesma, mas não faltam aqueles que também pedem mais regulação e maior controle de capitais. Leio, por exemplo, numa matéria-sintese sobre um encontro de economistas regulacionistas a seguinte recomendação: “A atual crise financeira global demonstra que a cultura da especulação chegou ao seu limite e aponta para a urgente necessidade de se criar um novo mecanismo internacional de controle das finanças e fluxos de capital”. Essa foi a mensagem transmitida por “renomados economistas” que participaram do simpósio internacional “Perspectivas para o Desenvolvimento no Século XXI”, organizado pelo Centro Internacional Celso Furtado e realizado nos dias 6 e 7 de novembro no Rio de Janeiro.8 Dispenso-me de citar o nome desses economistas, pois eles podem achar que o repórter não transmitiu exatamente o pensamento de cada um, mas se trata, é claro, da mais coerente manifestação de pensamento incoerente, tal como costuma figurar nessas falácias acadêmicas de que estamos tratando nesta série. Em todo caso, um desses economistas fez uma dura crítica ao pensamento econômico neoliberal: “A macroeconomia neoclássica é inútil e perigosa, ela é ideológica. A Teoria Econômica Neoclássica é uma meta-ideologia que, em sua forma moderna, legitimou a apropriação do excedente econômico por uma classe de tecnocratas, associados aos capitalistas, que ganham bônus e comissões e mais bônus e comissões em cima desse processo especulativo”. O mesmo economista acrescentou que, nos últimos anos, a especulação “foi criando uma montanha de créditos e inventando riquezas fictícias”. O único comentário suscetível de ser feito em face de tão clara manifestação de saber econômico é que se trata da mais pura manifestação do espírito acadêmico reinante em nossas universidades, onde conceitos e impressões subjetivas substituem uma análise fundamentada da realidade. Nem sequer se poderia chamar esse tipo de argumento de manifestação de pensamento, posto que se trata apenas de uma opinião impressionista de alguém que tem dificuldades notórias em aceitar o livre jogo do capital financeiro, considerando, então, que se 8

Ver “Simpósio Celso Furtado: Economistas sugerem controle internacional das finanças”, Maurício Thuswohl, Carta Maior, 8.11.2008; disponível no link: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15363&editoria_id=7.

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trata de maquinações perversas de capitalistas gananciosos, de especuladores despudorados, exatamente como afirmam, aliás, alguns políticos demagogos. Em conclusão, é triste constatar que a academia brasileira, ao cabo de tantos anos de formação pós-graduada, não tenha conseguido produzir elaborações mais sofisticadas sobre o funcionamento dos mercados financeiros, do que essas repetidas invectivas contra especuladores e banqueiros, e que tantos acadêmicos ingênuos não consigam reconhecer que muitos dos problemas constatados foram mais causados pelo ativismo de certos Estados do que pela disfuncionalidade dos mercados. Incrível ainda que tais acadêmicos parecem acreditar que a “sapiência” de burocratas estatais seja superior à flexibilidade e adaptabilidade dos mercados, mesmo se os agentes que atuam nos mercados não se distingam por uma inteligência superior à média. O mais patético, ainda, é constatar que as “soluções” propostas por tais acadêmicos vão na direção contrária à de sistemas financeiros modernos, flexíveis e abertos à competição e à inovação, se contentando em preconizar uma versão repassada, atrasada e caricata de um keynesianismo de fachada, que estacionou nos controles de capitais, no câmbio manipulável e na determinação política da taxa de juros. Acadêmicos assim não prestam apenas um desserviço à própria academia – dado o primitivismo de suas “recomendações”. Eles também são um ameaça a uma gestão responsável da política econômica, pois parecem querer fazer rodar para trás a roda da história. Nesse sentido, eles são reacionários econômicos, ou simples caricaturas de economistas. Pena, pois que o Brasil mereceria melhores economistas... Brasília, 16 de novembro de 2008

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5. O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres

A busca de culpados (sempre deve existir algum...) Dentre todos os mitos já explorados e a serem examinados nesta avaliação serial dos equívocos mais renitentes no meio acadêmico, nenhum parece tão poderoso quanto o que pretende que os países ricos, que teriam outrora alcançado o seu desenvolvimento graças a uma série de políticas por eles hoje recusadas aos países emergentes, estariam agora ativamente empenhados em impedir que esses países, eufemisticamente ditos em desenvolvimento, possam galgar, igualmente, a escada da prosperidade econômica e os degraus da capacitação industrial e tecnológica, tornando-se, como eles, desenvolvidos. Continuemos, pois, o exame dos equívocos selecionados nesta série9 pela análise crítica de um dos exemplos mais notórios da “teoria conspiratória da história”, a tese do complô dos ricos contra os pobres, a presumida ação mancomunada dos desenvolvidos contra o crescimento e o progresso material dos países pobres ou menos desenvolvidos. O conjunto de “teses” defendidas pelos partidários do que classifico desde já como mais uma falácia, não deixa de apoiar-se em exemplos históricos que estariam aparentemente em linha com os argumentos dos defensores dessa teoria conspiratória, em especial no que se refere às políticas setoriais (industrial e comercial, em especial) e à suposta ação clarividente do Estado “empreendedor”. Friedrich List: versão século 21 O mais conhecido defensor contemporâneo dessa teoria é o economista coreano, atualmente na Cambridge University, Ha-Joon Chang, que se utiliza da famosa imagem forjada pelo seu predecessor alemão de 150 anos atrás, Friedrich List, para afirmar que os

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A relação dos ensaios já publicados na Espaço Acadêmico e uma lista sugestiva de temas a serem eventualmente tratados em trabalhos futuros podem ser encontradas em meu site pessoal, neste link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/FalaciasSerie.html.

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países ricos estão querendo “chutar a escada” que os levou a ser o que hoje são. Este é, aliás, o título de um de seus livros mais famosos.10 Sua obra mais recente, Bad Samarithans, também publicada no Brasil, segue na mesma linha.11 Promovida pela Ordem dos Economistas do Brasil, a obra constituiu o centro de atração de um seminário realizado em São Paulo, em janeiro de 2009, sob a responsabilidade da Ordem e da Fundação Getúlio Vargas, em torno de um programa de estudos focado na revisão do pensamento econômico sobre o desenvolvimento. Seguindo as idéias de Chang, o coordenador da Escola de Economia da FGV-SP, Paulo Gala, acredita que “as experiências de maior sucesso observadas nos anos recentes, Coréia do Sul e Taiwan, nos anos 70 e 80, e China e Índia nos 90, basearam-se justamente em políticas contrárias às recomendações de Washington”.12 Como já tratamos do problema do Consenso de Washington em ensaio anterior desta série,13 não iremos nos debruçar novamente sobre mais esse mito do pensamento acadêmico. Mas caberia registrar os “seis mitos neoliberais” que este professor brasileiro considera que vêm sendo propostos pelas instituições símbolo da globalização capitalista e que, em sua opinião, se revelaram incapazes de produzir os resultados prometidos. Os “seis mitos neoliberais”, vários deles fictícios, seriam os seguintes: “1) os países ricos atualmente alcançaram seu sucesso através de políticas comprometidas com o livre mercado; 2) o neoliberalismo funciona; 3) uma globalização neoliberal não pode e não deve ser interrompida; 4) o modelo americano de capitalismo neoliberal representa o ideal, o qual todos os países em desenvolvimento devem replicar; 5) o modelo do Leste Asiático é idiossincrático, o modelo americano é universal; 6) países em desenvolvimento precisam de disciplina fornecida pelas instituições internacionais e por instituições politicamente independentes (Banco Central, por exemplo)”.14 Não vou agora rebater argumentos que são mistificadores, em sua maior parte, inclusive porque o autor em nenhum momento traz 10

Cf. Ha-Joon Chang, Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective (Londres: Anthem Press, 2002), já publicado no Brasil: Chutando a Escada: estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica (São Paulo: UNESP, 2004). 11 Cf. Ha-Joon Chang, Bad Samarithans: The Myth of Free Trade and the Secret History of Capitalism (Londres: Bloomsbury, 2007); Maus Samaritanos: o mito do livre-comércio e a história secreta do capitalismo (Rio de Janeiro: Elsevier, 2009). 12 Cf. Paulo Gala, Apresentação a Maus Samaritanos, op. cit., p. ix. 13 Ver, deste autor, “Falácias acadêmicas, 2: o mito do Consenso de Washington”, in Espaço Acadêmico, n. 88, setembro 2008; link: http://www.espacoacademico.com.br/088/88pra.htm. 14 Cf. Gala, idem, p. x.

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qualquer comprovação de que esse tipo de proposição simplista venha sendo defendido pelas organizações “neoliberais” (eu apenas recomendaria que ele lesse mais história do mundo, estudasse um pouco mais de economia e observasse a realidade, simplesmente). Para preservar o foco, vamos tratar aqui apenas dos argumentos centrados sobre a “teoria do complô”, que constitui todo um capítulo na história das falácias acadêmicas. Uma história secreta do capitalismo? O subtítulo do mais recente livro de Ha-Joon Chang já constitui, por si só, uma prova eloqüente em favor de uma tese, aliás, uma verdadeira teoria, muito disseminada em certos meios acadêmicos. Colocada de maneira simplista, mas nem por isso menos correta (a colocação, não a tese), essa tese diz mais ou menos o seguinte: os países ricos – durante os momentos iniciais de sua decolagem econômica, e na fase de consolidação do desenvolvimento social – puderam exercer toda a latitude de políticas econômicas: desde as mais liberais – quando podiam, ou precisavam – até as mais protecionistas e subvencionistas – estas últimas, de maneira mais intensa ou freqüente, e sem que alguma entidade “ortodoxa”, do tipo do FMI ou o Banco Mundial, viesse lhes dizer o que deveriam ou poderiam adotar como políticas macroeconômicas e setoriais – até que puderam garantir para si um processo de crescimento sustentado, marcado pela autonomia tecnológica e a plena soberania sobre suas principais políticas públicas. Uma vez alcançado o estágio em que se encontram, ou seja, de países líderes nas classificações de prosperidade econômica e do avanço tecnológico, eles se empenham todos – como se tivessem combinado tudo em algum local secreto de planejamento de maldades capitalistas – em impedir que países retardatários e os subdesenvolvidos, de maneira geral, os imitem, copiem o que fizerem, enfim, que os alcancem, do alto de seu progresso econômico e capacitação tecnológica. Numa reedição prolongada da falácia original de List e, de maneira tão perversa quanto calculada, os países ricos “chutam a escada” que permitiria aos atrasados chegar onde eles chegaram; constroem, assim, um fosso intransponível entre eles, um grupo pequeno de egoístas desenvolvidos, e todo o resto do mundo, um imenso conjunto de eternos condenados ao atraso e à pobreza (e, no mesmo movimento, levados a transferir renda para os de “cima”, como agravante). Trata-se de uma caricatura, claro, mas apenas em parte. Vejamos a síntese que faz seu principal defensor, e prefaciador, no Brasil, Luiz Carlos Bresser Pereira, desse tipo de teoria

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propagada com maior competência por Chang: “Em Maus Samaritanos, Ha-Joon Chang faz uma critica devastadora da teoria econômica ortodoxa ou neoclássica ao mostrar que suas propostas de política econômica são para uso externo, não sendo utilizadas pelos países ricos que as propagam” (p. xiii). Não contente em aderir à teoria conspiratória da história, Bresser Pereira agrava o seu caso, insistindo na tese do complô dos ricos contra os pobres seguidores infelizes do terceiro mundo. Vejamos o que ele diz, numa reconstituição histórica do processo de desenvolvimento econômico em escala mundial: “Desde a Revolução Industrial a teoria econômica tem sido um instrumento para justificar internamente o capitalismo e para evitar que os demais países que ficaram atrasados no seu processo de industrialização também cresçam e lhes façam concorrência” (p. xiii). Trata-se, sem dúvida alguma, de uma grave acusação a todos os teóricos da economia ortodoxa ou neoclássica, que poderiam invocar, se fosse o caso, o sentido moral de sua atividade, posto que transformados em simples feitores de uma espécie de “colonização mental” conduzida a partir de seus centros de estudo. Seria risível, se não fosse eticamente questionável. O professor da FGV-SP parece apreciar piadas históricas, já que Bresser Pereira tem prazer em reincidir na teoria: “A onda ideológica neoliberal que tem início nos anos 1970 tem como uma de suas motivações essa neutralização [dos concorrentes dos países em desenvolvimento], como objetivo nunca confessado, e jamais plenamente consciente” (p. xiv). Todos os elementos da teoria conspiratória estão presentes, posto que, segundo Bresser, Chang não hesita em “criticar os ‘maus samaritanos’ – os agentes dos países ricos e do neoliberalismo que aconselham mal os países em desenvolvimento, que afirmam estarem ajudando-os quando, de fato, estão criando obstáculos ao seu desenvolvimento” (p. xv). Esses agentes seriam uma combinação de professores adeptos da teoria neoclássica, os funcionários e consultores das organizações internacionais mais importantes na área econômica (FMI, BIRD, OMC) e os representantes dos países ricos que conduzem programas de ajuda e de cooperação técnica para os países pobres. Mas não vale a pena continuar a falar da tese principal por meio de intérpretes de segunda mão; melhor ir direto ao original. Dois equívocos parecem estar em causa na construção desse tipo de mito que recebeu a poderosa contribuição de um economista que se lança de maneira ousada (embora leviana) nos caminhos da história: (a) a falácia de que os países ricos se tornaram o que eles são atualmente em virtude de um conjunto racional de políticas direcionadas a tal objetivo, aplicadas de forma sistemática e consciente, a despeito

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de contrariarem o pensamento econômico liberal de sua época; (b) e outra falácia, já pertencente à “teoria conspiratória da história”, é a de que esses países têm-se empenhado, desde então, em impedir que os pobres os alcancem, armando ardilosamente um complô para obstar a que os atrasados cheguem ao topo da escada. Esses dois argumentos se baseiam numa leitura seletiva, incompleta e deformada da história, e são incapazes de se sustentar pela lógica de funcionamento do sistema capitalista (na verdade, da economia de mercado), ou pelo seguimento da experiência concreta de diferentes países engajados desde então no caminho do desenvolvimento, alguns bem sucedidos, outros, infelizmente, não. Políticas estatais como fator de desenvolvimento? Chang, tanto no seu livro anterior, Chutando a Escada, como neste atual, Maus Samaritanos, conta a mesma história, embora com argumentos ligeiramente diferentes, mas por meio do mesmo uso seletivo dos dados históricos. Na verdade, não é tanto da história que ele pretende falar – inclusive porque não se trata de um historiador econômico, nem de um economista historiador, aliás – mas da “história” presente, ou o que ele pretende por tal. Essa “história” seria dominada pelas políticas neoliberais e pela imposição das “regras do Consenso de Washington” aos países em desenvolvimento, o que resultaria, assim segue a teoria do complô, em que estes não possam fazer o que antes fizeram os países ricos. Todos sabem quais são essas políticas e não seria preciso estender-se em demasia em sua descrição: políticas macroeconômicas estáveis e responsáveis, redução do peso do Estado, liberalização comercial e do regime de investimentos estrangeiros, defesa dos contratos e dos direitos de propriedade intelectual, banco central independente, etc. Existe em vários setores críticos – mas que provavelmente nunca leram os textos originais – uma grande confusão entre, de um lado, o que pode ser eventualmente recomendado pelos conselheiros das instituições de Bretton Woods e, de outro lado, as regras originais do economista John Williamson, que detém o copyright – ou pelo menos os moral rights – sobre o chamado Consenso de Washington. Este “consenso”, em sua versão original, não compreendia nem a taxa de câmbio fixa (ele recomendava flexível), nem a liberalização do setor financeiro (ou dos movimentos de capitais, para ficar em algo mais tangível). Não é o caso de dirimir essa confusão neste momento, tanto porque isto não parece preocupar aqueles que criticam de maneira leviana as “regras” de Washington, em primeiro

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lugar o próprio Chang. Sua principal missão é a de desmantelar essas regras, posto que elas seriam prejudiciais aos interesses atuais dos países em desenvolvimento. Usando mais suas impressões do que a pesquisa histórica, Chang recomenda o contrário: sua sugestão é a de que os países pobres façam aquilo que ele imagina que os países hoje ricos teriam feito nas etapas iniciais de crescimento e consolidação de seus processos de autonomia tecnológica. E quais seriam essas políticas? Elas são muito diversas, obviamente, sendo que em alguns casos sequer houver políticas claramente definidas ou implementadas de maneira contínua segundo um plano pré-determinado. Mas Chang, em sua leitura seletiva dos dados históricos, identifica basicamente dois conjuntos de políticas que teriam sido usadas pelos países ricos em sua caminhada racional para o desenvolvimento: políticas industriais, do tipo “indústria infante” – tal como recomendado por List e, antes dele, pelo Secretário americano do Tesouro, Alexander Hamilton –, e comerciais. As principais medidas seriam o apoio direto às indústrias nacionais na fase inicial de instalação, por meio de subsídios, incentivos fiscais, proteção tarifária e outros tipos de defesa comercial e dirigismo setorial. Ele é bastante detalhista na coleta de medidas governamentais, ao longo do século 19 (e mesmo antes), que teriam sido mobilizadas para sustentar a industrialização desses países. O resultado entusiasma os dirigistas de várias épocas e de vários países, sobretudo aqueles que também pretendem criticar o suposto complô dos ricos e dos “washingtonianos”. O fato é que os argumentos de Chang são distorcidos, seus “fatos” são incompletos e falham, lamentavelmente, em estabelecer as relações causais efetivas entre as medidas industrializantes apontadas por ele e o desenvolvimento dos países considerados, processo necessariamente mais complexo do que sua visão simplista da história. Ele não considera uma série imensa de outros fatores institucionais – tal como destacada por historiadores econômicos como Douglass North, por exemplo – e passa completamente por cima dos fatores culturais e educacionais que sustentaram – não apenas a industrialização, mas – a transformação tecnológica abrangente que teve lugar em vários desses países (alguns deles não necessariamente industriais, mas “essencialmente agrícolas”, como Dinamarca e Nova Zelândia). É, por outro lado, igualmente simplificadora sua visão de que foram aquelas medidas estatais que provocaram a industrialização e o crescimento econômico; como se os países ricos tivessem “planejado” racionalmente seu processo de desenvolvimento, por uma série de medidas encadeadas no tempo, e estruturalmente integradas umas às outras, todas elas com o

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objetivo expresso – e talvez pré-determinado – de provocar essa modernização. Ele certamente não considera a contraditória e muitas vezes improvisada colcha de retalhos que constitui a trama da história real, na qual, indivíduos, grupos de pressão, ideologias e, não menos importante, reações defensivas ou “imitativas”, interagem de modo desordenado, ao sabor das relações de forças que se estabelecem na sociedade, para produzir um resultado que está longe de ser aquele desejado por categorias específicas de atores sociais. A história não é certamente um livro branco, no qual governos supostamente esclarecidos podem ditar ordens e regras para sua implementação racional: ela é, bem mais, um pesado carro de bois que avança lentamente por uma estrada esburacada, com interrupções e deslizes que pouco têm de intencional ou planejado. Mesmo admitindo-se a existência de políticas claras para favorecer este ou aquele resultado antevisto – como costumam ser as medidas de subsídio industrial, de proteção tarifária ou de apoio logístico – é muito difícil ao honesto historiador econômico separar fatores estruturais e contingentes no complexo processo de desenvolvimento dos países atualmente ricos; a começar que eles não estavam desenhando políticas de desenvolvimento e sim respondendo a impulsos que lhes vinham de dentro e de fora, e nem sempre, aliás, pela mão dos governos. Haveria muito mais a dizer sobre a peculiar leitura da história do professor Chang. Mas a discussão poderia nos levar muito longe, no espaço limitado deste ensaio. Bastaria, talvez, dizer isto: se o protecionismo comercial e as políticas dirigidas em apoio ao setor industrial fossem o sucesso que ele alega, nesse caso, os países da América Latina, que, durante várias décadas, praticaram ambos em doses altamente concentradas, deveriam ser hoje não apenas nações altamente industrializadas, como tecnologicamente desenvolvidas, o que obviamente não é o caso. Por outro lado, em sua própria Coréia natal, Chang deixa de ver todos os fatores institucionais e educacionais que favoreceram o seu desenvolvimento, e se concentra unicamente nas políticas industrializantes e de cunho comercial, que teriam, supostamente, impulsionado o crescimento e a transformação tecnológica. Em conclusão, como economista, Chang pode até ter seu valor de mercado, mas como historiador ele falha miseravelmente em comprovar as suas teses. A arte de chutar escadas: uma fábula fabulosa O que dizer, então, da outra parte deste mito ridículo, que consiste em afirmar que os países na vanguarda do progresso industrial atuam deliberadamente para impedir outros de os

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seguirem na “escada” do desenvolvimento? Essa tese é tão ridícula – como compete a uma “boa” teoria conspiratória da história – que nem valeria o esforço de desmenti-la, se não fosse a existência de tantos crédulos nos países retardatários, sempre em busca de um bode expiatório para culpá-lo pela sua industrialização deficiente ou seu desenvolvimento insatisfatório. Mais uma vez Chang falha em trazer as “provas históricas” desse tipo de argumento, e apenas avança as recomendações dos atuais “conselheiros washingtonianos” como a evidência de que os países ricos desejam manter todos os demais no fundo do poço do não-desenvolvimento: para isso, eles “chutam a escada”, num sentido metafórico, claro, pois a única coisa que fazem seria recomendar políticas que inviabilizariam a “subida da escada”, mantendo os retardatários na eterna dependência dos que estão no topo. Curioso que esses mesmos “alpinistas industriais” investem nos retardatários, e não apenas para contornar barreiras comerciais e outras restrições ao capital estrangeiro, como sabemos por todos os exemplos dos movimentos de capitais de risco na história econômica mundial. Mais curioso ainda é que todo esse ardor obstrucionista não impediu os Estados Unidos e a Alemanha, no século 19, e os demais países avançados, na passagem da segunda revolução industrial – grosso modo a partir dos anos 1870 – de galgarem eles também a escada da industrialização e do desenvolvimento econômico. Seria por que a história só começa, de verdade, quando as ex-colônias pretendem se industrializar? Mas tanto o Japão “feudal”, como a Coréia “colonial” desmentem a visão conspiratória do bloqueio dos ricos exercido contra os pobres periféricos, como isso também é cabalmente desmentido por outros exemplos atuais em outras regiões. Certo, Chang e seus seguidores poderiam argumentar que os “asiáticos” – que são os exemplos que ele seguidamente invoca para comprovar a sua “teoria” – justamente não seguiram as recomendações do Consenso de Washington e por isso puderam se desenvolver com base em políticas ativas; aquelas mesmas supostamente utilizadas outrora pelos países ricos e que agora eles não mais recomendam aos retardatários (ao contrário, buscam impedir por todos os meios). A história é, contudo, mais complexa. Assim como Chang não conseguiu estabelecer relações de causalidade entre as suas “políticas ativas” e o progresso industrial e tecnológico nos países hoje ricos, ele tampouco consegue provar de maneira cabal que são essas políticas que estão na origem do desenvolvimento relativo dos países asiáticos. O fato é que os países de desenvolvimento rápido na Ásia – e também em algumas outras regiões, como no Brasil, tempos atrás – conseguiram “construir” condições

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institucionais que puderam atender, eventualmente, a alguns dos “requerimentos” – talvez necessários, mas certamente não suficientes – que os colocaram no caminho da autonomia tecnológica e industrial; entre eles fatores de natureza fiscal, tributária, logística e, acima de tudo, de cunho cultural e educacional compatíveis com as “regras” do desenvolvimento. O processo é certamente complexo e reduzi-lo a medidas de política industrial ou comercial, quaisquer que sejam os méritos respectivos dessas últimas, pode tornar impossível o ato de manter-se fiel ao registro histórico e à realidade de determinadas experiências concretas. De resto, existem tantos exemplos de sucesso quanto de fracasso na história da industrialização contemporânea – como a Europa do Sul ou a América Latina, até um período ainda recente da história econômica mundial – e estes últimos, curiosamente, não são enfatizados por Chang em sua “reconstituição” do desenvolvimento de uns e outros. O trabalho do historiador – a fortiori do “planejador” de desenvolvimento, também – envolve presumivelmente a consideração de todos os casos relevantes, e não apenas os de sucesso. É verdade que aprendemos tanto, ou mais, com os casos de fracasso – e mesmo com desastres espetaculares – pois são eles que podem nos indicar a combinação errada da “receita” do desenvolvimento – se é que ela existe –, quando os fatores de sucesso podem ser múltiplos e difíceis de determinar. Como, aliás, indica a história da própria humanidade – na qual a maior parte dos povos ainda vegeta em baixos níveis de prosperidade e de bem-estar – o mundo é feito bem mais de “fracassos” que de “sucessos”, ainda que esses conceitos sejam altamente dúbios, para não dizer completamente equivocados. Dos 35 a 40 bilhões de seres humanos que já viveram na superfície do planeta, provavelmente um número muito reduzido, equivalente, digamos, a 5% desse total, desfrutou, até hoje, de uma esperança razoável de vida, com o gozo simultâneo de bons padrões de alimentação e de bem estar. A afluência material – isto é, a “libertação” da penúria, da fome e da doença – ainda é algo relativamente “recente” na história da humanidade, correspondendo, talvez, aos últimos dois ou três séculos de avanços na agricultura e de progressos industriais. Ao se questionarem “por que o mundo todo não é desenvolvido?”,15 os historiadores economistas acabam chegando aos verdadeiros fatores de progresso material e de avanços 15

Ver, a este propósito, o trabalho, já antigo, de Richard A. Easterlin, “Why Isn't the Whole World Developed?”, The Journal of Economic History, vol. 41, n. 1, The Tasks of Economic History, (Mar. 1981), p. 1-19; disponível: http://links.jstor.org/sici?sici=0022-

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tecnológicos que, longe de terem sido provocados por “políticas industriais e comerciais”, têm a ver, basicamente, com os ganhos de produtividade do trabalho humano ao longo do tempo e em diferentes sociedades, aspecto eminentemente vinculado ao desenvolvimento cultural, de modo geral, e à educação básica e técnica, de modo particular. Estes são fatores que um economista historiador – mas Chang não é um – deveria considerar na avaliação das diferentes experiências nacionais de desenvolvimento, não um aspecto, apenas, da ação governamental em favor deste ou daquele ramo industrial. Quanto ao complô dos países ricos para “chutar a escada” dos retardatários, bem, ficou, é verdade, faltando tratar desse “aspecto” da história com maior grau de detalhe. Mas a crença é tão ridícula que me constrange ter de levantar argumentos para derrubar hipótese tão fantasiosa. Para começar, ela contraria a “lógica” – se alguma existe – da economia de mercado (e do capitalismo, diriam alguns marxianos mais razoáveis) que consiste em ampliar continuamente a “esfera da acumulação” – para retomar esse linguajar barroco – e conectar os mercados de forma contínua. Como já tinha explicado Marx em 1848, o capital busca sempre derrubar barreiras feudais e muralhas de modos de produção ancestrais, para instalar suas máquinas infernais, que seriam teoricamente suscetíveis de submeter à sua dominação implacável os povos de todo o mundo, ainda que convertidos em um “exército industrial de reserva” (logicamente, para deprimir os salários dos trabalhadores na pátria de origem do capital; para o que mais seria?). Por que, nessas condições, desejaria o capital restringir as possibilidades de desenvolvimento capitalista na periferia? Deixo a resposta – se é que existe alguma, racional, quero dizer – aos adeptos da teoria do bloqueio capitalista. A rigor, essa tese já era inoperante, inaplicável e “fantástica” na época do próprio mentor de Chang, o economista alemão Friedrich List – que publicou seu livro de economia política em meados do século 19 – e parece-me que ela continua a ser tudo isso, 150 anos depois. De fato, a teoria conspiratória não se sustenta, e só consegue desmoralizar seus partidários, a menos, claro, que eles sejam imbuídos dessa crença numa “história secreta do capitalismo”, que só consegue causar frisson naqueles imbuídos do “secreto desejo” de 0507%28198103%2941%3A1%3C1%3AWITWWD%3E2.0.CO%3B2-Y. Cabe reconhecer que esse autor foi excessivamente otimista em suas suposições mais importantes – sobre a disseminação cada vez mais rápida dos elementos culturais e educacionais que “produziram” desenvolvimento em vários países –, mas talvez ele tenha razão no longo prazo. Infelizmente, esse prazo tem-se revelado desnecessariamente mais longo do que o desejável para muitos povos, mas fatores políticos, não técnicos ou econômicos, podem explicar esse atraso inexplicável para os padrões da racionalidade ocidental.

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enterrar o (mal)dito sistema. A verdade é que, numa economia de mercado, que combina diversos tipos de capitalismos, o processo de desenvolvimento adota caminhos diversos, nenhum deles controlável por alguma força social específica, e muito menos por governos ou atores sociais estrangeiros. Nessas condições, imaginar que capitalistas e burocratas do FMI e do Banco Mundial se reúnam na calada da noite – ou talvez nas reuniões anuais do Fórum Econômico Mundial – para encontrar maneiras de impedir países pobres de ascender na escala do desenvolvimento, cozinhando para eles receitas de não-desenvolvimento, acreditar nisso representa bem mais do que defender alguma teoria conspiratória da história e redundaria, simplesmente, em ofender a mais comezinha inteligência econômica (além de fazer pouco caso, obviamente, da própria inteligência dos burocratas e dirigentes de países pobres, ou pelo menos daqueles que não foram “comprados” pelos primeiros). Quem adota esse tipo de postura – histórica ou econômica – também costuma enveredar por outras teorias fantasiosas para explicar o sucesso de alguns e a “derrota” de outros, posto que as teorias conspiratórias se retro-alimentam e produzem, de contínuo, novas razões para velhos fracassos, como, por exemplo, a persistente pobreza e a imensa desigualdade na maior parte dos países latino-americanos. Muitos – espera-se, ao menos, que este número seja decrescente – acreditam que isso se deve à exploração imperialista e à existência de estruturas capitalistas produtoras de miséria e de desigualdade; mas eu não preciso antecipar o que penso a respeito, não é mesmo? (disso tratarei em futuro ensaio). Os que assim “pensam” – se o verbo se aplica – não estão apenas ofendendo a simples verdade dos fatos e distorcendo a natureza do processo histórico; eles também estão diminuindo suas próprias chances de ascenderem a uma explicação mais consistente sobre as verdadeiras causas do atraso de alguns povos e do progresso de outros. De certa forma, eles estão “chutando a escada” que os levaria a um patamar superior de conhecimento. Mas este parece ser o destino de muitas falácias acadêmicas: baseadas num contato superficial com a realidade, elas acabam desenvolvendo uma explicação de “senso comum” que não é apenas redutora e simplista, mas que se alimenta de suas próprias crenças equivocadas. Brasília, 20 de janeiro de 2009

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6. Os mitos da Revolução Cubana

O mito fundador: a revolução que se transformou em reação Poucos mitos, na América Latina, especialmente entre os acadêmicos, são tão poderosos quanto o da Revolução Cubana, usualmente identificada com as figuras de Fidel Castro e de Ché Guevara – ele próprio um mito à parte, icônico em suas manifestações mais apelativas, sem esquecer o merchandising – tanto quanto pelo tremendo valor simbólico da “resistência ao imperialismo”, especialmente relevante para todos aqueles que acreditam em outro mito da mesma família: a de que esse mesmo imperialismo é responsável pela miséria e subdesenvolvimento da América Latina, cujas veias abertas estariam sendo constantemente drenadas por esse monstro capitalista (trataremos, em outro artigo da série, dessa outra falácia acadêmica). O próprio conceito de Revolução Cubana constitui um mito inaugural: não existe mais revolução cubana, e isto há muito tempo. Tudo o que restou das transformações políticas na ilha, feitas entre 1959 e 1965 aproximadamente, foi um regime autocrático, de inspiração supostamente socialista (mais exatamente ao estilo soviético), incapaz de garantir um abastecimento adequado ao seu próprio povo (como, aliás, ocorria com todos os socialismos realmente existentes, sem exceção). Sublinho deliberadamente transformações políticas, posto que em matéria de transformações econômicas, o que ocorreu, mais exatamente, foi uma tremenda involução, um retrocesso absoluto, que resultou em que o exprincipal exportador de açúcar da região é obrigado, atualmente, a importar o produto para o consumo do seu próprio povo; sem falar da inexistência quase completa de indústrias de consumo dignas desse nome. Mas voltemos, em primeiro lugar, ao mito da revolução. Como sabem todos aqueles que estudam sociologicamente o fenômeno revolucionário, nenhum processo desse quilate, absolutamente nenhum, dura cinqüenta anos, ainda mais com a promessa – constantemente refeita pelos dirigentes ‘revolucionários’, na verdade, reduzidos hoje a uma nomenklatura geriátrica – de que a revolução é um movimento vivo, que deve se renovar e continuar para sempre. Um processo insurrecional e de ativa preparação para a tomada do poder político pode até durar muitos anos, como foi o caso, por exemplo, da revolução chinesa, que depois conheceu várias etapas no processo de construção

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do totalitarismo maoísta: a aliança de classes e as cem flores nos anos 1950; o grande salto para frente e sua desastrosa falência entre 1959 e 1962; a revolução cultural de 1965 a 1969; a grande luta entre as cliques dirigentes depois disso; e, finalmente, o que não tinha nada mais de revolucionário, a reforma gradual do socialismo chinês em direção de formas de mercado que não excluem (e até promovem) o capitalismo mais selvagem que se conhece desde Marx e Engels. As revoluções constituem processos extremamente concentrados no tempo, ainda mais concentrados na utilização da violência política, que costumam substituir uma classe dirigente por outra, alterando completamente o sistema político e, até mesmo, as bases econômicas de funcionamento de uma determinada sociedade. Revoluções duram somente o tempo de substituição dos dirigentes no comando do Estado. A partir daí o que se tem são processos mais ou menos lentos de alteração das relações sociais, o que pode ser feito com doses extras de violência – como no caso chinês ou soviético, sob Mao e Stalin – ou, mais freqüentemente, por meio das burocracias que emergem com o novo poder. Enfim, uma revolução que dura 50 anos, na mais perfeita normalidade do comando ‘revolucionário’, é uma contradição nos termos. Todas as revoluções, a partir de um certo tempo se ‘estabilizam’ e a nova classe dirigente passa a cuidar de sua própria conservação, ou seja, a revolução se transforma em reação, quando não em algo profundamente reacionário. No caso da Revolução Cubana, pode-se traçar, perfeitamente, uma cronologia para o processo revolucionário: a fase insurrecional durou poucos anos, a rigor desde Moncada (1953) até a tomada do poder, em janeiro de 1959, com a etapa guerrilheira se estendendo durante pouco mais de dois anos, tão somente. Ou seja, o processo de luta contra a ditadura de Batista foi algo extremamente rápido, em termos estritamente temporais, e absolutamente exitoso nos planos político-social e estratégico-militar, inclusive com a colaboração involuntária do próprio regime, que consentiu em anistiar o jovem advogado condenado por sedição após poucos meses de prisão (aqui entra um outro mito, o da “História me absolverá”, mas que pode ser deixado ao cuidado dos historiadores, por falta de espaço neste ensaio). A partir daí se abre o processo revolucionário propriamente dito: uma fase nacionalista em 1959, logo alterada por escolhas mais radicais nos planos político e econômico – inclusive as decisões de não realizar eleições livres e de expropriar grandes latifúndios para fins de reforma agrária – seguida, finalmente, da opção propriamente

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socialista, entre 1961 e 1962. A partir daí, a ‘revolução’ socialista se aprofunda, com a completa estatização dos meios de produção e a ‘sovietização’ do estilo de poder e das formas de dominação, processo que culmina, basicamente, em 1965, quando começam os primeiros expurgos e o regime perde sua aura romântica que ele tinha mantido até então. Muitos intelectuais e o próprio Ché Guevara abandonam a ilha, cada qual com suas opções intelectuais e políticas intactas: os primeiros por não concordarem com essa orientação do regime cubano; o segundo para tentar fazer a revolução em outros países. Esta é a Revolução Cubana, nada mais do que isso: a tomada do poder em nome da luta contra a ditadura, pela democracia e pela justiça social, com promessas de reforma agrária (que aliás estavam sendo impulsionadas em quase toda a América Latina pelo próprio imperialismo, insatisfeito com o estilo oligárquico atrasado de quase todos os seus aliados na região). O que veio depois de 1965 foi a administração de um socialismo que não escapou às mesmas fatalidades de seus congêneres em outras partes: ineficiência econômica, irracionalidades produtivas, falta de inovação pela ausência de estímulos apropriados e, sobretudo, repressão política, falta de liberdade completa no plano partidário, de imprensa e intelectual, e as pequenas e grandes misérias morais de todo e qualquer regime socialista. Pior do que isso, talvez, pois outros regimes atrasados na própria América Latina também exibiam ineficiência econômica, baixíssimos índices de produtividade econômica e, tanto à direita quanto à esquerda, repressão política e falta de liberdades elementares: no caso de Cuba, tudo isso se viu agregado do velho estilo soviético (stalinista, quero dizer) de dominação e de monopólio político absoluto pelo partido monocrático e todo poderoso (algo que nem as ditaduras direitistas mais extremas na região jamais produziram). Quem achar que estou errado, deveria, supostamente, poder provar-me que a ilha caribenha dispõe de: eficiência econômica, vibrante sistema produtivo, tecnologia avançada no plano internacional, liberdade política, imprensa livre e ausência de dissidentes encarcerados por divergência de opinião. O teste é muito simples e pode começar pela existência de balseros (boat-people), algo que só as ditaduras mais extremas conseguem produzir: a existência de pessoas desesperadas, dispostas a enfrentar os riscos terríveis de uma aventura no mar, para escapar ao desespero das misérias cotidianas (que geralmente são mais econômicas do que propriamente políticas). Apenas a existência contínua desses candidatos a náufragos do regime já provaria o tremendo fracasso da ‘revolução’ cubana.

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A especificidade cubana: uma ilha que é quase uma fazenda pessoal O que teve, e talvez ainda tenha, a Revolução Cubana de diferente, em relação aos modelos do gênero, é o tremendo carisma de dois de seus dirigentes (um deles efêmero, é verdade, mas aparentemente eterno): Fidel Castro e Ché Guevara. Desaparecido precocemente este último, restou o velho líder revolucionário, que empolgou muita gente, na ilha e fora dela, e permanece como o símbolo do processo revolucionário. Quanto ao Ché, é um fenômeno planetário: trata-se, possivelmente, depois da Coca-Cola, da imagem mais conhecida e valorizada do mundo, presente em dez de cada nove manifestações organizadas por movimentos de esquerda, sobretudo conquistando os jovens, que compram avidamente pôsteres e camisetas para indicar sua preferência romântica, alimentando com isto um dos mais pujantes mercados capitalistas de que se tem notícia na história do merchandising mundial. Do Ché ficou a imagem do guerrilheiro heróico, seja em Cuba, seja na Bolívia, onde fracassou na tentativa de criar um outro Vietnã no coração da América Latina. Pouco se fala de seu período à frente de La Cabaña, uma caserna do ancien régime cubano convertida rapidamente num dos mais ativos centros de fuzilamentos logo depois da vitória da revolução, muitos dos quais após sumaríssimos julgamentos, outros sem sequer essa formalidade ‘burguesa’. Se fala ainda menos de suas rápidas e catastróficas passagens pela presidência do Banco Central cubano e pelo Ministério da Indústria, cujas conseqüências mais notáveis, aliás, foram as de apressar a subordinação da ilha aos interesses da União Soviética e o início de um longo período de dependência dos subsídios russos durante praticamente toda a existência residual da URSS. Seus planos de industrialização – sem falar na tentativa de criação de um ‘homem novo’, cuja realização perfeita seria um trabalhador sem qualquer tipo de exigência material, funcionando apenas à base de ‘emulação socialista’ – foram tão desastrosos que, já em 1965, Cuba escolhia voltar para a monocultura açucareira (atenção, quem diz isso não sou eu, e sim Celso Furtado, no último capítulo de seu livro, aliás deficiente, sobre a Formação Econômica da América Latina, de 1967). Com a morte precoce de Camilo Cienfuegos, com o afastamento de Ché Guevara e o desaparecimento ou eliminação de outros possíveis concorrentes da fase insurrecional, a revolução cubana acabou sendo dominada pela figura ímpar, sem dúvida excepcional historicamente, de Fidel Castro, que passou a administrar a ilha como se fosse uma fazenda pessoal. Foram muitas as suas tentativas improvisadas de mudar a economia da sua fazenda –

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como o estímulo à plantação de café, na base do empirismo puro, sem qualquer viabilidade agronômica – com resultados catastróficos a cada vez. Mas a figura de Fidel Castro há muito tempo já passou por esse fenômeno que Max Weber identificou como a ‘rotinização do carisma’, sendo improvável que esse carisma sobreviva ao desaparecimento físico do titular. O mais provável é que a ‘revolução’ – que de fato já não existe mais – se estiole numa dominação puramente autocrática-oligárquica, até sua completa erosão numa futura redemocratização e normalização da ilha, segundo modalidades ainda não detectáveis neste momento. Enfim, este é o primeiro mito ligado a Cuba, que cabe, portanto, descartar no plano histórico e mais exatamente sociológico. Vejamos, agora, quais seriam as outras falácias que podem ser associadas ao mesmo mito, entretido com tamanho desvelo em certos círculos acadêmicos, que eu chego a receber de um desses representantes da espécie mensagens eletrônicas que são finalizadas por um desses orgulhos ingênuos de certos companheiros de viagem do socialismo cubano: “Esta noite, 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma é cubana.” Incrível como acadêmicos aparentemente bem informados conseguem se deixar mistificar pela propaganda de um regime incapaz de assegurar a essas mesmas crianças um futuro decente, em termos de conforto material, emprego e, sobretudo, liberdade política para se expressar normalmente pela internet, como mesmo crianças de favelas brasileiras conseguem fazer em centros comunitários que existem, justamente, para conectá-las ao mundo. Atribuo esse tipo de equívoco à ‘inconsciência revolucionária’. O Brasil é certamente um país com muitos indigentes, alguns até com problemas de desnutrição ou de moradias precárias, falta de cuidados médicos e, sobretudo, de educação e de capacitação técnica ou profissional para o mercado de trabalho; daí a baixa produtividade, os precaríssimos rendimentos e a insuficiência geral no consumo e, portanto, a baixa qualidade de vida, segundo os índices do PNUD. Não são esses indigentes, contudo, os principais candidatos à emigração econômica, característica associada à paisagem social brasileira nas últimas duas ou três décadas, aliás coincidentes com as crises econômicas, o baixo crescimento, a falta de oportunidades de emprego decente e o desalento geral com a violência, a extorsão estatal e outros traços menos agradáveis de nossa situação presente. Geralmente são pessoas próximas dos estratos intermediários inferiores, ou até da classe média, que escolhem sair do Brasil, por acaso os mesmos tipos de candidatos a partir de Cuba, com uma diferença fundamental, porém: nenhum deles é boat-people, pela simples

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razão de que ninguém é impedido de sair do país. No caso de Cuba, é desnecessário precisar, os mesmos candidatos frustrados se sentem como que obrigados a deixar a ilha, pelo simples fato de que não vislumbram nenhuma possibilidade de mudança em sua situação econômica no futuro previsível. Poucos, ou praticamente nenhum, dos boat-people são verdadeiramente dissidentes ou opositores do regime: na quase totalidade dos casos, se trata apenas de pessoas desejosas de escapar das misérias cotidianas da ilha, aspirando viver normalmente num país normal, não numa ilha que vive, ou sobrevive, à base de cartões de racionamento. Os mitos entretidos pelo regime e por seus admiradores Todo e qualquer Estado normalmente constituído na história humana, ou seja, uma organização política capaz de garantir o funcionamento regular de instituições de comando e um sistema econômico capaz de se auto-sustentar – independentemente de suas características mais estatais ou mais privadas, de mercado, portanto – deveria, minimamente, poder assegurar algumas condições básicas para sua manutenção, preservação e continuidade. Aqueles que não conseguem, costumam desaparecer nas dobras da história, como demonstrou em relação a alguns casos exemplares o cientista americano Jared Diamond em seu livro Colapso. Esse Estado deveria, em princípio: 1) funcionar em bases políticas razoavelmente legítimas, suscitando o consenso em torno dos mecanismos de dominação, ou despertando muito pouca oposição ou dissidência em relação ao comando do Estado; quando houver dissensão, ela deveria poder ser canalizada por meios políticos não violentos, justamente; 2) garantir requisitos mínimos de satisfação material à população, sem o que aquela legitimidade logo se esvai, sobretudo se os cidadãos (ou súditos) se sentem espoliados em seus direitos elementares à segurança alimentar, patrimonial ou até pessoal; essa satisfação requer, portanto, um funcionamento razoável dos sistemas de produção e de distribuição, com alguma possibilidade de acumulação privada ou familiar, geralmente no que se refere à habitação, mas também a outros bens físicos; 3) assegurar um mínimo de direitos quanto à segurança pessoal dos cidadãos (ou súditos), na sua disposição de residência, livre escolha de uma ocupação, de culto ou de expressão pública de suas preferências políticas e culturais, sem o que o país em questão poderia viver em estado de tensão social permanente;

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4) alguma legitimidade ou reconhecimento no plano externo, de maneira a se ter um relacionamento normal no plano internacional, sem ameaças externas ou conflitos destrutivos; ainda que o ambiente externo possa ser uma variável independente – e o fenômeno do imperialismo e do colonialismo independem da configuração política e econômica que possa adotar um Estado independente qualquer – um Estado normal deve ser capaz de assegurar um mínimo de tranqüilidade para os seus cidadãos (ou súditos), sem aquela sensação de serem constantemente ameaçados por algum poder externo. Pois bem, com base nesses critérios aparentemente anódinos e perfeitamente burocráticos no plano da análise sociológica, podemos analisar os mitos da Revolução Cubana, por meio de elementos o mais possível objetivos, para verificar, justamente, as falácias que têm sido apregoadas em torno desse fenômeno. São muitas as falácias que vem sendo apregoadas em torno da “Revolução” Cubana, mas algumas têm mais consistência do que outras. Vejamos, por exemplo, o que se lê em recente matéria em homenagem aos 50 anos dessa “revolução” no site do único movimento político brasileiro que, aparentemente, ainda defende resolutamente o que é chamado de conquistas da “Revolução” Cubana, o Partido Socialismo e Liberdade: Os companheiros desse partido “não podem duvidar em afirmar que a revolução cubana foi o acontecimento mais importante acontecido em nossa ‘Pátria Grande’ latinoamericana. Talvez possamos divergir sobre apreciações de seu regime político, da política internacional seguida pelo Fidel em certos períodos. Mas o concreto é que foi um movimento tão poderoso e tão genuíno para que hoje Cuba seja o único país do chamado “socialismo real” que existe e do qual não só podemos reivindicar sua história como também seu presente; Cuba mantém suas conquistas sociais e seu orgulho de ser independente do imperialismo a menos de cem milhas de suas costas.”16 O que se reivindica, portanto, são três coisas: (a) ser o único país do “socialismo real”; (b) conquistas sociais; (c) independência do imperialismo. A bem da verdade, esses três elementos resumem, efetivamente, o que se apregoa como positivo em torno da “Revolução” 16

Ver nota no Portal do Socialismo, de 4.01.2009; http://www.socialismo.org.br/portal/socialismo/197-artigo/709-cuba-festeja-meio-seculo-derevolucao.

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Cubana e são eles que devem motivar uma reflexão sobre se esses mitos são justificados. Não devo esconder desde já meu argumento de que esses três mitos constituem, justamente, as três grande falácias em torno da “Revolução” Cubana. Vejamos cada um deles sistematicamente. O mito do socialismo Não é verdade que Cuba seja o único representante do chamado “socialismo real”: o comentarista do PSol esquece a República Popular Democrática da Coréia e... vejamos, talvez o Vietnã, ou, quem sabe ainda, a China? Não é seguro que estes dois últimos sejam ainda socialistas, estilo “real”, mesmo que suas equipes dirigentes possam fazer apelo ao conceito para definir seus regimes políticos e seus sistemas sociais. Em todo caso, sobra a RPDC, ou Coréia do Norte, na companhia de Cuba, a defender, contra ventos e marés, o sistema que perdura em ambos os países desde mais de meio século. O que isto significa no plano das falácias acadêmicas? O conceito original de ‘socialismo científico, segundo os demiurgos originais, seria o de um regime baseado na apropriação coletiva – não necessariamente estatal – dos meios de produção e na organização social da produção e da distribuição segundo a fórmula clássica enunciada na Critica ao Programa de Gotha: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Independentemente do fato de que essa frase de efeito não quer dizer rigorosamente nada, a verdade é que, tanto para Marx, como para Engels, o Estado deveria simplesmente desaparecer assim que os trabalhadores conseguissem colocar em marcha o programa da revolução socialista – basicamente os dez pontos do Manifesto de 1848 – com a sociedade de produtores organizados funcionando em ‘piloto automático’ e o Estado se encaminhando gentilmente para o museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar (segundo Engels, em A Origem da Família, da Propriedade..., etc.). Não é preciso dizer que, já a partir de Lênin, não foi exatamente isso que aconteceu, mas o seu contrário, com o Estado mais fortalecido do que nunca, e os trabalhadores organizados em batalhões de produtores compulsórios, mais próximos do regime fordista – ou taylorista – do que daquela imagem romântica dos Cadernos Econômico-Filosóficos, segundo a qual o homem socialista seria um trabalhador pela manhã, um pescador de tarde e um filósofo pela noite. O fato é que o Estado leninista serviu de padrão para a dominação mussoliniana na Itália, logo em seguida, e mais adiante para o regime de partido único e de Estado totalitário da experiência hitlerista.

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Qualquer que seja a opinião de acadêmicos anticapitalistas sobre as excelências dos regimes socialistas – a igualdade social, a segurança do trabalho e da moradia, o ‘futuro brilhante’ de realizações materiais do ‘socialismo real’ – a realidade legada por esse tipo de regime e de sistema de engenharia social é uma só, quase uniforme em sua materialização concreta nos diversos continentes em que ele existiu (ou onde ele ainda sobrevive, como nos casos cubano e norte-coreano): ditadura política, polícias secretas, delação de vizinhos, crimes políticos no caso da simples expressão de um pensamento dissidente, controle estrito das populações, misérias econômicas, catástrofes ecológicas, quando não Gulag ou extermínio dos ‘inimigos do povo’. Sequer preciso mencionar aqui a fome organizada por Stálin no caso da coletivização forçada da agricultura no início dos anos 1930 - que não apenas resultou na eliminação física de milhares de kulaks, mas sobretudo na privação absoluta de populações inteiras, sobretudo na Ucrânia – ou no ‘grande salto para trás’, organizado pelo presidente Mao, entre 1959 e 1962, que pode ter resultado na morte de algumas dezenas de milhões de camponeses, com cenas de canibalismo jamais vistas desde tempos míticos... Gostaria de frisar, em direção dos acadêmicos true believers nas ‘reais’ possibilidades do socialismo, e que poderiam desconsiderar algumas das asserções acima, como sendo apenas ‘acidentes circunstanciais’ numa trajetória feita de boas intenções potenciais desse sistema, que, mesmo retirando os ‘acidentes’ (com alguns milhões de mortos, é bom lembrar), as demais características não dependem da opinião ou posição política do observador: são fatos materiais indiscutíveis e associados genericamente à história do socialismo no século 20 e, ainda hoje, ao socialismo cubano em particular: ditadura política, monopólio do partido, regime policial, repressão aos dissidentes, encerramento de toda uma população numa ilha-prisão. O acadêmico que for capaz, ainda assim, de defender esse regime, certamente não merece esse título, podendo apenas ser classificado como sustentáculo voluntário de uma ditadura, o que é propriamente indigno de quem se pretenda acadêmico. Em uma palavra, o socialismo do século 20 representou apenas e simplesmente isto: totalitarismo, uma herança certamente pesada para que seus supostos herdeiros ainda possam reivindicar, hoje, qualquer tipo de filiação intelectual. Que acadêmicos ou militantes brasileiros ainda defendam o socialismo como idéia, e a ‘revolução’ cubana em especial, apenas constitui um testemunho eloqüente sobre mais uma ‘inconsciência revolucionária’,

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que também poderia ser traduzida por duas singelas expressões: suprema ingenuidade política ou brutal ignorância informativa, em ambos os casos exemplos de estupidez acadêmica. Que alguns desses personagens tenham ódio à democracia parlamentar – que eles equiparam a uma ‘ditadura da burguesia’ – e à economia de mercado – para eles indistintamente capitalista, sem sequer saber que estão transformando deste sistema produtivo, ainda bastante limitado na história econômica mundial, em um superlativo conceitual – apenas confirma como preconceitos políticos podem obstar uma apreensão historicamente adequada das realidades políticas do século 20. Ou seja, além de estupidez acadêmica, cegueira intelectual. Se o socialismo, enquanto conceito e enquanto realidade social, não é uma falácia completa, seus defensores deveriam ser capazes de provar que ele pode funcionar, de fato, segundo os quatro requisitos formais de um Estado normal, tal como enunciados acima, quais sejam: legitimidade política interna, funcionalidade produtiva ou material, liberdades elementares e relacionamento externo com base numa garantia de reconhecimento da representatividade do Estado em face de sua população (o que implica na admissibilidade, por exemplo, de livre acesso de órgãos multilaterais em setores específicos: livre organização de trabalhadores, segundo as convenções da OIT; respeito aos direitos humanos, segundo tratados internacionais monitorados pelo Conselho de Direitos Humanos; transparência dos procedimentos legais e judiciais, como estabelecido na Carta da ONU; liberdades fundamentais, como acordado na Declaração Universal de 1948, etc.). Trata-se, obviamente, de um teste muito simples, que qualquer acadêmico minimamente bem informado seria capaz de atender, sem alimentar qualquer falácia conceitual ou prática. O mito das conquistas sociais Mesmo reconhecendo alguns ‘problemas políticos’ – geralmente justificados pelo ‘assédio imperialista’ – os acadêmicos simpáticos a Cuba costumam argumentar com a excelência dos serviços cubanos de saúde e com a alta qualidade de sua educação, constituindo esses dois elementos as grandes justificativas em face das demais ‘deficiências’ do regime, uma espécie de compensação social pela falta de liberdades políticas e por todas as misérias da vida econômica. Estas ‘bondades da Revolução’ estão sempre na primeira linha da defesa das conquistas do socialismo cubano, constituindo, no entanto, mais um dos grandes mitos que cercam a ilha. Elas estão identificadas com as supostas conquistas sociais da ‘revolução’, como se a ilha, antes de Fidel Castro, fosse um inferno de misérias humanas e

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um deserto de avanços sociais. Um pouco de objetividade factual pode ajudar a avaliar essa questão. Em 1958, Cuba ostentava bons indicadores sociais em diversos quesitos, situando-se, geralmente, nos três primeiros lugares do ranking latino-americano, junto com a Argentina e o Uruguai. Obviamente, muitos indicadores, baseados em médias nacionais, não refletiam exatamente a distribuição de serviços públicos pelo conjunto da população cubana. Mas se os dados nacionais refletem uma metodologia uniforme para todos os países da amostra, eles devem poder significar realidades objetivas quanto aos serviços disponíveis. De modo geral, Cuba se situava entre as sociedades mais avançadas da América Latina, com um perfil social bem mais próximo da Europa mediterrânea do que dos demais países latino-americanos. De um conjunto de 122 países analisados, Cuba ocupava, em 1958, o 22º. lugar em matéria sanitária, com 128,6 médicos e dentistas por 100.000 habitantes, à frente de países como França, Reino Unido e Bélgica. Sua taxa de mortalidade já era uma das mais reduzidas do mundo (5,8 anuais por 1.000 habitantes; Estados Unidos 9,5) e o nível de alfabetização da ilha era de 80%, semelhante ao do Chile e da Costa Rica e superior ao de Portugal na mesma época. Ou seja, resulta equivocado pensar que Cuba fosse uma ilha habitada por miseráveis antes da revolução. O regime socialista cubano invoca a baixa mortalidade infantil para destacar a excelência dos cuidados de saúde disponíveis para a população, mas o fato é que esse indicador já apresentava uma taxa muito baixa desde os anos 1950: em 1958, o índice cubano registrava 40 mortes infantis para cada mil nascidos vivos, uma taxa melhor do que os índices da França (41,9), do Japão (48,9) e da Itália (52,8). Não obstante essa boa situação de partida, Cuba foi ficando para trás, pois que, em 2007, o indicador cubano registrava 5,3 óbitos, contra 4,2 para a França, 3,2 para o Japão e 5,0 para a Itália. Mesmo a situação relativamente favorável de Cuba, no confronto com outros países latino-americanos, deve ser considerada em termos de dotação de recursos para gastos de saúde: durante muito tempo, o regime cubano foi de fato subvencionado pela União Soviética, de uma forma como nenhum outro pais latino-americano foi ajudado pelo império americano. Essas subvenções, embutidas nos pagamentos pelo açúcar acima dos preços dos mercados mundiais e no financiamento direto das aventuras militares cubanas em outros continentes, sustentaram os investimentos cubanos na área social durante muito tempo. Uma vez interrompidas as transferências diretas e indiretas, a situação cubana começou a se deteriorar seriamente.

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O sistema educacional cubano é, de fato, abrangente no mais alto grau, ainda que a suposta excelência não se traduza em uma pujante produção científica ou na transferência desse saber para o sistema produtivo, no qual patentes são quase desconhecidas. Pena também que, com o analfabetismo virtualmente inexistente, os cubanos não disponham para sua leitura diária que de jornais controlados pelo Partido Comunista e que seu acesso à internet só é comparável com a situação na Síria e na Birmânia. Apenas alguns poucos países exóticos mantêm, hoje, uma repressão à liberdade de informação tão ampla – com perdão pelo paradoxo involuntário – quanto a existente em Cuba. Uma população tão educada mereceria mais, certamente. Outra das alegações freqüentes do regime se refere à suposta igualdade dos cubanos quanto à distribuição de renda. Não existem dados oficiais a esse respeito, mas estimativas de especialistas indicam que essa distribuição se deteriorou muito desde a crise do socialismo, sendo que o coeficiente de Gini passou de um índice 0,22 em 1986 para 0,407 em 1999. Em especial, no tocante à distribuição entre as classes de renda, a situação cubana conheceu uma evolução bem mais negativa do que o resto da América Latina: a razão entre o quintil mais rico e o quintil mais pobre de renda cresceu de 3,8 a 13,5 na ilha, entre 1989 e 1999, ao passo que, nesse mesmo período, a razão entre o quintil mais rico e o quintil mais pobre cresceu de 11,90 a 19,91 para a região como um todo: ou seja, em Cuba o aumento foi 3,85 vezes, enquanto o aumento na América Latina foi de apenas 1,67 vezes. Se formos examinar a disponibilidade de habitações, a deterioração também foi sensível, com uma diminuição do número de moradias em função da baixa taxa de natalidade e da emigração. No plano mais geral do crescimento econômico a longo prazo, a trajetória cubana é também reveladora da incapacidade do sistema em produzir bem-estar. Como revelado na tabela abaixo, a posição relativa de renda por habitante de sete países selecionados, colocava Cuba em terceiro lugar em 1957, à frente da Espanha e de Portugal, tendo a ilha caído para o último lugar em 2007. Classificação de países segundo o PIB per capita Posição 1957 2007 1 Venezuela Espanha 2 Argentina Portugal 3 Cuba Chile 4 Espanha Venezuela 5 Portugal México 6 México Argentina 7 Chile Cuba

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Fonte: United Nations Statistics Division

Na verdade, o sistema socialista cubano é incapaz de alimentar o seu próprio povo atualmente, tendo a ilha de importar volumes significativos de alimentos, inclusive dos EUA, um dos principais parceiros comerciais. Incapaz de produzir bens exportáveis, Cuba tem uma balança comercial altamente deficitária, o que se reflete na dívida externa cubana e nas insolvências bilaterais com vários países europeus, com o México, com o Chile, com o Brasil e com o Japão. No total, a dívida externa cubana deve superar 38 bilhões de dólares, o que equivale a 3.410 dólares por habitante, três vezes a média latino-americana, de 1.173 dólares por habitante. Um estudo recente sobre a situação do abastecimento alimentar em Cuba revelou dados assustadores: “Ao menos 13% da população é clinicamente subnutrida, na medida em que o estado do racionamento alimentar provê, agora, apenas entre uma semana e dez dias das necessidades alimentares básicas” (Antonio E. Morales-Pita, “Possible Scenarios in the Cuban Transition to a Market Economy”, Proceedings da Association for the Study of the Cuban Economy: Cuba in Transition 2007, p. 330). Um outro estudo confirma que “A economia cubana tem sobrevivido em larga medida graças aos investimentos, comércio, créditos e ajuda da Venezuela e, em menor medida, da China, assim como de investimento estrangeiro em setores estratégicos, como petróleo e gás, níquel e turismo, o que permitiu a Fidel lançar um processo de recentralização da tomada de decisão em 2003-2006, que reverteu a maior parte dos progressos feitos pelas modestas reformas orientadas para o mercado implementadas em 1993-1996, operando uma rígida transição de poder para Raúl”.17

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Os dados econômicos referidos neste ensaio foram retirados dos ‘proceedings’ de 2007, da Association for the Study of the Cuban Economy, com o apoio da Universidade do Texas, em Austin, neste link: http://lanic.utexas.edu/project/asce/publications/proceedings/index.html; adicionalmente, recorreu-se à publicação “Carta de Cuba, la escritura de la libertad”, sob a responsabilidade de um conjunto de autores e disponível no link: http://www.elcato.org/node/3948; acesso em fevereiro de 2009. Ver, em especial, Carmela Mesa-Lago, “The Cuban Economy in 2006-2007”, ASCE: Cuba in Transition 2007, p. 15; dados disponíveis in: Carmelo Mesa-Lago, La economía cubana en la encrucijada: legado de Fidel, debate sobre el cambio y opciones de Raúl; Documento de Trabajo nº 19/2008 - 23/04/2008; disponible Instituto El Cano (Madrid: http://www.realinstitutoelcano.org/wps/portal/rielcano/Imprimir?WCM_GLOBAL_CONTEXT=/elca no/Elcano_es/Zonas_es/DT19-2008).

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Esse mesmo estudo citado imediatamente acima traz estatísticas arrasadoras sobre o declínio da produção cubana entre 1989 e 2006, em quase todos os setores da economia, sobretudo alimentares, como revelado na tabela abaixo. Cuba: indicadores da produção física, 1989 e 2006 e variação 2006-1989 (%) (milhares de toneladas métricas, ou unidades especificadas)

Setores, produtos Petróleo Gás Natural (milhões metros cúbicos) Níquel Açúcar Aço Cimento Eletricidade (bilhões kW/h) Têxteis (milhões de m2) Fertilizantes Charutos (unidades) Sapatos (milhões de pares) Sabão (lavanderia) Cítricos Arroz Ovos (milhões de unidades) Leite (vaca) Fumo Gado (milhares de cabeças) Peixes e frutos do mar

1989

2006

2006-1989 %

718 34 47 8.121 314 3.759 16 220 898 308 12 37 1.016 532 2.673 1.131 42 4.920 192

2.900 1.085 73 1.474 257 1.705 16 27 41 418 3 14 373 434 2.341 415 29 3.737 55

303 3.091 55 -82 -18 -55 0 -88 -95 35 -75 -62 -63 -18 -12 -63 -31 -24 -71

Fonte: Carmela Mesa-Lago, “The Cuban Economy in 2006-2007”, op. cit., p. 4.

De fato, a situação econômica é deveras preocupante, daí as tentativas do novo governo pós-Fidel de introduzir algumas reformas pró-mercado para paliar essas dificuldades, como já tinha ocorrido com diversos outros países socialistas no período anterior à implosão final. Não é preciso alinhar muitos dados sobre essa deterioração constante, bastando mencionar o aumento da prostituição, do mercado negro e das transações ilegais, bastante visíveis para qualquer turista que tenha visitado a ilha nos últimos anos. Por uma dessas ironias da história, uma das principais alegações para o exacerbado nacionalismo e anti-americanismo cubano do período imediatamente posterior à revolução foi, justamente, a eliminação da designação infame da ilha como sendo o ‘bordel do imperialismo’. Aparentemente, os velhos tempos estão de volta... O mito do imperialismo como ameaça Finalmente, a escusa principal do regime para tentar explicar as dificuldades da vida econômica em Cuba sempre foi, historicamente, o ‘embargo americano’, aparentemente

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responsável por todos os problemas da ilha. Trata-se, provavelmente, do maior mito entretido pelo regime durante o último meio século, posto que esse embargo é amplamente contornado pelo comércio de Cuba com todos os demais países do mundo, sendo as únicas exceções as empresas americanas instaladas nesses países. Na verdade, como explicitado acima, os EUA converteram-se atualmente no principal fornecedor de alimentos para Cuba, sendo que muitos outros produtos americanos ingressam na ilha por terceiros países. A alegação é falsa, portanto. Pode-se mencionar, também, as remessas dos cubanos emigrados a seus familiares na ilha, um aporte tão ou mais substancial do que aquele representado pelas transferências de trabalhadores mexicanos nos EUA para seu país natal. Cabe registrar que são essas divisas, ademais das gorjetas que médicos ou engenheiros ganham como taxistas clandestinos ou guias turísticos, que permitem paliar, um pouco, a situação de penúria absoluta da maior parte das famílias, aliás incontornável para todos aqueles que não dispõem de uma fonte de renda em moedas fortes. De fato, o imperialismo tentou derrubar o regime cubano em 1961, numa desastrada operação da CIA que tinha sido montada ainda antes da administração Kennedy, assim como a CIA tentou assassinar Fidel Castro várias vezes, sem sucesso nenhum, em vista da excepcional qualidade da inteligência cubana, muito bem treinada por soviéticos e alemães orientais. Mas, as tentativas para minar o regime terminaram logo depois da crise dos mísseis de 1962, assim como o Congresso americano impôs um veto, desde os anos 1970, aos atentados contra a vida do líder cubano. O que restou de tudo isso foi o estúpido embargo americano, mais determinado pelo Congresso do que pelo Executivo, em função das expropriações de propriedades americanas não indenizadas no período de radicalização da revolução. Se o embargo tivesse sido suspenso – o que é difícil em vista do lobby cubano da Flórida – o regime não teria praticamente nenhuma desculpa para os níveis baixíssimos de padrão de vida para a maioria da população cubana. Para ser mais preciso, é verdade que o governo socialista cubano abandonou o FMI e o Banco Mundial, consideradas entidades subordinadas a Washington; mas Cuba nunca deixou de fazer parte do GATT – atualmente da OMC – e pode, assim, transacionar com todos os demais membros do sistema multilateral de comércio. Portanto, ainda que exista animosidade do governo americano em relação ao regime socialista, na prática a ilha está absolutamente livre para intercambiar produtos com a quase totalidade do planeta, não o

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fazendo apenas por falta de competitividade de sua economia e da ausência de oferta exportável, inclusive de produtos tradicionais. O imperialismo, como diriam os maoístas, é um tigre de papel, hoje sobretudo interessado na normalização de relações, com o afastamento dos falcões do ex-governo Bush. Cuba já é membro da Aladi e foi admitida no Grupo do Rio, inclusive com o ativo apoio do Brasil, relacionando-se normalmente com todos os países do hemisfério, à exceção, ridiculamente, do império. À guisa de conclusão: um manifesto a favor do povo cubano Para não dizer que todos os acadêmicos ou intelectuais alimentam falácias sobre Cuba e sua situação econômica e política, permito-me transcrever aqui um manifesto de apoio ao povo cubano escrito por intelectuais argentinos. Assim diz o texto, no original, com cortes mínimos por conter informações desnecessárias: “Ante la situación política de Cuba, un grupo de intelectuales argentinos dio a conocer una declaración, en la que expresa su apoyo moral al pueblo de ese país en su lucha para restablecer el imperio de la libertad y la justicia en la tierra de Martí. La declaración dice así: “Los escritores y artistas argentinos que subscriben (...) expresan su solidaridad con quienes, en otros pueblos de América, luchan por la liberación de sus respectivos países, sometidos a regímenes de fuerza. Desean manifestar especialmente su apoyo moral al pueblo cubano, que, tremendamente agraviado y despojado de las garantías elementales de la civilización política, sufre persecución, vejamen y tortura, y lucha con admirable decisión y valentía para abatir la dictadura y restablecer, en la tierra de Martí, el imperio de la libertad y la justicia, cimentados en la soberanía del pueblo y la vigencia del derecho.” Firmaram esse documento dezenas de nomes de intelectuais conhecidos na história artística e literária argentina, entre eles Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges. Pois bem, como ambos escritores, como se sabe, já não estão mais entre nós desde algum tempo, cabe fazer um esclarecimento a respeito e agregar um comentário pessoal sobre esse tipo de exercício, se eventualmente conduzido atualmente. O texto, na verdade, não é atual, tendo sido publicado no diário El Mundo, de Buenos Aires, em 2 de março de 1958, e se referia, portanto, à luta dos democratas e revolucionários

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cubanos contra a ditadura de Fulgencio Batista, justamente.18 Os argentinos, então, saiam de uma outra ditadura, ainda que alguns a classificassem simplesmente de regime populista: o governo peronista, que tinha durando dez anos, desde o imediato pós-segunda guerra. Os intelectuais argentinos se orgulhavam, assim, de ter deixado para trás um triste período de sua história e se dispunham a ajudar outros povos da América Latina que também lutavam contra a ditadura em seus respectivos países, antecipando um pouco o que seria a chamada “doutrina Betancourt”, formulada depois de superada uma outra ditadura na Venezuela nesse mesmo ano de 1958 (e que levou inclusive o governo venezuelano a suspender relações diplomáticas com o Brasil, quando instalada aqui a ditadura militar de 1964). Se me permito, agora, fazer um comentário atual, na verdade uma triste constatação, seria esta. Não creio que, atualmente, intelectuais brasileiros ou argentinos, ou de qualquer outro país latino-americano, se dispusessem a assinar um manifesto do mesmo teor – que poderia ter, inclusive, exatamente o mesmo texto – em favor do povo cubano, em luta pelo restabelecimento da democracia e do império da liberdade, da justiça e do direito naquela ilha, desde cinqüenta anos dominada por um regime que prometeu acabar com uma ditadura opressiva. Pode ser patético fazer tal tipo de constatação “regressiva”, mas ela nos revela o quanto recuaram os intelectuais latino-americanos na defesa da democracia e da liberdade em nossos países. Em nome de não se sabe qual ‘soberania popular’ e de não se sabe qual ameaça de ‘dominação imperialista’, intelectuais dos países latino-americanos se mostram muito mais dispostos, na verdade, a assinar, de forma totalmente servil e incompreensível, manifestos em favor da continuidade da ditadura na ilha caribenha. Se pretendesse citar nomes, eu poderia alinhar alguns acadêmicos brasileiros que cometeram a indignidade de apoiar o regime cubano quando este condenou à morte alguns balseros (boat-people) que tentavam fugir da ilha, em 2003. Triste constatação, sem dúvida, que talvez merecesse adjetivos mais fortes. Esta última constatação não constitui, obviamente, uma falácia acadêmica, no sentido aqui analisado. Trata-se, mais propriamente, de uma renúncia à inteligência e à dignidade intelectual, e de um abandono de valores normalmente exibidos por membros da academia, 18

Retirei o texto transcrito em espanhol, acima, do seguinte capítulo neste livro: “Expresan su adhesión al pueblo de Cuba intelectuales argentinos”. In: Jorge Luis Borges, Textos Recobrados (1956-1986). Buenos Aires, Emecé Editores, 2007, p. 323-324.

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como os dos direitos humanos, do princípio democrático, da liberdade de opinião e de expressão e, sobretudo, da liberdade de ir e vir, valores pelos quais muitos desses acadêmicos se bateram durante a ditadura militar brasileira. O fato de não termos, em direção do povo cubano, a mesma defesa enfática de princípios e objetivos que animaram, no passado, a comunidade acadêmica brasileira, só pode revelar uma deterioração tremenda de seu senso moral ou mesmo da simples coerência com valores filosóficos que deveriam ser universais. Mas, parece que não... Brasília, 1o. de março de 2009

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7. Os mitos em torno do movimento militar de 1964

Ossificação ideológica e revisionismo histórico: interpretações abertas Quase duzentos anos depois da Revolução Francesa, escolas opostas de pensamento histórico continuavam a se digladiar em torno não apenas do espólio da Revolução, mas sobretudo de seu significado político e social. Os historiadores ‘jacobinos’ – dos quais o mais famoso representante na academia francesa foi certamente Albert Soboul – eram os herdeiros de uma longa tradição que colocava a burguesia no centro dos acontecimentos, escola historiográfica que remonta ainda à primeira metade século 19. Dela fizeram parte ilustres representantes da própria burguesia, como Guizot e Mignet, ou mesmo um aristocrata como Thiers, sem esquecer o ‘historiador do povo’ Michelet ou, ainda, o revolucionário Louis Blanc, que se aproxima da, e talvez inaugure a, interpretação marxista (ou seja classista) do processo revolucionário. Não é preciso retomar aqui os diversos textos marxianos ou marxistas que colocam o Terceiro Estado no centro dos eventos, alterando radicalmente a escrita da história, que passa, assim, da ação por vezes irrefletida dos homens para o movimento inelutável dos grupos políticos e das classes sociais.19 A querela contemporânea sobre a natureza da Revolução francesa começou com uma conferência pronunciada em 1954, pelo historiador britânico Alfred Cobban, sob o título “The Myth of the French Revolution”, cujos argumentos serão mais tarde retomados em seu livro: The Social Interpretation of the French Revolution (Cambridge: Cambridge University Press, 1964). A confrontação dos historiadores revisionistas da tradição empirista da academia anglo-saxã com as teses rigorosamente marxistas do francês Albert Soboul durou pelo menos duas décadas, até que vários outros historiadores, desta vez franceses, desmantelam o que restava de caricatural na versão simplificada marxista da ‘luta de classes’. Destacou-se no combate ao “catéchisme révolutionnaire” de Albert Soboul o historiador de inspsiração tocquevilleana François Furet, em especial em seu livro Penser la Révolution française (Paris: Gallimard, 1978). 19

As principais etapas da historiografia revolucionária podem ser conferidas na obra clássica de Georges Lefebvre, La Naissance de l’Historiographie Moderne (Paris: Flammarion, 1971). A visão marxista tradicional está em Albert Soboul, Histoire de la Révolution française (Paris: Les Editions Sociales, 1962).

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Qualquer que seja o rigor metodológico dos novos historiadores – franceses e estrangeiros – na reavaliação do processo revolucionário francês, a visão clássica, isto é, classista (e, portanto, marxista) desse fenômeno fundador da era contemporânea ainda encontra largo curso nos compêndios de história, que tendem a prolongar os mitos que foram se forjando ao longo dos séculos 19 e 20 em torno da burguesia revolucionária. Ou seja, a despeito de estar fundamentalmente equivocada quanto aos atores sociais e suas motivações políticas e de continuar ideologicamente enviesada na interpretação geral do processo, a versão classista, ou marxista, da Revolução francesa continuou impregnando as mentalidades e determinando a reflexão histórica dos contemporâneos. Esta parece ser uma fatalidade que atinge todos os movimentos e processos extremamente radicais, aqueles que cindem uma sociedade ao meio, dividem famílias e opõem escolas rivais de pensamento, consolidando uma visão ossificada do processo histórico, que pouco a ver tem com a realidade dos movimentos sociais e políticos efetivamente transcorridos. Lentamente a sociedade e seus intelectuais caminham para algum tipo de interpretação que incorpora as diferentes vertentes explicativas e retira o conteúdo passional, quando não irracional, dos julgamentos a quente feitos pelos contemporâneos e imediatos sucessores. Mas, trata-se de um processo muito lento, como pode testemunhar a historiografia ainda cindida em torno da Revolução francesa. O maniqueísmo em torno do golpe de 1964: triunfo de uma escola A mesma ‘fatalidade histórica’ parece ocorrer em relação ao movimento políticomilitar de março-abril de 1964 que derrocou o governo de João Goulart e inaugurou o regime dos generais-presidentes; com uma diferença essencial, porém: até aqui, a historiografia é predominantemente ‘jacobina’, para não dizer claramente marxista. Refiro-me, obviamente, aos livros didáticos, posto que obras especializadas respeitam a complexidade do processo de 1961-64 e levam em conta as divisões existentes na classe política e na própria sociedade brasileira. São os primeiros, contudo, que moldam as ‘explicações’ em torno da crise política que agitou quase o inteiro período do governo Goulart e seu desdobramento militar sob a forma de um golpe apoiado por parte substancial da opinião pública naquela conjuntura. A visão consagrada nesses livros didáticos e paradidáticos é, contudo, a de um vigoroso movimento de massas apoiando um governo comprometido com as chamadas ‘reformas de base’ – agrária, tributária, eleitoral, universitária, habitacional –, lutando para

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concretizar as aspirações mais sentidas do povo brasileiro e tendo de enfrentar uma coligação agressiva de latifundiários, industriais, donos da ‘grande imprensa’ e seus aliados imperialistas, representados pelo governo dos EUA e suas agências operacionais (CIA, adidos militares etc.). Da mesma forma, os grupos políticos e as personalidades de oposição que lideraram a resistência armada contra o regime militar são automaticamente identificados a defensores da liberdade e da democracia, ainda que poucos deles tenham deixado evidências materiais dessa luta democrática contra o ‘regime ditatorial’. Pouco se fala sobre o projeto político real da maior parte dos opositores do regime militar e da ‘dominação imperialista’, que era o da instauração de uma ‘democracia popular’ muito alinhada com os países do socialismo real e, portanto, uma economia totalmente enquadrada nos cânones do estatismo exacerbado e talvez empenhada na contenção da economia privada. Não há, tampouco, nenhuma visão critica sobre o desastre econômico, político e moral – com o imenso custo humano – desses regimes, que, ainda hoje, recebem, vergonhosamente, uma avaliação positiva nesse tipo de subliteratura. Quase meio século depois do movimento político-militar de 1964, são poucos os exemplos de obras não passionais, ou relativamente isentas, sobre as circunstâncias imediatas, as causas profundas e a complexidade intrínseca desse processo que marcou profundamente a sociedade brasileira – e a classe acadêmica, obviamente – durante todo o seu decorrer e em todo o período subseqüente, até os dias atuais. Mesmo uma obra recente – como a de Adriana Lopez e Carlos Guilherme Mota, História do Brasil: Uma Interpretação (São Paulo: SENAC-SP, 2008) –, que poderia ter dado o início à tarefa de ‘despassionalização” ou ‘desideologização’ da República civil-militar de 1964-1985, sucumbe a conceitos típicos da tradição ‘jacobina’ como os de autocracia burguesa, ou de contra-revolução preventiva, para caracterizar um movimento civil-militar que é visto unicamente no contexto da Guerra Fria. De fato, como expressamente afirmado nessa obra, “o movimento colocava o país nos quadros da dominação americana” (p. 799), retomando a interpretação maniqueísta do golpe. Um livro que tentava um interpretação mais ou menos isenta do processo de lutas políticas que levaram ao desfecho de 1964, o de Thomas Skidmore sobre a história política brasileira de Getúlio a Castelo Branco, nunca foi, na verdade, bem aceito pelos acadêmicos brasileiros, a despeito de se ter convertido numa espécie de referência geral para o estudos dessas décadas da Era Vargas (talvez ainda não definitivamente encerrada, pelos seus

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prolongamentos sindicais e trabalhistas, e também pela visão do Estado como o demiurgo do desenvolvimento nacional). Atente-se que seu titulo original – Politics in Brazil, 1930-1964: An Experiment in Democracy – era razoavelmente pessimista sobre as chances de se ter no Brasil um sistema político estável e passavelmente democrático, considerando o autor que apenas vivíamos entre impulsos democráticos e crises recorrentes num longo continuum autoritário, que é inaugurado pelas intervenções militares desde o início da República. Atente-se igualmente que, ao mesmo tempo em que os brasilianistas americanos estavam elaborando uma versão menos passional da história política brasileira, também começavam a ser publicados os primeiros livros da série histórica de Leôncio Basbaum, História Sincera da República (em quatro volumes sucessivos), situado possivelmente nas antípodas da interpretação relativamente pasteurizada de Tom Skidmore. Essa produção acadêmica por um dos mais conhecidos militantes do movimento comunista brasileiro pode ser legitimamente considerada como o equivalente, no Brasil, da historiografia jacobina francesa, com todos os maniqueísmos e simplificações a que esse tipo de elaboração ‘histórica’ tem direito: na verdade, se tratava mais de uma compilação da literatura secundária do que propriamente um trabalho original, conservando apenas o parentesco com a versão jacobina da história pelo uso dos conceitos e categorias marxistas e pela abordagem classista do processo histórico. Se é possível identificar um ‘Albert Soboul’ nacional, este seria representado, sem dúvida nenhuma, pelo historiador de origem militar Nelson Werneck Sodré, que encarnou como poucos a versão soviética, praticamente stalinista, da história dialética, com todas as simplificações classistas e materialistas que poderiam ser encontrados nos manuais históricos e nas enciclopédias ‘científicas’ representativas da ‘idade de ouro’ – se o termo se aplica – da dominação do pensamento marxista tradicional nas ciências humanas e sociais. Entretanto, pela riqueza de sua escritura, pela ampla cultura clássica e pelo seu conhecimento aprofundado da literatura original das eras colonial e independente, Werneck Sodré podia ser considerado um intelectual de primeira linha, quase um erudito da produção historiográfica brasileira, na comparação com a pobre produção histórica que se seguiu. As principais obras representativas da didática histórica, a partir de meados dos anos 1960, foram caracterizadas por um marxismo vulgar de baixíssima qualidade, quase nenhuma pesquisa de arquivo (e um apoio quase exclusivo em alguns grandes ‘mestres’ do pensamento nacional, independentemente da defasagem metodológica de suas obras, velha de algumas décadas), poucas bases empíricas e o pavoroso espírito maniqueísta que seria de se esperar na

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subliteratura histórica que passou a servir de referência aos estudantes brasileiros a partir do final dos anos 1960.20 Pode-se dizer que, mesmo sem levar em conta suas orientações políticas e ideológicas, essa produção é de muito baixa qualidade intrínseca, mas é ela que continua a moldar, ainda, as interpretações correntes sobre o período militar no Brasil. Mitos do governo Goulart: reformas de base e autonomia frente ao império Invariavelmente, a história vulgar sobre o golpe militar de 1964 começa com a ascensão das lutas sociais pelas reformas de base – sendo a principal delas a reforma agrária – e contra a dominação estrangeira, lutas que vão se acelerando desde o segundo governo Vargas e que culminam no governo de seu legítimo sucessor trabalhista e pobre líder político, João Goulart. As grandes questões nacionais daquela conjuntura seriam as da aliança do latifúndio com o imperialismo e a da subordinação da burguesia nacional a esse esquema espúrio e anti-nacional. Os partidos e movimentos progressistas estariam engajados no rompimento dessa aliança e na construção de uma aliança de classes que viabilizasse o desenvolvimento do Brasil em bases propriamente nacionais. O livro símbolo daquele momento, mais do que qualquer manual de história ou compêndio de política aplicada, era um panfleto nacionalista chamado “Um dia na vida de Brasilino”, que ainda hoje pode ser encontrado no site do PCdoB ou de movimentos afins, um típico exemplo de nacionalismo piegas e de anti-imperialismo infantil. Brasilino é um brasileiro médio que, desde o momento em que acorda até a hora de se deitar, consome obrigatoriamente produtos de marcas estrangeiras e, assim, está o tempo todo pagando dividendos ao capital estrangeiro, como explica repetitivamente o seu autor após cada ato de consumo do ‘herói’ da história. A moral da história, inversamente ao que se poderia esperar de uma análise estritamente econômica que revelaria as fragilidades da industria nacional, é, obviamente, a de que o Brasil está dominado pelo capital estrangeiro, e que todos os brasileiros são, como Brasilino, cúmplices da ‘exploração’ da pátria por esses interesses defraudadores da riqueza nacional. Outro mito propagado nesse tipo de subliteratura constitui, pelo lado paranóico, o da conjunção de interesses entre, de um lado, os capitalistas nacionais, os militares e políticos 20

Apontar os principais representantes desse campo minado seria fastidioso, pois são tantos os ‘produtores’ dessa história do Brasil vulgarmente jacobina que a lista ocuparia algumas páginas. Melhor concentrar-se, assim, em suas teses principais, todas de ampla aceitação nos cursos médios e de graduação universitária em instituições públicas e privadas do país.

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entreguistas, sem falar dos reacionários do campo e da cidade, em primeiro lugar os latifundiários, e, de outro lado, os representantes do capital estrangeiro e os próprios enviados do império, com destaque para os agentes da CIA e os adidos militares da Embaixada americana, que foram os que induziram seus colegas brasileiros ao golpe. Nem todos os didáticos históricos apresentam o golpe de 1964 como tendo sido teleguiado de Washington, mas todos eles, invariavelmente, referem-se ao aumento da ‘pressão externa’ e aos preparativos para a intervenção norte-americana, como elementos decisivos na decisão dos militares brasileiros que derrubaram Goulart. A subliteratura didática encontra-se, obviamente, apoiada em alguns grandes nomes da historiografia nacional. Assim, é constrangedor constatar que, mesmo um compêndio atual, por um dos principais representantes da produção histórica nacional, o já citado livro de Adriana Lopez e de Carlos Guilherme Mota, História do Brasil: Uma Interpretação, reproduz chavões que se pensava afastados das interpretações mais recentes desse processo histórico. Citando vários nomes da vida pública e acadêmica brasileira, os autores referem-se a “uma variadíssima gama de testas-de-ferro de empresas multinacionais” ou a representantes da ‘burguesia nacional’ – em especial a paulista – “com mentalidade dos tempos da pedra lascada” (p. 782). Os autores pelo menos registram o depoimento de Darcy Ribeiro que informa que “líderes das Ligas Camponesas haviam se deslocado para Goiás à procura de bases para guerrilhas, ‘com apoio do governo cubano’” (p. 783). Esse tipo de alusão ao modelo revolucionário cubano como caminho para o processo de ascensão das massas brasileiras ao poder político nacional é, contudo, raro na literatura disponível a respeito, que se contenta em reproduzir a versão sobre a oposição dos ‘reacionários’ às grandes reformas progressistas de Goulart. Quase não existem traços de uma avaliação equilibrada, ou seja razoavelmente crítica, em relação ao governo de Goulart e seus inúmeros equívocos econômicos, políticos e administrativos. Praticamente nenhum deles menciona a inflação galopante, o descontrole orçamentário, o clima político de conflitos quase diários no campo e na cidade, a perda de autoridade do governo em relação às corporações do Estado, enfim, o ambiente de desorganização progressiva da vida nacional. Tudo se resume a um complô de reacionários nacionais e aliados estrangeiros contra um governo progressista. De fato, mesmo um protagonista direto dos acontecimentos, o então chefe da Casa Civil Darcy Ribeiro, pretende, em seu livro-depoimento que:

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O importante é que o governo de Jango não caiu em razão de seus eventuais defeitos; ele foi derrubado por suas qualidades: representava uma ameaça tanto para o domínio norteamericano sobre a América Latina como para o latifúndio.21

Esse tipo de avaliação complacente, e profundamente equivocada, sobre as supostas virtudes do governo Goulart, visto como uma vítima inocente das forças conjugadas dos latifundiários, dos empresários e políticos ‘entreguistas’, dos testas-de-ferro das multinacionais e dos interesses poderosos do império, constitui a versão corrente da historiografia dita ‘progressista’, num tipo de simplismo explicativo que fica bem aquém, pela sua grosseira contradição com os fatos, das interpretações jacobinas originais, relativas à historiografia tradicional da Revolução francesa. Em versões ainda mais simplificadas e maniqueístas, ela freqüenta a maior parte da produção didática sobre a história política da transição da República de 1946 para o regime militar. Raramente esse tipo de literatura destaca, não as qualidades, mas os defeitos reais do caótico governo Goulart, sua incompetência administrativa, a ignorância econômica do presidente, seu total descaso ou desinteresse pelo equilíbrio das contas públicas, o loteamento de cargos em função de critérios puramente personalistas (não de acordo com os méritos individuais dos candidatos), a tolerância com a inflação e a desordem nas agências do Estado, a indiferença em relação às sucessivas quebras da hierarquia e da disciplina – princípios sagrados – nas Forças Armadas, bem como, nos últimos meses, o incitamento à divisão política e social no país, com as promessas de realização das ‘reformas de base’, ainda que contra os preceitos constitucionais e os processos legislativos normais. Poucos desses autores lembram que a inflação anualizada para 1964 aproximava-se perigosamente de 100% – num contexto de ausência completa de mecanismos corretores ou de indexação de valores e contratos, recorde-se, o que fez cair a níveis irrisórios os volumes de poupança privada; em menor número, ainda, são os historiadores complacentes com o governo Goulart que registram a queda nas taxas de crescimento e de investimento total na economia, com a completa retração do capital estrangeiro e mesmo a fuga de capitais nacionais; o desestímulo à produção agrícola ou manufatureira nacional – em virtude dos controles de preços que começavam a ficar extensivos e arbitrários; a paralisia nos mercados imobiliários, tanto de construção quanto de aluguéis – em vista das ameaças de intervenção nos contratos e nas 21

Cf. Darcy Ribeiro, Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu (Rio de Janeiro: Guanabara, 1985), verbete 1811.

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condições dos negócios habitacionais; a deterioração no balanço de pagamentos, com redução de exportações, ausência de empréstimos internacionais e a situação de virtual insolvência nas obrigações externas; enfim, um conjunto de indicadores econômicos, políticos e sociais não apenas negativos no curto prazo, mas potencialmente indutores de instabilidade social e política e de grave crise econômica, que, aliás, já estava em curso quando os militares decidiram se mobilizar. Desmontando os mitos: instabilidade política e incapacidade de reformar As ditas ‘reformas progressistas’ do Governo Goulart foram mais anunciadas – e mais propriamente agitadas, notadamente no famoso comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964 – do que propriamente implementadas, seja por manifesta incompetência do presidente e seu governo, seja pela falta de base congressual, e de apoios sociais mais explícitos, o que as condenou a permanecer o que sempre foram: meros slogans de agitação política para tentar, desesperadamente, encontrar algum suporte na sociedade, à falta de consenso nas bases políticas tradicionais. O que é um fato, e que a historiografia complacente não aborda com clareza, é que o governo Goulart, a exemplo de tantos congêneres populistas na região e alhures, dividiu a sociedade ao meio e foi incapaz de traçar um plano claro, implementável, de reformas políticas, sociais e econômicas dentro de uma perspectiva realista de um país capitalista da periferia, introduzindo uma agenda semi-socialista que muito fez, justamente, para dividir a sociedade. Como sempre ocorre nos momentos de dificuldades econômicas, líderes políticos populistas buscam um bode expiatório para os problemas, atribuindo sua origem a fatores externos ou aos ‘inimigos do povo’, como fez Goulart nesse discurso da Central do Brasil. Indiferente às verdadeiras causas do desabastecimento alimentar e da alta de preços, ou preferindo ignorar as responsabilidades do próprio governo para a construção de um cenário que anunciava contenção dos ganhos dos ricos e limitação da remessa de lucros por parte dos investidores estrangeiros, ele prometia ser rigoroso contra os especuladores e sonegadores: “Ação repressiva, povo carioca, é a que o governo está praticando e vai ampliá-la cada vez mais e mais implacavelmente, assim na Guanabara como em outros estados contra aqueles que especulam com as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo e que sonegam gêneros alimentícios e jogam com seus preços”.

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A historiografia complacente é totalmente acrítica em relação aos fracassos do governo Goulart, notadamente em estabilizar a economia, controlar a inflação e retomar as altas taxas de crescimento do governo Kubitschek, que ficou na história, justamente, por combinar desenvolvimento econômico com estabilidade política.22 Duas das personalidades mais saudadas do governo Goulart, San Tiago Dantas e Celso Furtado, foram especialmente infelizes na tentativa de implementar programas de estabilização monetária, de reformas essenciais e de crescimento econômico: a ambos faltou o apoio do presidente na implementação de medidas que eram absolutamente necessárias para desviar o país da rota da hiper-inflação, do estrangulamento externo, do descontrole orçamentário e do caos social. O primeiro, bastante esquecido atualmente, lutou bravamente no governo e no Congresso para promover medidas realistas de reformas macroeconômicas e setoriais, que ele identificava com uma agenda para a ‘esquerda positiva’, mas se viu confrontado com o desinteresse do presidente e a exacerbação de radicalismos que levaram o Brasil ao desfecho inglório de 31 de março de 1964. Celso Furtado, por sua vez, é ainda hoje saudado como o grande economista nacionalista e desenvolvimentista, esquecendo-se de destacar, seus defensores, sua postura essencialmente complacente com a erosão inflacionária – que ele via como um mal menor, em função do objetivo maior do crescimento, do emprego e da renda dos trabalhadores – o que pode estar na origem da tolerância histórica no Brasil com altas taxas de inflação, uma das causas principais, justamente, da concentração de renda e da manutenção de vastos estratos sociais na pobreza crônica. Ele é especialmente lembrado pelo seu Plano Trienal, aliás sabotado pelo próprio presidente, que não pretendia fazer um esforço mínimo que fosse pelos objetivos modestamente estabilizadores desse plano frustrado a poucos meses de seu lançamento. Cabe, talvez, reproduzir a síntese a respeito desse plano econômico vitimado pela política viciada do governo Goulart, feita por este mesmo autor, em trabalho analítico publicado em obra coletiva: Em contraste com o nítido sucesso do Plano de Metas, o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, elaborado em apenas três meses por uma equipe liderada por Celso Furtado no final de 1962, para já subsidiar a ação 22

A referência básica a esse respeito pertence a uma das autores mais críticas do regime militar: Maria Victoria de Mesquita Benevides, O Governo Kubitschek: Desenvolvimento econômico e estabilidade política (1956-1961) (São Paulo: Paz e Terra, diversas edições, a maior parte durante o regime militar).

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econômica do governo João Goulart no seu período presidencialista (em princípio de 1963 a 1965), sofreu o impacto da conjuntura turbulenta em que o Brasil viveu então, tanto no plano econômico como, em especial, no âmbito político. O processo inflacionário e as crises políticas com que se defrontou o governo Jango, combinaramse para frustrar os objetivos desenvolvimentistas do plano, que buscava retomar o ritmo de crescimento do PIB da fase anterior (em torno de 7% ao ano), ao mesmo tempo em que pretendia, pela primeira vez, contemplar alguns objetivos distributivistas. Estavam previstos, em seu âmbito, a realização das chamadas “reformas de base” (administrativa, bancária, fiscal e agrária), ademais do reescalonamento da dívida externa.23 Era um plano de transição econômica, não de planejamento macro-setorial, e sua interrupção, antes mesmo da derrocada do governo Goulart, torna difícil uma avaliação ponderada sobre seus méritos e defeitos intrínsecos (como o problema das economias de escala no caso da indústria de bens de capital). Ele partia, em todo caso, do modelo de “substituição de importações” e da noção de que os “desequilíbrios estruturais” da economia brasileira poderiam justificar uma elevação persistente no nível de preços, de conformidade com alguns dos pressupostos da teoria estruturalista que disputava, então, a primazia conceitual e política com a teoria monetarista, que era aquela preconizada pelo FMI e seus aliados nacionais (já objeto de notória controvérsia no anterior governo JK). O processo inflacionário era, em parte, atribuído a “causas estruturais” do setor externo (esquecendo o efeito do ágio cambial sobre os preços internos) e, em parte, ao déficit do Tesouro como decorrência dos altos investimentos realizados (mas a unificação cambial também privou o Estado de uma fonte de receita substancial, sem considerar a questão salarial, tratada de modo pouco responsável). Em qualquer hipótese, os objetivos contraditórios do Plano Trienal (reforma fiscal para elevação das receitas tributárias, mas inibição do investimento privado; redução do dispêndio público via diminuição dos subsídios ao trigo e ao petróleo, mas política de recuperação salarial; captação de recursos no mercado de capitais, sem regulação adequada e sem remuneração compensatória da inflação; mobilização de recursos externos num ambiente de crescente nacionalismo e hostilidade ao capital estrangeiro), ademais da aceleração do processo inflacionário (73% em 1963, contra 25% previstos no Plano), condenaram-no ao fracasso antes mesmo que o governo Goulart fosse derrubado numa conspiração militar. A economia cresceu apenas 0,6% em 1963, como reflexo do baixo nível de investimentos realizado no período: na 23

Cf. Roberto B. M. Macedo, “Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-1965)”. In: Betty Mindlin Lafer (org.). Planejamento no Brasil (3ª ed.; São Paulo: Perspectiva, 1975), p. 5168.

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verdade, os investimentos privados cresceram 14% nesse ano, mas eles tinham caído 10% no ano anterior, contra um decréscimo de 18% nos investimentos públicos em 1963. Em síntese, o plano falhou em seu duplo objetivo de vencer a inflação e promover o desenvolvimento, mas as causas se situam acima e além de sua modesta capacidade em ordenar a atuação do Estado num contexto político que tornava inócua a própria noção de ação governamental.24 Desmontando os mitos: uma análise das ‘reformas progressistas’ Uma exposição crítica das famosas ‘reformas de base’ do governo João Goulart – o que é raramente feito, se jamais alguém o fez, na subliteratura dita progressista que se caracteriza pelo maniqueísmo político em torno dessa época – revelaria, aliás, que elas eram nada mais do que uma assemblagem oportunista de diversos objetivos gerais, sem qualquer detalhamento específico e sem qualquer iniciativa concreta no plano parlamentar. De fato, poucas foram as medidas encaminhadas sob a forma de projetos de lei ao Congresso, para sua tramitação legislativa normal, mas muitos foram os discursos e anúncios feitos geralmente de forma bombástica para encantar platéias de apoiadores ou de já convencidos de sua ‘necessidade’. Algumas, aliás, foram anunciadas às pressas, como no famoso discurso da Central do Brasil, já numa fase de desespero político pela degringolada visível do governo junto aos congressistas e militares, como, por exemplo, as desapropriações de terras que ladeavam rodovias e ferrovias nacionais para fins de reforma agrária – ‘contra a Constituição’, se fosse preciso, como se jactou o presidente – e a estatização de refinarias de petróleo, numa conjuntura em que a Petrobras se encontrava periclitante, depois de mais de dez presidentes em menos de nove anos de existência.25 Quais eram, finalmente, as famosas ‘reformas de base’ do governo Goulart? Elas são sumariamente apresentadas a seguir, no ordenamento feito no livro já referido de LopezMota, tal como originalmente apresentadas no livro-depoimento de Darcy Ribeiro, Aos

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Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Planejamento Econômico no Brasil: uma visão de longo prazo, 1934-2006”. In: João Paulo Peixoto (org.): Governando o Governo: modernização da administração pública no Brasil (São Paulo: Editora Atlas, 2008), p. 71-106. 25 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Monteiro Lobato e a emergência da política do petróleo no Brasil” In: Omar L. de Barros Filho e Sylvia Bojunga (orgs.), Potência Brasil: Gás natural, energia limpa para um futuro sustentável (Porto Alegre: Laser Press, 2008), p. 12-33; disponível: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1925MonteiroLobatoPetroleoBr.pdf.

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Trancos e Barrancos.26 Após o enunciado de cada uma delas, este comentarista complementa a informação sintética com alguma avaliação crítica que se pode fazer a respeito de cada uma delas, talvez com o benefício do chamado hindsight – ou o viés da visão retrospectiva – mas em todo caso de maneira o mais possível objetiva e imparcial. 1) “Reforma Urbana, com vistas a definir uma Lei do Inquilinato que melhorasse as condições de vida da classe média não-proprietária e dos trabalhadores;” PRA: Trata-se de velha tentação de políticos populistas, como ainda tenta fazer, neste mesmo momento, o governo Chávez, na Venezuela: a fixação, por critérios eminentemente políticos, de tetos máximos de reajuste dos aluguéis, com eventual determinação igualmente política de um teto máximo para a aferição dos valores de mercado – para construção ou aluguel – do metro quadrado a ser construído ou alugado; eventualmente, as medidas são completadas por programas de construção de habitações populares subsidiadas – o que cria um problema para as contas públicas, quando não uma bolha imobiliária que terá graves repercussões financeiras, creditícias e fiscais, mais adiante. O resultado prático da maior parte dessas iniciativas é uma paralisação da construção civil para fins imobiliários, uma retração do mercado de aluguéis, o desenvolvimento de um mercado negro de contratos fraudados nesse setor e uma carência habitacional ainda maior do que a existente no período anterior ao anúncio ou a implementação dessas medidas. A iniciativa de Goulart, se jamais ela fosse implementada, correria esses mesmos riscos, como aliás provado pelos equívocos posteriores de fixação de tetos máximos para a contratação de aluguéis privados, uma indesejada intromissão do governo no patrimônio de particulares (para todos os efeitos equiparados a ‘rentistas desalmados’, quando muitos eram ou são, na verdade, cidadãos de classe média tentando complementar pensões ou aposentadorias oficiais notoriamente insuficientes). Suas promessas eram muito simples, na verdade: “Dentro de poucas horas, outro decreto será dado ao conhecimento da Nação. É o que vai regulamentar o preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupados, preços que chegam a afrontar o povo e o Brasil, oferecidos até mediante o pagamento em dólares. Apartamento no Brasil só pode e só deve ser alugado em cruzeiros, que é dinheiro do povo e a moeda deste país. Estejam tranqüilos que dentro em breve esse decreto será uma realidade.” Em outras palavras, ele prometia tabelar os aluguéis, o que seria o caminho mais curto para a subtração do mercado 26

Cf. Darcy Ribeiro, Aos Trancos e Barrancos, op. cit., “1963, as reformas de Jango, verbete 1725”, apud Lopez-Mota, História do Brasil, op. cit., p. 779.

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habitacional de milhares de imóveis potencialmente utilizáveis, uma receita segura para um déficit ainda maior nessa área. Esta medida foi já adotada na Venezuela pelo presidente Hugo Chávez, com as conseqüências desastrosas que se conhecem... 2) “Reforma Agrária, facilitando aos trabalhadores rurais acesso à terra, atacando os latifúndios improdutivos ao instituir o uso lícito da terra;” PRA: De fato, o tema da reforma agrária é um dos mais recorrentes na história social e econômica da América Latina desde tempos imemoriais, praticamente desde suas etapas formadoras enquanto terra de ocupação pela via preferencial do latifúndio e da grande exploração comercial de exportação. As elites agrárias dos países da região, independentemente de sua composição de origem e de seu relacionamento com os demais estratos dirigentes, sempre conseguiram monopolizar as terras e as políticas públicas em seu favor, distorcendo mecanismos tributários e as instituições de registro patrimonial, desafiando inclusive a lógica econômica, que recomendaria o desenvolvimento de um amplo mercado interno de produção e consumo baseado na repartição patrimonial desse fator essencial de riqueza e poder, que é a terra. Como a ocupação do território não se deu pela via preferencial da colonização familiar, como na America do Norte, as distorções permaneceram e foram se agravando ao longo do tempo, gerando imensas camadas de camponeses pobres, absolutamente marginais do ponto de vista estrutural e social, ou de simples trabalhadores rurais, sem condições políticas ou econômicas de aceder à posse da terra. A reivindicação fazia, portanto, todo o sentido, num contexto de pré-modernização das estruturas produtivas no campo, desde que se pudesse assegurar efetivamente a existência de uma classe ou amplos estratos sociais correspondendo à definição clássica do que seja a categoria camponesa, o que nem sempre se manifestou de maneira concreta. Como já escreveu um historiador brasileiro de tradição marxista, Caio Prado Jr. – que, aliás, recomendava uma reforma agrária de cunho essencialmente capitalista, e nem sempre pela simples repartição de terras –, o Brasil careceu, desde os tempos coloniais, de uma verdadeira categoria assimilável, em linha de princípio, aos camponeses no sentido clássico da palavra, uma vez que os ‘camponeses’ livres ou os trabalhadores rurais não pertencentes a um latifundiário, ou não assalariados, sempre foram, em sua opinião, marginais, estrutural e historicamente falando. Não lhe parecia, assim, que uma reforma agrária ao estilo mexicano ou russo poderia ser aplicada no Brasil de modo economicamente racional e socialmente

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sustentável. Caio Prado dizia que uma solução capitalista – via melhoria das condições de trabalho sob um regime salarial – poderia cumprir as funções econômicas essenciais para a constituição desse mercado interno capitalista que não tinha sido possível constituir no tempo histórico de formação da sociedade brasileira. Em outros termos, se a reforma agrária tinha sido uma necessidade em outros tempos, talvez a sua oportunidade já tivesse passado e caberia examinar as outras possibilidades de modernização econômica e social no campo, compatíveis com uma moderna economia capitalista, em vista da inexistência já referida da classe camponesa tradicional. Assim, se havia algum sentido de ‘justiça social’ na distribuição de terras, esse tipo de medida poderia não revelar-se funcionalmente eficiente nas condições concretas da economia brasileira da segunda metade do século 20. O que existia, sim, era uma demanda por trabalho e renda no campo, sem que os demandantes tivessem, contudo, condições técnicas e competência profissional para se estabelecerem como ‘camponeses capitalistas’ de modo pleno, sem requerer assistência contínua e apoio financeiro do Estado, o que não necessariamente os transformaria em camponeses bem sucedidos, mas provavelmente em eternos dependentes do apoio estatal, na falta de capacitação especializada nessa área. Em paralelo, havia, claro, uma enorme demanda política por ‘reforma agrária’, mas isso correspondia mais aos movimentos políticos organizados em busca de uma agenda qualquer de ‘transformação social’ do que propriamente a uma necessidade estrutural daqueles mesmos que seriam objeto dessa ‘reforma agrária’. Ou seja, érea uma boa agenda eleitoral, e de agitação ideológica, oportunamente explorada pelos movimentos em questão, e pelos demagogos de plantão. João Goulart, em seu famoso discurso da Central do Brasil falou da ‘reforma agrária’ como um espécie de “abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria”, o que era absolutamente verdade, mas sem que isso pudesse implicar em que essas dezenas de milhões de brasileiros se convertessem, da noite para o dia, em camponeses prósperos ou minimamente independentes da ajuda estatal. O que ele pretendia, através de um decreto da Superintendência da Reforma Agrária, era expropriar terras às margens das rodovias e ferrovias para entregá-las a ‘camponeses’ pobres, num gesto cheio de demagogia e inconseqüências: “O que se pretende com o decreto que considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas

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por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável.” O vezo ideológico, mais bem demagógico, de sua proposta transparecia na imediata seqüência de seu discurso: “Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, que se apoderaram das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70 bilhões de dinheiro do povo, não deve beneficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas sim o povo.” Ele prometia, então, que em 60 dias, com a ajuda das Forças Armadas, começaria o trabalho de demarcação e atribuição das terras assim designadas para a sua ‘reforma agrária’ relâmpago. Mais adiante ele reiterava suas promessas: “A reforma agrária deve ser iniciada nas terras mais valorizadas e ao lado dos grandes centros de consumo, com transporte fácil para o seu escoamento.” Ademais dos imensos problemas logísticos que tal medida em favor do ‘povo’ acarretaria, em vista da completa incapacidade da Supra em administrar um processo dessa magnitude, havia o obstáculo do impedimento constitucional da expropriação de terras sem prévia indenização em dinheiro, tal como estabelecido pelos constituintes de 1946. Não é possível saber que destino e que trajetória teriam tido a expropriação e a distribuição de terras ‘valorizadas’, segundo o programa de ‘reforma agrária’ de Goulart, posto que ela sequer chegou a ser implementada. Provavelmente ela teria conduzido a difíceis batalhas legais no Supremo, além de alguma exacerbação da violência no próprio campo, a supor que o Exército teria efetivamente servido de guarda pretoriana da Supra na sua tentativa de acelerar a redenção do ‘povo rural’ por meio de iniciativas de claro conteúdo confrontacionista. Em todo caso, o governo militar do general-presidente Humberto de Alencar Castello Branco adotou, como uma de suas primeiras medidas de reforma estrutural, o Estatuto da Terra, que pretendia eliminar o latifúndio pela via da imposição fiscal e da sua inviabilização patrimonial mediante condicionalidades produtivas, ou seja, uma típica reforma capitalista. Quaisquer que tenham sido os resultados desse instrumento de reestruturação agrária, o tema não deixou de ter sua forte conotação política e ideológica durante todo esse tempo, até os dias que correm, quando um partido neo-bolchevique ainda diz pretender realizar a ‘reforma agrária’ com os mesmos métodos e objetivos já inoperantes e economicamente irrelevantes de meio século atrás.

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3) “Reforma Político-Eleitoral, instituindo o voto aos analfabetos;” PRA: Medida justa, em sua franquia universal, ainda que ela viesse acoplada de uma exigência que ainda hoje desperta um sentimento de caução: “que a todos seja facultado participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado”. De fato, Goulart pretendia que “Nesta reforma, pugnamos pelo princípio democrático, princípio democrático fundamental, de que todo alistável deve ser também elegível.” O princípio é meritório, mas contar com prefeitos ou vereadores analfabetos pode não ser o melhor caminho para o aperfeiçoamento da máquina administrativa e seu funcionamento adequado.

4) “Reforma Educacional, para ampliar a rede pública, assegurando a todos o direito à Educação com qualidade, dentro dos princípios do Estado laico;” PRA: Os princípios e as intenções sempre foram vagos, e o governo Goulart nunca explicitou como ele pretendia assegurar a todos o direito à educação de qualidade. Supostamente, isso se faria pela ampliação das universidades públicas e pela democratização do acesso, o que permaneceu indefinido até que o Ministério da Educação da ditadura militar decidiu instituir o vestibular como método universal, e meritório em seu recrutamento impessoal, de seleção na entrada, cabendo depois resolver o problema das vagas e da qualidade do ensino. O que seria possível prever, mesmo na continuidade do regime democrático no Brasil, seria a grande expansão do ensino universitário, demanda universal da classe média e dos estratos urbanos da classe média baixa. O que os militares fizeram, de fato, foram enormes investimentos na pós-graduação, ao lado de um relativo descaso com os ciclos inicial e secundário da educação, com conseqüências catastróficas nas décadas que se seguiram (mas isso não era fácil de prever à época, dada a relativa qualidade do ensino público dos níveis fundamental e médio. O fato é que, independentemente dos regimes militares e civis, e de sua orientação mais estatizante ou liberal, a educação nos dois primeiros níveis continuou a se deteriorar continuamente no Brasil, ao passo que a democratização do acesso ao ensino superior, assegurado pela expansão sobretudo privada da oferta de vagas, foi acompanhada de certa mediocrização dos quadros docente e discente, o que é de certa forma natural e esperado, num movimento desse tipo. A melhoria da qualidade da produção científica não encontrou correspondência na transposição desse conhecimento para o aparelho produtivo, e o Brasil

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segue dependente de tecnologia e know-how estrangeiros. Em qualquer hipótese, seria altamente aleatório e improvável que um governo Goulart levado a seu termo tivesse alterado significativamente a qualidade do ensino no Brasil, em qualquer nível. O mais provável é que ele teria contribuído com sua deterioração mais rápida, em vista do exacerbado corporativismo sindical já presente e de suas conhecidas orientações demagógicas e populistas incompatíveis com um ensino adaptado aos requerimentos de uma sociedade de mercado competitiva como deveria ser o Brasil. Mencione-se a propósito, que com todo o autoritarismo do regime militar, este esteve mais próximo de cumprir certas exigências de uma moderna economia competitiva – sobretudo ao estimular tremendamente a pós-graduação – do que todo o besteirol à la Bourdieu ou ao estilo ingênuo de um Paulo Freire, disseminado por pedagogos incompetentes como costumam existir nesses regimes fortemente ideologizados e sindicalizados. O desastre educacional teria sido bem maior e teria vindo provavelmente mais rápido. O problema básico da educação no Brasil é a afirmação do mérito, algo a que se opõem virulentamente sindicalistas oportunistas. 5) “Reforma Administrativa, para modernizar o corpo funcional, racionalizando a máquina do Estado e combatendo a corrupção;” PRA: Nada mais meritório e nada mais necessário, aliás ainda hoje. Como para o problema educacional acima mencionado, o mais provável teria sido uma deterioração do serviço público, em função do corporativismo exacerbado que já vigorava nos tempos de Kubitschek e caminhou para seu ponto máximo no governo Goulart. A orientação tecnocrática do regime militar, aliás condizente com a própria natureza das Forças Armadas, levou a uma modernização sensível do aparelho de Estado, ainda que pela via autoritária, e com imensas restrições ideológicas, típicas da mentalidade estreitamente anti-comunista então vigente. Os militares, na verdade, mesmo tendo modernizado o Estado, ampliaram enormemente o seu escopo e abrangência substantiva, penetrando nas mais diversas áreas de natureza diretamente produtiva. O resultado foi uma elevação da carga fiscal de menos de 13% para mais de 24%, servindo em parte para investimentos produtivos, mas em grande medida também para a manutenção do próprio Estado. A sociedade brasileira, já premida por uma carga tributária próxima da dos países ricos – com uma renda per capita seis vezes menor –, paga o preço dessa expansão desmesurada do Estado, que, contrariamente ao que se

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pretendia, correspondeu também a um crescimento da corrupção (absolutamente natural, posto que o Estado manipula um volume maior de recursos, com muito mais funcionários e canais de intermediação, inclusive de controle, que podem também servir a objetivos de fraude e roubo deliberado). 6) “Reforma Bancária, para ampliar o crédito e financiamento às forças produtivas, abaixando e controlando os juros;” PRA: O Brasil nunca tinha tido, de fato, um mercado de créditos efetivo e um sistema bancário digno desse nome; desde o Império, a carência de capitais foi uma constante em nossa história. Era, portanto, mais que justificado que o governo Goulart pretendesse fazer uma reforma bancária para ampliar o crédito e financiar a produção, mas o sentido adotado para isso era deliberadamente enviesado para abaixar os juros, mantendo-os controlados por mera volição administrativa. O Brasil, na verdade, precisava mais do que uma reforma do sistema bancário: ele tinha de passar por uma reforma econômica radical, que deveria começar por uma reforma monetária, fiscal e orçamentária, estabelecendo as bases de um sistema financeiro competitivo e aberto, com graus moderados de extração tributária e de requerimentos de financiamento por parte do Estado, o que contribuiria, justamente, para manter em níveis moderados os juros bancários. O que eleva os juros é a dívida pública e a falta de concorrência no sistema bancário, não a ganância dos banqueiros, como parecia acreditar o governo Goulart. Controle de juros, assim como controle de câmbio, gera distorções no campo econômico, além de ser inócuo, posto que um mercado paralelo – de financiamento ou cambial – se colocaria imediatamente como alternativa informal à determinação governamental. Outro não foi o resultado no mercado cambial em resposta à fixação e uma taxa oficial para o comércio de divisas, como já se sabia nos anos 1960. 7) “Reforma Tributária, para corrigir as distorções da tributação entre proprietários e assalariados;” PRA: Certamente necessária, aliás indispensável, posto que a estrutura existente em 1964, preservando imposto anacrônicos que vinham do Império ou do início da República, era altamente disfuncional do ponto de vista da produção, do consumo e da renda. Mas, essa distinção feita na proposta entre ‘proprietários’ e ‘trabalhadores’ é profundamente reveladora da visão distorcida que mantinham seus defensores, indicando um desejo pouco disfarçado de taxar os detentores de patrimônio – ou seja, o estoque de riqueza existente na economia – em

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lugar de estimular a produção, para então taxar os fluxos de riqueza criados. Não se sabe qual seria, exatamente, a proposta de reforma tributária do governo Goulart, além desses instintos predatórios ou retaliatórios contra os ‘proprietários’ e supostamente contra os ‘rentistas’ também, que seriam os banqueiros, assimilados a possíveis ‘exploradores do povo’. Ele sequer apresentou um projeto ao Congresso e era altamente duvidoso que o fizesse, e mesmo que o tivesse feito, era altamente aleatório ou improvável que tal projeto fosse aprovado no ambiente de profundo dissenso congressual vivido naqueles anos. O governo militar fez, sim, profunda reforma tributária, introduzindo, aliás, precocemente, princípios de tributação – como o do valor agregado – que seriam depois adotados em outras economias modernas. O sentido foi também concentrador e ‘extrator’, posto que o Estado passou a assumir funções econômicas crescentes, mesmo se, no meio do caminho, a carga fiscal diminuiu relativamente, substituída pelo endividamento interno e externo. A centralização tributária operada pelo regime militar foi depois parcialmente revertida na redemocratização de 1985-88, não em favor dos contribuintes – como seria legítimo esperar – mas em benefício dos Estados e municípios, os próximos responsáveis pelo desastre fiscal no Brasil dos anos 1980 e 90, até serem contidos, parcialmente, pela Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000. Atualmente, é altamente duvidoso que uma reforma tributária seja conduzida no Brasil, e se ela for feita, mais uma vez não será em benefício dos produtores e consumidores e, sim, obviamente, em favor das unidades da federação. O mais provável que ocorra é uma ‘progressividade extratora’ pelos anos à frente, ou seja, um aumento contínuo, ainda que moderado, da carga fiscal. Desde a Constituição, ela já aumentou dez pontos percentuais do PIB, equiparando-se atualmente ao nível médio da OCDE, em torno de 38% do PIB, dez pontos acima da média dos países em desenvolvimento e outros dez pontos acima dos países de maior dinamismo e crescimento econômico. Como os órgãos de ‘repressão’ tributária são altamente eficientes no Brasil, o mais provável é que a esquizofrenia fiscal tenha ainda um grande espaço para se exercer no futuro imediato e de longo prazo. Na verdade, o Brasil apresenta todos os sintomas de uma bomba-relógio fiscal em formação – excesso de gastos inevitáveis, e crescentes, e baixo crescimento econômico – o que deve manifestar com maior intensidade a partir de meados da próxima década. 8) “Reforma Militar, para permitir a participação dos suboficiais na política;”

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PRA: Ponto altamente demagógico, sem dúvida, que não constitui propriamente uma reforma militar, mas um simples expediente eleitoreiro, apelando para uma categoria corporativa suscetível de apoiar políticos populistas. Nas condições do Brasil do início dos anos 1960, e do ambiente militar, seria suscetível de agravar ainda mais o ambiente já efervescente nas casernas, desde o retorno dos trabalhistas ao poder. 9) “Reforma do Capital Estrangeiro, para mudar as relações e contratos com empresas multinacionais, regulados pela Lei de Remessa de Lucros;”

PRA: Não se tem idéia de qual reforma se estava falando, mas a intenção seria limitar a remessa de lucros e controlar ainda mais os contratos e as atividades das empresas estrangeiras. Uma lei específica que regulava a atração e o tratamento do capital estrangeiro no Brasil tinha sido aprovada em 1962, mas jamais foi promulgada pelo presidente Goulart, tendo isso sido feito pelo Congresso dois anos depois, para ser depois modificada no início do governo militar. O Brasil, na verdade, sempre teve uma atitude algo esquizofrênica nessa área: ele gosta do capital estrangeiro – posto que necessário ao financiamento do Estado ou das obras de infra-estrutura – mas detesta o capitalista estrangeiro e sua propensão dominadora sobre setores inteiros da economia (automobilístico, farmacêutico, comunicações, por exemplo). Essa atitude ainda não mudou fundamentalmente, e continuamos dependentes do capital estrangeiro para o financiamento de muitas obras de infra-estrutura e do próprio Estado, assim como continuamos a atrair o capital estrangeiro pelas dimensões do nosso mercado interno, a despeito do ambiente precário de negócios e da alta tributação existente; a lei de 1964 não mudou, aliás, a não ser para facilitar o acesso dos brasileiros a divisas e operações cambiais. Balanço econômico do governo Goulart: uma visão pouco complacente Sem pretender criticar mais uma vez a visão pouco complacente da maior parte da literatura semi-acadêmica brasileira a respeito do governo Goulart, e deixando de lado, agora, a postura totalmente acrítica desses autores em relação às ‘chamadas reformas de base’ e às posições presumidamente ‘progressistas’ desse governo na maior parte dos temas sociais, cabe voltar, pela sua importância intrínseca em relação ao bem-estar e oportunidades de emprego e renda para a maioria da população, à administração da economia nacional nos anos Goulart. É um fato, e não uma opinião, que o ambiente macroeconômico deteriorou-se sensivelmente entre 1961 e 1964: a inflação e os desequilíbrios do setor externo, o

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estrangulamento cambial e o saldo (na verdade déficit) do balanço de pagamentos agravaramse enormemente nesses anos; a instabilidade da política econômica gerou volatilidade e incertezas, que determinaram, por sua vez, fuga de capitais e desinvestimento produtivo. A rigor, não se pode dizer que 1961 possa ser colocado sob o domínio da política econômica de Goulart, posto que ele assumiu apenas em setembro desse ano, cerceado por um regime parlamentarista do que ele se desvencilharia apenas em janeiro de 1963. Vamos, assim, considerar os anos de 1962 a 1964 como tendo sido ‘influenciados’, relativamente, pela política econômica de Goulart, sendo que os anos de 1962 e 1963 caem inteiramente sob sua responsabilidade. E quais são os números econômicos desses anos? Brasil: indicadores econômicos selecionados, 1962-1964 Variações anuais (%) 1962 1963 1964 PIB, aumento real 5,3 1,5 2,9 PIB real per capita 2,4 -1,4 0,0 Inflação 55,8 80,2 86,6 Estoque médio de M1 56,6 64,9 82,0 Produção agrícola 5,5 1,0 5,2 Produção industrial 7,8 0,2 1,3 Fonte: Carlos M. Peláez, Wilson Suzigan, História Monetária do Brasil (2a. ed.; Brasília, Editora da UnB, 1981), p. 272

À vista desses números, não se pode considerar a gestão econômica de Goulart um sucesso, muito ao contrário, talvez mesmo um desastre. As ‘reformas de base’ só ocorreriam efetivamente sob os governos militares, que alteraram radicalmente as bases e o modo de funcionamento da política econômica e o papel do Estado. A característica essencial dessa política econômica sob o regime militar foi a centralização e a estatização, algo, aliás, muito próximo da ideologia socialista defendida pelos antigos líderes populistas e que os militares recusavam absolutamente nos planos político e cultural. De fato, parece surpreendente que o regime militar tenha realizado muitos dos objetivos econômicos estatizantes que a esquerda defendia abertamente antes (e depois) do regime militar. Durante o período, a esquerda condenou as políticas de ‘arrocho’ salarial, de repressão aos movimentos sociais e de subordinação dos sindicatos de trabalhadores ao Estado, práticas que todos os regimes socialistas sempre mantiveram em todos os experimentos históricos conhecidos, em escala muito mais ampla do que qualquer ditadura capitalista ou economia de mercado. O regime militar brasileiro – é verdade que muito com

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base no endividamento interno e externo – levou o Brasil a taxas de crescimento jamais vistas, antes e depois, na economia brasileira: 10,4 em 1970, 11,3% em 1971, 11,9% em 1972 e, no auge de um ciclo que não mais se repetiria, 14% em 1974. No plano mundial, apenas a China, bem mais tarde, reproduziria taxas sustentadas nesses picos durante muito tempo. Cabe reconhecer, também, que a inflação, alimentada pela inércia da correção monetária e pelo frenesi expansionista dos gastos públicos – boa parte, é verdade, para investimento produtivo –, manteve-se consistentemente na faixa dos dois dígitos durante todos os anos 1970, e acima dos três dígitos a partir dos anos 1980. A redemocratização, em 1985, não foi particularmente feliz, nem em taxas de crescimento, nem nos índices de custo de vida, posto que o índice geral de preços saiu de 225% em 1985 para 684% em 1988, depois para 1.320% em 1989 e, finalmente, 2.310% em 1990, só superado pelo pico de 2.407% em 2004. O controle inflacionário só viria depois, com a introdução de medidas econômicas, para ser claro, de sentido totalmente contrário ao espírito da política econômica patrocinada por Goulart. Qualquer que seja o julgamento que se faça dos ‘anos de chumbo’, durante a fase mais aguda da ditadura militar, é um fato que a história desses anos, como aliás, dos períodos anterior e posterior, está sendo escrita desde uma perspectiva de esquerda, ou pelo menos ‘progressista’. Ora, é um fato, também, que essa história, até pelo fato de que seus produtores se julgam (talvez corretamente) opositores do regime militar, é decididamente enviesada contra esse regime, ao mesmo tempo em que é profundamente leniente ou tolerante em relação aos anos Goulart, considerado geralmente como um período de ‘florescimento democrático’ e de ‘conquistas políticas e sociais’. Essa literatura descura por completo a incompetência econômica e administrativa desses anos. As distorções começam, justamente, pelos motivos do golpe, como sendo uma mera reação de latifundiários, de capitalistas entreguistas e de militares teleguiados pelo império aos supostos avanços dos movimentos sociais reformistas. Mais até do que uma suposta ameaça de ‘ditadura comunista’ – justificativa utilizada por mais de um ideólogo do regime militar, na tentativa de legitimar o golpe de Estado de 1964 – o que assustou a classe média e levou os militares a se libertarem de seus escrúpulos legalistas, foi, basicamente, o recrudescimento da espiral inflacionária e o quadro de instabilidade econômica e social, que deteriorou gravemente o ambiente político no início dos anos 1960.

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Não se pode dizer que o democratismo caótico dos anos Goulart tenha contribuído para reduzir os altos níveis de desigualdade social e de concentração da renda: ao contrário, posto que a aceleração da inflação trouxe, na verdade, uma elevação do coeficiente de Gini – o índice que mede a concentração de renda. Como se sabe, a inflação atinge basicamente os pobres, ao atuar como uma espécie de imposto sobre seus rendimentos, embora não se possa descurar o peso da (falta de) educação no perfil extremamente concentrado da distribuição de renda. Num cômputo meramente estatístico, os resultados econômicos do governo Goulart são negativos. Concluindo, pode-se dizer que a subliteratura existente nos manuais escolares de história ou de ciências humanas no Brasil em torno do movimento militar que derrocou o regime Goulart e deu início a uma ditadura de duas décadas não serve à história nem à memória correta do Brasil de início dos anos 1960, uma sociedade em rápida transição para a industrialização, mas ainda atrasada nos planos agrícola, tecnológico, político e social. É correto dizer que a história é feita de mitos – heróis nacionais, episódios gloriosos de um passado incerto etc. – mas neste caso específico os mitos em torno de 1964 são especialmente mistificadores e deformadores da história real. Está em tempo de encerrar essa subliteratura e começar a escrever a história seriamente. Brasília, 20 de março de 2009

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8. Os mitos da utopia marxista

O que é uma utopia e como o marxismo se encaixa no molde? Utopia, no sentido original do criador da expressão, representava uma crítica indireta (ou alegórica) da situação existente, pela descrição imaginária de um lugar diferente – situado em lugar nenhum, como corresponde ao sentido do vocábulo, mas que era, presumivelmente, uma ilha do Novo Mundo, não muito bem localizada geograficamente. Em seu sentido mais amplo, a obra pode ser lida como a expressão de um desejo consciente de que a realidade corrente, feita de misérias e injustiças, pudesse ser transformada pela ação de homens racionais, aproximando-se, assim, de um cenário mais conforme aos desejos da maioria. De fato, a maior parte das leituras feitas a partir do texto original – durante os séculos de exegeses e interpretações que se seguiram – sustenta que a obra é um argumento em favor da reforma social e em defesa da propriedade privada, embora também existam aqueles que a consideram um manifesto pregando uma sociedade autoritária, dominada por um Estado todo-poderoso, na qual não mais existiria a propriedade privada, considerada por um dos personagens da ‘história’ como a fonte de todo o mal social.27 Thomas More (ou Morus, na versão latina), o autor da ‘fábula’ – terminada em 1516 e publicada em latim, em 1518, para atingir um público mais vasto –, estava, obviamente, criticando a Inglaterra do seu tempo, e propondo uma organização política e social na qual a justiça, a verdade e a equidade pudessem prevalecer, sem o temor da violência arbitrária dos soberanos, a corrupção dos juízes ou a perversão dos líderes espirituais. Não terminou sua vida na cama, como é sabido, mas deixou uma lição de moral que se converteu em símbolo literário universal da busca pelo bem comum através da organização racional de uma sociedade ideal. Aliás, considerado um mártir da causa católica – ou melhor, da Igreja oficial –, Thomas More foi beatificado pelo Vaticano em 1886 e canonizado pelo Papa Pio XI em 1935.

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Ver, por exemplo, a crítica de Alexander Marriott, “A Slave State: Society in Sir Thomas More's Utopia”, Capitalism Magazine (12 Janeiro 2004; ; acesso em abril 2009). Para outros ensaios e estudos sobre esta obra de Thomas More, recomendo este site de estudos renascentistas, que, aliás, traz o famoso quadro de More por Hans Holbein, o jovem, pertencente à coleção Frick, de Nova York: .

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Nos séculos seguintes, o sentido original da expressão foi perdendo seu significado de crítica a uma situação perversa e de exposição de um estado ideal, atingível pela ação racional dos homens, para converter-se em seu contrário, isto é, a de uma exposição idealista de objetivos inatingíveis, misto de ingenuidade e de ilusionismo, promessa vazia de uma organização impossível de concretizar-se, posto que fundamentada em objetivos e metas irrealistas, próximos do fantástico ou da pura ficção filosófica. Foi com esta interpretação negativa que Marx e Engels designaram, em meados do século 19, todas as propostas anteriores de realização de uma sociedade socialista, colocando em seu lugar o que eles pretenderam classificar como a única modalidade factível de socialismo, o “científico”, que seria o deles mesmos. Socialismo “utópico” tornou-se, assim, sinônimo de ingenuidade, idealismo e ilusão, devendo ser necessariamente descartado em benefício de uma versão auto-justificada de organização socialista, apresentada como suscetível de romper séculos de miséria e sofrimento, encerrando, portanto, uma etapa da história para dar início a uma outra, alegadamente mais avançada ou mais conforme um mundo supostamente ideal. É desde já curioso constatar que a proposta marxista de um socialismo “científico” se aproxima bastante, pelas suas motivações e propósitos idealistas, de uma ‘utopia’ terrena, pertencendo, portanto, ao mesmo gênero das propostas (ou ‘fantasias’) criticadas. Em defesa de sua posição, Marx e Engels argumentavam que não estavam partindo de propostas totalmente imaginárias ou de reformas da organização social existente, artificialmente construídas pela ação idealista de homens de boa vontade – como as de More, de Tomaso Campanella, de Charles Fourier, de Robert Owen ou de Pierre-Joseph Proudhon – mas, sim, formulando as bases da sociedade futura a partir de uma crítica radical da situação existente, com base, portanto, em suas próprias premissas capitalistas. A partir da constatação – óbvia, para eles, de que o capitalismo encerra em si mesmo uma contradição fundamental, qual seja, a da natureza social da produção e sua apropriação privada – eles estavam simplesmente tirando as consequências lógicas do desenvolvimento necessário das contradições em curso na sociedade para prefigurar a futura organização social. O caráter “científico” do socialismo marxista foi exposto em diferentes ocasiões, mas sua evolução natural a partir do capitalismo realmente existente é bastante conhecida a partir da descrição sintética feita na Introdução à Crítica da Economia Política: a partir de uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em choque com as relações de produção existentes – capitalistas, obviamente – e essas contradições

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acabam provocando uma ruptura entre a superestrutura da sociedade, já correspondendo ao caráter social das relações de produção, e a sua base, ainda dominada pela apropriação privada dos meios de produção. Uma era revolucionária então se abre e a nova sociedade emerge da velha para realizar a reconciliação entre forças produtivas e relações de produção, sem os grilhões da propriedade privada e da opressão política das classes dominantes sobre a maioria da população (necessariamente formada por trabalhadores assalariados). Independentemente, porém, da correção (ou não) dessas considerações sociológicas sobre os processos de mudança social, o fato é que o marxismo, enquanto doutrina política, se aproxima basicamente da essência do modo de organização social existente na ilha utópica de Thomas More, qual seja, um modo de vida comunal, com base numa economia totalmente ‘desmonetizada’, o que, ao fim e ao cabo, representa o objetivo último do comunismo, etapa superior do socialismo marxiano. Nesse sentido, o marxismo se encaixa inteiramente no mesmo molde messiânico das utopias que ele pretendia criticar, em primeiro lugar no modelo original exposto na fábula de More (mas que este, no íntimo, rejeitava, pelas mesmas razões pelas quais se opôs ao autoritarismo de Henrique VIII). Utopia marxista e falácias acadêmicas: qual sua importância relativa? Pois bem: ao considerar que o conjunto do edifício marxista inscreve-se na categoria das utopias – inclusive e principalmente a partir de suas raízes marxianas – caberia, preliminarmente ao desenvolvimento de argumentos para sustentar essa afirmação, detectar onde estariam as falácias acadêmicas que constituem o objeto desta série de ensaios dedicada aos equívocos mais comuns encontrados na academia brasileira, a propósito de problemas que são examinados de maneira convencional pelas disciplinas clássicas da tradição universitária – ciências humanas e economia, principalmente – e o seu tratamento alternativo (de fato, dominante, em grande parte das humanidades) pela vertente escolástica que adere, implícita ou explicitamente, às grandes linhas explicativas do marxismo acadêmico. Pode-se considerar, inicialmente, que à diferença da academia americana, por exemplo, na qual a tradição marxista é praticamente marginal nas fundamentações teóricas e nos estudos empíricos – restringindo-se a poucos núcleos bem identificados das ciências sociais, ainda assim com um número muito reduzido de praticantes – no Brasil e em outros países de formação similar (como os latino-americanos em geral, ou a França e a Itália, no continente europeu) a dominação do marxismo, nessas mesmas áreas de estudo, é

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literalmente avassaladora, sendo disseminada horizontal e verticalmente mesmo quando seus propositores não o fazem explicitamente, ou que sequer tenham consciência de que estão aderindo a esse tipo de explicação a partir de suas raízes diretas. Pense-se, por exemplo, nos muitos livros didáticos ou para-didáticos de segundo grau que falam naturalmente de ‘classes sociais’ – como instrumento de dominação, obviamente –, de ‘modo de produção’, de ‘contradições’ entre os diferentes interesses de classe na sociedade, enfim de uma variedade de conceitos atinentes à vida social e produtiva que passam por absolutamente normais e necessários e que nada mais são do que expressões da mesma concepção fundamental de conhecimento e interpretação da realidade profundamente vinculada ao edifício teórico marxista. O marxismo é de tal modo dominante na academia brasileira que seus defensores ou promotores sequer percebem quando estão cometendo as falácias mais evidentes ligadas a seu uso indiscriminado como meio de argumentação e debate. Veja-se, a título de exemplo, a introdução a um debate recentemente lançado por um veículo simpático a (quando não dominado por) essa corrente, que pretende discutir o marxismo e o século XXI, cujo autor, um dos mais conhecidos marxistas da academia brasileira, Francisco de Oliveira, não hesita em escrever o que segue: “O marxismo seguramente foi a doutrina mais importante do século XX, no amplo sentido de um “campo” (Bourdieu) ou ainda no sentido de ideologia (Gramsci) e não no dos próprios Marx e Engels (como doutrina dominante da classe dominante). A tal ponto que se pode dizer que o século XX foi o século do marxismo.”28 O marxismo pode ter sido mais importante do que o freudismo, a outra ideologia que com ele ocupou parte significativa dos afazeres acadêmicos durante várias décadas do século 20. Mas dizer que ele foi a doutrina mais importante no período constitui um exagero – e uma falácia – que requer imediato questionamento. O século XX foi claramente o século das ideologias – nacionalismo, fascismo, socialismo e comunismo –, assim como o século XIX tinha sido o do liberalismo e (apenas em parte) do darwinismo; mas daí a privilegiar uma dessas ideologias como tendo sido a mais importante, e colocá-la quase como sinônimo do próprio século, vai um evidente exagero e um descompasso com a realidade que requer imediata correção e inclusão na categoria das falácias. O que foi importante no século XX, 28

Cf. Francisco de Oliveira, “Texto de apresentação”, In: Carta Maior lança debate: o Marxismo e o Século XXI, site Carta Maior (01.04.2009; disponível ; acesso em abril 2009).

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depois da derrocada dos regimes fascistas – que, na verdade, só submergiram na voragem da Segunda Guerra Mundial porque se lançaram em aventuras expansionistas, do contrário teriam provavelmente sobrevivido muito tempo mais, inclusive porque chegaram a fazer alianças táticas com seu suposto inimigo –, foi o socialismo, mais especificamente o de tipo soviético, que dominou boa parte (mais exatamente setenta anos) de um século especialmente mortífero e destruidor. A falácia acadêmica talvez esteja, aqui, na identificação do socialismo real com a doutrina marxista, quando ambos guardam, se tanto, vinculações tênues em termos de legitimação teórica e de busca de fundamentação instrumental. Muitos marxistas, na verdade, recusam essa vinculação entre o socialismo soviético e o marxismo teórico, pela inevitável contaminação criminosa do segundo pelo primeiro: o número de vítimas (atestadas) do marxismo prático – ou socialismo real – é muitas vezes maior do que seus congêneres socialistas da vertente fascista. (Parênteses: não há como descartar o fato de que tanto Mussolini quanto Hitler pretendiam construir o ‘socialismo de Estado’ e que nos fundamentos de ambas as doutrinas encontra-se o regime econômico coletivista dominando amplamente pelo Estado). Uma outra falácia típica desse tipo de raciocínio acadêmico enviesado consiste em atribuir ao marxismo – simples ‘doutrina universitária’ para todos os efeitos práticos – atributos de uma personalidade histórica, quase como um personagem que interage com forças e processos sociais tangíveis e inquestionáveis. Assim, o mesmo autor supra-citado, argumenta de forma totalmente ingênua e a-histórica: “A partir das formulações originais da dupla Marx-Engels, o marxismo foi se constituindo numa concepção de história, numa visão de mundo, numa prática de luta, numa política, diretamente na crítica ao capitalismo, seu inimigo figadal”.29 Trata-se de uma evidente falácia, posto que o capitalismo não pode se constituir em inimigo de nenhuma doutrina, já que ele não constitui um corpo filosófico e doutrinal em busca de adeptos ou seguidores, e sim o que os marxistas chamariam de ‘modo de produção’ (outra falácia aberrante), convivendo em termos razoavelmente funcionais com diferentes doutrinas políticas: democracia de massas, fascismo, ditaduras personalistas, parlamentarismo aristocrático e, provavelmente até, com o marxismo de muitos dirigentes espalhados pelo mundo em diversas épocas. 29

Cf. Oliveira, “Texto de apresentação”, op. cit., loc. cit; ênfase no original.

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Mas essa falácia de um marxista acadêmico nos permite situar o campo no qual discutir as falácias em geral da utopia marxista, geralmente situadas em dois terrenos de interesse teórico e prático: o materialismo histórico, que tende a disseminar-se pelas demais ciências sociais a partir da história, e a economia, cujos efeitos são mais importantes, na medida em que seus discípulos podem influenciar políticas públicas (à diferença dos primeiros, que influenciam, no máximo, a concepção do mundo de alunos ingênuos ou passivos). Ambas vertentes, ao fim e ao cabo, são relevantes para o nosso exercício de identificação e desmantelamento das falácias acadêmicas mais importantes, posto que fundamentadas na mesma concepção geral que vê as ‘forças produtivas’ e as ‘relações de produção’ devendo, natural e necessariamente, evoluir de seu envelope capitalista atual, opressivo, desigual e injusto socialmente, para um conteúdo claramente socialista, caracterizado pela socialização dos meios de produção, supostamente mais conforme aqueles desejos de igualdade, justiça social e liberada da exploração do homem pelo homem. Sem ser necessário apontar aqui as tragédias sociais, e o tremendo custo humano, a que conduziram essas tentativas de construção de outra ordem social no ‘século do marxismo’, podemos passar a considerar as falácias mais correntes desse tipo de engenharia social cujos objetivos últimos são alegadamente humanistas e conformes ao ‘sentido da história’ (mas cujos resultados práticos são por demais conhecidos para refazer a lista dos casos mais exemplares; bastaria apontar que as tentativas remanescentes, nenhuma delas exemplar, situam-se, atualmente, nas antípodas do mundo, um canto recuado da Ásia e numa ilha do Caribe, num cenário de misérias humanas que dispensa qualquer descrição). Quais são os mitos da utopia marxista? Antes de tratar dos mitos da utopia marxista, conviria abordar seus muitos acertos e análises corretas. Curiosamente, a maior parte dos ‘acertos’ marxistas não se situa propriamente nesta obra de ‘economia gótica’ que se chama Das Kapital – considerada por muitos como o nec plus ultra do cientificismo marxista, mas que tem seu lugar apenas na estante de história das idéias, não numa biblioteca de teoria econômica – mas num panfleto de propaganda feito expressamente com esse objetivo que se chama, obviamente, Manifesto do Partido Comunista (1848). Esta pequena obra representa a mais poderosa defesa da sociedade burguesa e do modo de produção capitalista jamais produzido por qualquer apólogo do sistema de mercado desde então. O texto aponta corretamente que a sociedade

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burguesa – que para Marx era quase sinônima de capitalismo – não pode existir sem revolucionar constantemente os meios de produção; que sua tendência à expansão contínua a levaria a conquistar o mundo todo, oportunamente – constituindo, portanto, a mais formidável promoção da globalização de que se tem notícia, aliás totalmente ignorada pelos altermundialistas e atuais opositores da globalização capitalista, que Marx consideraria como totalmente irracionais; e que o capitalismo traz em seu próprio seio a promessa de crises regulares, inevitáveis, eventualmente devastadoras, falhando ele apenas em achar que o sistema inteiro seria finalmente tragado numa dessas crises de grandes proporções (e aqui vem o componente messiânico, ou poético, da mensagem utópica marxiana). A crítica contra o capitalismo conduzida nas páginas do Manifesto – e mesmo em muitas passagens do Capital – é inteiramente correta e verdadeira, embora Marx tenha praticado esse equívoco monumental – totalmente preservado nos equívocos ainda maiores de seus seguidores e propagandistas atuais – de confundir modo de funcionamento do capitalismo com a forma mais geral de organização da produção numa sociedade de mercado, daí advindo os formidáveis erros de concepção econômica que levaram, ao fim e ao cabo, ao desastre total de todos – sem exceção – regimes socialistas existentes na face da terra (e não vale apontar para o ‘socialismo’ escandinavo como possível solução para um socialismo democrático ou liberal, posto que as sociedades nórdicas jamais aboliram a propriedade privada ou o regime econômico de mercado, como fundamento de seus modelos socialdemocráticos). Tanto essas críticas são corretas que a maior parte dos órfãos do socialismo e das viúvas do marxismo esfregam atualmente as mãos e sorriem de contentamento interior ao apontar – com base inclusive em transcrições seletivas de obras marxianas – a grande crise do capitalismo (não exclusivamente financeiro) como ‘prova’ de que as ‘lições’ de Marx estavam certas e que o capitalismo é, sim, sinônimo de anarquia e caos no processo produtivo e que ele só pode existir quando guiado pela mão visível do Estado, a que supostamente se opunha um economista ‘burguês’ como Adam Smith (quem, aliás, nunca se opôs à ação visível do Estado nos muitos campos em que essa atuação é indispensável). Mas, atenção, reconhecer a correção básica da análise marxiana do capitalismo – o que Max Weber, por exemplo, também o fez, ainda que parcialmente, apenas – não significa que as previsões poéticas do marxismo sobre a crise final do capitalismo e sua superação pelo socialismo sejam corretas e aqui entramos, justamente, na descrição das utopias marxistas.

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Quais são, então, os mitos da utopia marxista? As falácias do marxismo são muitas, inumeráveis mesmo, tendo em vista que mais de um século e meio se passou desde que as primeiras hipóteses sobre o ‘desenvolvimento histórico’ foram formuladas pelos demiurgos originais e que, desde então, epígonos e discípulos têm-se encarregado de perpetuar essas falácias, sem o mínimo cuidado em efetuar sua crítica e evitar sua repetição. Essas falácias têm a ver com a famosa ‘interpretação econômica da história’ – e seus derivativos sob a forma de ‘modos de produção’ e ‘lutas de classes como motor da história’; e também com toda a parte analítica no terreno da economia, que quiçá foi a que produziu os maiores desastres já conhecidos na história econômica mundial, com todo um cortejo de experiências falidas e uma perda desnecessária de bem-estar para muitos povos. Uma última categoria de falácias tem a ver com a natureza da sociedade comunista; mas as especulações marxianas a esse respeito pertencem mais ao terreno da ficção política do que ao domínio da análise das sociedades capitalistas existentes ao tempo de Marx, e podem ser perfeitamente ignoradas como simples expressão de um desejo irrealizável (posto que não sustentadas em qualquer exposição objetiva das condições que levariam a tal ‘utopia’). A primeira categoria, inscrita no campo geral do materialismo histórico, vincula-se ao desenvolvimento das sociedades existentes e sua evolução para a comunidade socialista, a partir das contradições da sociedade capitalista, desdobrando-se numa série de proposições altamente questionáveis. Em primeiro lugar, e de maneira mais geral, situa-se a crença num ‘fim da história’, alegação que os desatentos críticos atuais do ‘marxista-hegeliano’ Francis Fukuyama atribuem aos promotores do ‘pensamento único’ de extração liberal clássica (que eles acusam falsamente de ser neoliberal, quando este conceito não quer dizer rigorosamente nada). Marx e Engels (sobretudo este último, com suas construções mecanicistas sobre a ‘evolução’ da sociedade e do Estado) acreditavam que a resolução final das contradições da sociedade capitalista se daria no quadro da sociedade comunista, na qual cada um trabalharia de acordo com sua capacidade e receberia em função de suas necessidades, sem a opressão do capitalista explorador. A falácia moderna, partilhada por um número inacreditavelmente alto de acadêmicos, consiste em acreditar que o Estado provedor conseguirá atender à maior parte das necessidades sociais, sem as distorções típicas de um sistema privado de apropriação do produto social. Se isto fosse verdade, não apenas teoricamente, mas sobretudo do ponto de vista prático, os sistemas mais fortemente estatizados conhecidos ao longo do século XX

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seriam exemplos acabados de sucesso econômico e de dinamismo tecnológico, e não o desastre econômico e o fracasso tecnológico que foram. Em segundo lugar, coloca-se o fio condutor desse processo, sob a forma da famosa proposição sobre a luta de classes como o motor da história. A tese não é especificamente marxista (ou marxiana), sendo uma espécie de lugar comum explicativo nas décadas imediatamente posteriores à Revolução francesa, como tal propagada pelos próprios publicistas e panfletários do processo revolucionário e depois disseminada pelos primeiros historiadores dos grandes eventos da França naquela conjuntura. Marx apropriou-se do conceito e o generalizou para o conjunto da história passada, antevendo que a luta final se daria entre a burguesia e o proletariado, este encarregado de inaugurar a nova era e de comandar à implementação do novo ‘modo de produção’, inevitavelmente socialista, cela va sans dire. Em terceiro lugar, justamente, apresenta-se o famoso conceito de ‘modo de produção’, supostamente capaz de organizar a história em função de formas possíveis de organização social da produção em etapas sucessivamente evolutivas – não necessariamente lineares ou sequenciais –, conceito que ainda hoje frequenta certos manuais universitários como sendo a única maneira adequada de descrever o substrato material das sociedades existentes (e, claro, sua superação pelo modo socialista). Nem é preciso recordar aqui o ridículo debate pretensamente historiográfico travado no Brasil, durante a fase áurea do stalinismo triunfante, no sentido de decidir se o modo de produção da era colonial era feudal ou se ele já era capitalista, para constatar a que absurdos pode levar uma concepção rígida do processo histórico orientado por esse tipo de camisa de força conceitual. As transformações ocorridas ao longo dos séculos nas sociedades agrárias tradicionais seguem padrões extremamente diversificados em direção de formações mercantis, crescentemente manufatureiras, progressivamente industriais e, com maior intensidade a partir destas últimas, gradualmente pós-industriais, com a chamada economia do conhecimento reforçando um setor de serviços integrado aos demais setores produzindo a maior parte do valor agregado. Marx, como é sabido, considerava várias atividades do terciário (ou seja, os serviços, justamente) como ‘improdutivas’, o que é um equívoco monumental para quem se pretendia economista – mas que sempre foi, apenas e tão somente, um filósofo social – e estava preso ao seu tempo, concebendo a grande indústria

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manufatureira como o fenômeno econômico dominante e decisivo, em seu horizonte histórico de reflexão. Não é preciso dizer que, para Marx, a sucessão dos ‘modos de produção’ – do escravismo antigo ao capitalismo, passando pelo feudalismo e por um pouco definido ‘modo asiático de produção’, inventado a partir de certa etapa de suas pesquisas para acomodar aspectos incongruentes em sua caracterização rígida – deveria conduzir inevitavelmente ao ‘modo socialista’, quase que tirado por um fiat filosófico das entranhas do capitalismo, chegado em sua fase madura. A falácia fundamental não consiste apenas em imaginar que formações econômico-sociais tão diversificadas como as historicamente existentes possam ser encaixadas, ou aprisionadas, em categorias tão estanques quanto, simplesmente, redutoras; mas, sobretudo, em acreditar que um ‘modo de produção’ possa ser inventado a partir das elucubrações de um cérebro, por mais genial que este possa ter sido. As falácias econômicas do marxismo Bem mais importantes, porém, do que as falácias ‘histórico-materialistas’ de Marx (e Engels) são os equívocos analíticos e conceituais de seus textos de análise econômica, inclusive pelas consequências práticas que eles tiveram para a vida de centenas de milhões de pessoas, durante grande parte do século XX, sendo a maior parte desses efeitos de trágicas dimensões, como o escravismo stalinista, por exemplo. Essa outra categoria de falácias não é bem percebida por uma parcela substancial dos acadêmicos, tanto porque são poucos os que se decidem a enfrentar as 2.500 páginas do Capital, as 300 páginas da Crítica da Economia Política, as mais de 400 páginas das Teorias da Mais-Valia, a prosa gongórica ou barroca da Crítica do Programa de Gotha, da Ideologia Alemã ou de vários outros escritos esparsos, como os Manuscritos Econômico-Filosóficos. A maior parte dos ‘estudiosos’ se contenta com resumos dessas obras, com as avaliações generosas que seguidores complacentes delas fizeram ou, no máximo, com a leitura rápida do Manifesto e do 18 Brumário. Realmente não é fácil fazer a crítica econômica da economia política de Marx e não será aqui que tal empreendimento poderá ser realizado a contento; tanto por falta de espaço (e para não abusar da paciência dos leitores), como, sobretudo, por uma sensação de inutilidade, posto que poucos dos argumentos ‘econômicos’ marxianos podem ser transpostos na linguagem da economia contemporânea e receber, assim, o tratamento empírico-factual a que se submetem as teorias ou construções correntes produzidas em ambiente universitário. Antes

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que me critiquem por incapacidade analítica, convido os defensores da economia política marxista a tentar elaborar criticamente, isto é, com os instrumentos da teoria econômica contemporânea, a respeito das seguintes noções – que são centrais no pensamento econômico marxiano – que constituem um conjunto de falácias que só são preservadas nas aulas das humanidades, e muito raramente nas faculdades que se dedicam ao ensino sério da economia: teoria do valor-trabalho (um equívoco, diga-se de passagem, que Marx partilha com os clássicos que o precederam); tempo de trabalho socialmente necessário; fetichismo da mercadoria; doutrina da miséria crescente; taxa de mais-valia; composição orgânica do capital; taxa decrescente de lucro; superprodução de mercadorias; superabundância de capital. Existem outras noções bizarras, certamente, mas estas bastam para o desafio. Na verdade, essas elaborações prolixas da pluma de Marx não foram compreendidas ou desenvolvidas nem por seus seguidores e discípulos,30 que se contentaram com algumas fórmulas rápidas extraídas de algumas dessas obras citadas para daí construir um dos mais monumentais equívocos econômicos de que se tem notícia na história da economia prática e das políticas públicas: refiro-me, obviamente, ao socialismo de tipo soviético, ‘teoricamente’ (mal) bosquejado por Lênin e implementado a marretadas pouco teóricas por Stalin e outros improvisadores econômicos. Ainda que se possa dizer que esses experimentos semi-bárbaros de militantes de uma sociedade pré-capitalista pouco tinham a ver com os ‘verdadeiros’ fundamentos teóricos marxistas, é um fato que eles procuraram se legitimar através da crítica à economia política ‘burguesa’, tal como conduzida pessoalmente por Marx, e que eles se sustentaram numa concepção do mundo que tinha como suportes fundamentais duas elaborações centrais do próprio mestre: a teoria da exploração e a ‘previsão’ da crise geral do capitalismo (não exatamente em virtude da pressão política dos movimentos socialistas, mas por suas próprias contradições internas, de tipo estrutural). A teoria da exploração, como se sabe, está no centro daquilo que os marxistas consideram ser a contribuição fundamental de Marx à crítica da economia política, a saber, a 30

Não estou referindo-me aqui a discípulos marxistas como Bukarin ou Preobajensky, que tentaram elaborar sobre a transição socialista-soviética a partir das categorias marxistas, mas que não foram muito longe em suas contribuições teóricas (inclusive porque foram eliminados por Stalin). O mais importante teórico marxista dessa época, Rudolf Hilferding, foi, na verdade, um crítico da previsão marxista sobre o colapso do capitalismo, tendo ele sido aluno de Eugen Böhm-Bawerk, um importante analista das teorias econômicas marxistas, junto com Vilfredo Pareto, Ludwig von Mises e, muito antes deles, John Stuart Mill. Os marxistas nunca souberam responder às críticas especificamente econômicas que esses economistas fizeram às teorias econômicas de Marx (ênfase deste autor).

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teoria da mais-valia. No Capital, Marx divide o seu objeto analítico em duas partes: capital constante e variável, sendo o primeiro a parte incorporada nos equipamentos e nos produtos utilizados no processo de produção, e transferido inteiramente para o valor do produto (parcialmente no caso dos equipamentos, apenas a parte correspondente ao seu desgaste físico), e o segundo a parte relativa ao custo da força-de-trabalho, da qual apenas uma parte constitui a remuneração do trabalhador, sendo o resto apropriado pelo capitalista como maisvalia justamente. Marx pretendia ter descoberto ali o segredo do processo de acumulação capitalista, sendo que a taxa de mais valia (s) criada pelo capital variável (v) – expressa na fórmula v/s = trabalho necessário/sobre-trabalho – corresponderia exatamente à taxa de exploração do trabalho pelo capital. Nenhum economista sério consegue trabalhar economicamente com uma falácia desse tipo; desafio qualquer economista marxista a me provar a utilidade instrumental dessa formulação para fins de teoria econômica ou como mero instrumento analítico no plano da microeconomia (isto é, a parte da economia dedicada especificamente ao processo de produção, que é justamente a parte da critica à economia política que Marx alegava ter desenvolvido de uma maneira superior aos economistas ‘burgueses’ do seu tempo). A falácia mais importante do marxismo, porém, a que o distingue particularmente no conjunto de teorias econômicas críticas do (e ao) capitalismo, é, evidentemente, a que trata da crença – sinto muito, mas não encontro outro substantivo para este equívoco – de que os desequilíbrios regulares e constantes da economia de mercado – de toda e qualquer economia de mercado, que esses mesmos críticos confundem com o capitalismo, a partir do erro original de Marx – conduziriam a contradições insuperáveis nos limites do sistema existente, apenas resolvíveis pela sua substituição ‘natural’ pelo modo de produção predestinado como sucedâneo e sucessor, o socialismo. Marx tentou formular seu desejo filosófico em termos especificamente econômicos, mas que são, na verdade sociológicos. No Capital, ele se ocupa, sobretudo, de: acumulação capitalista; taxa de salários; exército industrial de reserva; monopólios; deficiências na demanda; desequilíbrios na produção (como resultado da superprodução de mercadorias e da sobreabundância de capital); diferenças entre os processos de produção e de circulação; descompassos entre o crescimento da produção e a expansão dos mercados. Tudo isso ilustrado por abundantes citações de relatórios oficiais – geralmente parlamentares, mas de funcionários do governo também – sobre o trabalho nas fábricas inglesas (que ele lê na

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British Library e cita muito seletivamente) e por ainda mais abundantes comentários em estilo literário sobre os horrores da produção fabril e sobre a cupidez dos capitalistas. Existem passagens realmente brilhantes, jocosas ou irônicas segundo a ocasião, e descrições tão pungentes da miserável situação dos trabalhadores que são capazes de comover os corações mais duros e as almas mais cândidas. A falácia mais evidente, aqui, é a de ter confundido a dinâmica de uma economia de mercado – com seus desequilíbrios inevitáveis – com as contradições insanáveis de todo o sistema capitalista, que na verdade representa uma parte muito pequena da economia de mercado. Esta falácia foi perpetuada não apenas pelos seguidores imediatos de Marx, como também por seus êmulos contemporâneos, sobretudo na academia, onde se costuma misturar as duas coisas numa salada indigesta que passa por economia política. Os primeiros pretenderam destruir o capitalismo a marretadas; o que mais conseguiram fazer foi impedir o funcionamento de uma economia de mercado minimamente condizente com o cálculo econômico indispensável à aferição do valor relativo dos bens e serviços, condenando assim à esclerose precoce o seu pretendido ‘modo socialista de produção’.31 Pode-se dizer, em sua defesa, que eles não tinham uma idéia muito precisa de como construir o socialismo ‘científico’ apregoado por Marx, já que este não havia deixado nenhum manual de instruções, uma escusa de que não dispõem os segundos, que puderam observar várias décadas de experimentos fracassados e desastres práticos, com todas as evidências empíricas ao seu alcance, desde que eles se dispusessem a raciocinar, está claro. Mas parece óbvio hoje em dia – pelo menos confio na inteligência humana – que nenhum marxista consciente está propondo, atualmente, o socialismo em suas formas conhecidas no século XX, sobretudo em sua versão clássica do Gosplan soviético; e menos ainda nos modelos embalsamados das tristemente célebres experiências da pavorosa Coréia do Norte e da patética ilha caribenha. O que os marxistas estão pedindo – e alguns governos atendendo, ainda que não se pretendam socialistas – é a nacionalização, ou seja, a estatização, do sistema bancário, como forma de acabar com o aspecto mais detestável, moralmente 31

Uma crítica contemporânea aos experimentos bizarros de Lênin em matéria econômica foi conduzida simultaneamente – e antes mesmo que seus resultados desastrosos se revelassem em sua inteireza – por um jovem economista austríaco, Ludwig von Mises, cujo Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), na verdade uma demonstração da impossibilidade de qualquer cálculo econômico racional, na ausência do mecanismo de preços, constituiu uma antevisão teórica do desastre econômico que seria o socialismo na prática. Ver suas obras no site dedicado a esse economista: www.vonmises.org.

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falando, do capitalismo, que é a especulação financeira, algo que qualquer marxista contemporâneo pratica regularmente quando joga na loteria, a mais desenfreada especulação financeira administrada pelo Estado. Eles também pedem – e nisso os governos do G20 financeiro também parecem dispostos a atendê-los – uma regulação ainda mais estrita dos mercados pelo Estado, como forma de interromper, pelo menos momentaneamente, a crise devastadora que não deixa de representar desemprego, pobreza temporária para os que não dispõem de seguro-desemprego (e isso se aplica a 95% da força de trabalho brasileira) e outras consequências variadas, todas vinculadas às supostas misérias que o capitalismo é capaz de produzir na concepção desses seus utópicos detratores. Trata-se, obviamente, de um contra-senso econômico, posto que uma regulação mais rígida e burocratas estatais no comando dos bancos conseguirão produzir, se tanto, menor crescimento econômico, menor flexibilidade dos mercados e, portanto, menores possibilidades de criação e de distribuição de riquezas, pontos que os propositores de tais medidas não estão dispostos a reconhecer (por problemas filosóficos compreensíveis), mas que são importantes para o futuro das economias de mercado (característica fundamental que eles, pelo menos isso, aprenderam a respeitar). Pode ser que, ao fim e ao cabo, a falácia do marxismo em proclamar a utopia da sociedade socialista seja comparável à falácia capitalista – se é que ela existe – de uma economia de mercado sem crises e sem perda de riquezas, o que ainda não foi inventado por nenhum cérebro genial. Na verdade, o capitalismo não tem a pretensão de fazer engenharia social ou de operar toda a economia de mercado: ele se contenta em gerir seus próprios negócios privados, abrindo com isso o caminho para a construção de um poderoso sistema de criação (e distribuição) de riquezas, o que não é pouca coisa. Em todo caso, nenhum sistema – socialista, coletivista, ou qualquer outro ‘inventado’ pela ação humana – foi capaz, até o presente momento, de oferecer tantas oportunidades de criação de riquezas quanto as economias de mercado operando de modo mais ou menos espontâneo. Entre essas economias se situa o capitalismo, que constitui ainda uma pequena parte dos ‘modos de produção’ disponíveis nos supermercados da história, e uma fração relativamente diminuta das formações sociais historicamente existentes, inclusive no plano espacial-geográfico (a despeito do que possam pensar os marxistas, mas eles costumam exagerar no poder de fogo do capitalismo).

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Thomas More, se vivo fosse, teria certamente muito material para novas utopias se tivesse conhecido todas as propostas de engenharia social contidas nas formulações marxistas para um novo modo de produção e um novo tipo de sociedade. Mas, talvez ele não tivesse sobrevivido a alguns experimentos do século XX, bem mais terríveis do que as diatribes antipapistas e anti-Vaticano de um Henrique VIII... Brasília, 3 de maio de 2009

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9. O mito do socialismo do século 21

O que é o socialismo original e quais as suas definições básicas? Comecemos com um pouco de pesquisa quantitativa, que também serve para definições básicas. Utilizando o instrumento preferido de todos os estudantes da atualidade, o Google, vejamos quantos resultados temos para o vocábulo socialismo. Um alerta inicial: a despeito do que creem alguns, o Google não tem vieses ideológicos ou de qualquer outro tipo: seu modo de seleção é baseado unicamente no ‘sucesso’ relativo dos sites compilados, alinhados segundo o número de cliques, remetendo, portanto, unicamente às ‘preferências do consumidor’. O conceito foi, supostamente, inventado na França pré-revolucionária, quando ele era ainda ‘utópico’, o que recomendaria, portanto, começar a pesquisa pelo termo em Francês. Pois bem, acessei o site da Google France (http://www.google.fr/), colocando a palavra em Francês e o resultado me pareceu extremamente parcimonioso, para a história de um movimento e de correntes doutrinais mais do que bi-seculares: obtive exatamente 7 milhões e 580 mil resultados, magros em relação aos resultados em Inglês (ver adiante), mas isso reflete, obviamente, a dominação absoluta desta língua na internet e o relativo atraso dos franceses na competição pelos corações e mentes dos jovens da atualidade (socialistas ou não). O que aparece antes de tudo é a definição da Wikipédia (com acento, em Francês): ela remete a um “sistema de organização social baseado sobre a propriedade coletiva (ou propriedade social) dos meios de produção, em oposição ao capitalismo” (cf.: http://fr.wikipedia.org/wiki/Paradis_socialiste). Logo em seguida, pela mesma Wikipédia, vem a indicação do grupo de intelectuais revolucionários (auto-dissolvido em 1967) Socialisme ou barbarie, descrito como uma organização de orientação marxista anti-stalinista (cf.: http://fr.wikipedia.org/wiki/Socialisme_ou_barbarie). Em terceiro lugar, aparece uma definição enciclopédica, na verdade o MSN Encarta (uma notória derivação educacional da capitalista Microsoft), que o define como um “conjunto de correntes doutrinais que se opõem ao capitalismo e movimentos políticos cujo objetivo é colocar essas doutrinas em prática” (cf.: http://fr.encarta.msn.com/encyclopedia_761577990/socialisme.html).

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Depois fui ao Google Deutschland (http://www.google.de/), na suposição de que o vocábulo alemão, por algum vínculo genético, poderia apresentar mais resultados. Frustração: deu menos ainda do que em Francês, apenas 4 milhões 390 mil itens, com a inefável Wikipedia na frente, em primeiro e segundo lugares (este para o ‘socialismo democrático’, que existe, a despeito do que possam pensar os céticos). Mas, em terceiro lugar, surge um periódico mensal, organizado em formato de fórum para o debate das questões mais importantes do socialismo (sim, o número corrente discute a ‘crise secular do capitalismo’, seriamente, se supõe). Apenas em sexto lugar vem um site do Partido Comunista Alemão (ou o que restou dele), que começa por afirmar, também muito seriamente, que “Sozialismus ist eine Wissenschaft (o socialismo é uma ciência)” (cf. http://www.dkpdarmstadt.de/service/was-ist-sozialismus.htm). Descontente com esses poucos milhões de sites e links para o estudo do socialismo, tive de recorrer ao Google capitalista, ou melhor, ao original americano (http://www.google.com/). Não se pode dizer que estejamos em falta de socialismo no mundo: em 23.05.2009 (mas pode ser que tenha aumentado desde então) apareceram exatamente 35,5 milhões de resultados em Inglês. Sim, em primeiro lugar vem a tão desprezada Wikipedia, cuja definição remete a “any one of various economic theories of economic organization advocating state or cooperative ownership and administration of the means of production and distribution of goods, and a society characterized by equal oppurtunities for all individuals with a more egalitarian method of compensation” (cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Socialism). A Enciclopédia Britannica vem em quarto lugar, cujo verbete, relativamente conciso, explica que se trata de uma “social and economic doctrine that calls for public rather than private ownership or control of property” e de um “system of social organization in which private property and the distribution of income are subject to social control”; o termo designa, também “the political movements aimed at putting that system into practice” (cf.: “socialism”; Encyclopædia Britannica Online. 23 May 2009 ). Surpreendentemente, porém, para nossos espíritos incautos (mas totalmente compreensível num contexto capitalista, como é o da produção de conhecimento num sistema de mercado, no qual trabalha o Google), o terceiro verbete mais acessado – depois de uma definição banal de dicionário – está no site de uma organização decididamente capitalista e até mesmo libertária, que é a Library of Economics and Liberty. O autor do verbete é

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ninguém menos do que o conhecido autor de obras de vulgarização em economia e filosofia social, Robert Heilbroner, que começa seu ensaio por estas palavras devastadoras: “Socialism – defined as a centrally planned economy in which the government controls all means of production – was the tragic failure of the twentieth century. Born of a commitment to remedy the economic and moral defects of capitalism, it has far surpassed capitalism in both economic malfunction and moral cruelty” (cf.: Robert Heilbroner, “Socialism”, apresentado como um “socialist for most of his adult life”; In: The Concise Encyclopedia of Economics: http://www.econlib.org/library/Enc/Socialism.html). Claro, nunca se deve descurar a imensa receptividade do socialismo na periferia e, desconfiado que ele pudesse ter mais sucesso nos países pouco capitalistas do que no centro do sistema, reorientei a minha pesquisa para o Google Brasil e para o Google em espanhol. E não é que ganhamos da França em popularidade?: pois a minha pesquisa no http://www.google.com.br/ deu exatamente 7 milhões, 780 mil resultados, algo como 200 mil a mais do que na vieille Gaulle, a pátria de todas essas doutrinas e ainda hoje tradicional adepta de soluções estatizantes. Os links começam, obviamente, pela Wikipédia (também com acento, em Português), mas logo vão para sites voltados, todos eles, para a ‘educação’ – suapesquisa, mundoeducacao, brasilescola e outros do gênero – como para confirmar que nossos professores, pesquisadores, estudantes e outros navegadores de internet são todos eles simpáticos à idéia e aos princípios do socialismo. Isto é que é sucesso! O Brasil deve ser, junto com a França obviamente, uma das poucas grandes economias capitalistas nas quais o marxismo é estudado seriamente nas universidades (e ninguém acha bizarro). Resultados quase similares foram obtidos com o Google en español (http://www.google.es/), com precisos 7 milhões 660 mil retornos, situando-se, portanto, entre o Brasil e a França. Pouco crentes esses espanhóis e hispano-americanos, levando-se em conta que eles superam brasileiros e portugueses em pessoas: eles precisam de um pouco mais de socialismo neste novo século. Bem, creio que isso basta em termos de números, tanto para mapear a incidência estatística do ‘velho’ socialismo nos instrumentos de busca à disposição dos estudantes, como para a obtenção de algumas definições de base, cuja síntese não preciso fazer, posto que dirigindo-me a um público de universitários interessados na matéria. Mais importante seria tentar mapear a freqeência do conceito preferencial, o tal de ‘socialismo do século 21’. E o que nos revelam os instrumentos de busca?

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Quais são as características do alegado socialismo do século 21 e em que medida ele difere do original? Pois bem, aplicando os mesmos instrumentos de busca elementar, nas três principais línguas européias, os resultados não foram muito animadores: o comando “socialisme du XXIe siècle” deu magros 326 mil itens em Francês e o “Sozialismus des 21. Jahrhunderts” não rendeu mais do que 110 mil retornos, o que, francamente, é irrisório para uma ferramenta tão poderosa quanto o Google. Mas mesmo o “21st century socialism”, com toda a pletora de textos em Inglês, não deu mais do que 1,25 milhão de resultados, de cujo total se devem descontar as muitas e inevitáveis repetições (metade das quais, provavelmente, provocadas por certo governo, que insiste no conceito, tendo produzido até um bonito YouTube para divulgá-lo). Bem, mais importante do que insistir nesses instrumentos genéricos de busca, seria ir direto à ferramenta supostamente utilizada por pesquisadores mais sérios, o Google Scholar. Aqui, nova decepção: aplicando-se o conceito estritamente (isto é, entre aspas, para circunscrever a busca apenas aos termos selecionados), tem-se, em tudo e por tudo, 40 magros resultados em Inglês e 20 em Francês. Mas, desta vez, o seu equivalente em Alemão revelou-se mais produtivo: o comando “Sozialismus des 21. Jahrhunderts” resultou em 57 retornos, verdade que mais da metade dedicados à “venezolanische sozialistische Revolution”. Considerando-se que o ideólogo-mor da revolução socialista na Venezuelana é, justamente, um acadêmico alemão, Heinz Dieterich, a incidência estatística parece explicarse por si mesma. Este intelectual, ou militante (à escolha), influenciou imensamente, como se sabe, os destinos da revolução venezuelana, sendo conhecido por diversos artigos a respeito e um livro básico, chamado, precisamente: Der Sozialismus des 21. Jahrhunderts: Wirtschaft, Gesellschaft und Demokratie nach dem globalen Kapitalismus (Berlim: Homilius, 2006). O resumo de suas idéias pode ser encontrado em vários links, bastando combinar seu nome com o conceito sobre o qual ele reivindica a paternidade, mas provavelmente não o copyright (ver, entre outras apresentações de suas idéias principais, esta matéria em espanhol: Entrevista a Heinz Dieterich, “En Venezuela se han creado condiciones para construir el Socialismo del

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Siglo XXI”.32 E não apenas ele: os irredutíveis gauleses também estão correndo atrás da novidade, e o líder mais importante do novo partido anti-capitalista do país, Olivier Besancenot, acaba de escrever, com Daniel Bensaïd (outro velho conhecido dos iniciados), um livro revelador: Prenons parti: Pour un socialisme du XXIe siècle (Paris: Mille et une Nuits, 2009). Atenção, interessados: a Amazon France anuncia a 15,20 euros, mas dá para comprar usado (já?!) por apenas 10 euros. O que é mais curioso é que, enquanto o primeiro se vangloria de ter inventado o conceito e de ter definido os elementos principais do novo socialismo, os segundos pretendem ainda inventá-lo, o que, convenhamos, apresenta algumas dificuldades práticas. Ou ele ainda não existe, e se tal é o caso, seria preciso “inventá-lo”, ou pelo menos descrever sua arquitetura interna e externa e desenhar suas configurações principais; ou, então, ele já existe e esses franceses estão um pouco atrasados no palco da história. De fato, o capítulo principal do livro dos dois franceses mais lentos do que o militante alemão – denominado Vers un Socialisme du XXIe siècle, ou seja, em direção de... – tenta ainda encontrar uma alternativa ao modo de produção capitalista: uma de suas seções pretende lutar “Pour une alternative économique”. Só podemos desejar sucesso na empreitada, esperando que ela de fato seja bem sucedida. Mas uma primeira questão se coloca, como não deixou de observar um antigo conselheiro socialista do ex-primeiro ministro Lionel Jospin, em artigo recém publicado no mais prestigioso jornal francês: “Convertida em leitmotiv, essa fórmula [inventar o socialismo do século XXI] soa estranhamente. Com efeito, só se pode inventar o que não existe. Ora, o socialismo existe. Ele precedeu o marxismo e lhe sobreviveu. Ele luta para enquadrar e domar o capitalismo desde o nascimento deste último no século XIX [sic]. E, quaisquer que sejam suas novas características, o ‘socialismo do século XXI’ continuará, tanto em suas finalidades como em sua filosofia, muito próximo de seus antecessores dos dois séculos precedentes”.33 Vejamos, em todo caso, quais seriam as características do novo socialismo do século 21, anunciadas estrepitosamente por um militante alemão, ainda no século 20, e buscadas 32

Ver entrevista concedida a Cristina Marcano, Aporrea, 3.01.2007; http://www.kaosenlared.net/noticia/entrevista-a-heinz-dieterich. 33 Cf. Aquilino Morelle, “Le socialisme du XXIe siècle, un réformisme radical”, Le Monde, Point de Vue, 24.05.09; http://www.lemonde.fr/opinions/article/2009/05/23/le-socialisme-du-xxie-siecle-unreformisme-radical-par-aquilino-morelle_1197111_3232.html.

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afanosamente por outros militantes franceses já bem entrado o próprio século 21. Cabe, antes de tudo, oferecer alguns elementos constitutivos do ‘velho’ socialismo, de maneira a poder diferenciá-lo – ou inversamente – do seu êmulo do século 21, supostamente inovador, inventivo, diferente, ou seja lá o que for. Com efeito, de nada vale apresentar algo como sendo novo, sem o seu diferencial. Numa definição ‘rósea’, digamos assim, o movimento socialista busca a justiça social; condena as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem – por definição capitalista, ainda que outros modos de produção também se organizassem dessa maneira; defende o progresso social e prega a construção de uma sociedade igualitária, sem classes sociais. Esta é a sua versão democrática, numa caracterização civilizada do socialismo. Em sua definição leninista, clássica por assim dizer, o socialismo visa à eliminação do modo de produção capitalista, pela derrubada violenta do Estado burguês – por definição colocado a serviço das classes dominantes e exploradoras – com a implantação temporária de uma ditadura do proletariado que, uma vez construído o socialismo e estabelecidas as bases da sociedade comunista, poderá caminhar para o seu desaparecimento, assim como do próprio Estado, posto que todas as classes sociais terão sido fundidas numa mesma coletividade de trabalhadores, que se organizarão segundo o princípio marxiano: ‘de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades’. Corrijam-me os marxistas, velhos ou novos, róseos ou leninistas, se estou errado. Mas acredito ter apresentado o essencial das duas doutrinas principais do socialismo do século 20: a reformista, quase sem dentes, domada pelo capitalismo; e a mais truculenta, identificada com a III Internacional e os partidos comunistas alinhados a Moscou, quando esta ainda era a Meca do socialismo revolucionário. Quaisquer que sejam as qualificações que possam se feitas em relação às definições apresentadas acima, acredito que elas reproduzem razoavelmente bem a história do movimento socialista e comunista no século passado: os reformistas, de um lado, ajudaram a administrar o capitalismo, introduzindo pequenos avanços nas relações de trabalho e nos benefícios coletivos – geralmente via taxação progressiva e políticas setoriais, sempre por maioria parlamentar e, em todo caso, nos quadros da economia de mercado; as opções dos revolucionários, por sua vez, conheceram destinos diversos nos diversos países que tentaram a via ‘soviética’ de planejamento centralizado, com conseqüências trágicas a cada vez, algumas mais mortíferas que outras, mas todas elas muito penosas em termos de liberdades

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individuais e de bem-estar social. E, quaisquer que sejam as opiniões dos órfãos do socialismo real sobre os méritos relativos do socialismo reformista sobre o seu primo leninista, é evidente que eles não pretendem mais ser identificados com os terríveis crimes deste último, daí, justamente, essa invenção genial que se chama ‘socialismo do século 21’. Pois bem, em que consistiria, então esse novo produto no supermercado dos sistemas econômicos e políticos da história, esse novo animal na fauna já variada de regimes produtivos e modos de organização política à disposição dos domadores interessados? Segundo seu inventor presumido, que se vangloria de tê-lo posto em circulação em 1996 e de vê-lo já bastante disseminado a partir de 2001, o novo socialismo representaria, simplesmente, um sistema “no qual as maiorias tenham o maior grau de decisão historicamente possível nas instituições econômicas, políticas, culturais e militares, que regem suas vidas” (cf. entrevista supracitada). Dito assim parece pouco, e em nada diferente de um sistema democrático participativo, como são as sociais-democracias, em geral, e, de fato, todos os regimes democráticos modernos. Mas, o ideólogo em questão avança um pouco mais em suas definições. Ele recusa, em primeiro lugar, que tenham havido sociedades socialistas em todo o período que se estende da Revolução francesa aos nossos dias, e isso com base no que ele acredita terem sido os parâmetros que utilizavam Marx e Engels: economia do valor [que se supõe seja a teoria do valor trabalho] e democracia participativa. Em suas palavras, “sob esses critérios não houve nenhuma sociedade socialista desde a Revolução francesa, ainda que, sim, muitas tentativas heróicas e trágicas de lográ-la”. Bem, e o que ele propõe, exatamente, como ‘socialismo do século 21’, que ele acredita estar sendo construído na Venezuela atualmente? Perguntado sobre qual seria o passo decisivo que teria de dar o Presidente Chávez para chegar ao ‘socialismo do século 21 na Venezuela, ele responde: “São dois: 1) substituir gradualmente o princípio regulador da economia de mercado, o preço, pelo princípio regulador da economia socialista, o valor, entendido este como os insumos de tempo (time inputs) necessários para a geração de um produto; 2) avançar a participação econômica de cidadãos e trabalhadores em três níveis: 1. no macroeconômico (por exemplo, o orçamento nacional); 2. no mesoeconômico (município) e, 3. no microeconômico (empresa).” Este parece ser o cerne de sua genial invenção, salvo melhor juízo...

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O segundo passo até parece algo muito simples, nada de muito diferente de uma democracia ampliada, com amplas consultas populares, um pouco como nos cantões rurais da Suíça, digamos assim, ainda que as empresas helvéticas (de qualquer tipo) permaneçam irredutivelmente privadas. Já o primeiro passo, o da teoria do valor (trabalho) como substituta do valor capitalista (o preço), trata-se, sem dúvida alguma, de um verdadeiro ovo de Colombo, que deve merecer toda a nossa atenção. Quão novo é, de fato, o socialismo do século 21 e quais suas chances de dar certo, onde o velho fracassou miseravelmente? Vejamos, em primeiro lugar, o passo dois – não confundir com o paso doble, uma antiga dança de salão, inspirada nas touradas da Espanha e disseminada no sul da França e no mundo latino na primeira metade do século 20 –, pois ele parece mais simples de ser analisado e diagnosticado. A participação cidadã na formulação e execução orçamentárias vem sendo tentada em diversos experimentos ditos progressistas, com resultados muito variados e de toda forma não conclusivos, em todos eles. Nas ‘democracias burguesas’, essa participação se dá através do corpo representativo no parlamento, eleito justamente para isso, geralmente em bases proporcionais (puras, distritais majoritárias ou num misto de ambas), através de um complexo processo negociador que envolve vários ministérios setoriais, os órgãos de planejamento orçamentário e a eventual intromissão de lobbies – legais ou não – e do qual emerge uma peça legal que serve de base para o essencial das atividades do Executivo num ano-calendário (quase sempre identificado com o ano fiscal). Nos países mais sérios, não existe essa ‘teoria da jabuticaba’ de orçamento ‘autorizativo’, a partir do qual o Executivo faz o que quer em termos de execução orçamentária: contingenciamentos, retenções, e outras invenções surrealistas que caracterizam o cenário político brasileiro. O orçamento, neles, é obrigatório, ponto final (se o Executivo quiser mudá-lo, tem de enviar novo pedido ao Parlamento para reordenar os recursos e as despesas da peça orçamentária). Não existe nenhuma evidência concreta de que o chamado “orçamento participativo” seja qualitativamente superior aos orçamentos tradicionais, feitos em âmbito exclusivamente parlamentar, nos níveis federal, provincial (ou estadual) e municipal, podendo até haver um pressuposto lógico de que eles sejam piores, em sua definição ou execução (ou ambos). Com efeito, sendo as necessidades e os desejos humanos e sociais propriamente infinitos, ou pelo

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menos extensíssimos, e sendo os recursos financeiros escassos, por definição, é evidente que nem todas as demandas coletivas, por mais urgentes que sejam, poderão ser atendidas. Há, portanto, o sério risco, de que determinados projetos ou sejam postergados – como, aliás, sempre ocorre na via tradicional – ou de que eles sejam implementados de qualquer modo, por simples rendição ao populismo eleitoreiro, sem que a alternativa mais racional – que resultaria de longas e complexas avaliações técnicas, impossíveis de serem avaliadas numa ‘assembléia popular’ – seja levada em conta, num ambiente de ‘pressões populares’, sempre difíceis de serem recusadas pela própria natureza do mercado político eleitoral. Quer queiram, quer não os partidários do orçamento participativo, qualquer peça orçamentária envolve uma definição de prioridades – não apenas entre usos alternativos dos recursos fiscais disponíveis, mas também no que concerne sua utilização eventualmente delongada no tempo – que se acomoda mal com as demandas imediatas e urgentes de quaisquer setores desfavorecidos da população, geralmente propensos a solicitar obras imediatas e parcialmente corretivas dos problemas detectados, em detrimento de um planejamento em escala macro que recomendaria outras soluções de maior bem-estar coletivo, como energia e transportes, por exemplo (ainda que diferidas em sua implementação final). No que se refere, em particular, à experiência da Venezuela, não existe, justamente, nenhuma evidência de que tais procedimentos estejam sendo adotados, à falta de maiores dados sobre a execução do orçamento nacional, excessivamente concentrado na presidência, ou discutido num parlamento que parece inteiramente submisso à vontade do presidente. Sendo a companhia estatal de petróleo PDVSA a principal provedora de recursos para o Estado – e a maior fonte de divisas para as importações nacionais –, cabe recordar que essa companhia não publica balanços há vários anos e que o orçamento do Estado compõe-se de várias rubricas não transparentes, de uso discricionário pelo presidente, sem qualquer publicação oficial de números fiáveis (nem a Cepal, nem os organismos econômicos multilaterais vêm tendo condições de avaliar objetivamente a economia venezuelana, precisamente por falta de estatísticas completas sobre vários índices macroeconômicos e setoriais). Quanto ao segundo ponto, participação ‘mesoeconômica’, no município, de fato se trata de saudável disposição democrática, pois como costumava dizer um político democristão de saudável memória anti-corruptora (Franco Montoro), a população não vive nem na

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federação, nem no estado, mas no município, daí o interesse na descentralização mais ampla possível do maior número de iniciativas e execuções do poder público. Quanto a isso, duas observações podem ser feitas, uma em relação ao Brasil, a outra em relação à Venezuela. Dos mais de 5.500 municípios criados no Brasil – grande parte nos últimos vinte anos, por pura pressão de políticos profissionais, quase todos sem geração de receitas próprias – mais da metade vive de transferências federais, sendo que boa parte dos recursos acaba sendo consumida em gastos correntes: pessoal ou o próprio funcionamento da prefeitura e da câmara de vereadores, com os salários que se conhecem, em causa própria. Aparentemente, a população brasileira, mesmo a de grandes cidades, com grande fração de cidadãos educados, não vem sendo capaz de exercer seu poder ‘mesoeconômico’, não sendo de surpreender o que ocorre nos pequenos municípios, de população carente e escasso nível educacional. Quanto à Venezuela, os elementos de informação de que se dispõe indicam, contrariamente ao que poderia esperar o ideólogo alemão, que está em curso uma inédita concentração de poderes no âmbito da presidência da República e de órgãos auxiliares criados de forma ad hoc – conselhos populares – fortemente influenciados, ou totalmente dominados, pelo partido do presidente. Difícil falar, assim, de ampliação da democracia naquele país, inclusive porque a eleição de políticos de oposição em determinados estados e municípios – como é o caso da própria capital, Caracas – redundou no esvaziamento do poder político local e sua transferência para a esfera federal, mais exatamente para o palácio presidencial. No que se refere, finalmente, ao item três do passo dois, a participação dos trabalhadores no nível microeconômico, ou seja, nas empresas, as experiências internacionais indicam resultados ambíguos, em todos os casos, e algumas reversões em determinadas circunstâncias. As experiências mais avançadas nesse âmbito, nos casos das economias ‘sociais de mercado’ da Alemanha e dos países escandinavos, não passaram de interação sindical entre os diretores da empresa e os comitês sindicais – em alguns casos com envolvimento da categoria sindical mais ampla – para algumas definições estritamente laborais e de organização do trabalho, e de participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, o que vem sendo obtido em diversas economias capitalistas, sem qualquer prenúncio de que isso constitua uma etapa para a construção do ‘socialismo do século 21’ nesses países. Recentemente, inclusive, com a erosão dos ganhos de produtividade em vários países europeus, diversos ‘direitos’ dos trabalhadores foram sendo limitados, em função da própria

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sobrevivência do emprego setorial em economias de altos custos laborais como é o caso da maior parte desses países. Não existem, por outro lado, informações fiáveis de que o poder sindical esteja sendo reforçado na Venezuela; ao contrário: o governo federal vem ‘dialogando’ diretamente com os trabalhadores, seja ao aumentar rapidamente os salários, numa economia crescentemente inflacionária, seja ao determinar de maneira não negociada a redução da jornada de trabalho em todos os ramos da economia, independentemente das características setoriais e dos níveis de produtividade de cada um deles, o que pode agravar o desemprego. Ou seja, até aqui, não se vê muito bem, em quê, exatamente, o novo socialismo prometido pelo ideólogo alemão se distingue do capitalismo avançado e das democracias de massa e como, especialmente, a Venezuela está implementando o que parece ser um conjunto de melhorias parciais da condição democrática naquele país, inclusive porque uma avaliação independente dos progressos alcançados vem se tornando objetivamente impossível, pela falta de dados concretos sobre a situação das contas nacionais e dos principais indicadores setoriais. A hiperconcentração de poderes nas mãos do Executivo – de fato nas mãos do presidente atual – guarda uma estranha relação com os conceitos tradicionais de democracia, baseados na divisão dos poderes, na existência de controles sobre o uso dos recursos públicos, na transparência de dados essenciais ao funcionamento de uma economia complexa e no debate contraditório entre os diferentes setores da opinião pública, geralmente mediados pelo parlamento ou assegurados pelo funcionamento de uma justiça independente. Estas condições e pressupostos dos regimes democráticos ‘normais’ parecem longe de estarem sendo atendidos na Venezuela atual, o que quer que digam os promotores do “poder popular”, crescentemente dispostos, aparentemente, a silenciar ou asfixiar aquilo que se designa por “veículos de comunicação da oligarquia golpista”. Ao contrário: quem quer que conheça a história dos fascismos europeus na primeira metade do século 20, ou a própria ‘construção do socialismo’ na União Soviética dos anos 1920 – ou seja, o caminho para o Stato totale na Itália de Mussolini, a atribuição de plenos poderes ao novo chanceler Hitler, na Alemanha, logo convertido em Führer, e a transformação da suposta ‘república dos sovietes de operários e camponeses’ em ditadura do partido comunista na URSS de Lênin e de Stalin – não pode deixar de ficar chocado pela enorme semelhança de procedimentos e de intenções entre as medidas de concentração de poderes tomadas por aqueles ditadores e as

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iniciativas agressivas do líder venezuelano no sentido de ‘empolgar’ e dominar todas as instâncias de poder político e econômico no país caribenho. O mais surpreendente é que diversos expoentes da suposta esquerda ‘antifascista’ não se tenham dado conta dessas similitudes de forma e de substância entre esses processos históricos e não tenham traçado paralelos entre experiências e procedimentos que em nada se diferenciam, a não ser por um discurso alegadamente anti-imperialista (ou anti-americano), que na verdade existia também nos casos precedentes, mas geralmente dirigido contra o velho imperialismo britânico (as diatribes contra o imperialismo americano surgiriam, com maior intensidade, depois da Segunda Guerra Mundial). A falta de discernimento da esquerda marxista pode se explicar de duas formas: cegueira, talvez, ou então, estupidez política, mesmo... Do socialismo mais eletricidade do século 20 para o socialismo mais informática do século 21: alguma inovação genial? Um dos aspectos mais curiosos da construção inicial do socialismo na União Soviético era a dupla admiração de Lênin pelos procedimentos industriais de Henry Ford – um homem também imensamente admirado por Hitler, mas por seu anti-semitismo doentio e obsessivo – e pelo poder aparentemente mágico da eletricidade, algo ainda raro nas imensas extensões rurais da Rússia pré-bolchevique. Conseqüentemente, Lênin pretendeu impulsionar os métodos fordistas nas fábricas nacionalizadas pelo novo poder soviético e considerava, ingenuamente, que a simples introdução em larga escala da eletrificação, em todos os setores produtivos da economia socialista, seria capaz de lançar decisivamente o país no caminho do comunismo. Não é preciso dizer que o estilo ‘chaplinesco’ de trabalho, sob o comando de Stalin, logo converteu-se num dos mais acabados sistemas escravocratas da era contemporânea, e que a eletrificação efetivamente alcançada em quase todas as indústrias soviéticas – menos as do Gulag, onde a mão-de-obra era bem mais ‘barata’ – esteve longe de impulsionar tremendamente as forças produtivas na direção do almejado comunismo. Pois bem, o que pretende agora o ideólogo do ‘socialismo do século 21’ na Venezuela e, por extensão, em outros países tocados pelo poder mágico de sua fórmula inovadora para passar do capitalismo a um modo superior de produção? Pode parecer incrível, mas ele se prepara para cometer os mesmos erros que enterraram o socialismo do século 20 e que representam um dos mais trágicos equívocos embutidos na suposta ‘economia política

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marxista’, qual seja, a ‘superação’ da valoração de mercado – através dos preços – por uma fantasmagórica ‘contabilidade socialista’, baseada no valor (que se supõe seja a teoria do valor trabalho, recuperada erroneamente por Marx dos economistas ‘clássicos’, como Smith e Ricardo). E como ele pretende fazer isso? Por meio de um novo poder, o cibernético, ou informático, convertido no equivalente da eletricidade leninista para a construção do novo paraíso socialista. Basta substituir a eletricidade por um software e estamos prontos para embarcar na nave espacial do socialismo do século 21 (quem sabe mais além?). Nas próprias palavras de Heinz Dieterich, quando perguntado qual seria, então, o passo decisivo do presidente [venezuelano], ele responde, candidamente: “Não é a estatização generalizada da propriedade privada, porque ela não resolve o problema cibernético do mercado [sic]. Não o fez no passado e não o faria hoje. O socialismo hoje em dia é essencialmente um problema de complexidade informática [resic]. Daí, que o passo transcendental consiste em estabelecer uma contabilidade socialista (valor) ao lado da contabilidade capitalista (preço), no Estado, na PDVSA, e nas cooperativas, a fim de construir um circuito econômico produtivo e de circulação paralela ao da economia de mercado capitalista [tresic]. A economia das entidades estais e sociais pode deslocar-se passo a passo em direção à economia do valor e ganhar terreno sobre o circuito da reprodução capitalista, até substituí-la no futuro [quadrisic]. Dado que as escalas de valorização pelos preços, valores e também volumes, são comensuráveis, não ocorrerão rupturas nos intercâmbios econômicos que poderiam causar um problema político para o governo [otimista sic]. Em tudo isso, desempenham um papel importante o Estado e as maiorias [sociais], mas hoje em dia ambas estão majoritariamente com o projeto do Presidente [Chávez]”.34 Esse genial inventor de um ‘socialismo do século 21’ – cujas propostas têm um certo sabor de ‘revolução na ciência econômica’, desta vez sugeridas por um êmulo de Friedrich Engels contra algum fantasma de Eugen Dühring, surpreendido pelo furor da crítica à crítica ao socialismo marxista – parece ter descoberto a pólvora da nova economia socialista, um verdadeiro ovo de Colombo, que basta forçar um pouco numa das extremidades, para que ele se sustente gloriosamente de pé. Ele talvez merecesse um Prêmio IgNobel de Ciência Econômica, se não fosse pela completa falta de originalidade de sua teoria do valor. Se não vejamos. 34

Cf. entrevista, op. cit.; http://www.kaosenlared.net/noticia/entrevista-a-heinz-dieterich.

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A teoria do valor trabalho, como se sabe, é um dos pilares fundamentais da teoria marxiana da economia, embora não tenha sido inventada por Marx, nem era admitida unicamente por ele como um dos possíveis instrumentos para a mensuração do valor de uma mercadoria. Adam Smith e David Ricardo flertaram com ela em suas obras respectivas, mas nunca chegaram fazer dela o instrumento essencial da definição do valor de mercado de um bem manufaturado. Para Marx, totalmente equivocado nesse particular, mas agora ressuscitado pelo novo sábio alemão, o valor de uma mercadoria qualquer pode ser aferido objetivamente pelo número de horas requeridas para produzir aquela mercadoria: se para produzir um quilo de pão se requer o dobro do tempo necessário para produzir um quilo de merengues, então o pão deve valer o dobro dos merengues, independentemente dos insumos inseridos em cada mercadoria. Daí ele extraiu a sua famosa teoria da mais-valia, como sendo a base de sua explicação sobre a natureza da exploração capitalista, a verdadeira essência do processo de produção capitalista e, obviamente, da extração de capital do trabalhador pelo capitalista, a partir da apropriação do sobre-trabalho daquele por este último. Enfim, acreditam nessa fábula pretensamente econômica apenas aqueles que se deixam cegar pela ‘imoralidade’ da exploração capitalista e pretendem libertar os trabalhadores industriais das novas galeras da grande indústria capitalista. Para todos os efeitos, a teoria do valor trabalho não possui nenhuma viabilidade teórica ou validade prática para aferir o que quer que seja no processo de produção de mercadorias, em qualquer regime industrial imaginável nos séculos passados e nos que ainda vão vir. As leis da oferta e da procura em seus sempre mutáveis pontos de encontro, combinadas à escassez relativa dos insumos e dos meios de produção – cuja aferição é dada pelos preços de mercado – determinam o valor (de mercado, obviamente) de qualquer mercadoria imaginável, menos, é claro, aquelas que serão fabricadas nas novas empresas do ‘socialismo do século 21’ do novo sábio alemão, conselheiro eventual de algum príncipe tropical. E o que pretende esse cérebro genial da nova economia política do século 21? Simplesmente substituir o mecanismo dos preços de mercado, vulgarmente capitalista, pela nova contabilidade socialista, uma espécie de Gosplan informatizado, no lugar das velhas máquinas de calcular elétricas dos funcionários do ministério soviético do planejamento e do seu comitê de preços, supostamente capaz de determinar o preço exato de 24 milhões de mercadorias e insumos intermediários oferecidos no não-mercado socialista (bem, nem tanto

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assim: talvez o socialismo ainda não tivesse alcançado o capitalismo em diversidade de bens ‘supérfluos’). Mas, deixemo-lo expressar suas idéias com suas próprias palavras: “Gerar o circuito paralelo da economia do valor seria relativamente fácil [sic], porque os valores existem de forma subjacente na atual contabilidade capitalista [resic]. De tal maneira, que com o desenvolvimento de um software apropriado [tresic] seria muito fácil estabelecer esse circuito econômico socialista ao lado do [circuito] capitalista [quadrisic]. Sem esta passagem à economia da equivalência [???], não há possibilidade de se ter uma economia socialista” (op. cit.). Existe aqui não apenas uma insuperável contradição econômica, mas também um enorme absurdo conceitual. Se algum economista prático, isto é, de alguma empresa capitalista ou dedicado à economia aplicada – bem, acho que podemos estabelecer uma ‘licença poética’ para alguns economistas acadêmicos, pois eles têm direito à sua quota de loucuras – concordar em que “os valores existem de forma subjacente na atual contabilidade capitalista”, ele poderia ser, no mínimo, despedido por incompetente, e, no limite, internado por insanidade econômica grave. Se esse economista ainda achar que basta um software para traçar uma lei de equivalência – seja lá o que isso queira dizer – entre a produção capitalista e a socialista, então é o caso de se receitar eletro choques e doses dobradas de antidepressivo. Enfim, acho que um economista desses nunca seria contratado por uma empresa capitalista, nem se aproximaria de algum instituto sério de pesquisa econômica aplicada – bem, sempre pode ter algum instituto por aí, desprevenido – e teria, portanto, uma capacidade muito limitada de perpetrar alguma maldade econômica, a menos que ele esteja a serviço de algum príncipe bizarro. Se as suas ‘teorias’ fossem aceitas como fundamento de alguma NEP tropical, uma nova economia política a serviço do socialismo de qualquer século, passado, presente ou futuro, então, a sua capacidade de arrasar com a economia nacional seria devastadora. Esse teórico do novo socialismo nunca deve ter lido as críticas de Ludwig von Mises e de Friedrich Hayek a propósito do velho socialismo, o primeiro dos quais publicou, há quase 90 anos – num momento, portanto, em que o socialismo ainda nem existia como realidade prática – uma crítica, aí sim, devastadora dos ‘fundamentos’ econômicos do sistema que Lênin pensava implantar na Rússia soviética. Mises, seja pela lógica formal, seja pela simples análise econômica do mecanismo de preços como sinalizador da raridade relativa dos

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bens de mercado – insumos, meios de produção ou mercadorias – afirmou que um sistema socialista não apenas não conseguiria funcionar, como seria impossível de ser administrado racionalmente. O fato de que um sistema socialista ‘funcionou’ durante setenta anos, a despeito das advertências de Mises e Hayek, não prova que um elefante consegue voar; prova apenas que, sob condições de escravidão humana ou com imenso desperdício de recursos, ‘milagres’ podem ser realizados, ainda que com prazos de validade limitados. O que ocorreu na União Soviética durante a fase do stalinismo triunfante ou na China do maoísmo delirante demonstram que a vontade humana pode ser dobrada até o limite da sobrevivência física, e que em condições de “oferta ilimitada de mão-de-obra” – como diria um famoso economista do desenvolvimento – as piores aberrações econômicas podem ser perpetradas durante certo tempo. Quando se tem, por exemplo, uma oferta ilimitada de recursos – derivada, digamos, do aumento extraordinário dos preços do petróleo – podem-se cometer as piores loucuras econômicas: mandar plantar bananas no Pólo Norte, digamos, seria uma delas, (com aquecedores a diesel, muito adubo trazido do exterior e a vigilância de um exército de esquimós treinados para essa finalidade, logo teríamos uma bela plantação de bananas acima do círculo polar). Enquanto o dinheiro não for um limitador ‘capitalista’, dá para sustentar indústrias ineficientes, mercadorias altamente subsidiadas para ‘abastecer’ o povo e trabalhadores pagos acima do seu valor de mercado – não, não perguntem ao ‘economista’ desse sistema qual é esse valor de mercado, que ele só saberia balbuciar umas bobagens em torno do Programa de Gotha. Quando os recursos encontrarem o seu limite físico, pode-se também emitir papel moeda sem valor, o que muitos governos fazem de forma recorrente. Mas, em algum momento, a dura realidade da vida econômica vai bater às portas do economista oficial, e ele será obrigado a se dobrar às leis do mercado (bem, estou também supondo que um súbito ataque de lucidez levará o seu príncipe a demiti-lo antes da débâcle final). Mesmo não considerando o terrível preço da falta de liberdade econômica – e política, que geralmente vem junto – um sistema como esse proposto pelo ‘genial’ inventor do ‘socialismo do século 21’ é propriamente insustentável no médio e longo prazo, em condições normais de temperatura e pressão. Com uma ‘vaca petrolífera’ à disposição, é possível alimentar a população durante certo tempo, mas as pessoas vão certamente se cansar, um dia, dos mesmos produtos sem muita sofisticação. E as vacas, um dia, ficam sem leite...

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5. A história se repete? Talvez, mas não precisaria ser como tragédia... Pode parecer incrível, com efeito, que, depois de todos os desastres econômicos, políticos e humanos, do socialismo no século 20 – sim, porque no século 19 não houve nenhum experimento desse tipo, apenas teorias, e no século 18 ele ainda era ‘utópico’ –, alguém ainda pretenda retomar o mesmo festival de bobagens econômicas que levou tantos países ao desastre e à desesperança. Parece que foi Marx, justamente, quem alertou para a repetição da história, mas desta vez o inverso é que se apresenta. De fato, algumas repetições de experimentos passados de engenharia social redundaram em terríveis tragédias para os seus povos: basta lembrar os ‘campos da morte’, no Sudeste asiático, no final dos anos 1970, ou na lenta morte por inanição de toda uma população num canto recuado da mesma Ásia. Mesmo na América Latina, as tentativas de ‘senderos luminosos’ ou de construção do ‘homem novo’ estão longe de terem sido farsas históricas, cobrando um preço terrível sobre populações inteiras. Economistas ‘iluminados’ e líderes ‘salvacionistas’ são duas pragas que acometem de maneira recorrente países insuficientemente desenvolvidos nos planos da economia de mercado ou de um sistema político minimamente democrático. A única maneira de escapar dessas pragas é através da educação econômica e do esclarecimento político da maior parte da população, mas esse pode ser um processo factível apenas no médio e longo prazo, o que é compreensível quando se observa, historicamente, o lento desenvolvimento das sociedades humanas em direção a patamares mais avançados de instrução elementar e, depois, mediana. O que é mais preocupante, em contrapartida, é ver quantos membros da academia, supostamente pessoas esclarecidas e bem informadas, se deixam seduzir por falácias do tipo que estamos examinando nesta série. Está certo que todos nós nascemos ‘zero quilometro’, ou seja, igualmente ignorantes, e que nossa educação (política e econômica) precisa ser retomada a cada geração e a cada novo indivíduo. Mas também é certo que o estoque de conhecimentos científicos acumulados desde centenas de anos pela humanidade encontra-se hoje livremente disponível nos sistemas informatizados que o ‘economista maluco’ pretendia ter como a base da nova economia socialista: não custa nada tomar conhecimento das experiências passadas e evitar a repetição das mesmas falácias de cem ou duzentos anos atrás. É uma simples questão de bom senso. Brasília, 24 de maio de 2009

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10. Mitos sobre o sistema monetário internacional

Os órfãos de Keynes em busca de um Bretton Woods mítico A atual crise econômica internacional – que emergiu da crise financeira americana de 2007-2008 e que rapidamente se espalhou pelo mundo, atingindo países ricos e alguns emergentes –, tem suscitado um curioso renascimento de idéias e propostas de corte keynesiano, algumas mais originais do que outras. Os verdadeiros cultores do mestre de Cambridge, num estilo não muito diferente de uma seita de adoradores de fetiches do passado, não hesitam inclusive em recorrer às propostas por ele formuladas em Bretton Woods, em 1944; como se essas propostas tivessem o poder mágico de encerrar as atuais turbulências, acabar com a recessão e contribuir para a retomada de um crescimento sustentável, sem os sobressaltos típicos das economias de mercado (que alguns interpretam como sendo uma fatalidade dos sistemas capitalistas, no que eles, aliás, não estão totalmente errados). Entre os que mais professam esse tipo de liturgia econômica estão membros da apropriadamente chamada Associação Keynesiana Brasileira (AKB), que, legitimamente ou não, acreditam que a crise atual “tem gerado um consenso acerca da necessidade de se reestruturar o sistema monetário internacional (SMI), condição imprescindível para que a economia volte a experimentar períodos de estabilidade e de crescimento dos níveis de produto e emprego”.35 Os autores apontam recentes sugestões de “substituição do dólar como moeda de conversibilidade internacional por uma moeda universal, soberana e independente dos bancos centrais nacionais”, assim como o aumento das linhas de crédito emergenciais do Fundo Monetário Internacional (FMI), a reforma das instituições financeiras internacionais e o estabelecimento de novas regras relativas ao sistema financeiro – como restrições a paraísos fiscais e a movimentos de capitais – para sugerir, por sua vez, o resgate das idéias de Keynes e a reforma completa do sistema monetário internacional. “As propostas acima”, escrevem 35

Cf. Fernando Ferrari Filho e Luiz Fernando de Paula, “A reestruturação do sistema monetário internacional”, jornal Valor Econômico, 22 de junho de 2009, p. A-12; disponível: http://www.valoronline.com.br/ValorImpresso/MateriaImpresso.aspx?dtMateria=22/6/2009%200:00: 00&codMateria=5630361&codCategoria=96.

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eles, “nos remetem à proposta de Keynes apresentada na conferência de Bretton Woods, em 1944, qual seja, a criação de uma autoridade monetária internacional, International Clearing Union (ICU), emissora de uma moeda de reserva internacional (bancor) não passível de entesouramento e especulação por parte dos agentes econômicos e com o objetivo específico de lastrear as relações comerciais e financeiras do SMI” (idem, loc. cit.). Como eu não acredito que haja qualquer consenso em torno dessas propostas, e como também acredito que as idéias de Keynes são totalmente inadequadas para tratar das realidades econômicas e financeiras do mundo contemporâneo, proponho-me a, neste novo ensaio da série “Falácias Acadêmicas”, examinar as sugestões que vêm sendo feitas para reformar ou aperfeiçoar o SMI – se é que existe algo do gênero – e dar-lhes um tratamento analítico (e crítico) bem mais realista do que o que vem sendo efetuado em diferentes artigos de acadêmicos publicados em torno dessas questões no período recente. A ilusão da liquidez perfeita, do equilíbrio contínuo e da moeda estável Os principais mitos dos keynesianos sonhadores referem-se à tripla possibilidade de uma paridade estável entre as moedas, de manutenção de um nível de liquidez adequado ao bom funcionamento das economias nacionais – isto é, um que realizasse o equilíbrio perfeito entre as decisões de investimento e de aplicações puramente financeiras – e da existência de um mecanismo capaz de assegurar o equilíbrio automático entre credores e devedores internacionais, de maneira a minimizar crises de balanço de pagamentos e, portanto, a necessidade de intervenção emergencial de algum emprestador de última instância. Não digo que esses objetivos não possam ser buscados em seu mérito próprio, ainda que sua manutenção ao longo do tempo, dadas as dinâmicas das economias de mercado, seja uma perfeita ilusão. Mas considero que essas propostas – que os keynesianos ingênuos da atualidade consideram como sendo idéias sensíveis do economista de Cambridge – não foram formulados como se fossem sugestões desinteressadas para o perfeito equilíbrio da economia mundial e de seu sistema financeiro, como se Keynes fosse um genial benfeitor da humanidade, e não o defensor do império britânico que ele foi. De fato, todas as propostas feitas pela delegação britânica em Bretton Woods – aliás, bem antes disso, desde a Carta do Atlântico e os acordos de lend-lease – não estavam em nada desvinculadas da situação da Grã-Bretanha daquela conjuntura e de seus interesses específicos em mecanismos salvadores de uma situação de pré-bancarrota previsível. Talvez uma leitura do terceiro volume da

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biografia de Keynes por Lord Skidelsky pudesse esclarecer aos keynesianos atuais sobre as circunstâncias da época e sobre os dilemas e preocupações de Keynes em Bretton Woods.36 Como reconhecem os keynesianos da AKB, “a idéia central de Keynes, com sua ICU, era tornar a liquidez internacional mais elástica para expandir a demanda efetiva mundial. Para tanto, o bancor, em conjunto com as sistemáticas de taxas de câmbio administradas e de cerceamento da capacidade desestabilizadora dos fluxos de capitais de curto prazo, sinalizaria a convenção estabilizadora das expectativas dos agentes econômicos, fundamental para, ao reduzir o grau de incerteza acerca do comportamento futuro dos preços dos ativos e/ou contratos, induzir as suas tomadas de decisão de gastos, sejam de consumo, sejam de investimento, expandindo, por conseguinte, a atividade econômica e o nível de emprego em nível mundial” (op. cit.). Não cabe dúvidas: toda vez que encontrarmos alguém pedindo expansão da liquidez, crescimento do emprego, controle do câmbio e dos fluxos de capitais, independentemente da situação fiscal do país em questão, ou dos efeitos de toda essa política expansionista sobre as taxas de inflação, podem ter certeza: estamos em face de um keynesiano puro, um produtor do moto contínuo do crescimento virtuoso. Na verdade, os esquemas propostos em Bretton Woods por Keynes, de um lado, e por Harry White, de outro, não eram muito diferentes em suas vertentes cambial e financeira. Como escrevem os atuais representantes da espécie, “[p]ara que essa moeda [o bancor] pudesse dinamizar as operações econômicas entre os países, a estabilidade do SMI, segundo Keynes, deveria ser assegurada pela adoção de regras cambiais fixas, porém ajustáveis, e pela implementação de controle dos fluxos de capitais de curto prazo, essencialmente especulativos.” Ora, o que resultou de Bretton Woods não foi algo muito diferente disso: a paridade cambial, legalmente colocada sob a jurisdição do FMI, foi declarada estável, embora ajustável. Os movimentos de capitais, por sua vez, foram mantidos à margem de seu mandato, submetidos, portanto, às jurisdições nacionais. Como se sabe, o regime de paridades estáveis foi rompido diversas vezes pela ação unilateral de vários membros importantes do FMI ao longo de sua primeira fase – inclusive pela Grã-Bretanha e pela França, em proporções muita vezes superiores ao que seria autorizado sem consulta ao board 36

Ver Robert Skidelsky, John Maynard Keynes, vol. 3: Fighting for Freedom, 1937-1946 (New York: Viking, 2000). Uma consulta ao estudo clássico sobre as negociações bilaterais em Bretton Woods também ajudaria: ver Richard N. Gardner, Sterling-Dollar Diplomacy in Current Perspective: The origins and the prospects of our international economic order (New York: Columbia University Press, 1980).

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da instituição – e de maneira decisiva, em 1971, pelo seu membro garantidor por excelência, os Estados Unidos. Como se sabe também, o FMI jamais ganhou mandato para administrar – ou melhor, liberalizar – os movimentos de capitais, embora tentativas frustradas tenham sido feitas em meados dos anos 1990. Na parte monetária, contudo, o bancor imaginado por Keynes nunca viria a existir, sendo substituído pelo padrão ouro-dólar, tendo como única garantia a palavra – bem, as supostas reservas ‘fabulosas’ em ouro – dos Estados Unidos. Seria pedir muito aos EUA, país incapaz de delegar qualquer poder real a qualquer organização internacional que seja, que este renunciasse à sua capacidade soberana de utilizar sua própria moeda nas transações externas. Em termos práticos, o papel de ‘emprestador de última instância’ desempenhado pelos EUA – através do FMI – durante grande parte da existência do regime de Bretton Woods era condicional à capacidade americana de sustentar os seus próprios desequilíbrios fiscais e de balança de transações correntes, algo dependente de políticas econômicas nacionais que nunca seriam delegadas a uma autoridade mundial (e nem o Plano Keynes previa isto). À procura de uma ‘tia rica’ para cobrir o seu déficit de pagamentos E quanto à ‘idéia central’ de Keynes, sua International Clearing Union (ICU), que deveria realizar o ajuste automático das balanças dos credores e devedores, ou entre superavitários e deficitários? Os keynesianos da AKB não explicitam, mas é sabido que Keynes pretendia estabelecer um mecanismo de compensações imediatas entre os exportadores crônicos e os importadores contumazes – como a sua velha Grã-Bretanha – de maneira a que a carga do ajuste caísse automaticamente sobre os primeiros, como num sistema de vasos comunicantes em que os excedentários tivessem a obrigação de colocar os seus saldos à disposição dos temporariamente insolventes. Ora, longe de ser uma generosa idéia com propósitos universais, capaz de “tornar a liquidez internacional mais elástica para expandir a demanda efetiva mundial”, como escrevem os nossos keynesianos, tratava-se de um expediente de puro desespero contábil, pelo qual a Grã-Bretanha estava procurando um financiador compulsório para os seus previsíveis déficits de transações correntes do pósguerra. Em linguagem coloquial, seria como se um adolescente farrista tivesse, à sua disposição, uma tia rica e generosa, capaz de sempre cobrir o seu cartão de crédito, depois de

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muito abusar no consumo. Os EUA, como se sabe, recusaram-se a posar de tia rica e desempenharam, ao contrário, o papel de um cobrador severo, que impõe um regime de pão e água aos devedores inadimplentes. Este é todo o sentido das condicionalidades estritas do FMI em sua fase ortodoxa clássica: estabelecer um regime de emagrecimento e de ajuste monitorado, para que o adolescente mal comportado não pense em recorrer muito frequentemente aos cofres do FMI. Na verdade, os EUA foram, sim, uma tia generosa quando isso se revelou necessário: durante a penúria de dólares do imediato pós-guerra e da ameaça de ‘sovietização’ de países europeus. O Plano Marshall – que não deve ser considerado um programa de desenvolvimento, e sim de reconstrução e de reorganização de economias de mercado – representou um aporte de aproximadamente 450 bilhões de dólares (atualizados) para os diversos países que se beneficiaram de seus esquemas de dons e financiamentos. Aliás, nem o FMI, atualmente, consegue ser, ainda, aquela tia severa que impunha programas de ajuste aos recalcitrantes: ele hoje está quase heterodoxo, emprestando grandes somas sem quaisquer condicionalidades e disposto a perdoar os pecadilhos keynesianos de quase todos os seus membros, ricos e pobres. Não é provável hoje, nem nunca o foi aos tempos de Bretton Woods, que uma entidade como a ICU venha a ser jamais estabelecida. Poucos países sérios estariam dispostos a colocar seus excedentes de transações correntes à disposição de uma autoridade mundial, com problemas enormes de gestão coordenada das políticas comerciais e cambiais e de administração conjunta dessas reservas. Pouquíssimos, então, desejariam “uma moeda universal, soberana e independente das decisões dos bancos centrais nacionais”, como escrevem os keynesianos da AKB, no aparente seguimento do presidente do banco chinês, que teria sugerido a substituição do dólar por uma nova moeda conversível internacionalmente. Tratava-se apenas de um balão de ensaio exclusivamente político, para que os americanos fosse mais responsáveis na gestão de sua economia (o que interessa sobremodo aos dirigentes chineses). Nossos keynesianos não se dão conta de que os chineses estavam apenas fazendo um pouco de ‘terrorismo monetário’ contra os EUA, e que eles não pretendem, pelo menos por enquanto, sabotar o papel internacional do dólar. Os chineses foram veementes, na reunião dos Bric de Ekaterimburgo (junho de 2009) ao recusar qualquer discussão sobre uma nova moeda de reserva internacional, ao mesmo tempo em que eles continuavam a acumular

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reservas em dólar e a sustentar as emissões do Tesouro americano. Ironicamente, a China parece atualmente ter se convertido nessa tia rica que financia as loucuras consumistas do seu sobrinho irresponsável dos EUA, sem o qual, aliás, ela não conseguiria manter ativa sua gigantesca oficina de manufaturados. A Inglaterra de Lord Keynes não tinha, em Bretton Woods, nenhuma importância econômica para os EUA, que na verdade queriam desmantelar as preferências imperiais estabelecidas na conferência de Ottawa (1932), que privavam as exportações americanas de novos mercados. OK: na ausência de uma nova moeda internacional, usemos as moedas locais O que dizer, então, dessa proposta aparentemente ‘genial’ de substituir o dólar por uma nova moeda de reserva internacional – que os nossos keynesianos pretendem que seria uma espécie de sucedâneo do bancor milagroso do velho tio economista de Cambridge – ou, na sua ausência, da utilização das moedas locais para efetuar os pagamentos comerciais e as compensações financeiras? Se a idéia de uma moeda universal – que supõe, ipso facto, a existência de um banco central mundial, algo impensável no horizonte histórico previsível – já parece, por si mesma, estapafúrdia, a proposta de escapar ao multilateralismo financeiro em direção a um sistema de compensações bilaterais entre moedas inconversíveis não é apenas aloprada; ela é anacrônica e propriamente reacionária, pois implicaria em voltar oitenta anos, depois da penosa construção de um sistema multilateral de pagamentos que, por mais imperfeito que seja – posto que baseado em grande parte numa moeda doente, o dólar – ainda cumpre muito bem suas funções monetárias e financeiras. Por razões que independem largamente dos arranjos efetuados em Bretton Woods, o dólar converteu-se, desde a Segunda Guerra Mundial, no padrão de referência e no veículo efetivo da maior parte das transações monetárias, financeiras, cambiais e, sobretudo, comerciais no mundo. Sua parte nas reservas em divisas dos bancos centrais pode ter diminuído significativamente nas últimas décadas – grosso modo, de 75% para algo próximo a 60% das reservas totais, com um crescimento concomitante do euro. Mas ele ainda é imbatível nas bolsas de mercadorias, nas transações de todo tipo entre empresas e indivíduos de todo o mundo e no registro contábil que países e organismos internacionais mobilizam para comparar contas nacionais e valores de diversos tipos. Pode-se pensar que seu papel em todos esses fluxos venha a ser ainda diminuído, mas não é crível imaginar que países ‘não-

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hegemônicos’ possam construir uma moeda substituta apenas por força da retórica política ou da simples vontade econômica expressa em comunicados de cúpula. A libra foi, durante um século e meio aproximadamente, a moeda universal por excelência, na ausência de qualquer imposição unilateral e de qualquer arranjo institucional em bases intergovernamentais, apenas como resultado do poderio econômico da GrãBretanha – durante a vigência da primeira revolução industrial – e da garantia de conversão dada pelo Bank of England sob o regime do padrão ouro. Na verdade, a libra nem precisava circular fisicamente para garantir sua hegemonia absoluta nas transações comerciais e financeiras mundiais: bastava que os capitães de navios trabalhassem com letras de câmbio denominadas em libras no transporte de suas mercadorias, e que os pagamentos fossem compensados no mercado financeiro londrino pelo ‘wireless’ da era vitoriana – o telégrafo, primeiro com fio, depois sem – para que essa dominação universal se estabelecesse de forma indisputada. Da mesma forma, o dólar não foi imposto ao mundo por alguma medida de força, ou por algum tratado decidido unilateralmente pelos EUA. Trata-se apenas do simples reconhecimento da sua importância econômica, da confiança que os agentes econômicos e os próprios países têm na manutenção do dólar como instrumento confiável, de sua capacidade em atender aos requisitos básicos de uma moeda. Não custa nada lembrar quais são eles: 1) unidade de conta; 2) instrumento de troca; 3) reserva de valor. Até aqui o dólar deu conta dessas funções, aparentemente sem muitas reclamações de seus usuários. Isso não impede, obviamente, que outras moedas sejam usadas internacionalmente, como é o caso do euro nos países membros da UE, e entre esta e uma multiplicidade de parceiros. O iene, a libra e algumas outras moedas também são utilizadas para determinadas transações ou entre um número seleto de países. Mas não parece provável que qualquer uma delas, e muito menos o yuan, o rublo, a rúpia ou o real, atualmente inconversíveis, possam ocupar o espaço hoje preenchido pelo dólar nas transações internacionais (e bilaterais). Pois bem: o mundo demorou anos, décadas, para construir um sistema multilateral de pagamentos e um regime de trocas que facilitasse as transações entre os países, com o mínimo possível de restrições. Bretton Woods, aliás, foi feito para isso mesmo e, mesmo se a estabilidade cambial saltou pelos ares, o compromisso com a liberalização multilateral dos pagamentos correntes continua viva e atuante. Trata-se, aliás, de uma obrigação jurídica relevante de todos os membros do FMI.

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O multilateralismo monetário, por imperfeito que seja – posto que as autoridades monetárias americanas podem decidir dar um calote no mundo, deixando de honrar seus compromissos externos: os compradores de títulos do Tesouro, por exemplo –, ainda é o melhor sistema possível na atualidade; ele permite, facilmente, que a mesma moeda seja usada com diferentes parceiros em todas as transações que eles desejem, sem se amarrar a um instrumento único, como ocorria ainda com o bilateralismo estrito dos anos 1930, baseado em compensações diretas entre os países. À luz desta realidade, não parece compreensível que países que procuram manter um sistema aberto de comércio, como parece ser o compromisso dos Bric, planejem agora recuar do multilateralismo monetário – ou seja, da liberdade cambial e financeira – para um bilateralismo míope, no qual eles só poderiam utilizar a moeda de um parceiro com esse mesmo parceiro. Trata-se de uma restrição incompreensível. Não se concebe um keynesiano razoável que seja capaz de recomendar um recuo dessa magnitude nas relações comerciais e financeiras externas de qualquer país. A rigor, uma medida extrema desse tipo só seria concebível se o dólar estivesse muito doente, ou seja, deixando de preencher adequadamente qualquer uma das três funções referidas acima, o que, hipoteticamente, não é impossível: bastaria que a inflação americana e o aumento do riscopaís – eventualmente provocados por excessos de emissão e de dívida externa – enfraquecesse o dólar em grau suficiente para provocar a rejeição dessa moeda. A despeito de que alguns governos americanos – inclusive de conservadores republicanos – tenham sido irresponsáveis ao ponto de agravar o déficit orçamentário e os desequilíbrios externos, não se imagina que os EUA continuem a trilhar um caminho insustentável no plano fiscal e o da inadimplência anunciada na dívida pública. Mas como moeda é, basicamente, uma questão de confiança, é provável que muito antes disso acontecer, os países busquem, responsavelmente, diversificar suas reservas em divisas, o que seria do toda maneira muito saudável. Um outro Bretton Woods é possível?; não é proibido sonhar... A despeito do que possam acreditar os true believers na palavra sagrada do mestre, não é razoável pensar que o mundo do século 21 venha a conceber soluções para os problemas monetários e financeiros da atualidade com base em expedientes rapidamente concebidos numa situação de crise fenomenal e de conflitos militares como aquela existente ao tempo de Bretton Woods; se tratava de um mundo no qual ainda se acreditava num retorno

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ao padrão ouro, na possibilidade de estabilidade cambial sob um regime universal e no controle estrito dos movimentos de capitais. Os que pensam assim querem fazer girar para trás a roda da História. O que diz a AKB?: “A ironia do mundo globalizado e alicerçado no ‘fundamentalismo’ da lógica autorreguladora dos mercados é que a solução para a crise financeira internacional passe, em termos práticos, pela implementação, por parte das principais autoridades econômicas mundiais, de políticas fiscais e monetárias contracíclicas keynesianas, e ainda por uma proposição de reestruturação do SMI de algum modo similar à apresentada por Keynes quando da conferência de Bretton Woods” (op. cit.). Para desespero dos keynesianos brasileiros, não existem ‘autoridades econômicas mundiais’, apenas autoridades monetárias nacionais que tentam, por vezes desesperadamente, coordenar suas políticas macroeconômicas e setoriais. Desde a criação do G7, quatro décadas atrás, elas vêm tentando, mas ainda não conseguiram: o que não foi obtido a sete, dificilmente o será a 20, ou mesmo a 13 ou 14 membros ‘influentes’ da comunidade financeira internacional. Que os mercados não tenham capacidade de se autorregular é óbvio: eles não são instituições dotadas de comando central. Em contrapartida, os keynesianos podem ter certeza de que eles sempre se corrigem a si mesmos, por vezes da maneira mais brutal: são os governos que interferem em seu funcionamento, distorcendo ou impedindo as correções naturais que seriam necessariamente feitas em função dos desequilíbrios acumulados. Resumindo, os keynesianos contemporâneos podem continuar o seu culto ao mestre de maneira quase religiosa. Não é sensato, porém, que eles reinterpretem a história passada e se ponham em marcha em busca de um Santo Graal keynesiano que nunca existiu em Bretton Woods ou em qualquer outra instância negociadora do sistema monetário internacional. Um pouco de realismo nunca é demais... Brasília, 23 de junho de 2009

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11. O mito da transição do capitalismo ao socialismo

O socialismo vai emergir a partir do capitalismo? Uma das mais persistentes falácias alimentadas durante a época áurea do marxismo acadêmico, que foi também a do comunismo prático – um período que se estende, grosso modo, dos anos 20 aos 80 do século 20 – era a que pretendia que o capitalismo seria fatalmente sucedido pelo socialismo, e este pelo comunismo (mas aqui, mesmo os mais fiéis cultores da crença remetiam essa passagem a um futuro indefinido). A rigor, ainda nos dias que correm, muitos adeptos dessa concepção evolutiva – aparentemente, desta vez, apenas nos meios acadêmicos –pretendem que essa sucessão se dará fatalmente, mesmo se o processo tenha de adotar uma cronologia mais delongada do que aquela prevista em trabalhos alegadamente marxistas. Trata-se, portanto, de uma falácia persistente, justificando, assim, que ela seja examinada nesta série voltada especificamente para os mitos que alimentam o mundo acadêmico, a despeito de tantos desmentidos empíricos e de tantas provas em contrário às suas principais assertivas. Entretanto, como sabemos, o mundo acadêmico costuma girar em torno de conceitos abstratos, alimentando-se de seus próprios mitos, entre os quais alguns dos mais relevantes são aqueles que derivam da tradição analítica marxista, uma das mais presentes e das mais ‘poderosas’ nas áreas das humanidades. A bem da verdade, naquele período do marxismo quase triunfante, não eram só os marxistas acadêmicos, ou os seus praticantes, que mantinham essa crença, assim como não são apenas os representantes da família que a mantêm ainda hoje. Sem pretender estabelecer aqui uma lista completa dos true believers – pois ela seria enorme, sobretudo entre os franceses, italianos e ingleses –, pode-se mencionar, na categoria dos céticos, dois mais preeminentes: o economista austríaco Joseph Schumpeter, com o seu famoso Socialismo, Capitalismo e Democracia (1942)37, e o economista canadense John Kenneth Galbraith,

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O economista austríaco Joseph A. Schumpeter (1883-1950) é mais conhecido por sua teoria dos ciclos econômicos e pela inovação empresarial, mas foi também um crítico do imperialismo e do capitalismo; sua teoria do desenvolvimento econômico (apresentada em livro publicado em 1911) é bem mais uma análise das condições do crescimento sustentado, com base na atividade industrial (mudança tecnológica e destruição criativa). Com base na instabilidade inerente do capitalismo, ele previu, em seu livro de 1942, que o sistema acabaria se dissolvendo pelas mãos dos intelectuais – como ele, talvez –, mas tendo falhado como ministro da Economia da Áustria (1919) e como diretor

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sobretudo em seu livro The Affluent Society (1958), cujas teses principais foram depois reafirmadas em The New Industrial State (1967).38 Os dois, junto com Thorstein Veblen, um predecessor do início do século 20, não confiavam muito na capacidade dos mercados livres e do capitalismo desimpedido em corrigir os problemas mais típicos do sistema, quais sejam: a desigualdade social e a concentração do poder econômico, pregando, como consequência lógica, o aumento dos serviços públicos e o do poder estatal sobre as empresas privadas. Mesmo um liberal clássico como Raymond Aron, em suas aulas de Sociologia Política na Sorbonne – resumidas, entre outros livros, em Dix-Huit Leçons sur La Société Industrielle (1963), e na obra que lhe segue, La Lutte des Classes (1964) –, chegou a acreditar, não exatamente na sucessão, mas na futura confluência dos dois sistemas, crença, aliás, partilhada com o mesmo Galbraith. Na verdade, Aron se dedicou justamente a desmentir alguns dos dogmas com que ele se deparava no ambiente acadêmico do seu tempo, entre eles: o mito da evolução do capitalismo ao socialismo, o da convergência entre os dois tipos de sociedade industrial e o da equivalência entre os sistemas industriais com prevalência da propriedade privada e aqueles caracterizados pela dominação do Estado, independentemente do regime político subjacente. Mas ele também tendia a acreditar que a complexidade crescente dos sistemas produtivos, com o desenvolvimento de uma tecnoburocracia ampliada – um conceito típico na obra de Galbraith – levaria futuramente a uma atenuação das características ideal-típicas de cada um dos sistemas. Esse não era o caso, obviamente, do marxista americano Paul Sweezy, que, junto com Paul Baran, acreditava na transição do capitalismo ao socialismo,39 contemporaneamente, aliás, ao francês Charles

de um banco vienense (1924), não se pode atribuir muitas virtudes prescritivas a seu diagnóstico pessimista. Para um breve resumo de sua vida e obra, ver seu verbete no site da New School for Social Research (http://homepage.newschool.edu/het//profiles/schump.htm), na qual foi professor, durante muitos anos, Robert Heilbroner, um de seus alunos e autor do famoso Worldly Philosophers (1953; publicado no Brasil como A História do Pensamento Econômico, várias edições). 38 Nesse último livro Galbraith apresentou o conceito de Nova Classe, precipuamente voltado para a categoria dos trabalhadores intelectuais, conceito que seria desenvolvido pouco depois para o sistema socialista pelo iugoslavo Milovan Djilas, mas puramente no sentido dos aparatchiks dos partidos comunistas, que detêm o poder político e econômico sem participar de nenhum esforço produtivo. 39 Paul Sweezy tornou-se marxista na Inglaterra, e de retorno aos EUA publicou The Theory of Capitalist Development (1942) e, em colaboração com Paul Baran, Monopolist Capitalism (1966). Junto com Leo Huberman, outro expoente da mesma tendência, ele fundou a Monthly Review, durante décadas o mais representativo e inteligente veículo do marxismo anglo-saxão.

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Bettelheim, cujos livros trataram especificamente da transição do capitalismo ao socialismo, com alguma flexibilidade conceitual em relação à doutrina canônica do marxismo oficial.40 Enquanto os representantes da vertente capitalista concebiam uma progressiva domesticação das forças de mercado pela regulação estatal, num ambiente de reformismo democrático que separaria cada vez mais a propriedade capitalista de seu controle efetivo, os expoentes do marxismo acadêmico apostavam na erosão fatal do capitalismo competitivo, pelo esgotamento das possibilidades de acumulação – segundo a famosa ‘lei’ marxiana da queda tendencial da taxa de lucro e em função das crises de superprodução, com redução da demanda em virtude da concentração de renda – e pela formação dessa entidade mítica chamada ‘capitalismo monopolista’, o que levaria à estagnação do sistema. Na periferia também existiam os estagnacionistas e os declinistas, um grupo que vai de André Gunder Frank a Samir Amin, ainda hoje ativo e mais centrado sobre a expansão imperial do capital, terreno no qual também se exerce o ‘mundialista’ Immanuel Wallerstein. Não é preciso dizer que todos os representantes do segundo grupo ficam bastante animados a cada crise do capitalismo, antevendo ali seu declínio irresistível e o prenúncio da derrocada fatal. A origem e a natureza das crenças respectivas dos dois grupos nessa transição diferiam bastante, tanto em relação ao itinerário futuro do capitalismo – mais ou menos próximo, segundo uma ou outra categoria de ‘analistas’ – como no que se refere à ‘metodologia’ da transição: esta seria revolucionária e entremeada de ‘crises terminais’ para o primeiro grupo, mas gradual e evolutiva para o segundo, desembocando, de qualquer maneira, em formas graduais e evolutivas de um capitalismo regulado ou de um socialismo de mercado, numa espécie de radicalização da social-democracia. Para os adeptos da teleologia marxista, a transição estava inscrita na lógica do desenvolvimento do capitalismo, segundo uma sucessão fatal de modos de produção que partia do escravismo antigo, passava pela servidão feudal – eventualmente com o despotismo oriental em sua forma especificamente asiática pelo meio – e chegava ao socialismo, depois dos estertores 40

O livro mais famoso de Charles Bettelheim se chamava, justamente, La transition vers l'économie socialiste (Paris: Maspero, 1968), mas já em 1945 ele publicava um estudo sobre La planification soviétique (Paris: Rivière, 1945). No debate em torno do modelo cubano, no início dos anos 1960, quando Fidel Castro e Che Guevara pretendiam impulsionar rapidamente um modelo stalinista de industrialização, ele recomendou um modelo mais flexível, baseado na Nova Economia Política de Lênin, combinando elementos estatais e de mercado. Em seus muitos outros trabalhos – como em Problèmes théoriques et pratiques de la planification (Paris: Maspero, 1970) – ele continuava a sustentar o planejamento socialista, embora tenha recomendado medidas de descentralização, contra o “capitalismo de Estado” da experiência soviética, da qual ele foi um dos maiores críticos de esquerda.

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demoníacos do sistema burguês de produção. Este, estava inegavelmente condenado à lata de lixo da História – ou ao museu das antiguidades, segundo Engels – depois de uma luta heróica da classe operária contra a sua exploração desenfreada e voltada para o assalto ao céu do poder político. O Estado burguês e o modo de produção capitalista seriam irremediavelmente substituídos, por meios violentos ou no bojo de lutas democráticas, pelo modo superior de produção, ele mesmo apenas uma simples etapa no caminho da futura sociedade comunista. Já os intelectuais capitalistas, como Schumpeter, Galbraith ou Aron, acreditavam que haveria uma aproximação gradual dos dois sistemas, tanto pela ‘socialização’ do capitalismo – transformado em ‘managerial capitalism’,41 no quadro de grandes empresas, na verdade administradas por um conselho a serviço dos acionistas, mais do que respondendo a um proprietário individual, segundo o protótipo do patrão burguês – quanto pelo retorno inevitável do socialismo a princípios de mercado, numa evolução à la Bernstein. Cabe registrar que a ‘fé’ dos intelectuais ocidentais na permanência do capitalismo tinha sido bastante abalada pelas crises dos anos 1930 e a consequente ascensão da regulação estatal. Logo depois da crise de 1929, por exemplo, Adolf Berle e Gardiner Means publicam a famosa obra The Modern Corporation and Private Property (New York: Macmillan, 1932), que apresenta uma primeira visão crítica quanto às chances do capitalismo competitivo nas novas condições de regulação estatal, agenda reformista que seria implementada pela administração Roosevelt nos anos 1930. Mesmo um espírito liberal, como o jovem Peter Drucker, atuando como jornalista econômico em Londres, depois de fugir de sua Áustria nazificada no fim dessa década, chegou a duvidar, em The End of Economic Man (subtítulo: The Origins of Totalitarianism, 1939), que as economias de mercado livre pudessem exibir melhor desempenho do que as ascendentes economias coletivistas, então em vigor na Alemanha, na Itália e na União Soviética. No imediato pós-Segunda Guerra, quase todas as economias do Ocidente capitalista adotaram o planejamento indicativo – quando não Planos Quinquenais, como no

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O conceito foi introduzido em trabalhos analíticos de James Burnham e Alfred Schandler, que conceituaram a evolução do sistema pelo lado das empresas. Burnham, um ex-trotsquista, operou uma critica radical do marxismo teórico e da teoria materialista da história, não pelo lado da metodologia, mas simplesmente afirmando que os dados da história e da observação empírica não se encaixavam nos seus preceitos evolutivos gerais.

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caso da França – e recorreram a formas mais ou menos abrangentes de nacionalização de setores estratégicos e à estatização de serviços públicos essenciais. Tudo parecia sugerir, então, que o capitalismo caminharia bovinamente para o matadouro da sucessão marxiana dos modos de produção e que as profecias marxistas sobre o esgotamento das possibilidades produtivas do capitalismo seriam confirmadas pela acumulação de crises recorrentes do sistema. Todas essas crises nada mais seriam do que um simples prenúncio da crise final e derradeira que levaria de roldão o sistema condenado por antecipação pelo demiurgo e seus discípulos. Nunca foi tão alta a crença nos diagnósticos teóricos e nas prescrições práticas do marxismo oficial, assim como nunca foi tão elevado o prestigio dos acadêmicos marxistas nos estabelecimentos de ensino superior, virtualmente monopólicos nas humanidades e até em alguns ramos das ciências sociais aplicadas. O itinerário efetivo do capitalismo desmentiu, porém, os profetas do apocalipse. Mas a evolução positiva dos sistemas de mercado não tem apenas a ver com a flexibilidade adaptativa do modo capitalista ou com uma suposta resistência política das democracias ocidentais. A rigor, o capitalismo enquanto sistema concreto de produção de mercadorias, não está nem um pouco preocupado com sua evolução futura. Quem se debruça sobre essa questão são os acadêmicos e, aqui, eles parecem ter apostado erradamente contra o sistema. O problema a ser explicado, portanto, tem a ver muito mais com monumentais erros conceituais da própria doutrina original, como discutiremos a seguir. A teoria da transição e os caminhos divergentes do socialismo e do capitalismo Uma simples constatação de ordem prática – ou seja, o teste da realidade histórica – nos leva à conclusão inevitável de que falácia central da concepção marxista da história tem a ver, sobretudo, com a teoria marxiana dos modos de produção, e com suas características teleologicamente fatalistas. Karl Marx foi certamente um dos maiores ‘inventores’ da teoria social moderna. Não lhe cabe por suposto o mérito de ter ‘inventado’ o conceito ou a realidade mesma da luta de classes: como ele mesmo disse, os historiadores burgueses, antes dele, já tinham se referido a essa poderosa alavanca do progresso social, essa verdadeira ‘parteira da História’, nada mais fazendo o filósofo alemão do que profetizar o final da sociedade de classes em decorrência da revolução socialista e da ditadura do proletariado.42 42

Cf. Paulo Roberto de Almeida, Uma previsão marxista...”, Espaço Acadêmico (ano VI, nº 65, outubro 2006, ISSN: 1519-6186; link: http://www.espacoacademico.com.br/065/65almeida.htm).

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Não obstante, Marx inventou um dos conceitos mais fecundos empregados atualmente pela ‘ciência’ histórica, qual seja o de ‘modo de produção’. Seu esboço n’A Ideologia Alemã, e seu desenvolvimento ulterior tanto na Contribuição à Crítica da Economia Política como em Das Kapital, representaram uma das grandes contribuições da imaginação dialética ao discurso histórico contemporâneo. Não parece adequado estabelecer aqui a lista dos demais conceitos criados ou desenvolvidos por Marx em intenção da ‘cientificidade’ da História, da Economia ou da Filosofia Política, como tampouco deveria ser nossa preocupação desvendar o conteúdo ontológico do conceito de modo de produção. Cabe, no entanto, registrar que o discurso histórico elaborado nas academias reteve esse conceito como uma espécie de paradigma interpretativo das diversas formas historicamente possíveis de organização social da produção, mesmo quando a ‘ciência histórica burguesa’ rejeitou a sucessão linear implícita no esquema marxista original, ou quando a ‘ciência do materialismo histórico’, de inspiração stalinista, atirou na lata de lixo da História o conceito de ‘modo de produção asiático’. Durante muito tempo, intelectuais ocidentais e dirigentes do socialismo real não hesitaram em reconhecer no modo de produção socialista uma forma superior, pelo menos em escala histórica, de organização social da produção. Mas mesmo a acumulação de ‘crises gerais’ no capitalismo e o movimento nacionalista e anti-colonialista dos ‘povos oprimidos’ não conseguiram abater as bases da sociedade burguesa contemporânea, o que, de certa forma, levou a prática do socialismo real a se distanciar cada vez mais de seus fundamentos políticos. É bem verdade que a ‘miséria da teoria’, depois de três décadas de stalinismo, impediu o surgimento de um novo ‘revisionismo’ à la Bernstein, ou seja, uma reforma no próprio marxismo, e o movimento ficou reduzido a uma reestruturação no modo de funcionamento do socialismo real. Excluindo-se a experiência iugoslava de ‘auto-gestão’, datam dos anos 1960 as primeiras experiências de reforma no mecanismo econômico do socialismo, com a introdução de certa autonomia na gestão das empresas e do cálculo econômico no processo de formação de preços. Não se pode dizer que a tentativa tenha sido exatamente um sucesso, apesar de resultados mitigados na Hungria e na Tchecoslováquia. De qualquer modo, a simples perspectiva de um retorno a uma aplicação mesmo moderada de alguns princípios de mercado no funcionamento do aparelho econômico socialista permitiu que fossem legitimados o incremento do intercâmbio comercial e a expansão das relações políticas com a área capitalista: sob a cobertura de arranjos especiais, entraram no GATT a Polônia (1967), a

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Romênia (1971) e a Hungria (1973), enquanto a Tchecoslováquia mantinha seu status de founding father (1947) dessa organização. Durante todo o período da ‘coexistência pacífica’, encerrada a fase mais dura da Guerra Fria (até o início dos anos 1960, aproximadamente), foi o capitalismo ocidental quem financiou o socialismo, tanto diretamente – através de acordos comerciais e contratos de empréstimo – quanto indiretamente, pela espionagem industrial, através da qual o socialismo minimizava sua enorme desvantagem produtiva. O desenvolvimento das relações econômicas Leste-Oeste permitiu ganhos substanciais às economias do socialismo real, em termos de transferência de tecnologia (adicionalmente àquela que não passava pelos circuitos oficiais), de acesso a mercados (ainda que vigorassem regras de salvaguarda pela não-reciprocidade) e de fluxos financeiros (provocando, ulteriormente, algumas das maiores dívidas per capita do mundo). A rationale conceitual a sustentar a nova ‘coexistência’ econômica entre parceiros desenvolvidos do Primeiro e do Segundo Mundos se situava um pouco no universo galbraithiano da ‘convergência’ entre sociedades industriais capitalistas e socialistas. As primeiras teriam se tornado menos ‘selvagens’, sob o impacto de políticas keynesianas de intervenção estatal; as segundas teriam perdido muito de sua pureza doutrinária ao reconhecerem que a queda do capitalismo não estava na ordem do dia. O utópico discurso kruschevista sobre o ‘enterro’ do capitalismo e a vitória ‘próxima’ do socialismo foi discretamente remetido para debaixo do tapete pelo realismo cínico e pelo totalitarismo burocrático do brejnevismo triunfante. A partir dessa época, as sociedades socialistas, que se beneficiaram tanto quanto inúmeros países em desenvolvimento de vários surtos de crescimento econômico e de expansão comercial nas décadas de retomada do crescimento da economia mundial, nada mais fizeram senão afundar-se numa lenta esclerose econômica. Já na segunda metade dos anos 1970, o Japão ultrapassava a produção bruta da União Soviética, para não falar do progressivo gigantismo da então Comunidade Econômica Européia em face do definhamento igualmente progressivo de seus vizinhos do Comecon. A estagnação era tanto mais visível que, em termos qualitativos, o socialismo não estava habilitado a obter, no campo das novas tecnologias, resultados similares ou equivalentes aos alcançados durante a fase de industrialização pesada.43 Cada vez mais a crise de legitimidade política do socialismo autoritário se viu acrescida de uma crise estrutural de sua forma de organização econômica. 43

Efetuei uma análise das tentativas de reforma no socialismo real neste ensaio: “Neo-détente & Perestroika: Agendas para o Futuro”, Política e Estratégia (vol. 6, n. 1, jan-mar 1988, p. 67-74).

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A sucessão marxista dos modos de produção foi, assim, progressivamente comprometida pelo pobre desempenho, em todos os sentidos, do modo que deveria encarnar a etapa superior de organização da sociedade. Essa constatação foi feita na prática pelos próprios dirigentes do socialismo real, embora não se tenha traduzido em reformas profundas – a despeito de diversos experimentos de introdução de mecanismos de mercado num socialismo que se apresentava cada vez mais como disfuncional – por uma razão muito simples: a contestação das bases fundamentais do socialismo real minaria ipso facto a legitimidade política do grupo que mantinha o controle do poder, daí a perpetuação de regimes esclerosados, até a implosão final. 44 Acadêmicos honestos poderiam, porém, tirar suas próprias conclusões quanto à completa inviabilidade do sistema defendido teoricamente pelos marxistas e na prática pelos comunistas. Alguns deles, no mundo socialista, por sua própria conta e risco, declararam que o rei estava nu – como Leszek Kolakowski, na Polônia, por exemplo – sofrendo em consequência retaliações materiais e isolamento social enquanto dissidentes de um regime totalitário. Poucos, entretanto, tomaram esse caminho nos países capitalistas, posto que a liberdade de expressão e a autonomia acadêmica asseguravam total isenção opinativa e ausência completa de sanções em regimes geralmente abertos. Pode-se dizer que todos os regimes possuem dissidentes, mas apenas o socialismo exibe renegados. A experiência histórica ensina que cada vez que os fatos não se encaixam na teoria, deve-se reformular esta última. É o que modestamente fizeram os revisionistas da linha Deng Xiao-ping do Partido Comunista da China, e com maior ênfase ainda os burocratas e carreiristas empenhados em aplicar o programa de reformas econômicas chinês comandado por ele em seu início. Os burocratas chineses abandonaram completamente qualquer pretensão de enterrar o capitalismo e se contentaram em aprender com ele. Esse fato foi reconhecido precocemente pelo representante oficial da China Popular em Hong Kong, Xu Jia-tun, no quadro das negociações pelo seu retorno e dez anos antes que a colônia britânica voltasse ao seio da madre pátria; ele o fez da seguinte forma: “Alguns camaradas temem o

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A fase agônica do socialismo declinante e sua implosão final foram por mim examinadas nesta sequência de três artigos: “Retorno ao Futuro: A Ordem Internacional no Horizonte 2000”, Revista Brasileira de Política Internacional (ano 31, n. 123-124, 1988/2, p. 63-75); “Retorno ao Futuro, Parte II”, Revista Brasileira de Política Internacional (ano 33, n. 131-132, 1990/2, pp. 57-60); “Retorno ao Futuro, Parte III: Agonia e Queda do Socialismo Real”, Revista Brasileira de Política Internacional (ano 35, n. 137-138, 1992/1, p. 51-71).

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capitalismo, porque na verdade sabem muito pouco sobre ele. Esses camaradas não se dão conta de que o capitalismo mudou muito desde Karl Marx. Na verdade, o sistema capitalista moderno é a maior invenção da civilização humana” (Le Monde, 24.03.1988). A estada do representante de Pequim na colônia inglesa de Hong Kong, que retornou finalmente à China comunista em 1997, parece tê-lo convertido em um perito do capitalismo, a tal ponto que Xu Jia-tun acreditava que seus camaradas de Partido deviam aceitar as críticas formuladas contra o socialismo e se inspirar no capitalismo para transformar os métodos de gestão econômica empregados em seu país. O representante chinês tinha certamente razão quando disse que esse temor do capitalismo causou grandes perdas econômicas para a China. Sua segunda frase é igualmente plena de sabedoria confuciana e até mesmo um marxista radical como Mao Tsé-tung poderia ter concordado com ela: como Stalin, Mao sabia que o capitalismo tinha mudado muito desde dos tempos de Karl Marx, e era inerentemente superior em matéria de produtividade. Mas isso não os impediu de implantar o socialismo a ferro e a fogo (com alguns milhões de mortos pelo caminho). O burocrata do Partido Comunista chinês, deslocado para a colônia capitalista de Hong Kong, enganava-se redondamente no que se refere à terceira assertiva, pois que, se há um sistema econômico inventado pelo homem, este é, indubitavelmente, o socialismo. A China e a maior ‘invenção’ da humanidade: capitalismo ou socialismo? O capitalismo, com efeito, não parece ter surgido de um projeto de sociedade conscientemente definido, assim como seus princípios organizativos não emergiram prontos e acabados de algum cérebro humano, por mais genial que este possa ter sido. O socialismo, ao contrário, deriva dessa imensa vontade do homem de transformar, hic et nunc, a sociedade real, modelando-a segundo seus valores morais e sua filosofia política, realizando no presente aquilo que Reinhart Koselleck chamou de “projeção utópica do futuro”.45 A confusão é, no entanto, inevitável quando se lida com dois paradigmas conceituais que, em virtude de um intenso e nem sempre qualificado uso político, perderam muito de sua capacidade explicativa. Milton Friedman também achava que o capitalismo é uma das maiores conquistas da civilização, apesar de considerá-lo uma instituição tão ‘natural’

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Cf. Reinhart Koselleck, Kritik und Krise: Eine Studie zur Pathogenese der bürgerlichen Welt, na edição italiana: Critica Illuminista e Crisi della Società Borghese (Bologna: Il Mulino, 1972).

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quanto, digamos, a cobiça humana.46 A dificuldade é tanto maior quanto a chamada ‘civilização humana’, a que se referiu o representante chinês, não costuma pautar-se em função de conceitos teóricos elaborados por ‘inventores geniais’, mas segundo princípios bem mais prosaicos ligados ao terreno da contingência histórica, onde o acaso e a necessidade, dois fatores sempre presentes no mundo natural, combinam-se para produzir resultados sempre inéditos do ponto de vista do desenvolvimento social. Não se deduza daí que a ação humana esteja ausente dos palcos históricos. Apenas acontece que, como diria Marx no 18 Brumário, ela só se desenvolve em circunstâncias bem determinadas e, quando o faz, apresenta-se cingida por forças sociais bem mais poderosas, presentes no substrato material da sociedade. Fernand Braudel dedicou parte substantiva de sua análise sobre a formação do capitalismo europeu a desmentir a tese, de suposta paternidade weberiana, segundo a qual determinadas seitas protestantes teriam, de alguma forma, ‘inventado’ o capitalismo. Nada mais falacioso em termos históricos, disse o grande historiador francês, com o que concordaria integralmente o eminente sociólogo alemão, igualmente alertado para a ação decisiva das complexas forças materiais que moldaram a civilização capitalista na Europa moderna. Uma das maiores preocupações intelectuais de Weber era, contudo, a de explicar precisamente porque a forma moderna do capitalismo tinha surgido numa sociedade de passado tão recente como a européia, ausentando-se do cenário histórico de civilizações tão antigas como as da Índia ou da China. O burocrata que representava Pequim junto ao Governo de Sua Majestade em Hong Kong, em 1988, provavelmente não tinha lido Max Weber e não poderia assim apreciar devidamente a valiosa capacidade heurística do conceito weberiano de ‘racionalidade’. Esse conceito é, no entanto, a chave explicativa do extraordinário desenvolvimento da sociedade ocidental, comparativamente ao das civilizações clássicas da Índia, da China ou do Oriente muçulmano. Assim como não se pode esperar que uma sociedade ‘invente’ espontaneamente um determinado modo de produção, por mais funcional que este seja para suas necessidades de desenvolvimento, a aplicação do princípio de racionalidade não deriva logicamente de um projeto humano de transformação da sociedade se ele não está entranhado no próprio ‘código genético’ dessa sociedade. Em outros termos, a racionalidade deve estar integrada à própria estrutura social, sem a qual ela deixa de ser operacional para o conjunto da sociedade, produzindo efeitos apenas nos escassos setores vinculados ao padrão modernizador externo. 46

Cf. Milton Friedman, Capitalism and Freedom (Chicago: University of Chicago Press, 1962).

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Este parece ser um dos muitos desafios enfrentados por diversos países em desenvolvimento que não dispõem de capacidade para ‘digerir’ e reproduzir os padrões técnicos envolvidos em qualquer projeto modernizador: a absorção da tecnologia estrangeira, ou seja da racionalidade ocidental, não parece disseminar-se facilmente para o resto da sociedade, permanecendo como uma espécie de ‘ilha de prosperidade’ num ‘oceano de subdesenvolvimento’. Tal não foi o caso de vários ‘tigres asiáticos’ – como, por exemplo, Coréia do Sul, Formosa, Hong Kong e Cingapura – que perseguiram um custoso, mas consciente, esforço de adaptação aos novos requisitos do desenvolvimento econômico, investindo recursos humanos e materiais na pesquisa e desenvolvimento das chamadas novas tecnologias. O Brasil poderia ter realizado o mesmo itinerário bem sucedido na competição industrial, mas seu empenho foi prejudicado essencialmente pela insuficiente preparação técnica de seus trabalhadores – reflexo da má qualidade da educação no país – e pelo caráter errático de suas políticas macroeconômicas e setoriais, como o descontrole inflacionário. Que este esforço possa ser mais ou menos obstaculizado pela ação corrosiva de certos fatores conjunturais aqui e ali – dívida externa, instabilidade política, ameaças externas, etc. – não significa que estes países, entre tantos outros, não estejam capacitados para enfrentar o grande desafio do desenvolvimento. Fatores de natureza estrutural também podem dificultar a marcha do progresso econômico e social em determinadas regiões, como é o caso do baixo nível educacional das grandes massas brasileiras, das divisões étnicas e religiosas na Índia e do grande crescimento demográfico em ambos os países. Mas isto não impediu que a maior parte desses países já tivesse incorporado em seus projetos nacionais a essência da ‘racionalidade ocidental’: a capacidade de inovar, de encontrar respostas originais aos desafios do cotidiano, e a possibilidade de que esforços individuais sejam autonomamente mobilizados para a consecução da maior parte das tarefas ligadas à organização produtiva da sociedade. Aí talvez se situasse a origem do entusiasmo do representante de Pequim em Hong Kong com o desempenho da colônia, que deveria retornar à pátria de origem num momento em que esta recém começava a se aproximar do modo de produção supostamente antecessor ao que já vigorava no grande país asiático: as extraordinárias capacidades adaptativas do capitalismo, ao longo de toda a sua história, encontram-se de alguma forma concentradas no microcosmo étnico e social de Hong Kong, uma grande vitrina consumidora às portas do grande socialismo pobre que era a China naquela época. Quando, em 1997, foi feita a

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incorporação de Hong Kong ao domínio político da China continental, esta já tinha feito uma notável evolução histórica para esse promontório ‘capitalista’ que era e sempre foi Hong Kong. Desde então, por variadas formas (nem todas muito ortodoxas), a China incorporou-se rapidamente ao grande sistema internacional capitalista a que já pertencia a ex-colônia de Sua Majestade, tanto e tão bem que ela foi admitida no GATT – depois de 14 anos de negociações – e aderiu à OMC em 2001, mesmo não tendo ainda obtido o seu certificado legitimador de ‘economia de mercado’, algo logrado na mesma época pela Rússia, que, com tudo isso, e a participação no G8, ainda não conseguiu ingressar na OMC, nem na OCDE.47 A Rússia e a maior ‘catástrofe’ do século 20: 1991 ou 1917? A China, mesmo persistindo em classificar a si mesma como um ‘socialismo de mercado’, realizou uma transição ao capitalismo mais acabada e completa, com todos os elementos positivos e negativos que se seguem – concentração de renda, desigualdades, etc. – do que a Rússia, supostamente considerada uma economia de mercado, mas bem mais distante dos componentes essenciais do sistema do que o gigante asiático. A diferença nos processos de transformação se situa, provavelmente, na atitude dos dirigentes, aparentemente comprometidos com o velho capitalismo de guerra, no caso da China, mas extremamente relutantes em abraçar o sistema de exploração do homem pelo homem, no caso da Rússia; o exato contrário, segundo uma velha piada, do sistema alternativo que alegadamente vigorava na finada União Soviética. Não é preciso remontar à caótica transição do socialismo ao capitalismo operada na Rússia dos anos 1990 para confirmar a raríssima, provavelmente inexistente, familiaridade dos dirigentes russos com o sistema capitalista, o que é de certo compreensível: setenta anos de socialismo – o que representa três gerações completas – apagam da memória dos homens quaisquer comportamentos típicos do nefando sistema analisado por Marx e enterrado (pelo menos temporariamente) por Lênin. Seja em virtude da obsessão leninista em relação ao ‘espírito do capitalismo’, seja por obra da esquizofrenia stalinista contra os ‘inimigos de classe’ e os ‘agentes internos do adversário imperialista’, a operação de eliminação dos vestígios do capitalismo na Rússia chegou ao nível da lobotomia coletiva. Quando ocorreu sua conturbada saída do socialismo, a Rússia acabou derivando para um tipo de capitalismo 47

Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo”, Espaço Acadêmico (ano 2, n. 14, julho de 2002; link: http://www.espacoacademico.com.br/014/14pra.htm).

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mafioso cujas origens sociais estão na própria nomenklatura senil que comandou o socialismo declinante em sua fase decadente. Ainda hoje, o sistema exibe traços nunca vistos nos demais países que transitaram do socialismo ao capitalismo no decorrer dos anos 1990, provavelmente devido à pesada herança do socialismo soviético, ‘adotado’ por menor período de tempo no caso dos países satélites do ex-império soviético. Curiosamente, enquanto na maior parte dos ex-países socialistas, povo e ex-dirigentes expressam o desejo sincero de livrar-se dos fantasmas da era soviética, na Rússia parece haver uma nostalgia do passado comunista, a ponto de seus líderes lamentarem a perda do glorioso império construído por Stalin e seus seguidores menos brutais. Este é, pelo menos, o sentido transmitido pelo principal ator político russo na fase pós-Ieltsin: falando em 2005 a outros dirigentes da Rússia, por ocasião das comemorações relativas ao 60º aniversário da vitória aliada sobre as forças nazistas, na Segunda Guerra Mundial, em maio de 1945, o então presidente russo, Vladimir Putin, chegou a descrever o colapso da União Soviética como representando a “maior catástrofe geopolítica do século 20”. Sem muita modéstia, ele não limitou a amplitude do desastre à história da Rússia e da União Soviética, apenas, mas estendeu-o a toda era contemporânea, até dar-lhe dimensões verdadeiramente mundiais. Pode-se concordar com o ex-presidente, agora primeiro-ministro russo, um típico representante da antiga nomenklatura que, na finada União Soviética, trabalhava para a KGB, o órgão de Estado que cuidava da segurança e da inteligência, com poderes muito mais vastos – policiais, militares, repressivos, investigativos e de inteligência – do que jamais tiveram a CIA, o M6, o SDECE e outros serviços de informação e militares do Ocidente, agregados. Foi efetivamente uma grande catástrofe geopolítica, mas não com esse sentido de nostalgia, de desalento ou de desespero que emerge da afirmação do dirigente russo. A implosão do socialismo e a dissolução ulterior do império soviético podem ter constituído, de fato, um enorme desastre para a nomenklatura do maior poder totalitário que já existiu na História; mas representou, na verdade, um fato extremamente auspicioso para todos os hóspedes involuntários do Gulag, para os povos submetidos ao arbítrio irracional de um dos sistemas mais defraudadores das liberdades cívicas e individuais, assim como para todos os intelectuais dignos desse nome. 1991 foi catastrófico para a ‘nova classe’ que explorava os trabalhadores do socialismo real, mas foi um alívio para esses mesmos trabalhadores que, segundo uma outra piada corriqueira do sistema, fingiam trabalhar, ao passo que os primeiros fingiam que os remuneravam, segundo a teoria do ‘valor-trabalho’.

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Em termos históricos, 1991 representou, de fato, uma enorme mudança nas relações internacionais, posto que o ano encerra uma das fases mais cruciais da era contemporânea, a do equilíbrio pelo terror nuclear entre as superpotências da Guerra Fria.48 Mas julgando-o por seus resultados efetivos, em termos de redistribuição de poder e de integração dos mercados capitalistas, pode-se concluir que se tratou de uma volta às origens, com a retomada da globalização capitalista do início do século 20, e dos fluxos associados de bens, serviços e capitais, com a possível diferença de uma preeminência econômica e militar dos EUA bem superior àquela anteriormente exercida pela Grã-Bretanha. Embora seja possível traçar paralelos quanto à extensão, os tipos de dominação militar e econômica, bem como sobre a duração dos impérios britânico, de um lado, e americano, de outro, a natureza do sistema de relações internacionais em cada época respectiva – do início do século 19 até o início da Segunda Guerra Mundial, para o sistema imperial britânico, e desde 1945 até um futuro indefinido, para o sistema imperial americano – torna difícil uma comparação direta entre os dois sistemas de dominação, cada um com peculiaridades únicas e irreprodutíveis.49 Muitos historiadores e economistas aludem ao fato de que o que ocorreu, na verdade, foi apenas um mero fechamento de parênteses, depois de setenta anos de socialismo e de oposição ideológica (e militar) entre o socialismo e o capitalismo. O socialismo teria sido, assim, apenas um acidente histórico, um simples soluço, em escala geológica, na longa trajetória política e econômica da humanidade, um pesadelo noturno no decorrer de um itinerário bem mais ensolarado de bem-estar crescente, de maior disponibilidade de bens e serviços globais e de interdependência real entre povos e países. O ano de 1991 representa, portanto, apenas uma volta ao ponto de partida, retomando com novo ímpeto processos, fluxos, contatos e tendências que tinham ficado asfixiados durante três gerações por força de um sistema inventado por um ideólogo e implantado por outro na ponta de fuzis.

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Tratei de maneira sintética dessas mudanças no sistema internacional neste ensaio, “As duas últimas décadas do século XX: fim do socialismo e retomada da globalização”. In: José Flávio Sombra Saraiva, Relações internacionais: dois séculos de história, vol. II: Entre a ordem bipolar e o policentrismo (1947 a nossos dias) (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, IBRI; Fundação Alexandre de Gusmão, FUNAG; Coleção Relações Internacionais, 2001, vol. II, pp. 91174), e, de maneira mais extensa, neste livro: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002). 49 O historiador britânico Niall Ferguson traçou alguns desses paralelos em duas obras especificamente dedicadas a cada um deles: Empire: How Britain Made the Modern World (London: Allen Lane, 2003); Colossus: The Price of America’s Empire (New York: Penguin Press, 2004).

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Em termos de tendências fortes do sistema internacional, 1917 representou uma mudança bem mais relevante do que 1991, já que a primeira data rompeu com um quadro político e um sistema econômico que vinham se desenvolvendo em planos similares e com características crescentes de interdependência: democracias formais de mercado, adeptas do padrão ouro e da projeção imperial, para o aprovisionamento em matérias primas e o acesso a mercados. A Rússia de 1913 era uma das principais fornecedoras mundiais de grãos, ao mesmo tempo em que acolhia investimentos diretos e empréstimos financeiros que impulsionavam sua industrialização e a melhoria de sua infra-estrutura. 1917, sem considerar a guerra, rompeu todos esses vínculos e reduziu a Rússia a um experimento único na história: a invenção de um sistema que nunca teve precedentes na economia mundial, mesmo se o totalitarismo político não representava propriamente uma novidade no itinerário da Rússia. O que se seguiu a 1991 – e um pouco antes, no caso da China – foi uma reinserção na divisão internacional do trabalho de países que tinham se afastado da economia mundial em 1917, para a Rússia, e no pós-Segunda Guerra, para os demais países. Tratou-se, para todos os efeitos, de uma ruptura bem mais relevante, e ‘catastrófica’ em suas consequências políticas, econômicas e sociais, do que, no caso dos países capitalistas, a Primeira Guerra ou a crise de 1929 e a depressão dos anos 1930, seguida pela Segunda Guerra Mundial.50 Estes países, encerrados os conflitos ou os períodos de crise, retomaram seus negócios e os intercâmbios, ao passo que os países socialistas – a maior parte não por vontade própria, mas por ‘decisão’ do Exército Vermelho – encerraram-se numa economia de baixa produtividade e de irracionalidades crescentes, até a esclerose final. Assim, 1991 não representou um grande acréscimo à interdependência capitalista, em termos de produção, intercâmbio, finanças ou know-how, mas o impacto no que se refere à mão-de-obra ou aos mercados foi relevante, sobretudo no caso da China, que aumentava progressivamente seu papel de plataforma produtiva no grande jogo da interdependência capitalista. A transição inexistente: enterrando um mito conceitual Ao término deste périplo analítico, pode-se perguntar se existe alguma consistência factual ou empírica, ou até qualquer legitimidade conceitual para a metodologia histórica 50

Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Dinâmicas da economia no século XX”. In: Francisco Carlos Teixeira da Silva (org.). O Século Sombrio: uma história geral do século XX (Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2004), p. 47-70.

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marxista, consistindo em alinhar uma sucessão de modos de produção ao longo da história, culminando com a transição do capitalismo ao socialismo, e deste ao comunismo. O próprio conceito de modo de produção deve ser questionado, na medida em que sua utilização nas mesmas bases metodológicas empregadas originalmente por Marx pode representar uma camisa de força teórica que dificulta a análise de tipos específicos, híbridos ou de transição, presentes concretamente numa formação social determinada. Não é preciso remontar aqui ao debate estéril que travaram os primeiros ‘marxistas’ brasileiros, na primeira metade do século 20, para saber se o ‘modo de produção’ que vigorava no Brasil colonial era ‘feudal’ – como sustentavam os ortodoxos, ou seja, os adeptos da ciência do materialismo dialético em sua versão dogmática – ou se ele já era diretamente ‘capitalista’, como pretendiam outros, entre eles Caio Prado Jr. Jacob Gorender, um dos marxistas que evoluiu do stalinismo para uma posição mais independente, tentou superar a controvérsia concebendo um ‘modo de produção’ específico do Brasil colônia, que seria o “escravismo colonial”, um novo tipo de formação social, mas ainda assim situado dentro da categoria dos modos de produção, não infringindo, portanto, o cânone.51 Para os comunistas ortodoxos, o Brasil até então era definido como um “país semicolonial e semifeudal”, posição duramente combatida por Caio Prado Jr., que dizia que os comunistas, no Brasil, tinham de aprofundar a sua revolução capitalista, antes de se lançarem na construção do socialismo.52 O aspecto bizarro de todo esse debate bizantino no seio da academia era que ele se deixava agrilhoar pela camisa de força do aparato conceitual classicamente marxista, e influenciava, além disso, as plataformas políticas e as estratégias eleitorais dos comunistas, que não sabiam, exatamente, se deviam, ou não, fazer uma ‘aliança de classes’ com a burguesia – descurando por completo de perguntar, a essa mesma burguesia, se ela desejava ter como aliado político esse personagem um pouco esquizofrênico que era o PCB. Seria risível se não fosse patético, para os acadêmicos, obviamente. A controvérsia foi superada, na prática, pela esclerose teórica do chamado Partidão, por sua marginalização crescente no cenário político brasileiro por ‘seleção natural’ dos partidos mais aptos a acompanhar a 51

Cf. Jacob Gorender, O escravismo colonial (São Paulo: Ática, 1978). Para uma análise de seus principais argumentos dentro do mesmo campo analítico, isto é, de uma contribuição ao estudo de uma formação social definida como pré-capitalista, ver Mario Maestri , “O Escravismo Colonial: a revolução Copernicana de Jacob Gorender”, Espaço Acadêmico (ano 3, parte 1: n. 35, abril 2004; link: http://www.espacoacademico.com.br/035/35maestri.htm; parte 2: n. 36, maio 2004; link: http://www.espacoacademico.com.br/036/36maestri.htm). 52 Cf. Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira (São Paulo: Brasiliense, 1966).

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evolução social e política brasileira a partir dos anos 1970 e 80, e pelo seu desaparecimento virtual após a implosão do socialismo real. Restaram apenas os acadêmicos marxistas, que continuam a se digladiar em torno das ‘tarefas atuais da classe operária’, mas cujo fervor em classificar e datar os modos de produção sucessivos presentes na formação social brasileira parece ter amainado um pouco; a produção teórica da tribo é, de qualquer forma, medíocre. Isso não diminui, está claro, as virtudes do conceito de modo de produção para fins de algum trabalho analítico específico, mas seu uso acadêmico deveria ficar restrito a um tipo de formalização histórica que emprega ‘tipos-ideais’ de organização social da produção para fins de comparações macro-históricas. Pretender fazer, a partir daí, uma linha sucessória dos modos de produção possíveis e factíveis de serem ‘mobilizados’ no processo histórico real representaria, a todos os títulos, um sério reducionismo analítico e conceitual. Mas este não é o problema principal, posto que acadêmicos sempre podem jogar com os conceitos, em total liberdade intelectual e plena irresponsabilidade analítica, uma vez que nunca serão cobrados pela adequação de seus argumentos ao simples mundo exterior. Seu mundo é o universo dos conceitos, sem que estes tenham necessariamente a obrigação de expressar alguma realidade tangível, e sua pesquisa se conforma ao estado da arte ex-ante, de preferência aquele já consagrado em obras clássicas que necessitam simplesmente de alguma citação reverencial. Mais complicado, porém, consiste em acreditar que a partir de 1917 ocorreu a construção de um ‘modo socialista de produção’ como resultado de uma luta prometéica, opondo a antiga classe de exploradores – aristocratas e burgueses, no caso da Rússia – ao proletariado organizado em seu partido de vanguarda. Não importa se os mesmos marxistas acadêmicos reconhecem que essa ‘construção do socialismo’ foi prematura, e que a Rússia não era exatamente um país capitalista, como a Alemanha, preparado para a passagem anunciada nos textos de Marx e Lênin. Esses mesmos acadêmicos dificilmente aceitariam a hipótese de que a ‘revolução bolchevique’ representou, apenas e tão somente, um putsch bem sucedido, empreendido por um punhado de aventureiros que soube deslanchar uma ação decisiva no lugar certo, no momento certo. Todo o resto foi um desenrolar de episódios circunstanciais que jamais responderam ao chamado ‘sentido da História’, mas simplesmente à brutalidade da ação repressiva e militar do mesmo partido, empenhado em se apossar do poder nas circunstâncias extremamente confusas que eram as da Rússia em 1917-18. Nesse sentido, nunca houve, nem nunca teria havido, a qualquer título – teórico ou prático – transição do capitalismo ao socialismo, na Rússia ou em qualquer outro formação

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social passível de ser identificada a um ‘modo’ qualquer de produção que foi (indevidamente) classificado como socialista. Tratou-se, se tanto, de uma construção artificial, um gigantesco ‘escravismo moderno’ que aprisionou as ‘forças produtivas’ e as ‘relações de produção’ nesses lugares, pelo tempo que durou a experiência totalitária. A rigor, teria sido impossível, mesmo nos termos estritos do marxismo original, ter ocorrido, hipoteticamente, uma transição desse tipo, posto que os pressupostos marxianos sobre o funcionamento dos ‘modos de produção’ e sua ‘sucessão’ linear nunca receberam a crítica rigorosa que esse ideólogo aplicou, de modo altamente duvidoso, ao seu objeto preferencial de análise: o capitalismo. Tanto a obra reflexiva de Marx, quanto a ação prática dos bolcheviques foram essencialmente voluntaristas e insuscetíveis de serem testadas na prática. De fato, elas nunca o foram, pelo menos de modo ‘científico’ ou consensual, senão a partir de altas doses de violência concentrada, como ocorreu ao longo de toda a experiência soviética, no decorrer de três gerações inteiras de construção falimentar de um edifício irrealista, a partir de suas próprias fundações. Seus ‘engenheiros’ autoproclamados nunca receberam uma ‘cartapatente’ – ou autorização certificada – seja da parte de ‘calculistas’ acadêmicos, seja da população objeto de seus experimentos, posto que esta foi desprovida, ao longo de toda a experiência, da livre expressão democrática, em pleitos concorrenciais, como sempre ocorreu no parlamentarismo capitalista. O empreendimento como um todo era singularmente frágil, tanto em sua modelagem teórica quanto em sua implementação efetiva, existindo sérias dúvidas, ainda quando Marx era vivo, se suas propostas de organização social da produção, sem extração de ‘mais valia’, poderiam ser sustentadas na prática. As críticas formuladas ao edifício teórico do marxismo por economistas contemporâneos como Mills ou, pouco depois, por Vilfredo Pareto, nunca foram respondidas ou sequer consideradas por Marx ou seus discípulos. Estes, numa demonstração de autosuficiência intelectual pouco compatível com as regras de qualquer trabalho acadêmico digno desse nome, simplesmente se fecharam em sua carapaça conceitual e analítica, recusando um debate sério com a ‘economia política burguesa’, num trabalho autocircular que até hoje se mantém em sua essência. Quando às aventuras econômicas de Lênin, elas foram precocemente desacreditas, no plano puramente técnico, por um seu contemporâneo: Ludwig Von Mises. O então jovem economista austríaco já tinha alertado, em 1919, quanto à impossibilidade prática do ‘modo de produção socialista’, tal como concebido por Lênin e seus conselheiros econômicos. A razão estava, simplesmente, na ausência completa dos sinalizadores essenciais a qualquer

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atividade econômica racional: os preços dos insumos produzidos e dos bens ofertados, que são normalmente formados num mercado submetido às leis da oferta e da procura. Preços administrados por burocratas jamais conseguiriam traduzir o princípio básico da economia, que é a lei da escassez. Von Mises antecipou, desde essa época, que o empreendimento nunca poderia funcionar em bases sustentáveis, mas ele foi solenemente ignorado por aqueles mesmos aos quais era dirigido seu panfleto, durante toda a vigência da terrível experiência de involução econômica.53 Talvez fosse útil, atualmente, a releitura dos seus argumentos, para ver o quanto erraram, desde o princípio, os construtores da nova ordem econômica. Tudo isso não significa, obviamente, que o capitalismo seja ‘eterno’, ‘invencível’, ou insubstituível. Mas esse tipo de questão não deveria sequer ser colocado nesses termos, de sucessão obrigatória de um ‘modo de produção’ por outro, questão quase filosófica que apenas ideólogos sonhadores teimam em oferecer nos supermercados da História. Como sabem todos os intelectuais sérios, os processos históricos são sempre únicos e originais, não sendo suscetíveis de prefigurações arbitrárias. A famosa frase, de suposta paternidade marxiana, de que a História se repete, representa nada mais do que isso, uma frase, bem mais para o lado da farsa do que para representações trágicas. Aliás, a história dos capitalismos realmente existentes está, como se sabe, entrecortada de rupturas e de transformações, tão importantes e cruciais quanto as utopias desenhadas por Marx e seus seguidores. Ao longo de vários séculos de ‘formatação’ tentativa, o capitalismo – um sistema absolutamente impessoal e aleatório, à maneira do ‘relojoeiro cego’ darwiniano – assumiu diversas roupagens e modalidades, sempre dobrando-se aos imperativos maiores da economia de mercado (que é o seu mecanismo seletivo ‘natural’). O ‘pecado’ maior dos marxistas puramente teóricos foi o de ter, em primeiro lugar, sobrevalorizado o poder do capitalismo no contexto das economias de mercado; e de ter, em segundo lugar, transformado um mero sistema de organização social da produção em um poderoso superlativo conceitual, praticamente equivalente a toda a economia de mercado, quando ele nada mais é do que uma de suas formas especiais (como já ensinou Braudel). Convertido, assim, em um deus ex machina providencial, o conceito marxiano foi submetido a toda uma série de distorções 53

Ver o opúsculo analítico de Ludwig von Mises, O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), disponível em inglês no site dedicado às obras desse economista: www.vonmises.org. Para maiores elaborações em torno do mesmo tema, ver meu ensaio “Falácias acadêmicas, 8: os mitos da utopia marxista”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 96, maio 2009; disponível: http://www.espacoacademico.com.br/096/96pra.pdf).

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teóricas, inclusive as que foram aqui abordadas, sobre sua sucessão ‘inevitável’, sem esquecer suas muitas manipulações meramente descritivas, sob o bisturi de discípulos menos instruídos em metodologia histórica. É de se esperar que os atuais sucessores do marxismo estabelecido sejam mais cuidadosos, senão no terreno da prática, pelo menos no plano da elaboração teórica, evitando, assim, incorrer em novas falácias acadêmicas nesse terreno áspero da hermenêutica histórica.54 A conferir... Brasília, 26 de julho de 2009.

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Não se deve confiar muito, porém: um representante distinguido da tribo, Frederic Jameson, pretende, assim, que “um capitalismo pós-moderno exige necessariamente que se lhe contraponha um marxismo pós-moderno”, o que, obviamente, não quer dizer rigorosamente nada. Cf. Cesar Altamira, Os Marxismos no Novo Século ( Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008); citação extraída do Prólogo de Antonio Negri, que parece concordar com esse inútil jogo de palavras; cf. p. 13.

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12. O mito da exploração capitalista

1. De que exploração estamos falando? Antes que me interpretem mal, esclareço que estou efetivamente falando da velha e abominável “exploração do homem pelo homem”, tão querida dos nossos colegas marxistas e socialistas. (Atenção, existe uma diferença entre eles, bem sutil, mas existe: nem todo socialista é marxista, e nem todo marxista é socialista. Este último pode pretender ser designado de comunista, o que é raro hoje em dia, mas sempre se pode tropeçar com algum, por mais surpreendente que isso possa parecer.) Um dos representantes dessa espécie, que deveria ser imediatamente incluída na convenção Cites – procurem no Google o que é isso – acredita, por exemplo, que “A sociedade capitalista repousa sobre a exploração do trabalho”.55 Não só ela, eu diria, mas esse esperto sociólogo também sabe disso, pois que a exploração convive com as sociedades humanas desde a mais remota antiguidade. Pois bem, vamos falar da exploração em geral, e da capitalista em particular. Antes que me acusem de qualquer outro pecado, esclareço, também, que pretendo falar bem da exploração; na verdade, fazer-lhe um elogio contido, mas sincero. Creio que cinco séculos depois de Erasmo ter ousado proceder a um elogio à loucura (Encomium moriae, 1509)56, mais de um século depois de Paul Lafargue ter defendido o direito à preguiça (Le Droit à la Paresse, 1883)57 e oitenta anos após Bertrand Russell ter escrito um outro elogio ao mesmo objeto (In Praise of Idleness, 1932)58, não deveria haver nada de muito surpreendente no fato de se pretender encontrar aspectos positivos na exploração. Só não lhe faço um elogio aberto porque não sou dado a esse tipo de atitude. Mas pretendo traçar um quadro sociologicamente realista desse fenômeno tão velho quanto a própria humanidade, com a permissão dos antropólogos, ou mesmo dos arqueólogos. 55

Ver Emir Sader, “Pecado Capital do Capitalismo: A Exploração”. In: Sader, Emir (org.), 7 Pecados do Capital (Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 57-77); cf. p. 76; o texto está disponível neste link: http://pensocris.vilabol.uol.com.br/exploracao.htm; acesso em 26.08.2009. 56 Existem dezenas de traduções para a obra mais conhecida de Erasmo de Rotterdam, sendo a mais famosa aquela feita para o inglês por John Wilson, em 1668; ver o texto neste link: http://www.gutenberg.org/dirs/etext05/8efly10.txt; acesso em 26.08.2009. 57 O texto completo de Paul Lafargue, no original em francês, pode ser lido neste link: http://abu.cnam.fr/cgi-bin/donner_html?paresse3; acesso em 26.08.2009. 58 Ver esse artigo bem humorado de Bertrand Russell neste link: http://grammar.about.com/od/classicessays/a/praiseidleness.htm; acesso em 26.08.2009.

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Pois bem, o mesmo sociólogo citado acima traça um quadro espaventoso da exploração capitalista, o que tampouco deveria surpreender os leitores: sociólogos marxistas, em particular, e acadêmicos de esquerda, de forma geral, costumam condenar absolutamente toda e qualquer forma de exploração do homem pelo homem, e a exploração capitalista em especial. Mas pode perguntar o leitor: onde está nesta série dedicada às falácias do mundo acadêmico o elemento falacioso que pretendo comentar em relação à teoria e à prática da exploração? Ela surge logo em seguida, no mesmo trecho já referido desse autor prolífico como poucos em falácias acadêmicas. Ele diz o seguinte, para demonizar a exploração capitalista e caracterizar de modo positivo que uma sociedade pode viver sem exploração: “Uma sociedade sem exploração é, antes de tudo, uma sociedade do trabalho, uma sociedade em que todos tenham garantido o direito ao trabalho, vivam do seu trabalho. Isto significa que, de alguma forma, todos se tornem trabalhadores e ninguém viva da exploração do trabalho alheio. Uma sociedade desse tipo elimina a exploração, fazendo com que ninguém possa viver do trabalho dos outros. Significa que ninguém disponha do privilégio de possuir capital, negado à grande maioria.”59 Ai está: todo o parágrafo, cada uma das frases, constitui uma falácia completa, das mais rotundas e falaciosas que possam existir. Esse sociólogo não deve ter tomado conhecimento do apotegma conhecido, segundo o qual “existe apenas uma coisa pior do que ser explorado, que é a de não ser explorado” (se não me engano, essa frase foi dita, em primeiro lugar, pela conhecida economista marxista Joan Robinson)60, do contrário ele não se levantaria de modo tão canhestro contra essa instituição que deveria ter seu lugar assegurado no panteão das realizações humanas. Mas depois eu volto para comentar a falácia sobre a sociedade sem exploração, pois as falácias sobre a exploração capitalista são ainda mais numerosas do que a utopia pretendida pelo sociólogo alienado – segundo um dos conceitos que ele mais gosta de usar – merecendo, portanto toda a nossa atenção.

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Cf. Sader, “Pecado Capital do Capitalismo: A Exploração”, op. cit., p. 77. A frase de Joan Robinson seria mais precisamente esta aqui: “It’s a terrible thing to be a worker exploited in the capitalist system. The only worse thing is to be a worker unable to find anyone to exploit him.” Segundo o comentário de um economista, formulado num site de história econômica, onde fui buscar confirmação dessa frase, a citação parece se colocar no contexto do livro de Robinson, The Economics of Imperfect Competition (1933); ver a mensagem de Paul Flatau, neste link: http://eh.net/pipermail/hes/1995-June/003649.html; acesso em 26.08.2009. 60

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Com efeito, a exploração, capitalista ou não, se apresenta como um dos elementos de organização social de maior força agregadora e de maior vitalidade institucional. No entanto, a legitimidade da exploração sempre foi expurgada da memória social, constituindose numa espécie de mito fundador rejeitado universalmente pelo inconsciente coletivo. Apesar disso, ela parece ser estruturalmente necessária enquanto sustentáculo da vida social, surgindo historicamente como um verdadeiro requisito de civilização e como um componente indispensável de toda e qualquer sociedade dinâmica. Ao lado da dominação, a exploração é uma das forças mais poderosas que motivam o progresso social e o avanço material das civilizações, ao organizar a sociedade para o crescimento do produto em bases mais racionais e ao permitir, contraditoriamente, o surgimento de condições sociais favoráveis ao estabelecimento de uma maior igualdade de chances no conjunto da sociedade. Antes que se tome este exercício de crítica intelectual como mera provocação – o que ele, de certo modo e efetivamente é – devo esclarecer que pretendo tão somente oferecer algumas notas sobre os condicionantes históricos do desenvolvimento social, como forma de sustentar um novo tipo de discurso sobre essa relação social tão execrada e, no entanto, tão generalizada, a ponto de ser verdadeiramente universal nas sociedades complexas. Mais do que um simples elogio, a exploração requer explicação e compreensão, ou aquilo que em termos metodológicos weberianos se chamaria de Verstehen. Minha intenção é, sucintamente, proceder ao alinhamento de uma série de proposições relativamente diretas – mas de cunho geralmente abstrato – e pedir a meus leitores que tentem encontrar contra-proposições historicamente credíveis e empiricamente sustentáveis. É evidente que os partidários da vulgata unilinear marxista sobre a sucessão dos “modos de produção” poderão desde logo argumentar com exemplos retirados da chamadas “sociedades primitivas”. A estes devo, no entanto, advertir que estou me referindo a sociedades históricas, isto é, dotadas da mola do progresso e aptas a retirar da atividade produtiva um excedente para investimento futuro e incremento das oportunidades de consumo. Apesar de que este modesto ensaio possa ser também considerado como um exercício de antropologia cultural, ele não pretende circunscrever seus argumentos a um determinado tipo de formação social, mas sim generalizá-los em função da categoria mais comum de sociedade histórica, que é aquela dividida em classes (incluídas neste conceito igualmente as que algum dia tiveram a pretensão de se considerar “socialistas”).

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Sem pretender, portanto, oferecer aqui uma teoria completa e a prática relevante da exploração capitalista, as proposições de caráter abstrato que faço — procurando aproximarme das categorias universais que Weber chamaria de Ideal-typus — buscam recolocar em termos claros a realidade da exploração, sua necessidade histórica e sua preservação, mesmo nas sociedades pretensamente socialistas, em que pese a opinião contrária do sociólogo alienado já referido. 2. O caráter historicamente necessário da exploração do homem pelo homem Todas as sociedades organizam-se estruturalmente segundo uma relação mais ou menos estreita com o seu meio ambiente. Mas é nas chamadas sociedades primitivas que a “ditadura da natureza” é mais marcada. Nas sociedades relativamente complexas, isto é, dotadas de meios técnicos suscetíveis de transformar o meio ambiente, a emancipação do Homem vis-à-vis a Natureza acarreta igualmente uma divisão sexual e social do trabalho, base ulterior da divisão da sociedade em classes. Todas as sociedades históricas são, ou foram, sociedades divididas em classes sociais, ou seja, sociedades organizadas com base em relações de dominação política e de exploração do trabalho produtivo. Não há exemplos, na antropologia ou na história comparadas, de sociedades históricas que não tenham sido, ao mesmo tempo, sociedades desiguais: nessas sociedades, uma determinada categoria de pessoas detêm a capacidade de comandar outras pessoas (de fato, a maioria) e delas extrair recursos excedentes em termos de produção econômica. A apropriação de excedentes econômicos produzidos pelas classes trabalhadoras (exploração), e a imposição de uma forma qualquer de comando autoritário sobre o conjunto da população (dominação), parecem obedecer a uma mesma lógica social: a monopolização, por parte de uma categoria de pessoas, de determinados bens raros, nesse caso representados pela Propriedade e pelo Poder. O conceito econômico de “raridade” — ou “escassez relativa” — parece apropriado para caracterizar tanto essa concentração do excedente disponível na esfera econômica, como a monopolização do poder político em mãos de uma elite social. A concentração e a centralização desses bens raros nas mãos de uma elite dominante é normalmente legitimada por algum tipo de racionalização, já que aqueles processos não podem ser mantidos unicamente através do emprego constante (ou da ameaça de uso) da violência institucionalizada. Uma “ideologia da dominação” — que é, ao mesmo tempo, uma

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justificativa da exploração — tende assim a acompanhar todas as situações de desigualdade estrutural. 3. O progresso civilizatório e os sistemas imperiais (mas não apenas eles) Nas sociedades de classe modernas e contemporâneas, a exploração assume principalmente a forma do desenvolvimento econômico, cuja característica essencial é a capacidade da sociedade de produzir inovações tecnológicas. Nas civilizações materiais organizadas com base na propriedade privada e no livre comércio (mercado), o desenvolvimento contínuo das forças produtivas deu origem a um verdadeiro “modo de produção inventivo”, transformando o progresso tecnológico em rationale da vida econômica e social. As relações desiguais de apropriação de bens raros não ocorrem apenas num âmbito puramente inter-classista ou intra-societal, mas prevalecem igualmente num nível intersocietal, confrontando formações nacionais desigualmente dotadas em recursos e diversamente inseridas num mesmo sistema global. A exploração e a dominação não têm, assim, um caráter nacional exclusivo; mas a aplicação desses dois princípios a nível transnacional confunde-se, em muitos casos, com as relações desiguais que prevalecem internamente entre classes sociais. A racionalização conceitual do desenvolvimento histórico e social, ao coincidir no tempo com a formação e o fortalecimento dos Estados-nacionais (séculos 16-18), impôs, a estes últimos, encargos e responsabilidades muito precisas em relação ao desenvolvimento concreto de suas sociedades respectivas. O estado do Progresso passou a exigir, cada vez mais, o progresso do Estado, tendência apenas minimizada nas formações sociais que atravessaram um processo relativamente completo de Nation making antes de ingressarem numa fase de State building. As sociedades da Europa ocidental – à diferença dos antigos despotismos orientais – foram as que primeiro souberam organizar a exploração em bases racionais, daí os contínuos saltos de produtividade e de inovação tecnológica que permitiram a essas sociedades se lançarem à conquista do mundo revelado pelos Descobrimentos e de dominar todas as demais sociedades conhecidas durante praticamente cinco séculos. Na época do Iluminismo, foram criadas legitimações doutrinárias e filosóficas à prática da exploração. Essas formulações ideológicas consubstanciaram-se, posteriormente, no pensamento liberal clássico, de que são exemplos, no plano econômico, os conceitos de

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“equilíbrio dos mercados”, da “mão invisível”, de “vantagens comparativas” ou de “laissezfaire”. A força doutrinária do pensamento liberal contaminou também as elites dominantes dos próprios países submetidos a alguma forma de exploração e de dominação, a tal ponto que a expropriação direta de recursos (espoliação colonial) e a apropriação indireta de trabalho materializado (intercâmbio desigual) puderam ser justificadas pela sua funcionalidade em relação ao princípio do desenvolvimento material das sociedades envolvidas. Mas mesmo um igualitarista radical como Marx viu na instituição colonial, ou seja, na incorporação de novas áreas à exploração capitalista, um grande fator de desenvolvimento material em sociedades mais atrasadas. Ele queria o rápido desenvolvimento capitalista da Ásia. Em outros termos, mesmo as sociedades dominadas pelo Ocidente capitalista – como os impérios despóticos do Oriente, como já referido – praticavam a exploração de outros povos. O próprio instituto da escravidão – que uma historiografia enviesada quer ver apenas como uma das bases da ascensão do capitalismo, especificamente em sua vertente africana dos séculos 15 a 19 – é tão antigo quanto o comércio internacional, ou mesmo anterior a ele, tendo continuado a existir até tempos muito recentes, em sociedades – africanas e árabes, por exemplo – que pouco têm de capitalistas ou ocidentais. O tráfico, em sua essência, era iniciado pelas próprias tribos africanas, continuado pelos mercadores árabes ou muçulmanos que circundavam os portos de exportação da África e praticado, aí sim, em sua ponta mais lucrativa – o fornecimento para os demandantes do Novo Mundo – por transportadores europeus e americanos, que retiravam grandes lucros do transporte e venda por atacado. Mas apenas um historiador marxista hoje desacreditado, como Eric Williams – em seu Capitalism and Slavery (1944) –, pretende ver na escravidão a base do desenvolvimento capitalista moderno, quando ela é um dos aspectos mais acessórios e não fundamentais à emergência e desenvolvimento do sistema (como, aliás, provado pela própria história do primeiro capitalismo, o britânico, também o primeiro a abolir o tráfico e a escravidão). 4. Existiria progresso humano sem exploração?: dificilmente A exploração nem sempre pode ser qualitativamente aferível: em todo caso sua percepção é, mais bem, de ordem subjetiva. Tampouco ela parece ser quantitativamente mensurável, embora exercícios marxianos tenham tentado medir tal indicador através da “taxa de mais valia”. Todas as avaliações estimativas no sentido de traduzir esse conceito na

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prática econômica corrente se viram, no entanto, frustradas por sérias dificuldades metodológicas e por barreiras empíricas não menos importantes. Nenhum economista sério, atualmente, trabalha com os conceitos marxianos de mais-valia, ou de taxa de exploração: apenas acadêmicos alienados ainda pretendem fazê-lo. Mas na verdade não conseguem superar os obstáculos epistemológicos ao seu uso adequado no trabalho de análise sociológica; eles apenas pretendem fazê-lo, enganando alunos e colegas nesse empreendimento surrealista. O sucesso relativo de uma nova forma de organização social da produção material – como o capitalismo, por exemplo – significa, concretamente, uma maior disponibilidade de bens e serviços anteriormente raros ou de alto custo unitário; ele se traduz, igualmente, numa maior capacidade em exercer um controle ampliado sobre o meio ambiente social. O modo de produção é tanto mais inventivo quanto ele conseguir transformar um maior número de bens raros em produtos e serviços de consumo corrente: sua funcionalidade social, em termos históricos, está precisamente nessa capacidade em atribuir um valor de troca a uma gama relativamente ampla de necessidades humanas. Sem exploração seria praticamente impossível realizar isso. Ao disseminar mercadorias e transformar ecossistemas, o progresso tecnológico cria desigualdades econômicas e sociais suplementares àquelas ordinariamente existentes, mas que são em grande parte o resultado de uma maior divisão social do trabalho e de uma crescente especialização de funções produtivas. A transformação criativa que deriva do modo de produção inventivo gera, igualmente, desequilíbrios sociais e regionais, que se traduzem não apenas em termos de obsolescência de meios de produção e de subutilização de recursos humanos, mas também na marginalização de regiões inteiras e sua subordinação econômica a centros mais desenvolvidos. Enquanto novos espaços sociais são incorporados aos circuitos da exploração, outros deixam de ser funcionalmente rentáveis na cadeia de expropriação de excedentes, ou seja, sua exploração já não é mais compatível com os custos marginais. A exploração tem isso de “bom”, que ela é flexível e mutável. O debate contemporâneo sobre as origens do atraso de sociedades outrora colonizadas tendeu a ver na exploração e na dominação dessas sociedades uma das molas propulsoras do desenvolvimento nas formações dominantes e, inversamente, naqueles dois fenômenos os principais fatores de subdesenvolvimento nas primeiras. Em que pese a contribuição adicional desses fatores, ao lado da exportação de excedentes demográficos, para o avanço

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material das sociedades mais poderosas, as alavancas mais significativas no processo de desenvolvimento econômico e social dessas sociedades foram, e são, de ordem propriamente interna. Essas alavancas, que constituem condições prévias ao desenvolvimento sustentado, derivam de um conjunto de relações sociais condizentes com o modo inventivo de produção e situam-se, por assim dizer, na própria raiz da organização social da produção nessas sociedades. Inovação tecnológica e poder econômico constituem requisitos necessários ao — e não efeitos do — exercício da vontade imperial. A espoliação colonial e a dominação mundial não podem ser implementadas sem a capacitação intrínseca do pretendente, o que significa a existência de uma estrutura social e de recursos materiais e humanos compatíveis com a voluntas dominadora. Embora uma das fontes de “acumulação primitiva” possa ser constituída pela exploração de sociedades dominadas, esta não é nem o mais importante fator de avanço material das sociedades centrais, nem o requisito suficiente para o desenvolvimento contínuo destas últimas. A chamada “aventura colonial” foi antes uma busca de prestígio político do que um empreendimento econômico, envolvendo, na maior parte dos casos, custos superiores aos benefícios incorridos. A única forma de subtrair-se à exploração e à dominação de outrem, tanto no plano nacional como no das relações inter-societais, parece assim situar-se na auto-capacitação tecnológica e humana, o que vale dizer, dotar-se de seu próprio modo inventivo de produção, base material e fonte primária de poder econômico e político. A soberania, seja a individual ou a coletiva, deriva da faculdade de organizar a exploração e a dominação em bases propriamente autônomas, ou seja, criar o seu próprio fulcro de poder social. Resumindo: explore, você também... Em outros termos, a internalização dos efeitos sociais e econômicos da exploração e da dominação só pode ser obtida por meio da conversão de uma formação social em centro de seu próprio sistema nacional, dotando esta última de sua respectiva periferia. Não é preciso referir-se, por exemplo, ao caso do Brasil – uma sociedade capitalista em formação – e de sua periferia regional semi-capitalista para constatar como esse fenômeno é amplamente disseminado, e presente mesmo em nossas portas, ainda que muitos finjam ou pretendam não ver. Um passeio por certos vizinhos regionais, bem como a leitura de seus pasquins e panfletos mais emocionais confirmaria, sem dúvida, esta assertiva, que atribui ao Brasil um novo papel.

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5. Eliminando um mito marxista: a exploração como dominação O marxismo teórico, ainda bastante bem representado em nossas academias – posto que os representantes do marxismo prático já não são tão numerosos – pretende ver na marcha do capitalismo dos últimos dois séculos, e nos exemplos históricos das numerosas revoluções políticas ocorridas em diversas sociedades, nesse intervalo de tempo, a comprovação empírica de que os trabalhadores, aqui e ali, pretendem libertar-se da “exploração capitalista”, para inaugurar a “idade de ouro” das sociedades socialistas, que supostamente não funcionariam com base na exploração do homem pelo homem. Nada mais falso, como um simples passeio pelos dois únicos exemplos de socialismo remanescentes em nossos tempos de globalização capitalista poderia comprovar. Mas vamos prosseguir em nossa análise conceitual. As sociedades que conheceram rupturas violentas da ordem política, durante seus processos de modernização econômica e social, eram, via de regra, as menos desenvolvidas materialmente em relação a seu entorno geográfico, em suma, sociedades onde a exploração menos tinha feito progressos. Em termos históricos concretos, é a insuficiência de desenvolvimento capitalista, e não uma pretendida “super-exploração capitalista”, que abre as portas a revoluções burguesas e anti-burguesas. Isto é válido tanto para as revoluções burguesas “clássicas”, de que a francesa constitui o paradigma por excelência, como para as revoluções sociais da periferia, na Rússia, na China e, mais perto de nós, no México e na Bolívia. As tentativas de superar a “democracia formal”, de caráter burguês, e de eliminar a exploração de tipo capitalista, substituindo-as pela “democracia real” e pelo igualitarismo social, não conseguiram, nem mesmo no caso das experiências de cunho autogestionário, sequer arranhar o sólido edifício da exploração, logrando apenas destruir toda e qualquer possibilidade de governo democrático, sem adjetivos. Como diz a conhecida anedota, se o capitalismo é um sistema de exploração do homem pelo homem, sob o socialismo ocorre exatamente o inverso. Da mesma forma, não se conseguiu até agora conceber, colocar em prática e fazer funcionar, efetivamente, qualquer sistema de organização social da produção que combinasse eficiência produtiva e equidade social, e que eliminasse, total ou parcialmente, qualquer vestígio de exploração, isto é, que não fosse baseado num sistema de alocação de recursos e

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de redistribuição de excedentes caracterizado por um processo decisório autoritário e mesmo anti-democrático, em sua escala microeconômica. A propriedade coletiva dos meios de produção que, junto com o “planejamento democrático” da produção, deveria garantir o desaparecimento definitivo de qualquer tipo de exploração social, não apenas deu início a formas disfarçadas (na verdade, bem abertas) de exploração dos trabalhadores, como conduziu a um sistema caracterizado pelo desperdício de recursos materiais e humanos (e, portanto, a uma maior exploração da sociedade) e marcado pelo florescimento de práticas políticas antidemocráticas, em escala macrossocial. O Gulag foi, possivelmente, o maior empreendimento explorador já visto em toda a História. A experiência histórica indica que a difusão do desenvolvimento, em suas diversas formas materiais (incluindo suas manifestações culturais), emana sempre dos diversos centros de poder econômico e político. Os benefícios da acumulação revertem inevitavelmente aos mesmos centros, após ter o processo global de exploração cumprido sua missão histórica de amealhar recursos adicionais para a sociedade originalmente dominante. Não parece haver, pelo menos no horizonte histórico do sistema inter-estatal contemporâneo, alternativas válidas de afirmação nacional que logrem superar a assimetria estrutural da relação centroperiferia: ou as sociedades e nações dominadas conseguem transformar a exploração e a dominação em alavancas autônomas do seu próprio progresso econômico ou elas estão condenadas (num sentido propriamente hegeliano) a continuarem como meros objetos da História. No entanto, como todo processo histórico, a relação centro-periferia é eminentemente instável e perfeitamente mutável, tanto em seu contorno como em sua composição, podendo substituir atores, transformar cenários e ocupar novos palcos sociais. A História, absolutamente indeterminada, sempre oferece uma margem de liberdade, tanto aos homens quanto às nações, mas nela não há fim para a exploração. As proposições alinhadas acima, deliberadamente provocativas, deveriam incitar sua contestação, tanto no plano lógico como no terreno histórico. É, aliás, desejo do autor que o presente “elogio da exploração” não seja simplesmente visto como um mero divertissement acadêmico, mas como uma tentativa de engajar a responsabilidade do intelectual na discussão de um tema essencialmente incômodo e altamente propenso a considerações de natureza ideológica. Tanto a crença liberal, como a imaginação dialética, deveriam se sentir desafiadas a descer na arena conceitual para expor seus próprios argumentos sobre a legitimidade

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histórica ou a ‘inaceitabilidade’ moral desta realidade social que constitui a exploração. Pelo menos até aqui, ela parece estar empiricamente validada nos laboratórios da história. Deve-se finalmente acrescentar que o “discurso realista”, do qual os presentes argumentos constituem um simples exercício, encontra sérias objeções morais no plano da praxis política e social – num contexto nacional ou internacional –, razão pela qual ele deve ser freado por princípios éticos suscetíveis de serem defendidos por lideranças políticopartidárias e estadistas responsáveis. Não se deve esquecer, porém, de que a realidade subjacente a ele – ou seja, a estrutura das relações de exploração e de dominação – constitui o fundamento último e a razão imanente que sustentam a atuação dos Estados e elites dominantes em todas as épocas históricas. Se ouso agora retornar ao sociólogo alienado a que me referi no início deste trabalho, seria, finalmente, para registrar sua maior falácia: a da eliminação da exploração. Mais do que uma falácia, se trata de uma impossibilidade teórica e prática que ele comete sem sequer ter consciência de seu equívoco. Com efeito, no trecho selecionado ao início, quando ele indica a possibilidade de uma sociedade sem exploração, ele tinha afirmado isto aqui: “Uma sociedade desse tipo [ou seja, socialista] elimina a exploração, fazendo com que ninguém possa viver do trabalho dos outros. Significa que ninguém disponha do privilégio de possuir capital, negado à grande maioria”. Esse sociólogo nunca deve ter visitado uma sociedade do socialismo real, e se visitou, foi com viseiras nos olhos, pois não percebeu a enormidade do erro. A afirmação é uma enorme falácia, posto que esse sociólogo alienado simplesmente não considera que cada trabalhador, qualquer um – e o capitalista, tanto quanto o acadêmico, também é um – possui, antes mesmo de sua “força de trabalho” (que é uma das falácias marxistas menos importantes), o seu capital intelectual. Toda pessoa humana normalmente constituída, mesmo a mais ignara, possui o seu capital intelectual: tal característica é inerente à personalidade humana. Esse capital, todo capital é consubstancial ao trabalho humano; ele nada mais é, aliás, do que trabalho acumulado. Quem disse isso, aliás, foi o próprio Marx. Possuir esse tipo de capital não constitui, portanto, nenhum privilégio de uma minoria restrita. Apenas uma mente obtusa, e que não leu direito o seu Marx, consegue fazer uma afirmação tão absurda e tão contrária à verdade elementar das coisas: mesmo sociólogos alienados têm capital. A menos, é claro, que o acadêmico em questão considere que os trabalhadores

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manuais – uma categoria limitadamente marxista – não possuam o seu capital intelectual; ou que, além de tudo, ele pretenda excluir os capitalistas do universo dos trabalhadores (manuais ou intelectuais, não importa no caso): ele deve achar que o capitalista só passa na fábrica no final do dia para recolher o seu dinheiro. Em ambas as hipóteses, esse tipo de análise excludente, constitui, por parte desse trabalhador supostamente acadêmico, um enorme preconceito de classe; ou ignorância pura. Ele provavelmente também ignora que o grosso da riqueza acumulada nas sociedades mais prósperas – qualquer que seja o seu regime político ou social – é constituído atualmente por capital intelectual, a chamada riqueza intangível, própria da sociedade do conhecimento. Finalmente, ele deve preferir ignorar que as chamadas sociedades socialistas também preservam a exploração do homem pelo homem, qualquer que seja o sentido que se dê à expressão. Pena que elas estejam acabando rapidamente, do contrário seria o caso de recomendar ao sociólogo distraído um pouco de turismo investigativo – mas sem viseiras nos olhos – em torno das condições de trabalho em Cuba e na Coréia do Norte, por exemplo. Seria edificante, na verdade. Se ele não for desonesto intelectualmente, nosso sociólogo descobriria que a realidade desses regimes também é feita de exploração, possivelmente em escala ainda maior do que aquela observada nos capitalismos realmente existentes. Só os néscios, e os praticantes contumazes de falácias acadêmicas, preferem ignorar isso. Brasília, 26 de agosto de 2009.

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13. O mito do socialismo de mercado na China

1. Introdução: uma falácia legitimadora da transição ao capitalismo Sessenta anos atrás, no primeiro dia do mês de outubro de 1949, Mao Tse-tung, líder dos comunistas chineses, anunciava a fundação da República Popular da China, no seguimento da expulsão das tropas do general nacionalista Chiang Kai-chek do continente, depois de anos de guerra civil, dando início, assim, a um novo tipo de comando político na longa série histórica das dinastias chinesas. Depois de 4 mil anos de regime imperial e de algumas poucas décadas de sistema republicano anárquico, a partir de 1911, a China começou a experimentar um novo tipo de monarquia absoluta: a comunista. Na verdade, nada de muito diferente, enfim, em relação ao tipos tradicionais de ‘despotismo oriental’ que sempre caracterizaram o assim chamado ‘Império do meio’. De fato, as mudanças no plano político não foram tão importantes quanto a radical alteração no sistema econômico da velha China: a autocracia, temporariamente interrompida pelo experimento caótico da República de Sun Yat-sen, apenas continuou sua marcha ininterrupta, provavelmente intensificada, em direção a mais autocracia. Quanto ao sistema econômico, a China estava prestes a embarcar num dos mais espetaculares desastres econômicos já conhecidos na história humana: o modo socialista de produção, inteiramente concebido e implementado por homens de boa vontade (ainda que de vontade férrea, como convém a devotos convencidos). Com efeito, se outros experimentos centralizadores e concentradores no domínio econômico também produziram pequenas e grandes catástrofes – como os sistemas fascistas do entre guerras, bem como o próprio socialismo soviético, convertido em escravismo moderno desde o início da industrialização forçada de Stalin – ao longo de suas histórias respectivas, poucas aventuras humanas igualaram o monumental fracasso econômico e social que foi o experimento socialista chinês, em sua modalidade específica de maoísmo delirante. A questão tem a ver mais com a dimensão própria da China – quase um quinto da humanidade e, até o século 18, praticamente um terço do PIB mundial – do que propriamente com a natureza do experimento, que seguia, em princípio, as recomendações marxistas e leninistas aplicáveis a essa espécie de aventura política, social e econômica.

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Os historiadores – e o demógrafos, naturalmente – ainda não possuem os números definitivos, mas é provável que a trajetória maoísta no novo império socialista tenha provocado – entre mortes ‘morridas’ e mortes ‘matadas’ – algo como 50 a 60 milhões de vítimas, o que faz de Mao Tse-tung o campeão absoluto no registro das mortandades provocadas pelo homem ao longo do século 20, bem à frente de Hitler e de Stalin. Entre os mortos de fome e por canibalismo do “grande salto para a frente”, entre o final dos anos 1950 e começo dos 60, passando pelos assassinados e massacrados da revolução cultural, de meados dessa década, e todos os encarcerados e reprimidos do Gulag chinês ao longo de 30 anos, o maoísmo conseguiu drenar como poucas dinastias antigas as veias da sociedade chinesa, mais em todo caso do que todas as hordas de hunos, de Gengis Khan a Tamerlão e outros bárbaros menos famosos (a popularidade deles sempre dependeu de Hollywood, como se sabe).61 Não é o caso de explicitar agora a longa sucessão de desastres que representou o socialismo chinês, pois o que está em causa, aqui, é o mito do socialismo de mercado, explicitamente defendido como o modelo ideal pelos novos mandarins e, enquanto tal, aceito como verdade pelos novos guardiões do templo ideológico do socialismo. Trata-se de um amálgama que representa uma contradição nos termos, posto que o socialismo sempre representou a negação mesma da economia de mercado. Na verdade, o socialismo não tem tanto a ver com o mercado – que constitui, tão simplesmente, um espaço público de trocas, podendo ser aplicado, portanto, a qualquer sistema econômico – e sim, com formas ou regimes de propriedade. Assim, o socialismo não se opõe ao mercado, mas ao capitalismo: enquanto o primeiro se fundamenta na apropriação coletiva dos meios de produção – e mais exatamente na propriedade estatal, dadas as características dos vários sistemas existentes – e na distribuição regulada coletivamente (isto é, por burocratas do Estado) dos bens e serviços produzidos no mercado, o segundo tem como princípio básico, como é conhecido, a apropriação privada dos mesmos meios e bens finais do processo produtivo, segundo regras e contratos garantidos pelo Estado. Isto não é novidade para os acadêmicos da área: trata-se, aliás, do ABC do marxismo oficial, que figura 61

Uma tentativa de balanço, certamente ainda não definitiva até abertura dos arquivos do regime comunista chinês e até trabalhos mais acurados dos demógrafos profissionais, do custo humano do experimento comunista na China foi efetuada por Jean-Louis Margolin, no capítulo “Chine: une longue marche dans la nuit”, In: Stéphane Courtois et alii (orgs.), Le Livre noir du communisme. Crimes, terreur, répression (Paris: Robert Laffont, 1997).

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em qualquer cartilha do gênero, muito em voga nos anos 50 e 60 do século 20. Não sei se jamais existiram manuais a respeito – do tipo The Idiot’s Guide to Build your Own Socialism – mas eu me lembro de ter lido, muitos anos atrás, vários livros da Academia de Ciências da URSS que traziam considerações doutas sobre a construção do socialismo e o aperfeiçoamento da organização social da produção nesse tipo de sistema. Não é caso de efetuar agora um balanço de todas as experiências conhecidas, mas de simplesmente examinar a última falácia em voga na academia, a que pretende que a China está construindo um socialismo de mercado. Essa designação, que pode ser reconfortante para os que ainda se apegam à idéia que o socialismo possa ser funcional para qualquer objetivo econômico racional, nada mais representa do que uma forma de legitimação social para uma dominação política de tipo autocrático. Um breve exame da trajetória do pretenso socialismo de mercado pode contribuir para o desmantelamento dessa falácia. 2. O surgimento do socialismo na China: uma parte dos equívocos do século 20 A construção do socialismo em diversas sociedades contemporâneas é parte integrante da história intelectual do marxismo-leninismo, que pretendeu tanto ser um componente teórico do marxismo aplicado – inovando em relação ao partido político da classe operária, por exemplo –, quanto uma forma de organização social e política alternativa às democracias burguesas e aos regimes econômicos de mercado. As propostas originais marxistas sempre foram muito sedutoras, a ponto de terem convencido milhões de pessoas ao redor do mundo, desde o último terço do século 19 até os nossos dias, praticamente; assim como as propostas leninistas de tomada do poder e de construção do socialismo pareciam ser eficientes o suficiente para mobilizar muitos militantes da causa marxista em praticamente todos os cantos do planeta. Não é preciso retomar as prescrições marxistas quanto ao futuro brilhante da humanidade sob um regime socialista, pois isso é suficientemente conhecido de todos os acadêmicos: sociedades racionais, sem acumulação privada de riqueza, de meios de produção e, sobretudo, de bens e serviços (que seriam todos coletivos); inexistência de exploração do homem pelo homem – já tratada em outro texto desta série – e eliminação da alienação (para os que se preocupam com essas angústias espirituais). A União Soviética representou, durante largo tempo e graças a maciços esforços de propaganda, a mais fundada esperança de que essas idéias generosas pudessem ser colocadas em prática e, sobretudo, de que elas

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redundariam, com sua implementação, num sistema melhor economicamente, mais equânime do ponto de vista social, politicamente mais justo, mais eficientemente produtivo, enfim, superior ao velho capitalismo e às democracias burguesas, os quais pretendia substituir. Tampouco é preciso elaborar sobre o desempenho efetivo – a todos os títulos catastrófico – dos sistemas criados com base nessas idéias, em termos de eficiência produtiva, de liberdades elementares, de disponibilidade de bens e serviços, enfim, o que se considera serem os requisitos básicos de sistemas normais de organização social da produção e de funcionamento da representação política dotada de alguma legitimidade. Não cabe aqui fazer o relato da monumental fraude que representaram todos os experimentos fundados no marxismo-leninismo, nem do fracasso extraordinário que eles significaram para centenas de milhões de pessoas, em várias longitudes e latitudes, tanto porque poucos restaram para contar a história. Com perdão pela redundância, são evidências tão evidentes, do ponto de vista documental e histórico, que não cabe discussão a esse respeito. Assim, os acadêmicos que ainda continuam a propagar a idéia e o objetivo do socialismo, com base nos mesmos princípios e valores, só podem ser considerados ou néscios absolutos, ignorantes da forma mais elementar possível, ou, então, desonestos intelectualmente, adeptos do auto-engano e da fraude intelectual. Não creio haver outras hipóteses, fora esses dois tipos de alienação. Houve um tempo, porém, em que se consideravam plausíveis, ou mesmo possíveis, essas alternativas políticas e econômicas ao velho capitalismo e às democracias burguesas, justificando, portanto, um enorme esforço para sua implementação pelos devotos militantes da causa. Foi assim na China, como em outros lugares, inclusive no Brasil, quando em 1935 se tentou o “assalto ao céu” em busca do sistema perfeito de organização social da produção e de reformulação do sistema político. É óbvio que na República Popular da China o impacto das mudanças no sistema internacional foi muito maior, tendo em vista o “peso intrínseco” do país, sua condição de membro do Conselho de Segurança – condição, aliás, retida pela República da China, instalada em Taiwan, até o início dos anos 1970 – e outras considerações estratégicas de âmbito regional e até mundial (envolvendo basicamente os Estados Unidos, a única superpotência econômica, militar e tecnológica em condições de conter a alternativa socialista ao seu próprio sistema político-econômico). Que a implantação do socialismo tenha sido um equívoco – corrigido depois pela via natural da evolução dos sistemas econômicos ou por uma ruptura de natureza essencialmente política no final dos anos 1980 – não cabem mais dúvidas, embora acadêmicos alienados

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ainda mantenham ilusões a esse respeito. O socialismo não resolveu nenhum dos problemas econômicos, sociais ou políticos para os quais ele tinha a pretensão de oferecer soluções mais ‘eficientes’ do que aquelas apresentadas pelo sistema capitalista e pelas democracias burguesas, e ainda criou outros problemas, de trágicas consequências para seus “usuários” e “clientela”. Seus “usuários”, obviamente, são, ou eram, os militantes da causa e os dirigentes dos processos, sendo a “clientela” representada por uma população passiva alcançada ou atingida pelas mudanças implementadas. No caso da China, estamos falando de algumas centenas de milhões de pessoas, em algum momento capturadas no redemoinho monumental que representou a construção do socialismo naquele imenso país (com projeção também para outros povos, no Tibete, por exemplo, na Coréia e na própria China, como os uigures). 3. Os desastres verdadeiramente desastrosos e cumulativos do socialismo chinês Apenas para resumir a história, digamos que o socialismo chinês representou um atraso, absoluto e relativo, de enormes consequências para o povo daquele país, traduzido em recuo econômico, perda de patrimônio material, retrocesso cultural e ausência completa de liberdades elementares (política, religiosa, por exemplo) que, de resto, jamais existiram na China. Não pretendo retomar os dados econômicos básicos dessa decadência, que, aliás, se estenderam por um período de tempo bem maior do que a simples implantação tentativa do comunismo. Mas é suficiente lembrar que o PIB da China passou a representar uma fração mínima do PIB global (e a consequente diminuição dessa riqueza expressada em termos per capita), com um alheamento quase completo do país da maior parte dos fluxos internacionais de produção científica, de inovação tecnológica, de interdependência econômica e financeira, de intercâmbios culturais, etc. Pode-se considerar que, mesmo a um terrível custo humano, os camponeses miseráveis da China tenham sido retirados de uma miséria ancestral por um regime que se pretendia igualitário e modernizador. O problema dessa tese, de duvidosa consistência empírica e baixo conteúdo moral, é que ela considera que o capitalismo, deixado a seu próprio curso ‘natural’, teria sido incapaz de modernizar a agricultura, de industrializar o país, de promover a criação e a distribuição de riquezas e de inserir a China no sistema estratégico da interdependência global, ou, alternativamente, que ele teria sido menos eficiente do que o socialismo em cumprir a mesma missão histórica. O reverso da moeda é a admissão de que foi preciso uma brutal supressão de todas as liberdades supostamente

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‘burguesas’ para que o ‘gênio socialista da história’ conseguisse cumprir essas missões complexas, de enorme impacto social. Esse tipo de argumento oportunista reverte em considerar como desprezível o destino de algumas dezenas de milhões de pessoas – nunca é demais sublinhar as dezenas de milhões de vitimas, um caso de mera estatística, segundo pretendia Stalin – para fins da causa pretendida. Para justificar os adjetivos desta seção, vale talvez relembrar alguns números. O clima de terror criado logo após a tomada do poder pelas tropas de Mao, com o início turbulento da reforma agrária, representou algo em torno dos dois milhões de mortos em decorrência dos abusos do sistema de trabalho escravo. Um observador francês registrou os “gritos da multidão ‘sha! sha!’ [mate, mate], as lamúrias daqueles lapidados ou batidos à morte em cada canto, durante todo o dia.”.62 Muitos agricultores no campo e mercadores nas cidades, confrontados à nova situação, cometeram suicídio para não ter de se submeter ao novo regime.63 O ‘grande salto para a frente’, executado sem qualquer planejamento e “produto de uma visão social utópica”, segundo um historiador, cobrou um alto preço em sangue.64 Como sintetizou o mesmo historiador, “as estatísticas de mortalidade publicadas no começo dos anos oitenta mostram uma ascensão substancial da taxa de mortalidade para 1959-1961, que os demógrafos calculam que indicam 15 milhões de mortes relacionadas com a fome. Tomando outros fatores em conta, alguns pesquisadores concluíram que pereceram umas 30 milhões de pessoas”.65 A ‘revolução cultural’ ocupa um capítulo à parte na história da China comunista, talvez nem tanto pelo número de vitimas – que provavelmente não conseguiu superar o do ‘grande salto para a frente’ –, mas mais precisamente pelo enorme atraso cultural, intelectual e científico que ela provocou. Pelotões de guardas vermelhos percorriam instituições públicas, destruindo arquivos, batendo em professores, expulsando trabalhadores

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Cf. R. L. Walker, China Under Communism: The First Five Years (Mystic, Conn.: Verry, 1956), p. 219. 63 Cf. W. Scott Morton, China: Its History and Culture (3a. ed.; New York: McGraw-Hill, 1995), p. 205. Esse autor estima que 1,5 milhão de pessoas foram executadas durante os primeiros anos da reforma agrária. Jean-Louis Margolin, em seu estudo já citado, praticamente dobra esse número. 64 Cf. Maurice Meisner, La China de Mao y después: una historia de la República Popular (Córdoba: Comunicarte, 2007), pp. 225 e 271, citando o trabalho de Thomas Bernstein, “Stalinism, famine, and Chinese peasants: grain procurements during the Great Leap Forward”, Theory and Society, vol. 13, n. 3 (l984), p. 339-377. 65 Cf. Meisner, op. cit.. p. 270, fazendo referência ao livro de Judith Bannister, China’s Changing Population (Stanford: Stanford University Press, 1987).

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‘intelectuais’ de seus locais de trabalho e mandando-os violentamente para aldeias recuadas do imenso interior atrasado. Como escreveram dois historiadores: “as hostilidades voltavamse não apenas contra os antigos costumes, mas focavam também os estrangeirismos. O antiintelectualismo foi acompanhado pela xenofobia”.66 Essas loucuras duraram não apenas o tempo ‘oficial’ da revolução cultural – teoricamente três anos, de 1966 a 1969 –, mas estenderam-se até meados da década seguinte, durante a vida de Mao e mais um pouco. Apenas em 1979 tem início uma volta à ‘normalidade’, com a ascensão de Deng Xiao-ping ao comando do Partido Comunista. 4. A longa marcha da China em direção ao capitalismo: nada de muito glorioso Depois do terror jacobino e do Termidor burocrático, a China conseguiu, finalmente, restabelecer a ordem no país e um começo de normalidade nas suas relações internacionais. O presidente Jimmy Carter estabeleceu relações diplomáticas com a China em 1978 – os EUA já tinha apoiado a volta da RPC à ONU, e ao seu Conselho de Segurança, desde a visita de Nixon à China em 1971 – convidando Deng para visitar os EUA, o que ele fez, com grande sucesso, em 1979. Datam desse mesmo ano as mais importantes decisões tomadas pelo novo líder no sentido de mudar radicalmente as orientações de política econômica da China, de modo a superar o seu imenso atraso tecnológico e cultural. Uma pequena guerra de fronteira contra o Vietnã, nesse mesmo ano de 1979, convenceu Deng de que o estado do Exército Popular tampouco era dos mais confiáveis. Os dez anos seguintes foram consagrados à tarefa de construir um “novo comunismo”, na verdade uma revolução completa nos dogmas e princípios do marxismoleninismo até o seu mais completo abandono – sem jamais explicitar o movimento – no curso dos anos 1990 e milênio atual. A “modernização socialista”, na verdade, teria de ser baseada nos esforços individuais, a começar pela liberdade dada aos camponeses de cultivarem suas próprias terras – ainda teoricamente propriedade coletiva, ou do Estado – e comercializarem seus produtos livremente nos mercados locais. A autoridade econômica, antes centralizada nos órgãos de planejamento do Estado e controlada diretamente pelo Partido Comunista, foi dispersada nas províncias, condados e nas próprias unidades econômicas independentes. Os bancos deveriam operar de forma autônoma, controlando seus próprios empréstimos e cash 66

Cf. John King Fairbank e Merle Goldman, China: Uma Nova História (Porto Alegre: L&PM, 2006), p. 363.

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flow. O sistema tributário foi completamente reformulado, para coletar impostos de empresas e cidadãos, e incentivos fiscais começaram a ser concedidos a empresas e indivíduos, para promover o desenvolvimento econômico. Mais importante, um regime diferenciado foi criado para acolher investimentos estrangeiros: primeiramente no quadro de um sistema restrito às zonas de processamento de exportação das regiões costeiras – tirando proveito, portanto, das velhas teorias ricardianas; depois, ampliando cada vez mais a captação para outros setores e regiões do país. Não é preciso lembrar que saúde e educação são pagas pelos seus usuários. Para resumir, todo o processo ocorreu no sentido do afastamento do planejamento centralizado da economia, como requeriam os antigos preceitos marxistas, em direção da liberdade de iniciativa e da constituição de empresas privadas, nacionais e estrangeiras. Nesse movimento, alguma corrupção é inevitável: muitos “investimentos estrangeiros” eram, na verdade, recursos de chineses – até do Partido, eventualmente – que ‘passeavam’ por HongKong antes de retornarem ao país, travestidos de capital estrangeiro, com todos os benefícios fiscais e tributários associados a esse estatuto. Era inevitável que a concentração de renda caminhasse rapidamente, ainda mais rápido do que o crescimento da riqueza global e da renda per capita: com efeito, a China é, ademais da economia de mais rápido crescimento na história econômica mundial, o país no qual o índice de concentração de renda – coeficiente de Gini – avança mais aceleradamente para patamares africanos (ou brasileiros). A única coisa que não avançou, obviamente, foi a democracia, com a preservação do mesmo sistema autocrático que a China conhece há milhares de anos, virtualmente em toda a sua história. O movimento estudantil simbolizado nos manifestantes da praça da Paz Celestial (Tian An-men) intentou reproduzir, em 1989, as mesmas demandas que tinham mobilizado o movimento estudantil ‘Quatro de Maio’, de 1919, em torno das liberdades democráticas e da democracia política. Desta vez, Deng Xiao-ping não exibiu o mesmo reformismo que ele preferia na área econômica, mas mandou o exército reprimir o movimento. Curiosamente, no mesmo momento, o reformista soviético Mikhail Gorbachev visita a China para uma conferência econômica de “reforma do socialismo”, totalmente obscurecida por uma marcha de mais de um milhão de estudantes em 17 de maio de 1989. Os protestos, já estendendo-se a outras cidades, foram suprimidos, ao custo de milhares de mortos, entre os dias 4 e 5 de junho. Depois disso, a China e os chineses se concentraram em ganhar dinheiro e prosperar individualmente, segundo o novo preceito propagado pela liderança de Deng Xia-ping: “ficar rico é glorioso”. Dixit!

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5. Existe “socialismo de mercado” na China?; se existe, não é socialismo O mesmo Deng Xiao-ping, ao lançar o seu movimento pela reforma do socialismo, que redundou, de fato, na restauração do capitalismo, teria dito que “não importa a cor do gato, desde que ele saiba caçar ratos”. Ou seja, depois de anos de centralização, estatização e planejamento, os dirigentes chineses soltaram os controles e deixaram que a própria população se envolvesse na gigantesca tarefa de despertar a China de um longo sonambulismo socialista, para um vibrante dinamismo capitalista. A imensa diáspora chinesa, existente desde séculos na Ásia Pacífico e desde longos anos em países ocidentais, contribuiu enormemente para essa tarefa, assim como o fato de que o estatuto autônomo de Hong-Kong, como núcleo central do capitalismo de mercado, tenha sido preservado mesmo depois do retorno da ex-colônia britânica à soberania da República Popular. Capitais estatais chineses, recursos de sua diáspora empreendedora e investimentos diretos estrangeiros determinam, assim, uma marcha frenética da China de volta ao capitalismo, do qual ela se afastou numa das grandes revoluções sociais do século 20. Não obstante, o ritmo da restauração capitalista na China importa menos, para esta discussão, do que o problema conceitual – que constitui uma falácia acadêmica, em nossa definição – de saber se a China é, ou não, um socialismo de mercado. Se partirmos da definição primária de economia socialista – a de um sistema centralizado baseado na apropriação coletiva dos meios de produção e orientado não pelo lucro para a suposta satisfação das necessidades sociais – é fácil de concluir que a China não é mais um país socialista. Mas ela tampouco responde à definição clássica do que seja uma economia capitalista, ou seja, um sistema descentralizado, no qual as decisões econômicas mais relevantes são tomadas por milhares de agentes privados interagindo no mercado e motivados unicamente pelo lucro. O que existe, de fato, é um desenvolvimento gradual e linear da economia de mercado, com crescente privatização das empresas estatais e liberdades ampliadas ao setor privado, mas com amplo controle e monitoramento por parte dos burocratas do Partido Comunista. O processo é inédito em termos históricos, sem dúvida alguma, e vem se desenvolvendo gradualmente, sob o estreito controle do Partido Comunista. Aliás, desde 1984, o 12o. congresso do Partido introduziu a idéia de uma “economia planificada de mercado”. Quase ao mesmo tempo eram ampliadas as zonas especiais voltadas para o

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investimento estrangeiro e abolido o sistema de pagamento igualitário de salários. No congresso seguinte do Partido, em 1988, a orientação principal de política econômica passa a ser a de uma “economia voltada para as exportações”. A queda generalizada das economias socialistas da Europa central e oriental, a partir do ano seguinte, leva os dirigentes chineses a acelerar o processo de vinculação da China às economias desenvolvidas do Ocidente. Finalmente, é no 14o. congresso do PCC, em 1992, que Deng Xiao-ping proclama a nova doutrina, segundo a qual a intenção seria criar uma “economia socialista de mercado com peculiaridades chinesas”.67 O que ocorreu, desde então foi uma aceleração das privatizações e a adoção de uma regulação de fato mais aberta das principais relações econômicas, que tendem a se basear mais em contratos de direito privado do que em determinações estatais. Todo o processo vem sendo conduzido sob o conceito de gaizhi, um termo chinês que significa “transformando o sistema”, ou seja, a reconversão das empresas de Estado em entidades privadas, envolvendo falências, liquidações, conversão de dívidas por ações, vendas diretas a particulares (nacionais ou estrangeiros) e leilões de empresas públicas, com todos os seus ativos e obrigações. “Em muitos casos, o gaizhi envolveu privatizações completas”; mas “os programas são geralmente graduais, embora bem mais amplos e mais produtivos do que as medidas de privatização na Europa oriental e na antiga União Soviética”.68 Pragmaticamente, os líderes comunistas chineses chegaram à conclusão de que a melhor forma de preservar a eficiência e a viabilidade das empresas chinesas e, portanto, de estimular o vigor e o desempenho da economia nacional, é entregar as antigas empresas estatais para a gestão privada. Aparentemente, dos quatro Brics, a China é o único país que acredita firmemente no capitalismo e se encontra ativamente empenhada em promover a economia privada no contexto da globalização: tanto a Rússia, quanto o atual governo do Brasil e, parcialmente, a Índia mostram certa relutância em abraçar os princípios da concorrência capitalista no plano mundial, quando não estão empenhados, como na Rússia e 67

Uma análise trotsquista da transição chinesa ao capitalismo, com todos os cacoetes do gênero, pode ser encontrada neste artigo da revista italiana Foice e Martelo: “La lunga marcia della Cina verso il capitalismo”, FalceMartello, mensile marxista per l’alternativa operaia (Agosto 2006; disponível: http://www.marxismo.net/content/view/2169/130/). 68 Cf. Ross Garnaut, Ligang Song, Stoyan Tenev, and Yang Yao, China’s Ownership Transformation: Process, Outcomes, Prospects (Washington: International Finance Corporation; Australian National University; China Center for Economic Research; Peking University, 2005; disponível: http://www.ifc.org/ifcext/publications.nsf/Content/China_Ownership_Transformation), p. xi.

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no próprio Brasil, no ativo retorno do Estado ao seu antigo papel empreendedor e organizador da economia de mercado. Se a China deve ser, ou não, chamada de “socialismo de mercado” parece ser, no estado atual do processo econômico chinês, algo absolutamente irrelevante, tantos são os sinais de que ela pretende ocupar plenamente espaços na economia global do século 21.69 6. Reconciliando o mito com a realidade: de volta ao velho e duro capitalismo Se acreditarmos que uma economia de mercado é aquela na qual as principais relações de compra e venda de bens e serviços se fazem em mercados livres, então a China é bem mais capitalista do que o Brasil. Os trabalhadores, como diria Marx, vendem livremente sua força de trabalho no mercado; a educação e a saúde são inteiramente pagas pelos indivíduos – ao contrário do que diz, por exemplo, a Constituição brasileira, que assegura esses ‘direitos’ dos cidadãos e ‘deveres’ para o Estado; e as milhares de ‘empresas de cidades e de aldeias’ que surgiram desde os anos 1990 funcionam inteiramente de acordo com princípios privados, ocupando todos os nichos que em outros países são ainda monitorados pelo Estado (como a construção residencial, os serviços de infra-estrutura, as comunicações, etc.). Os puristas poderão dizer que os líderes chineses estão usando o Estado para criar um capitalismo com características chinesas. Se isso é verdade, o conceito de ‘socialismo de mercado’ perde inteiramente qualquer significado, em detrimento do socialismo e em favor de mais mercado. O que se tem, de fato, é uma economia de mercado com forte regulação estatal (ainda) e muito pouco socialismo (se algum). O mais relevante a ser registrado é que mesmo as grandes corporações chinesas, que são teoricamente estatais, se relacionam com suas congêneres ocidentais (e japonesas) em bases inteiramente capitalistas, visando unicamente o lucro e sua expansão em novos mercados. O sistema de propriedade, neste caso, torna-se praticamente irrelevante, posto que a maior parte das grandes corporações ocidentais também têm o seu capital diluído por milhares de acionistas, o que faria delas, teoricamente, entidades com características de “propriedade social”. Se adotarmos o esquema original marxista sobre a transformação das relações sociais de produção, com base no desenvolvimento das forças produtivas, que produziriam, então, 69

Para uma síntese atual do desenvolvimento chinês, ver o pequeno livro do especialista britânico Rana Mitter, Modern China: A Very Short Introduction (Oxford: Oxford University Press, 2008).

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um conflito com as antigas formas de propriedade existentes no modo de produção em vigor – uma análise feita no prefácio da Contribuição à Critica da Economia Política, de 1859 – , somos forçados a concluir que a China se encontra na passagem ou no limiar de um novo modo de produção. Se todas as constatações que fizemos se sustentam empiricamente, então é inevitável concluir que a China está atravessando uma ‘revolução social’ e se transformado rapidamente em uma economia capitalista de mercado; bem mais, em todo caso, do que o Brasil, que opera atualmente uma pouca discreta transição para uma economia de nítida predominância estatal (ou, pelo menos, mais controlada pelo Estado do que a chinesa). Só podemos desejar muita felicidade e sucesso ao povo chinês, neste programa ‘marxista’ que o Partido Comunista da China empreendeu no sentido de transformar radicalmente toda a sua imensa superestrutura, mesmo se os puristas acadêmicos interpretam o processo como uma espécie de contra-revolução. Como sempre, os acadêmicos estão errados, uma vez que eles não contemplam a realidade com base em simples constatações materiais, empíricas, e preferem preservar seus conceitos ultrapassados. A China, aliás, é muito mais ‘marxista’ do que o Brasil, já que ela não pretende fazer girar para trás a roda da História: ela avança celeremente para libertar-se dos grilhões de uma economia atrasada, ainda cingida por burocratas cinzentos – mas que estão rapidamente se transformando em novos capitalistas – e opera uma gigantesca transposição de sua miserável população rural, em grande medida ainda um ‘lumpesinato’, em novos trabalhadores da indústria chinesa; ela rompe suas muralhas ancestrais e se lança à conquista do mundo com uma energia e um entusiasmo capitalistas que fariam vibrar o Marx do Manifesto de 1848. Pena que os acadêmicos brasileiros, os “feudais” do MST e as lideranças políticas atualmente identificadas com a marcha da estatização em curso de implementação pelo governo federal não percebam essas novas realidades: eles se empenham ativamente em criar novas estatais ou em proteger as companhias privadas da concorrência estrangeira, esquecendo completamente a recomendação feita por Marx, no Manifesto, que dizia que o “preço baixo das mercadorias é a artilharia pesada com a qual a burguesia abate todas as muralhas da China”. A China já derrubou as suas muralhas socialistas e se empenha ativamente em derrubar as muralhas protecionistas dos demais países. Enquanto a China empreende sua marcha triunfal ao capitalismo, o Brasil parece acompanhar a marcha pouco gloriosa de alguns vizinhos em direção a mais estatismo e mais dirigismo. Não é difícil adivinhar os

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resultados respectivos dessas duas trajetórias contraditórias. Como diria o Marx do Manifesto, a China representa, hoje, o grande coveiro do socialismo, o espectro que assusta o pequeno bando de socialistas que ainda subsiste em alguns países desajustados e confusos quanto ao caminho a seguir. As opções parecem claras, e os chineses já fizeram as suas escolhas, mas alguns acadêmicos alienados ainda não se aperceberam disso. Brasília, 17 setembro 2009; revisão: Paris, 4 outubro 2009

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Conclusão: como não incorrer em falácias, sem deixar de ser acadêmico... Falácias nos acompanham inevitavelmente, qualquer que seja ... . (continuar, terminar...)

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