FALANDO A ESTE RESPEITO DE ALGUMAS NOTÍCIAS DA EUROPA: MONITORAMENTO DE RIVALIDADES IMPERIAIS EUROPEIAS NO EXTREMO SUL DA AMÉRICA EM INÍCIOS DO SÉCULO XIX

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Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

FALANDO A ESTE RESPEITO DE ALGUMAS NOTÍCIAS DA EUROPA: MONITORAMENTO DE RIVALIDADES IMPERIAIS EUROPEIAS NO EXTREMO SUL DA AMÉRICA EM INÍCIOS DO SÉCULO XIX Adriano Comissoli

Esta comunicação apresenta dados e conclusões parciais do projeto de investigação “Os espias continuam a ser empregados para trazerem mais notícias: comunicação, espionagem e poder (séculos XVIII e XIX)”, Cujo principal objetivo é analisar o circuito de comunicação português na fronteira do rio da Prata entre 1772 e 1812. Para alcançar essa meta nos dirigimos à correspondência entre oficiais militares das tropas regulares e destes com o governador da capitania do Rio Grande de São Pedro no início do século XIX. Dentro do fenômeno de comunicação escolhemos privilegiar as mensagens que mencionam ou trabalham com uma rede de inteligência portuguesa direcionada aos domínios espanhóis, a qual utilizava espiões, batedores, informantes e toda a forma disponível de coletar informação sobre os vizinhos platinos. As cartas analisadas foram localizadas principalmente nos fundos Autoridades Militares e Autoridades Militares do Rio da Prata, ambos sob guarda do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Complementarmente tem sido localizada documentação em outros acervos, como o do Arquivo Histórico Ultramarino (via Projeto Resgate Barão do Rio Branco), da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro, Brasil) e algum material do Portal de Archivos Españoles (PARES).1 O conteúdo das missivas demonstra constante preocupação para com a vigilância da fronteira com os espanhóis na região do rio da Prata, algo que condiz com a literatura especializada.2 Percebe-se que a disputa sobre a região platina – em especial os territórios do Rio Grande de São Pedro e da Banda Oriental – conheceu um recrudescimento no início do século XIX, exigindo uma constante ação de controle para com os vizinhos. Ao mesmo tempo, salienta-se o monitoramento de episódios ocorridos em outras partes da América e mesmo na Europa, mas com potencial de afetar o tênue equilíbrio da área disputada. O panorama que se constrói é o da reiterada preocupação 

Doutor em História Social, professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH UPF), [email protected]. Esta investigação conte com recursos do CNPq. 1 Esta investigação não se encontraria tão adiantada sem a ajuda de Andréia Aparecida Piccoli (Bolsista de Iniciação Científica) e dos voluntários Ruggiero Moreira e Santa Giovana Mendes Giordani, aos quais sou profundamente agradecido. 2 O estado de guerra endêmico e a militarização da sociedade constam em praticamente todos os trabalhos sobre o Rio Grande de São Pedro dos séculos XVIII e XIX (até o final da guerra do Paraguai, ao menos). Para uma leitura de apresentação da problemática recomendamos NEUMANN & GRIJÓ (2010).

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em manter-se atualizado sobre os diversos pontos de manifestação das rivalidades imperiais europeias, especialmente vigorosas no período. Quando nos reportamos à expressão Rio Grande de São Pedro estamos nos referindo à capitania portuguesa de mesmo nome, mas igualmente delimitando uma temporalidade, a qual se estende do segundo quartel do século XVIII até final do primeiro do XIX, isto é, desde os inícios de sua ocupação europeia até a eclosão da Guerra Cisplatina que culminou com a independência da República do Uruguai. Neste sentido, o Rio Grande de São Pedro (ou Continente de São Pedro) integra um espaço mais amplo, o das terras disputadas, expressão cunhada por Dauril Alden (1968) para referir-se à ampla área em contestação por espanhóis e portugueses na América. Esta se estendia da capitania de São Paulo até a margem norte do rio da Prata, embora apresente um ponto de maior fricção em sua porção mais meridional, a divisa entre a Banda Oriental e o Continente de São Pedro. Nesse ponto a luta em torno da afirmação da soberania de uma ou outra Coroa ibérica complicava-se por se fundirem disputas diplomáticas e embates militares. Os últimos podiam ser desdobramentos dos conflitos europeus ou podiam ter motivações próprias, inclusive ignorando a paz oficial na península. O que o acompanhamento da ação de espionagem portuguesa permite perceber é que a soberania encontrava-se constantemente questionada, necessitando de demonstrações efetivas tanto quanto do respaldo legal dos tratados diplomáticos.3 Cruzar a fronteira – de forma legal ou clandestina – para notificar os capitães lusitanos sobre o panorama espanhol era uma forma de questionar a própria soberania dos vizinhos. Da mesma forma, silenciar sobre esta atitude podia ser interpretada enquanto consentimento tácito, motivo pelo qual se multiplicaram as queixas formais enquanto estratégia de afirmação do controle sobre uma determinada área. Para que tais contestações fossem realizadas, por sua vez, ambos os lados tinham necessidade de conhecimento sobre o que passava na região. Daí surge a importância das redes de comunicação estabelecidas por portugueses e espanhóis. A ideia de rede de comunicação foi expressa de forma breve e elegante por Beiler (2009) como um conjunto de ligações que propiciam a comunicação regular por diversos meios, seja comunicação oral, cartas manuscritas ou textos impressos e publicados. Tais redes incluem os indivíduos que enviam a informação, certo número de

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Nesse sentido as leituras de Benton (2010) e de Herzog (2015) tem sido favoravelmente provocativas.

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agentes que facilita seu fluxo e as pessoas a quem se destinam ou que a recebem. A principal característica aqui sendo a regularidade. Circuitos de comunicação de longa distância fizeram-se presentes em diversos momentos da história da América, deles participando variados atores sociais com distintos fins. Assim, devotos protestantes puderam trocar auxílio e orientar a migração de seus pares ao longo do século XVII (BEILER, 2009). Católicos irlandeses, por sua vez, também articularam-se na Nova Espanha tendo em vista sua fé, sua naturalidade e seus soberano em comum, embora este compartilhamento de laços tenha verificado a difusão de uma escrita sediciosa (PRADA, 2009). A troca de informações as mais diversas, fossem por conversas triviais, fosse por manuscritos particulares e públicos, fosse ainda pela existência de periódicos impressos serviu de base para a formação de uma opinião pública, especialmente sobre a política dos anos 1810 e 1820 (GUERRA, 2002; PIMENTA, 2003). Este fenômeno não se limitou a um alcance provinciano, sendo alimentado por notícias de pontos distantes. O Estado do Brasil e a América espanhola, por exemplo, atualizavam-se mutuamente um sobre o outro, compartilhando experiência e interligando seus processos de emancipação política. O volume da comunicação contida no fundo Autoridades Militares é bastante alta, em se tratando do século XIX. Nota-se que a variedade de assuntos é igualmente ampla. É o próprio cotidiano da fronteira que é apresentado nas linhas manuscritas pelos oficiais militares portugueses. Estes capitães realizavam uma vigilância orientada tanto para os vizinhos espanhóis quanto para a população súdita dos Bragança. Um terceiro olhar se dirigia não apenas para os confinantes imediatos, mas aos domínios iberoamericanos mais distantes ou às investidas vindas de Europa. Num período de acirrada concorrência entre os impérios ultramarinos as notícias europeias e as iniciativas inglesas e francesas eram acompanhadas na medida do possível. O início do oitocentos recebeu o epíteto de Crise do Antigo Regime, Era das Revoluções, Era das Revoluções Democráticas ou Revoluções Atlânticas. Uma das facetas desta temporalidade é a intensificação das rivalidades imperiais, notadamente entre a França e a Inglaterra, as quais traduzem a luta pelo estabelecimento de soberanias, pela imposição de projetos políticos e pelo controle de mercados e de territórios (bem como dos súditos que neles habitavam). No extremo sul da América, na região do rio da Prata, a disputa por terras, gente e gado perpetrada por portugueses e espanhóis adquiriu uma de suas mais agudas intensidades, tendo por algumas vezes se desenvolvido para além dos conflitos europeus – como, por exemplo, nos anos de 1776

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e de 1777 com a retomada da vila de Rio Grande pelos portugueses e com a invasão da ilha de Santa Catarina pelos espanhóis, respectivamente. Esta autonomia ou protagonismo das disputas no extremo meridional do Novo Mundo punha a teste os tratados diplomáticos, quando não influenciava o contrato e redação de novos. Não será exagero afirmar que junto à diplomacia das Cortes ibéricas desenvolveu-se, ao menos desde 1777 quando se firmou o Tratado de Santo Ildefonso, uma diplomacia imediata da região de fronteira, na qual os oficiais militares de ambas as Coroas solucionavam disputas, cooperavam ou divergiam entre si, dividiam informações e algumas vezes dissimulavam a fim de encobrir dados (COMISSOLI, 2014a). O alvorecer do XIX avivou o comércio entre nações nos portos platinos. O de Montevidéu, em particular, passou a receber embarcações de diversas bandeiras, dado que no final do século XVIII recebeu o privilégio de poder comerciar com nações amigas, além de tornar-se a base da marinha espanhola no Atlântico sul. Com isso a cidade tornou-se um eixo para o comércio de longa distância, suplantando Buenos Aires e recebendo mercadorias e pessoas de diversas partes do Velho e do Novo Mundo. Essa condição foi fundamental para o crescimento da elite mercantil da cidade portuária, mas igualmente colocou-a no centro de projetos dos impérios europeus. Na primeira década do oitocentos os navios de bandeira portuguesa e inglesa eram comuns, bem como os dos Estados Unidos (PRADO, 2009). A maioria era de comerciantes, mas corsários também aportavam na cidade, trazendo suas presas (GRANDIN, 2014). Rio Grande, uma povoação de tamanho e de importância comercial mais modestos do que Montevidéu, era o último núcleo de povoamento português antes dos domínios espanhóis no sul da América. Era igualmente a sede de um dos três quartéis militares da capitania do Rio Grande de São Pedro e seu único porto marítimo. Os comerciantes da povoação lidavam com grosso trato, articulando circuitos com Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, os quais trocavam couros e charque (carne salgada) por manufaturas, secos, molhados e escravos (BERUTE, 2006). Uma parte destes produtos destinava-se ao contrabando com os espanhóis. Outra era levada em embarcações para Montevidéu, a fim de absorver parte da prata peruana que escoava por Buenos Aires. No plano militar, o quartel de Rio Grande era responsável por articular a vigilância e a defesa do que se chamava então de “fronteira do Rio Grande”. Esta expressão não se referia à toda a área de contato com os espanhóis, sendo antes uma espécie de divisão militar dos lusitanos. Na povoação de Rio Pardo encontrava-se outro quartel militar, responsável pela “fronteira do Rio Pardo”. Na capital, Porto Alegre,

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estava o terceiro quartel, mas devido ao fato desta povoação encontrar-se mais protegida e afastada do contato imediato com os espanhóis a ela não correspondia uma fronteira de seu nome. De fato, tanto Rio Grande quanto Rio Pardo haviam sido palco de enfrentamentos entre ibéricos, enquanto a capital (um núcleo populacional mais jovem) permanecera resguardada das refregas. Os quartéis de Rio Grande e de Rio Pardo eram dotados de um oficial comandante nomeado comandante de fronteira, os quais eram responsáveis não apenas por gerenciar as tropas, mas igualmente um serviço de inteligência que permitisse monitorar os respectivos setores da fronteira. Os dois comandantes subordinavam-se diretamente ao governador da capitania, escrevendo-lhe com frequência (fosse de forma direta, fosse por missivas endereçadas ao seu ajudante de ordens). Hierarquicamente abaixo dos comandantes de fronteira encontravam-se os oficiais lotados em cada um destes quartéis, seus soldados, mas também uma rede de informantes que incluía desertores perdoados, indígenas missioneiros (isto é, aldeados), negros livres ou libertos, contrabandistas e outros sujeitos não identificados, mas possivelmente desligados do serviço militar. Uma das maiores prioridades deste serviço de obtenção e triagem de informações era a observação das movimentações de tropas espanholas, a fim de evitar um ataque para o qual não se estivesse preparado. Desde 1801, quando os lusos, em cooperação próxima das chefias indígenas, tomaram o território dos sete povos das Missões Orientais a tensão junto aos espanhóis manteve-se em alta. De um lado esta teria sido a “derradeira expansão da fronteira” por parte dos súditos de Bragança (GARCIA, 2007), dado que mais do que dobrou o território da capitania de São Pedro e adicionou o significativo contingente populacional de quase catorze mil índios reduzidos ao serviço de Sua Majestade Fidelíssima. De outro ponto de vista, contudo, a tomada das Missões colocou a fronteira sobre forte tensão, já que os informantes dos portugueses mencionavam com frequência a intenção espanhola em retomar o território perdido. Algumas delas davam conta da chegada de reforços da Europa especialmente com este objetivo. Em carta de 26 de outubro de 1802 o comandante da fronteira do Rio Grande, Tenente Coronel Manuel Marques de Souza, contou ao governador interino Francisco João Roscio estar preocupado. Um de seus oficiais afirmara ter recebido um sargento espanhol que em tom de amizade lhe contara da notícia de reinício das hostilidades entre portugueses e espanhóis, pois um novo vice-rei chegara a Buenos Aires,

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acompanhado de quatro mil homens – um contingente militar que superava em muito as forças portuguesas. A fim de confirmar tal informe o oficial luso se comprometeu a enviar alguém a Montevidéu. Marques de Souza deu crédito à nota de seu subordinado (a qual seguiu em anexo ao governador), pois “Por caminhos clandestinos já tinha ouvido dizer aqui ter chegado alguma Tropa da Europa”.4 “Ouvido dizer” sugere a possibilidade dos relatos serem orais, enquanto a clandestinidade dos caminhos aponta para o uso de espiões e de rotas de informação não oficial. A menção mais curiosa, contudo, surge logo após Marques de Souza se comprometer a averiguar “o que há”. Após esta assertiva abriu novo parágrafo para informar O Espanhol Dom Domingos Saubidt [sic.] nestes três, ou quatro dias, terá recebido toda a importância que V.S. destinou se lhe pagasse, e prontamente seguirá o seu destino.5

É esta a continuação direta do parágrafo anterior? Manuel Marques de Souza pretendia “averiguar o que há” por meio do espanhol Dom Domingos Saubidt, um espião pago por ordem direta do governador? Neste caso o destino do espia seria a cidade espanhola de Montevidéu. Pagar espiões não seria novidade nas atividades de guerra portuguesas. O livro de registro da Provedoria da Real Fazenda do Rio Grande de São Pedro apresenta o trecho de uma carta do Marquês do Lavradio, vice-rei do Estado do Brasil entre 1769 e 1779, na qual se afirmou que “os espias fidedignos são indispensavelmente necessárias custem o que custar”.6 A carta data de 1772, mas a máxima continuava válida após trinta anos e podia ser consultada pelos sucessores de Lavradio. No ofício de 29 de outubro seguinte Manuel Marques de Souza voltava a abordar a problemática da chegada de reforços vindos direto de Espanha. Juntara uma minuta de Montevidéu escrita por um espanhol morador da cidade. A curta mensagem – mais bilhete do que carta – não contém assinatura e desenvolvia-se sob o título “Noticias de Europa vindas de Montevidéu”. Birrey para Buenos Aires esta em caminho y llega com el correo, es um Frances, el qual biene conboyado com quatro Buques de Gerra cargados de hasogues y em ellos quatro mil ombres de Tropa para el Remplazo de los Cuerpos de la Provincia 4

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Fundo Autoridades Militares (AHRS-AM), maço 02, doc. 36. Idem. 6 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Registros da Provedoria da Fazenda, códice F-1244, fl. 27v.-28. 5

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Ynspetor el ylo de el comandante de Orreli. Gobernador de Montebideo Dn. Nicolas Ruyz y este lo están bien Comandante de el Rio7

Anunciava apenas o indispensável, adiantando-se em décadas ao estilo econômico da telegrafia. Talvez a concisão do texto signifique que o remetente não conhecia todos os detalhes, talvez se deva ao caráter de urgência da mensagem. Este estilo nervoso e direto está de acordo com outras observações a respeito do serviço de mensagens secretas lusitano, no qual se explica que não se costumam assinar as mensagens, a fim de não denunciar seu remetente. Ao mesmo tempo a ausência de um destinatário, do local e data de escrita e de demais formalidades epistolares do período reforçam a ideia de uma escrita objetiva, que busca atender com grande velocidade à passagem da informação. Por fim, essa segunda carta menciona o repasse do comandante Marques de Souza ao governador Roscio de uma “notícia que deu o Capitão Espanhol Dom Agostinho da Rosa, em um capítulo de carta escrita a Dom Domingos Sauvidet, que também recebeu hoje”. Sauvidet, o anteriormente nomeado Saubidt, recebera o trecho de carta de um capitão espanhol e no mesmo dia repassara-a ao comandante de fronteira português A mensagem em questão diz respeito à passagem de um conde italiano da povoação espanhol de Maldonado para Rio Grande, de onde embarcaria ao Rio de Janeiro. Não é uma notícia que possa ser enquadrada enquanto confidencial. Contudo, não esqueçamos que três dias antes Marques de Souza havia assegurado ao governador que o espanhol Dom Domingos havia recebido a integralidade de um valor a ele destinado. Creio termos encontrado a menção a pagamento por serviços de informante. Embora já tivéssemos nos deparado com este fenômeno anteriormente (COMISSOLI, 2014b) desta vez podemos contar com o nome do envolvido. A carta de 2 de novembro menciona a chegada do conde de São Fiori a Rio Grande, vindo dos domínios espanhóis. Os frades que o acompanhavam davam “por certa a notícia” de que vinham de Espanha três mil homens, com o objetivo de retomar o território perdido no ano anterior, por “não terem gostado ali da perda dos terrenos, e das Missões”. Mas esta opinião foi desmentida pelo conde, que garantia que um correio chegado a Maldonado informava que as tropas espanholas eram em número inferior e sem ordens de engajar-se em combate. Ao final da missiva o comandante Marques de Souza lamentava a ausência da chegada de embarcações “para dar-nos algumas ideias 7

AHRS-AM, maço 02, doc. 37.

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da nossa Corte, ou pelo menos do Rio de Janeiro”.8 Dessa maneira, o comandante da fronteira do Rio Grande era responsável não apenas por apurar dados da sua jurisdição, mas também por liga-los com notícias que vinham de locais distantes e para isso valiase de viajantes como o conde e seus frades ou de espiões como Dom Sauvidet. A apreensão de Marques de Souza se explica por não estar firmada a paz oficial e por isto ser bastante factível um contra ataque espanhol. Em 22 de novembro ele escrevia novamente ao governador interino Francisco João Roscio. O relato do conde, juntamente com outras notícias, “que apareceram aqui por caminho clandestino”, fizeram com que o comandante encaminhasse “duas pessoas à Praça de Montevidéu por diferentes caminhos pesquisar os movimentos que houvessem [sic.] e notícias da Europa”. Um destes olheiros chegou a adentrar a cidade hispano-americana, onde soube “ter chegado com certeza Correio da Europa com a notícia da retificação da Paz geral e que por este motivo fora suspendida a expedição destinada ao Rio da Prata”.9 Marques de Souza completava que tanto as gazetas portuguesas quanto as espanholas noticiavam a assinatura da paz, trazendo também detalhes como os acertos em relação à disputa da Guiana. Na ausência de notícias oficiais de Lisboa e do Rio de Janeiro, portanto, foi a rede de informação clandestina portuguesa na região do Prata quem primeiro obteve as informações que permitiram a desmobilização militar. Sem condições de contatar os poderes centrais do império os oficiais o Rio Grande de São Pedro valiam-se de canais informais para obter dados que permitissem avaliar os passos a serem dados. As notícias distantes também podiam ser obtidas de modo mais trivial, como por exemplo, nas conversas entre oficiais portugueses e espanhóis. Estes encontros para troca de informações eram frequentes e são mencionados diversas vezes nos ofícios do fundo Autoridades Militares (ver COMISSOLI, 2014a). O Sargento-mor Vasco Pinto Bandeira, que operava em consonância com Manuel Marques de Souza, relatou reiteradas conversas com oficiais das guardas espanholas ou do quartel e vila de Serro Largo. Em uma dessas, em março de 1804, trocou informações com um alferes espanhol e “falando a este respeito de algumas notícias da Europa que estavam os Franceses, Ingleses, e Espanhóis com paz”.10 Portanto, a despeito da competitiva situação de fronteira havia troca de notícias entre os lados beligerantes da mesma, em especial quando se tratava de asseverar uma situação de paz.

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AHRS-AM, maço 02, doc. 39. AHRS-AM, maço 02, doc. 40. 10 AHRS-AM , maço 7, doc. 150A. 9

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O que se nota é que o comandante da fronteira do Rio Grande, devido à condição portuária da mesma, efetuava um controle sobre a recepção de notícias, atentando para aquelas de regiões distantes. A oscilação entre paz e guerra na Europa era acompanhada, pois incidia em reflexos americanos ou justificava – mesmo que a posteriori – ações cuja dinâmica demonstraram autonomia frente ao cenário europeu, como foi o caso da guerra de 1801 (GARCIA, 2007; CAMARGO, 2001). Paralelamente, outros eventos eram buscados ao olhar-se para regiões mais do que a vizinhança espanhola do rio da Prata. Vejamos alguns exemplos. Em novembro de 1805, os portugueses do Rio Grande de São Pedro se viram envolvidos na guerra entre espanhóis e ingleses. Isso porque o vice-rei do rio da Prata expedira um ofício dando notícia de que seis prisioneiros ingleses haviam escapado da prisão, furtando uma lancha em sua fuga. O vice-rei solicitava que se os ingleses fossem localizados deveriam ser detidos e a mesma lancha retornada, mas o Marque de Souza segredou que "Eu penso que os Espanhóis não tem razão em a reclamar, porquanto considero como habilidade feita e por efeito da guerra". 11 Ou seja, os espanhóis deveriam dar a perda por aceitável, visto não se tratar de um roubo, mas de uma ação de guerra. Nesse sentido, o comandante também presava pela neutralidade de Portugal, já que ao não esforçar-se em capturar os fugitivos ingleses não se comprometia frente a estes aliados históricos. O bem informado Marques de Souza comentava ainda sobre o receio do vicerei do rio da Prata liderar pessoalmente um ataque à capitania de São Pedro, considerando a investida pouco provável pelo motivo que surge, de se terem levantado algumas Províncias do Interior, nas quais entra a Capital de Cusco, não sendo agora Índios de Tupamaro, são próprios Castelhanos. No Correio passado de Buenos Aires vieram papéis dizendo que se tinham pegado os Cabeças; porém, neste seguinte se dá a certeza de se ter agitado a sublevação, para onde vão mandando de socorro alguma Tropa de Linha e Milicianos de Mendonça e de Córdoba.12

O sistema de informação, optando por canais oficiais (como as trocas entre militares) ou clandestinos (como os espiões pagos), permitia à fronteira do Rio Grande monitorar amplos espaços da América. Manuel Marques de Souza tinha acesso não 11

AHRS-AM, maço 8, doc. 99.

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AHRS-AM, maço 8, doc. 106.

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somente ao correio entre Porto Alegre e o restante do império português, mas igualmente ao fluxo de notícias espanhol, mencionando com segurança o correio de Buenos Aires. Desse modo conseguia destacar, inclusive, a variação das versões que chegavam ao rio da Prata, como a da sublevação em Cusco. Cabia ao comandante manter o governador atualizado tanto da situação imediata da fronteira como do que se passava no restante da América e do mundo atlântico, como neste trecho de carta de 1805: "Os Espanhóis já sabem da guerra que eles tem com os Ingleses; os quais lhe tomaram três Fragatas na Costa da Europa, que tinham saído de Montevidéu carregadas de prata, e sendo as Fragatas quatro meteram uma a pique"13. Esta informação fora obtida quando da visita do Tenente-Coronel de Espanha, Dom Francisco Xavier Viana, à guarda lusitana do rio Jaguarão, onde jantou com o Sargento-mor Vasco Pinto Bandeira em termos amistosos. O motivo da confraternização era assegurar que as mobilizações de tropas que se praticavam no lado hispânico tinham por objetivo castigar aos índios charrua e minuano, devendo manter-se as Coroas ibéricas em paz. A proximidade, contudo, permitia que as conversas trocassem outras informações, consistindo numa diplomacia periférica destes impérios. As notícias envolvendo outros impérios para além dos ibéricos cresceram nos anos que seguiram, demonstrando o alcance das redes de informação, que dentre outras fontes valiam-se das gazetas que cruzavam o Atlântico ou circulavam pelo continente Americano. Em agosto de 1806 os portugueses do sul da América vislumbraram as guerras napoleônicas, percebendo-as como mais do que um conflito europeu. No dia Marques de Souza relatava que um bergantim chegado da Bahia contava estar estacionada no recôncavo “uma Esquadra Francesa de seis Naus, e uma Fragata, vindo nela o Príncipe José Bonaparte [...].Que ali se dizia vinha reforçar o Cabo da Boa Esperança, mas também soube das forças inglesas que por lá tinham passado”.14 Há dois pontos a serem destacados aqui. O primeiro sendo a missão dos franceses em alcançar o Cabo da Boa Esperança, a qual foi abandonada por julgarem-se inferiores às forças britânicas. A segunda é a incorreta informação oferecida por Marques de Souza sobre a presença de José Bonaparte, quando de fato o príncipe a bordo era Jerome, o mais novo dos irmãos Bonaparte, Esta expedição terminou por dirigir-se ao Caribe, sendo desmembrada e sofrendo pesadas baixas frentes aos inimigos ingleses. De toda a forma,

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AHRS-AM, maço 8, doc. 60. AHRS-AM, maço 10,doc. 39.

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nas terras americanas de Portugal a neutralidade começava a desvanecer-se diante da passagem dos grandes rivais do momento. No dia 30 de novembro do mesmo ano Marques de Souza fez saber ao ajudante de ordens do governador que um bergantim vindo do Rio de Janeiro entrara no dia anterior no porto de Rio Grande. Cartas particulares, passageiros e o mestre da embarcação noticiam ter entrado no Porto daquela cidade uma pequena Esquadra Inglesa no dia 14 deste mesmo mês composta de uma Nau de duas baterias e meia, uma fragata; dois brigues, dois Cútris e uma Chalupa de guerra, com seis Navios de transporte, trazendo um Vice-almirante e General de terra. Nem as cartas nem os passageiros sabem dizer que numero de tropa de desembarque trazem nem para onde vai a dita Esquadra: os Ingleses diziam ir para o Cabo. O Oficial Espanhol que Chegou, vindo neste dito Bergantim diz que não trazia tropa de desembarque que assim lhe tinha dito o Snr. Vice Rey. Sendo isto certo, pouco mais tempo poderão existir os Ingleses no rio da Prata. por falta de forças de terra. 15

Esta carta é interessantíssima, pois nela consta a avaliação e a preocupação que a luta entre franceses e ingleses despertava na América. Marques de Souza preocupavase aqui não somente com o desfecho no Velho Mundo, mas com a ocupação e bloqueio que os britânicos exerceram sobre Buenos Aires, seguindo-se operações da Banda Oriental. Contudo, como ocorria com frequência do comandante da fronteira emitia seu parecer sobre a situação, considerando que sem reforços de tropas de terras os britânicos não conseguiriam manter-se no rio da Prata. A mesma carta afirmava ainda que as noticias da Europa continuam a serem tristes, as da nossa parte pelas instâncias de querer o Imperador Bonaparte que Portugal seja para Espanha. O Coronel Eloy diz que não obstante estas noticias, contudo ainda se trata da Paz geral. Outros dizem que se faziam recrutas em todas as Províncias; e os Navios de Guerra se aprontavam.16

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AHRS-AM, maço 10, doc. 83. Idem.

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Os rumores e os dizeres sobre o projeto de Napoleão para a Península Ibérica não eram animadores já que se discutia a possibilidade da supressão da autonomia política de Portugal. Havia versões que se complementavam ou contradiziam. Embora a decisão estivesse longe das mãos do governador do Rio Grande e de seus capitães a ação inglesa no rio da Prata indicava que a inclusão de Portugal na guerra não se restringia ao continente europeu, dando origem a um conflito verdadeiramente atlântico. Notícias funestas vindas da Europa repetiram-se nos anos seguintes. Em 1808 Manuel Marques de Souza produziu uma cópia da carta do oficial espanhol Rafael Guerra, muito provavelmente para repassá-la ao governador da capitania. Nela dizia-se quem oficial da Marinha francesa desembarcara em Maldonado com avisos do Imperador Bonaparte endereçados a Santiago de Liniers, vice-rei do rio da Prata, “de mucha consideración”. As notícias permaneceram restritas “e lo único que el vulgo habla es que el Emperador Bonaparte tiene presos em Bayona a nuestros Reyes y Principe de Asturias”.17 Guerra considerou estas “novidades

da Europa bastante

funestas”, desejando inclusive que não fossem verdadeiras. Infelizmente para ele, os relatos eram reais e Napoleão havia submetido a Espanha e deposto seus monarcas. Ao final dava outras mostras do quanto a rivalidade anglo-francesa cercava a América, contando que o bergantim francês que trouxera as cartas foi perseguido por dois barcos ingleses, forçando-se a parar na costa e seus passageiros a fugirem. Os ingleses, no entanto, incendiaram o navio perseguido. Em 1809 nas notícias da Europa chegaram em gazetas do 1º e 4 do mês que reportavam informações dos periódicos londrinos, cujos conteúdos “não são agradáveis”, visto anunciarem a entrada das forças francesas até Valladolid, não obstante elogiarem a resistência corajosa dos espanhóis. A última frase da carta anuncia curiosamente “Frequentavam-se os Correios de Paris e da Rússia para Londres”.18 Aparentemente uma menção ao alcance dos jornais britânicos, que teve por intuito avaliar o grau de credibilidade das notícias. A última mensagem que apresentamos é de 6 de setembro de 1810, uma carta de um espanhol, chamado Dom Joaquim Paz, a partir da vila de Melo. Diferente do bilhete nervoso e anônimo a que nos referimos acima esta foi escrita com bastante formalidade, incluindo o destinatário no cabeçalho, a assinatura do remetente o local e data de redação, além das fórmulas de saudações de praxe. O principal destaque diz 17 18

AHRS-AM , maço 12, doc. 10. AHRS-AM, maço 14, doc. 5.

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respeito a notificar o comandante português Manuel Marques de Souza de “Também estarmos por acá bien escasos de noticias de Europa”. Comenta mais que a chegada de embarcações trazendo “papeles publicos” que “hablan com tanta variedade” não solucionava o desconhecimento, até mesmo porque “las Gacetas del Govierno de Regencia no mineten poco, y mucho mas las de Buenos Aires”, algo que repugnava ao remetente.19 Neste caso nota-se o contrário das gazetas londrinas, pois enquanto na missiva anterior havia uma preocupação em ancorar a credibilidade, nesta última carta temos a expressão de um forte ceticismo. O que localizamos no fundo Autoridades Militares foi um misto de comunicação oficial com “notícias clandestinas” no império português. A leitura que fazemos é a de que consistia num sistema de inteligência, isto é, de obtenção e repasse de informações de diversas origens com o objetivo de projetar a política portuguesa em relação ao rio da Prata. Para tanto, era indispensável considerar as notícias sobre eventos mais distantes, o que dota a administração da região interligada ao que ocorria distante da mesma. A presença e atuação de britânicos e franceses em territórios de soberania ibérica, bem como as incertezas e o envolvimento dos atires sociais do rio da Prata são o primeiro passo na argumentação de que esta era uma fronteira Atlântica, envolvendo não apenas dois, mas múltiplos impérios.

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AHRS-AM, maço 216, doc. 60.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

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