Falantes do Acre, nossos direitos linguísticos! (2010)

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Milton Francisco

Falantes do Acre, nossos direitos linguísticos!

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Milton Francisco

Falantes do Acre, nossos direitos linguísticos!

Rio Branco MFS 2010

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3 Copyright © 2010 Milton Francisco Revisão: Luisa Lessa Arte de capa: Fábio Hastenreiter Patron e Milton Francisco (sobre mapa de Acre em números 2009) Tiragem desta edição: 250 exemplares e-mail do autor: [email protected]

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5 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC. F818f Francisco, Milton Falantes do Acre, nossos direitos linguísticos! / Milton Francisco. – Rio Branco : MFS, 2010. 56p. : 23×30 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-911326-0-7 1. Linguística. 2. Política linguística. 3. Línguas indígenas. 4. LIBRAS. 5. Espanhol. 6. Línguas faladas no Acre. I. Título. CDD: 410 CDU: 81'28

6

7 Quarta capa do livro em tinta Falantes do Acre: nossos direitos linguísticos! é um convite para pensarmos a situação linguístico-cultural do Acre, onde há a presença da língua árabe, do espanhol, da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e cerca de 15 línguas indígenas. De forma crítica, o autor comenta os direitos linguísticos dos falantes dessas línguas: quer o direito ao português – a língua do Estado –, quer o direito à própria língua. Sua leitura é uma visita do leitor a esse Estado pluricultural e plurilíngue da Amazônia Ocidental. Milton Francisco, professor da Universidade Federal do Acre, é mineiro de São Gonçalo do Pará.

8

9 Dedico João, sobrinho que virou memória

Agradeço César, Humberto, Luisa Lessa, Maristela e Selmo, colegas da UFAC pela leitura e sugestões As falhas que permanecem são minhas

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11 Sumário Visita ao Acre ................................... 1. Cultura árabe .............................. 2. Español en el Acre ........................ 3. Nossas línguas indígenas ............. 4. Línguas de sinais .......................... 5. Direito à língua do Estado ............ 6. Direito à própria língua ................ 7. Extermínio linguístico ................... 8. Devagar com nossas línguas! ....... Seguindo Ramais .............................. Bibliografia ......................................

13 17 20 25 29 32 37 44 47 52 55

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13 Visita ao Acre O Acre, apesar de sua distância em relação aos principais centros urbanos do Brasil e de seu relativo isolamento, conseguiu aglomerar algumas culturas que hoje ainda se fazem presentes em seu cotidiano. São elementos culturais e linguísticos diversos, quer integrantes dos povos autóctones de suas florestas, quer absorvidos dos vizinhos bolivianos e peruanos, quer originários de sírios e libaneses na segunda metade do século XIX, quer trazidos por brasileiros de diferentes partes do país, em diferentes épocas, especialmente da região nordeste. A diversidade cultural e linguística do Acre é bem maior do que o restante do Brasil sabe.

14

15

Convidamos o leitor a passear, um pouco, por esse Estado pluricultural e plurilíngue “meio escondido” na Amazônia Ocidental. Para tanto, acompanharemos um flâneur, aquele poeta francês, do final do século XIX, andante noturno das ruas de Paris. Aproveitaremos sua visita ao Acre de hoje para pensarmos sobre as minorias linguísticas que aqui vivem. Ora guiando-o, ora seguindo-o, visitaremos nossa cultura, atentando para nossas línguas. Há a presença, aqui, da língua árabe, do espanhol e cerca de 15 línguas indígenas, além da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Também, refletiremos sobre os direitos linguísticos da população falante dessas línguas, os quais se dividem em direito à língua do Estado e direito à

própria língua. Na sequência,

pensaremos um pouco

sobre o exter-

mínio linguístico ocorrido no Brasil. Por fim, faremos uma rápida reflexão sobre a educação indígena implementada no Acre.

16

17 1. Cultura árabe Ao chegar a Rio Branco, nosso flâneur se envolve com palavras árabes de razões sociais do início do século passado, escritas, por vezes, em alto-relevo, nas fachadas

dos

prédios

antigos

da

cidade. Na atual Rua Eduardo Assmar, afetivamente

Gameleira,

às

margens

do Rio Acre, e principal área comercial daquela

época,

portas

frontais:

grafaram CASA

acima

das

DOMINGOS

ASSMAR,

fundada

em

1907;

CASA

FARHAT,

fundada

em

1912;

CASA

YUNES, também fundada naquele tempo. Mas isso ocorre não só na capital acreana. Ele se certifica do mesmo hábito

cultural,

por

exemplo,

em

Brasileia, onde se lê, em alto-relevo, CASA

MANSOUR

e

CASA

FLÔR

DE

18 BRASILÉIA

19 DE

ANTONIO

ABRAHÃO

TUMA.

Em verdade, esses “nomes comerciais” são registros históricos da presen-

Nosso flâneur, caminhando pelas ci-

ça dos imigrantes sírios e libaneses em

dades acreanas, também absorve razões

terras da Amazônia Sul-ocidental. Esses

sociais, com nomes árabes, contem-

imigrantes, atenta o historiador, e pro-

porâneas a nós, registra em suas retinas

fessor da Universidade Federal do Acre,

Drogaria Saad, Edifício Mustafá Zacour,

Carlos Alberto Alves de Souza (2002,

por exemplo. Observa que os sírio-liba-

p.69), “foram importantes no comércio

neses emprestaram seus nomes, tam-

e abastecimento regional, a partir da se-

bém, a órgãos do governo e escolas, como

gunda metade do século XIX, com a ex-

Fundação de Cultura Elias Mansour, Es-

ploração da produção da borracha, aju-

cola Estadual Georgete Eluan Kalume,

daram a formar cidades e bairros, a criar

em Rio Branco; Escola Estadual Kairala

costumes locais e a influenciar na cons-

José Kairala, em Brasileia; Escola Esta-

tituição de uma cultura na Amazônia”.

dual Joana Ribeiro Amed, em Epitaciolân-

Chegaram, aqui, como a várias locali-

dia; Escola Estadual Clarisse Assef, em

dades do Brasil, em geral, como comer-

Sena Madureira; Escola Estadual Mustafá

ciantes, mas motivados pela dominação

Almeida Tobu, em Cruzeiro do Sul.

do Império Turco em seus países. A sa

contribuição mais

visível

para

sírio-libanea

cultura

20

21

acreana provavelmente seja a culinária.

lândia, cidades gêmeas, vizinhas a Co-

A língua árabe está nos cardápios de ba-

bija (Bolívia). Outra cidade fronteiriça é

res, restaurantes ou quiosques das pra-

Plácido de Castro, vizinha a Puerto Evo

ças eparques. Comem-se por aqui esfiha

Morales, ex-Montevideo, vila boliviana

aberta, misto árabe, charuto, kafta assa-

refundada em maio de 2007 pelo pre-

da, pão árabe, pasta de grão de bico ou

sidente da Bolívia Evo Morales, após in-

pasta de berinjela, kibe cru ou kibe fri-

cêndio que destruiu mais da metade das

to, tabule, coalhada fresca ou coalhada

residências e das lojas comerciais.

seca. Os sanduíches, tipicamente esta-

Nessas cidades acreanas, a popula-

dunidenses, por vezes, são enriquecidos

ção divide os espaços públicos, comer-

pelo sabor árabe.

ciais e culturais com bolivianos e peruanos. Nosso flâneur percebe uma aura

2. Español en el Acre

particular constituída do encontro de duas línguas, seja na modalidade falada

Outra presença “estrangeira” impor-

ou escrita. Na fala, o espanhol está pre-

tante é a de bolivianos e peruanos. O Acre

sente nas famílias em que um dos pais

faz fronteira, ao sudeste, com a Bolívia, e, ao

veio do outro lado da fronteira, no aten-

sul, com o Peru. Suas cidades fronteiriças

dimento do garçom ou do comerciante

são Assis Brasil, vizinha a Iñapari (Peru) e

de diferentes lojas, aos clientes bolivia-

Bolpebra (Bolívia), e Brasileia e Epitacio-

nos ou peruanos, em reuniões ocasionais

22

23

do serviço público, em táxis dos países

Acre aos portos peruanos de Illo e Puno,

vizinhos, em canais de televisão e rádio

leem-se placas de trânsito em português

da Bolívia ou Peru.

e em espanhol. Uma delas informa: Es-

Na escrita, o espanhol está nos car-

trada do Pacífico/Carretera del Pacífico;

dápios de restaurantes, em algumas

outra atenta: El uso del casco es obliga-

placas informativas, nos carros bolivianos

torio.

ou peruanos e, por vezes, em outdoors.

Mas o contato entre essas duas línguas

Em Brasileia e Epitaciolândia, estuda-

– nota nosso visitante francês – não ocor-

-se na Escola Estadual Brasil-Bolívia;

re, apenas, nas cidades fronteiriças. Em

pernoita-se, por exemplo, na PousadaLas

Rio Branco, por exemplo, são dezenas de

Palmeras ou na Pousada Los Hermanos;

famílias com pai ou mãe vindos da Bo-

comercializa-se na Varinia Brazil, que

lívia ou Peru, com filhos nascidos nes-

assim saúda: bien venidos hermanos

ses países ou no Brasil. São crianças e

bolivianos y peruanos, está escrito em

jovens que frequentam escolas com um

sua fachada.

ensino voltado, exclusivamente, para o

Em Assis Brasil, a educação presta homenagem

a

um

ilustre

falante do português como língua ma-

hispano-

terna. Em geral, essas crianças e jovens

falante, com a Escola Estadual Simon

são bilíngues, falam espanhol com pelo

Bolívar.

Também,

na

menos um dos pais e português na esco-

Estrada

do

o

la e na rua. Caso semelhante ocorre em

nessa

Pacífico,

cidade,

que

ligará

24 Cruzeiro do Sul, no oeste do Estado,

25 3. Nossas línguas indígenas

onde os imigrantes são principalmente peruanos.

Outra contribuição cultural relevante, na

Nosso flâneur, quando em Rio Branco,

formação do Acre, é a dos índios, prin-

em outubro de 2007, leu num outdoor: Las

cipalmente na culinária e na heteroge-

empresas de Bolivia y el Mundo se reunem

neidade linguística. Segundo o professor

en Cobija. Opcionalmente, almoçou na

indígena Joaquim Maná Kaxinawá (apud

Galeteria Las Brasas. No camelódromo,

Ochoa e Teixeira, 2006, p.36), há no Es-

no centro da cidade, comprou das mãos

tado “14 povos indígenas, cada um com

de bolivianos ou peruanos. À noite,

sua língua própria. Essas línguas estão

pediu nalgum restaurante um cebiche,

classificadas em três famílias linguís-

prato típico peruano, composto de peixe

ticas: Aruak, Arawá e Pano. As línguas

marinado no limão, legumes, batata-

da família Pano são aquelas faladas pe-

-doce e macaxeira – ainda que à moda

los Kaxinawá, Jaminawá, Yawanawá,

brasileira.

Shanenawa,

Shawãdawa,

Poyanawa,

Nukini, Katukina e Kaxarari. As que pertencem à família Aruak já são as faladas pelos Manchineri, Ashaninka e Apurinã. E as línguas da família Arawá são faladas pelos Kulina e Jamamadi.”

26

27

Em 2008, havia aqui 15.852 índios,

cola Aquiry, Lava jato Tangará, Drogaria

distribuídos em 11 dos 22 municípios

Tucumã. Ouve dezenas de palavras indí-

acreanos (FUNASA, apud ACRE-SEPLAN,

genas incorporadas ao cotidiano do por-

2009, p.25).

tuguês, sem poder correlacioná-las às

Quantificar as etnias e línguas indíge-

línguas de origem. Também conhece os

nas não é tarefa fácil nem conclusiva.

desenhos indígenas – sem poder iden-

Outra questão discutível é acreditarmos

tificar a quais etnias pertencem – que

que há correspondência um povo – uma

ornamentam vias públicas, ônibus do

língua. Não é bem assim. Algumas lín-

transporte público, placas afixadas pelo

guas são faladas por mais de um povo.

governo, carros do serviço público.

No Brasil, aproximadamente 180 línguas

Nas

suas

andanças

acreanas,

quase todas reservadas à Amazônia.

índios de várias etnias, pois são apro-

se

tratando

cruza

com

línguas

ximadamente 3,8 mil vivendo em áreas

indígenas, elas estão limitadas quase

urbanas. Em Rio Branco, por exemplo,

que à comunicação entre os índios e

eles estão por volta de 2,5 mil. Em

às aldeias. Mas, circulando por Rio

Cruzeiro do Sul, 500, conforme dados da

Branco,

encontra

Fundação Nacional dos Índios (FUNAI),

alguns “nomes comerciais” em língua

ano de 2005. Distante de seu povo, de

indígena, como Casa Txai, Auto Es-

suas práticas culturais e da floresta,

nosso

das

flâneur

cidades

indígenas são maternas de 220 etnias, Em

nosso

pelas

visitante

28 sua tentativa de adaptação à cidade

29 4. Língua de sinais

quase sempre é cheia de problemas. Um deles são as perdas linguísticas.

Uma língua pode ser apenas oral, sem

Ele encontra, em Rio Branco, com

escrita, isto é, não possuir uma grafia.

centenas de índios que deixaram suas

Chamam-se línguas ágrafas. Elas ocor-

aldeias ainda na infância ou na ado-

rem, principalmente, aonde a colonização

lescência. Percebe que, hoje, jovens ou

não chegou ou foi menos sanguinária e

adultos, esses índios possuem uma com-

menos repressiva do que na costa brasi-

petência linguística em português (segunda língua) tão boa quanto aquela dos rio-branquenses em geral, enquanto a competência na língua materna é limitada, restringindo-se quase que ao léxico. Reflete em silêncio: parece que o afastamento prematuro, em relação a seu povo, por um lado, contribui para

leira, por exemplo. Uma língua pode ser também “não oral”, isto é, não ser sonora. Trata-se das línguas de sinais, as quais, como esclarece o linguista R. L. Trask (2006, p.160): “Uma verdadeira língua de sinais não é uma imitação grosseira de uma língua falada;

a integração da criança ou jovem índio

é uma autêntica língua natural, com um

à cultura não-indígena, mas, por outro,

vasto vocabulário e uma gramática rica

determina a perda significativa de parte

e complexa, e é tão flexível e expressiva

da cultura indígena, que havia adquirido

quanto uma língua falada.” Nesse sentido,

na infância.

as línguas de sinais, portanto, equivalem-

30

31

-se, por exemplo, ao Manchineri, ao

e a emancipação linguística do grupo mi-

Kulina, ao português, ao espanhol.

noritário surdo, atenta Gesser (p.44).

Pelo Acre, nosso flâneur vê surdos se

Para eliminar alguns possíveis ques-

comunicando em LIBRAS, a Língua Brasi-

tionamentos, sobre a equivalência entre

leira de Sinais. É uma língua ainda desco-

a LIBRAS e as demais línguas naturais,

nhecida da maioria dos brasileiros, nos seus diferentes aspectos. Por exemplo, a sua escrita. Conforme a linguista Audrei Gesser (2009, p. 42-44), a LIBRAS, até há pouco tempo, era considerada ágrafa. Mas, desde 1996, a partir da iniciativa do grupo de pesquisa coordenado por Antonio

Carlos

da

Rocha

Costa,

na

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, busca-se a implementação da grafia da LIBRAS. A criação dessa grafia é um processo um

complexo bem

e

cultural

lento, com

mas

é

implica-

ções positivas para o fortalecimento

como o português ou o Ashaninka, lembramos que se encontram na LIBRAS algumas das principais características que opõem as línguas naturais às línguas artificiais (como o esperanto). A saber: variação regional, adaptação à situação de comunicação, disponibilidade para a ampliação constante dos recursos expressivos (Trask, 2006, p.324). No Acre, e em todo o Brasil, as pessoas surdas se comunicam em LIBRAS, entre elas, mas também com pessoas ouvintes – quem sabe com nosso visitante francês.

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A língua é instrumento e meio de inserção na sociedade. Todavia, nem todos os

nos Estados Unidos e em vários países europeus ou latino-americanos. Nossa Constituição determina, no 2º

surdos conhecem a “própria” língua.

parágrafo do artigo 210: “O ensino fundamental regular será ministrado em

5. Direito à língua do Estado

língua portuguesa, assegurada às comuSem que o português perdesse espaço, a

Constituição

Federal

de

1988



significativa atenção às línguas indígenas vivas. Nenhuma reparação, impossível. No entanto, nada menciona sobre as línguas dos imigrantes, entre eles os vindos da Bolívia ou Peru. Tal “esquecimento”,

porém,

não

é



brasileiro.

O

nidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.” Trata-se de uma decisão seguida, por exemplo, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96, art. 32, § 3º). Em diálogo com a “conquista” e a “lacuna”

constitucionais,

Declaração

Universal

consta

dos

da

Direitos

antropólogo mexicano Rainer Enrique

Linguísticos (Oliveira, 2003), no artigo

Hamel (1995, p.13-14) nos conta que imi-

29, 1º parágrafo: “Toda pessoa tem

grantes e povos indígenas (originários)

direito a receber educação na língua

são jurídica e linguisticamente tratados

própria

de modo bastante distinto, por exemplo,

Consonante, Louis-Jean Calvet (2007),

do

território

onde

reside.”

34

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sociolinguista nascido na Argélia e radi-

ruanos, por exemplo, quer nascidos no

cado na França, defende que todo cidadão

Acre, quer nascidos na Bolívia ou Peru,

tem direito à língua do Estado – direito à

têm acesso à educação em português.

alfabetização, à educação nessa língua.

Quanto aos índios, na maioria das aldeias

Cabe ao Estado, direta ou indiretamente,

do Estado, há ensino em/de português,

promover o ensino na língua que é de seu uso, ofertando-o a toda a população. Noutra

perspectiva,

respeitar

esse

direito é fazer valer o princípio de territorialidade, segundo o qual, é o território que determina a escolha da língua ou o direito à língua (Calvet, 2007, p. 82). Isso, também, na visão de nosso flâneur. No Brasil, esse direito é atendido. Em

ao lado do ensino em língua indígena, embora o grau de presença da língua portuguesa seja variável de uma aldeia para outra. Esse direito é também das pessoas surdas. Nos últimos anos, em algumas escolas de Rio Branco, muitos surdos têm recebido atendimento para que possam ler em português. Aqueles que são alunos do ensino regular são acompanhados por um intérprete durante as aulas

todos os municípios há alfabetização

e, no contraturno, têm aulas em/de por-

em

tuguês como segunda língua.

português.

muitos casos, Acre, e

filhos

Precariamente,

é bem verdade. No

descendentes de

em

pais

sírio-libaneses

bolivianos

ou

pe-

Na perspectiva linguístico-educacional, levar esse direito a sério é, no mínimo, dar ao indivíduo competência linguística

36

37

e textual em português. É torná-lo, o

não, ler este livro e posicionar-se diante

quanto possível, capaz de ouvir, falar, ler

dele, quer por meio da fala, quer por meio

e escrever em português, nas mais dife-

da escrita.

rentes situações de comunicação. Levar esse direito a sério é não privar

o

cidadão das inúmeras práticas

sociais e possibilidades que exigem, no

Adquirir competências textuais na língua do Estado é indispensável para que a pessoa acesse a cidadania, a democracia, seus direitos e seus deveres.

caso do Brasil, o uso do português. São práticas comuns da vida, das mais sim-

6. Direito à própria língua

ples às mais complexas, como comprar um bilhete de passagem, ler cartazes e

Calvet (2007) e Hamel (1995) defen-

placas informativas e publicitárias, ler o

dem, também, que as minorias linguísti-

jornal da cidade e escrever para a seção

cas, e sobretudo elas, têm direito à própria

de cartas, compreender o telejornal ou

língua – direito à alfabetização e à edu-

a telenovela, abrir uma conta bancária,

cação em língua materna. Isso significa,

reivindicar os direitos de consumidor,

para o grupo de falantes, poder falar e

requerer à prefeitura municipal alva-

escrever em sua língua, registrar seus

rá de funcionamento de um comércio,

conhecimentos tradicionais, sua literatu-

argumentar a favor ou contra a políti-

ra oral, sua visão de mundo, suas desco-

ca ou economia brasileiras e, por que

bertas na cidade ou na floresta.

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E mais, é o direito de o indivíduo iden-

O professor Joaquim Maná Kaxinawá

tificar-se com a sua língua, a usá-la em

(apud Ochoa e Teixeira, 2006, p.110)

contextos sociais e políticos relevantes

revela ao nosso flâneur o porquê do

(como a educação e a administração

direito

pública) e a contar com os recursos

questão linguística é falar da cultura, da

necessários para desenvolvê-la.

identidade. A identidade original está

Acerca desse direito, consta da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, no artigo 26: “Toda comunidade linguística tem direito a uma educação que permita a todos seus membros adquirirem o pleno domínio de sua própria língua, com as diversas capacidades relativas a todos os âmbitos de uso habituais”. E no artigo 41, relativo à cultura: “Toda comunidade linguística tem o direito de usar, manter e potencializar sua língua em todas as formas de expressão cultural.”

à

própria

língua:

“falar

da

na língua, na pintura, nos artesanatos e nos desenhos que a gente faz. Porque na língua está toda a cultura: o uso das ervas, a história dos antepassados, as músicas que sabemos interpretar, o que elas realmente estão detalhando.” Portanto, permitir e promover o uso da própria língua é permitir a manutenção daquilo que é mais valioso para um grupo linguístico minoritário, quer índios, quer imigrantes, quer surdos. Sobre esse direito dos índios, as aldeias do Acre têm ensino na língua materna. Antes mesmo da Constituição de

40

41

1988, vários povos indígenas se desper-

a língua dos imigrantes, em geral, não

taram para a importância de manterem

a ensinam aos seus filhos. A língua ma-

a própria língua e para o risco de perda

terna dos filhos e netos é o português.

que ela corre diante do português. Hoje

Não há, portanto, como criar um ensino

contam com assessorias para o registro

em língua materna árabe, não há porque

e o ensino da língua materna.

reivindicar tal direito. Mas, antes de ser-

Um trabalho pioneiro, com a prática de

mos conclusivos, devemos saber dos sen-

escrita em língua indígena, é o projeto

timentos linguísticos de seus falantes,

Uma Experiência de Autoria dos Índios

como se organizam, como se distribuem

do Acre, iniciado em 1983, pela Comis-

no Estado.

são Pró-Índio do Acre (CPI-AC). São

Quanto ao espanhol, embora seja,

histórias orais ouvidas dos mais velhos

aparentemente, significativa a presença

e reproduzidas por alunos e professores

de hispanofalantes no Acre, ainda não

indígenas – se podemos pensar aqui tão-

há mobilização para que haja ensino

somente no produto final, e não neces-

nessa língua, em parte devido à falta de

sariamente no processo.

iniciativa dos próprios imigrantes e de

Esse direito deveria ser reconheci-

seus governos, mas também do governo

do diante de todas as línguas do Acre.

do Estado que os acolhe. Os direitos

No caso do árabe, porém, os descen-

linguísticos

dentes sírio-libaneses que ainda falam

hispanofalantes não são atendidos.

dos

cidadãos

acreanos

42

43

Aliás, essa lacuna política está pre-

O uso da LIBRAS pelos surdos diz

sente em todos os Estados brasileiros

respeito ao seu direito à cidadania e à

fronteiriços a los hermanos. O Brasil está

inclusão social que eles conquistam

devendo a crianças e jovens hispanofa-

paulatinamente. Ao usá-la, podem –

lantes uma educação bilíngue. São filhos

e esperamos que de fato possam –

de imigrantes – “agora cidadãos brasi-

manifestar o que pensam e sentem,

leiros” – que têm casa, trabalho e raiz

criticar e defender seus pontos de vista.

em nosso território. Dignos, portanto, de

Isso implica não só o acesso ao ensino de

terem sua língua reconhecida como lín-

LIBRAS e a comunicação entre surdos,

gua de ensino.

mas, também, a comunicação efetiva

Em contrapartida, no Acre, as pessoas

entre surdos e ouvintes.

sua

O direito à própria língua vincula-se

competência em LIBRAS. Devagar vão

ao princípio de personalidade, segundo

encontrando

Também

o qual os indivíduos de um grupo linguís-

nosso flâneur tem aprendido um pouco

tico reconhecido têm o direito de falar

dessa língua, com dezenas de surdos

e escrever em sua língua, independen-

que circulam pela cidade. Vez ou outra,

temente do território onde o grupo se

papeiam no Terminal Urbano de Rio

localiza (Calvet, 2007, p.82). Ou seja, o

Branco, enquanto aguardam o próximo

índio, fora de seu território, já fixado ou

ônibus.

recém-chegado à cidade, também tem

surdas

aprendem

ou

ampliam

interlocutores.

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45

direito à própria língua. O mesmo vale,

de sentidos equivalentes. Fazemos isso

no Acre, para o imigrante hispanofalante

sem encontrar qualquer motivo na lín-

e para o cidadão surdo.

gua, pois uma forma é tão boa quanto a outra – defendem com veemência os lin-

7. Extermínio linguístico Embora, nos cardápios de lanchonetes e restaurantes, fachadas dos comércios ou placas informativas e publicitárias, ocorra relativa confluência linguística de árabe, espanhol e línguas indígenas, no Acre, como em “todo” o território brasileiro, a língua portuguesa é majoritária. Nosso visitante sabe que o português é nossa língua oficial e de comunicação, não há dúvida em seus olhos.

guistas –, e sim na nossa identidade, no nosso patriotismo, na nossa unidade nacional. Muito provavelmente pseudoidentidade, pseudopatriotismo, pseudounidade, porque oculta o Brasil pluricultural e plurilíngue de fato. Mas, se no Brasil ocorre o reinado de uma única língua, é devido ao processo histórico e político a seu favor. É emblemático nesse processo o Diretório dos Índios, lei de 1758, quando o portu-

Continua ele sua viagem, também,

guês Marquês de Pombal determinou o

com a certeza de que, preferencial-

uso exclusivo do português como língua

mente, aportuguesamos palavras “es-

de ensino no então Estado do Grão-Pará

tranhas” ou as substituímos por outra

e Maranhão, em detrimento das línguas

em português. O que é pior, nem sempre

indígenas faladas por grande parte dos

46

47

brasileiros de então. A lei do coloniza-

necessariamente pelo número de falan-

dor!

tes, e sim pelo desprestígio social atribuí-

Se hoje, no Acre, existem cerca de

do a elas. Mas é muito mais do que isso,

quinze línguas indígenas, é, em parte,

o Estado Brasileiro desrespeitou a língua

devido ao fato de seus falantes estarem

do seio materno de milhões de brasilei-

distantes da costa e dos centros já urba-

ros. Juntos, o Diretório e o Estado Novo

nizados nos tempos de tal Marquês. Isso

promoveram um extermínio linguístico.

não significa que essas línguas indígenas

Notícia nada positiva ou agradável a um

tenham ficado livres de repressão, pelo

flâneur!

contrário. Na mesma categoria do Diretório, já

8. Devagar com nossas línguas!

no século XX, encontra-se a política de Getúlio Vargas contra as línguas

Embora a avaliação geral seja de que

maternas de milhares de imigrantes e

a educação intercultural e bilíngue pro-

seus descendentes, sobretudo no sul do

mova mudanças

país.

dios, esse resultado talvez não seja sem-

positivas entre os ín-

Nutrindo esses dois episódios trágicos

pre verdade. O professor Isaac Pinhanta

está o fato de essas línguas – indígenas ou

Ashaninka (apud Ochoa e Teixeira, 2006,

de imigração – não terem sido eleitas pelo

p.112), por exemplo, é cauteloso a esse

Estado como língua nacional e de serem

respeito: “devemos ter cuidado com o tra-

línguas de minorias. São de minorias não

balho que a escola propõe, pois os alunos

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49

estão vivendo entre diversas culturas

língua nacional e a língua oficial não po-

diferentes, entre diversos conhecimen-

dem apagar a língua materna minori-

tos e práticas: prática tradicional e práti-

tária nem ser a mais importante no seio

ca escolar teórica, convivendo com cos-

da comunidade bilíngue ou que se quer

tumes diferentes, línguas diferentes.”

bilíngue. No entanto, o “encontro” de

Aqui, Isaac parece atentar para o fato de, num mesmo tempo, se preocuparem em manter vivos os conhecimentos tradicionais e desejarem adquirir conhecimentos e tecnologias do mundo não-índio. Na verdade, como nosso flâneur observa, vários povos indígenas – não apenas no Acre – mesclam, por exemplo, o cultivo tradicional de alimentos e a pesca artesanal com o uso de

ambas as línguas, dentro dessa comunidade, tende a ser, em geral, de constante conflito e de ameaça à língua minoritária. Por isso, é fundamental ouvir a preocupação de Isaac Ashaninka. Diante da situação de perigo a que estão submetidas as línguas e culturas indígenas, cabe aos indivíduos índios serem vigilantes na implementação das

câmeras filmadoras, de microcomputa-

políticas linguísticas pelo Estado. Nesse

dores e o acesso à Internet.

sentido, ao lembrar que a Constituição

O receio, entremeado em sua fala, é

Federal faculta aos povos indígenas o

salutar e figura como argumento à pos-

direito de ensinar, nas escolas, o portu-

tura de que a “cultura do Estado” não

guês e as línguas próprias, o professor

pode se sobrepor à “cultura local”.

Joaquim Maná Kaxinawá (apud Ochoa e

A

50

51

Teixeira, 2006, p.110), em consonância

guística, nenhuma decisão pode – ou

com o professor Isaac Ashaninka, chama

não deveria – ser tomada “sem que se

seus pares para a prática sociopolítica,

levem em consideração os sentimen-

em defesa de suas línguas: “Esses dire-

tos linguísticos, as relações que os fal-

itos devem ser praticados pelos próprios

antes estabelecem com as línguas com

povos, pelos índios, famílias e comunidades, para que as Políticas Linguísticas se fortaleçam cada vez mais.” E não pelos líderes não-índios, nem mesmo os de “boa vontade”, porque os cuidados com qualquer língua implicam o sentimento linguístico-materno de cada grupo de falantes, de cada comunidade. As vozes do professor Joaquim Kaxi-

as quais convivem diariamente” (Calvet, 2007, p.86). Trata-se de uma orientação primordial (se queremos realmente respeitar os direitos das minorias) nem sempre valorizada pelo Estado ao assumir as decisões de gabinete – as políticas – e ao implementar tais políticas. Os falantes ensinam muito ao Estado, se assim esse o quiser. Essa postura estatal seria um grande

nawá e do professor Isaac Ashaninka,

passo rumo à democracia tão almejada

anteriormente citadas, apontam para a

em nosso país.

relevância que devem ter os sentimentos de cada povo nas políticas assumidas e implementadas pelos governos – municipais, estaduais ou federal. Em política lin-

52

53 Seguindo Ramais

A

propósito,

significaria

essa

qualquer

promoção

não

ameaça

ao

Embora a situação dos índios do Acre

português. Fomentaríamos uma educa-

não seja a mais desejável, entendemos

ção bilíngue, orientados, por exemplo, pe-

que, devido a suas práticas socioculturais e “conquistas”, eles podem ensinar – com as ressalvas necessárias – aos brasileiros hispanofalantes. Isso nos parece cabível, mesmo sabendo que o ensino em espanhol está à mercê dos interesses do Estado e da maioria dos linguistas e intelectuais brasileiros. Se os sentimentos linguísticos desses hispanofalantes são de que o espanhol, por exemplo, se torne língua de ensino, em algumas cidades acreanas ao menos, e se as decisões do governo (municipais

lo 3º parágrafo do artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, segundo o qual “A educação deve estar sempre a serviço da diversidade linguística e cultural e das relações harmoniosas entre diferentes comunidades linguísticas do mundo todo.” De modo semelhante, poderíamos dizer acerca de LIBRAS. Nesse caso, sua expansão ocorreria em dois eixos: tornar todos os surdos seus falantes e promover a comunicação efetiva entre sur-

ou estadual) forem ao encontro desses

dos e ouvintes (sobretudo atendentes do

sentimentos, podemos, então, vislumbrar

comércio ou serviço público).

uma promoção do espanhol no Acre.

Se so

assim

visitante

se flâneur,

seguir, quando

nosvoltar

54

55

em poucas décadas, se certificará do res-

Bibliografia

peito com que o Estado tratou os cidadãos acreanos surdos ou hispanofalantes. Poderíamos enfatizar: as políticas linguísticas serão tão exitosas quanto mais

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

estiverem em consonância com os sentimentos linguísticos da população. As-

—. Lei de Diretrizes e Bases da Educação,

sim, as políticas devem se inspirar nas

n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996.

práticas sociais dos indivíduos, devem

Estabelece as diretrizes e bases da

ocorrer, preferencialmente, de acordo

educação nacional.

com as soluções intuitivas postas em uso pelo povo (Calvet, 2007). Seria o Estado

CALVET, L.-J. As políticas linguísticas.

e seus parceiros (de decisão e de inter-

Tradução I. de O. Duarte, J. Tenfen, M.

venção) exercendo a democracia.

Bagno. São Paulo: Parábola, Florianó-

Foi como gesto de respeito ao sentimento linguístico dos acreanos que evi-

polis: IPOL, 2007. (Na ponta da língua, 17)

tamos, aqui, a nova grafia de tal gentílico.

GESSER, A. LIBRAS?: Que língua é essa?: crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade sur-

56 da. São Paulo: Parábola, 2009. (Estratégias de Ensino, 14)

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OLIVEIRA, G. M. (org.). Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. Campinas: Mercado de Letras, ALB; Florianópolis: IPOL, 2003.

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59

Transcrição e impressão braille Fundação Dorina Nowill para Cegos Rua Dr. Diogo de Faria, 558 04037-001 São Paulo SP Fone: (0xx11) 5087-0999 www.fundacaodorina.org.br São Paulo – Brasil

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