Falas entre fotogramas: Uma entrevista a Antoni Pinent (2015)

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Falas entre fotogramas preconcebida, um estado relacional e social que propõem as regras do jogo conhecidas por todos. O esperável se lasca para fazer visível o artificio da imagem (e da vida) e nesse mesmo processo elaborar uma lógica lúdica centrada no humor. Essa desarticulação, essa desfamiliarização do visto -vivido abrem novas possibilidades estéticas no filme como um grande experimento obsessivo e conceitual que se ingressa.

e remarca a artificialidade que encontra-se na construção, porque a narração desagregase e adquire possibilidades de articulação variáveis; flexibilidade porque a imagem se constitui e descompõe ao ritmo vertiginoso de um ritmo sonoro-temporal. Esta força nos permite transitar por estados mutáveis, por desafios sensoriais e nos leva as ferramentas para sair dessas experiências -tanto estéticas como vitais- desbancando as normas e os ditados do senso comum. Do automatismo dos hábitos adquiridos em nossa vida cotidiana desprende-se uma certa lógica na qual nosso corpo e mente que já sabem o que esperar a cada passo, uma ação determinada, uma reação que lhe corresponde. Ali é onde a condição do errar, o corte, a anomalia apresentam-se para desequilibrar uma estrutura

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Pinent se propõe a desarmar o clichê de dentro, apropiando-se dele, pondo em evidência o que tem de construção e entrando no caos da matéria-cinema para emergir dali com um diagrama cinematográfico que renova os limites da percepção fílmica. Se os dois maiores perigos contra os que tem que combater o cineasta são a ilustração e a narração -componentes que forjam a construção orgânica de um determinado tipo de cinema- a intervenção agressiva sobre a imagem e o trabalho sonoro estabelecem um composto indivisível que se ergue como resposta sob a lógica de novas coordenadas em constante processo de formação. Os gestos lúdicos e humorísticos de Pinent tornam “anti-naturais” e “maquinais” os clichês e no aspecto desumanizador do corpo parece devolver-lhe à imagem a um lado oculto que faz que nossa percepção não volte a ser a mesma.

Uma entrevista a Antoni Pinent Por Sebastian Wiedemann

T

alvez no intuito por sintetizar tantas conversas que temos tido pessoalmente e por e-mail, é que proponho esta entrevista. Não para encerrar a conversa, pelo contrário, abre em novas direções. S: É curioso pois ambos temos um background de “cinema clássico” e história da arte, mesmo assim os caminhos nos arrastraram ao cinema experimental. Para além dos gêneros e estilos, o cinema experimental pode ser definido por suas técnicas, enquanto que no “clássico” a narração e a herança literária geralmente se impõem. Dali que seja pouco habitual uma história do “cinema clássico” a partir, por exemplo, do uso da lente grande angular, do movimento de travelling ou de qualquer outro procedimento e operação formal na construção do filme. No entanto, para além de etiquetas como animação, cinema abstrato, cinema lírico, pode-se pensar uma história do cinema sem câmera onde Norman McLaren poderia estar do lado de Stan Brakhage. Tendo em consideração que você tem pensado lançar no futuro próximo uma publicação sobre cinema sem câmera, poderia ampliar sua percepção a respeito, desde sua perspectiva como critico, curador e realizador? A: É verdade, concordo com o que você comenta. A técnica está às vezes presente demais no momento de falar sobre cinema experimental. Justo nos últimos dias estava refletindo sobre a dificuldade que nos é apresentada quando temos que escrever um texto ou ensaio sobre um filme experimental,

no qual sempre temos que fazer um trabalho de equilíbrio para não cair na pura descrição do filme a ser analisado, convertendo-se num texto carregado de uma mera enumeração de técnicas utilizadas para sua realização. No entanto na maioria das vezes quando se encara um filme “convencional”, há uma tendência a se centrar em outros aspetos como pode ser a estrutura, a narrativa, a música, a composição...elementos que ajudam a entender melhor o enredo e/ou giram entono dele. No caso do cinema experimental, às vezes toma-se um caminho impossível aspirar fazer essa transposição de explicar com palavras aquilo que esta construído em imagens, sons, atmosferas, sensações, flickers, texturas, etc. E se falássemos da vertente “expanded cinema”, a coisa se centraria sobre tudo em falar do dispositivo, e a partir dali deixar-nos levar pelo sensorial e experiencial de sua recepção. Mas voltando ao tema da futura publicação sobre cinema sem câmera, e para não cair em tecnicismos terei que valorizar muitos elementos, e também saber ou decidir para quem será dirigido. Às vezes me pergunto se o cinema experimental só esta pensado para um público conhecedor, ou colegas de profissão, sejam eles também cineastas, programadores, curadores, etc. Isto é, a disciplina específica do experimental entra num território cada vez mais estreito e especializado, onde muitas vezes é preciso ter uma militância duradoura e firme para abraçá-lo e poder apreciá-lo nas suas mais variadas camadas. Isto me deixa com a sensação de que cada vez mais, quando vou em festivais de cinema

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-e quando são especificamente de experimental- sinta eles como algo parecido como quando os oftalmologistas vão a um congresso, isto é, ir ver o que se tem realizado e em que estão trabalhando os colegas, contemplar seus progressos, descobrir novas técnicas por mais artesanais que sejam, provar novas ferramentas e instrumentos que ajudam a melhorar o trabalho, etc. Como dá para perceber a técnica sempre volta, mas para não me estender mais no tema, direi que para fazer uma aproximação, seja ela desde a crítica, o ensaio ou a curadoria, é muito importante conhecer a matéria -e alma- do que são feitos os filmes, no seu sentido mais amplo. Estou convencido de que esta relação ajuda a ter um maior entendimento e compreensão da obra a ser analisada, desde uma melhor posição para poder mergulhar dentro dela e descobrir nela seus tesouros ocultos. Por esse motivo, quando estamos lendo um ensaio sobre cinema experimental, quase sempre dá para perceber se este foi escrito por alguém que também é realizador ou não, ou para melhor dizer, por alguém que realmente está próximo da matéria, que no caso do cinema sem câmera é ainda mais latente. Entrar realmente nos procedimentos para não simplificar as obras, mais ainda quando a consistência delas não passa por uma narrativa e se centra por exemplo em texturas ou abstrações. Em última análise ter o mesmo cuidado de quando se traduz um poema para uma outra língua, cuidar para não perder a essência. Neste sentido, conhecer o material, ter intimidade com ele, é muito importante para que isto se veja refletido e esteja presente na escrita/crítica. Penso em algo assim como que o cinema experimental nos obriga a realmente experimentar sua materialidade para poder lidar com ele. Nos obriga a fazer corpo com o filme, caso queiramos estar à altura de sua expressão na escrita.

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Voltando na resposta entorno a futura publicação e para fazer entender melhor o motivo deste rodeio, é porque tento levar adiante uma pesquisa em cinema sem câmera no seu sentido mais amplo, sem cair numa enumeração de títulos segundo autores, países ou técnicas, para além de categorias. Tento entrar num trabalho de pesquisa transversal que possa ter leitores não só especialistas, mas também que venham de outras disciplinas e interesses. O fato de que você ter nomeado duas figuras centrais do “gênero” é bem interessante, pois uma delas, a de McLaren em muitos livros de cinema experimental não é contemplada, ou para melhor dizer, é rejeitada ficando na sacola da animação, e com o caso do prolífico Brakhage acontece o mesmo, é rejeitado do lado da animação por exemplo o clássico livro de Robert Russett e Cecile Starr “Experimental Animation” confirma este fato. É nesse ponto, onde começam a aparecer alguns dos problemas quando tentamos nos aproximar ao “cinema sem câmera”, pois podemos abarcar desde uma animação figurativa com narração clássica mas realizada com uma certa técnica, até uma obra completamente plástica entendida como micro-pinturas em cada fotograma, como poderia ser o caso de algumas das obras de José Antonio Sistiaga. Gosto sempre de fazer a afirmação de que o “cinema sem câmera” não deixa de ser uma técnica dentro do cinema. Motivo pelo qual, os mais diversos cineastas e artistas com suas inquietações dispares podem compartilhar este mesmo campo de experimentação, cada um deles extraindo uma potência singular deste meio/ técnica cinematográfica. Gosto da etiqueta “sem câmera” justamente porque dentro dela as barreiras e limites se embaralham, se pervertem. No “cinema sem câmera” podem coexistir peças de animação clássica,

peças transgressoras de caráter mais pictórico ou ainda de caráter radical e conceitual, como as obras minimalistas do mexicano Jorge Lorenzo Flores Garza. S: A relação com a história e tradição do cinema é algo que esta muito presente nas suas obras e que a meu ver ganha uma forma ensaística. É o caso, por exemplo, da trilogia “Film Quartet” que termina com G/R/E/A/S/E. Movimento a três tempos que dialoga entre outros com Kubelka, Tscherkassky e Paul Sharits. Uma reflexão, um pensamento sobre o cinema, que se debate a cada fotograma (cada filme deve inventar um dispositivo/procedimento que lhe seja próprio) e onde experimentar é condição desse ensaiar como discurso. Há uma ideia que vem dando voltas na minha cabeça, como consequência de também transitar indistintamente entre critica/curadoria/realização. Algo assim como um “pensamento-cinema” que se desenvolve em vários frentes. Escreve-se, programa-se filmes, faz-se filmes. Quais caraterísticas você acha que seu “pensamento-cinema” teria ou como você intui que ele funciona? A: A esses três pilares que você nomeia bem: crítica/curadoria/realização; eu somaria um quarto que é a docência. Creio que todos eles, como já indiquei em outras ocasiões e gosto de lembrar, funcionam como vasos comunicantes. Isto é, se complementam e potencializam mutuamente, mesmo que a dosagem e o gradiente em cada um deles varie. É interessante notar como a experiência com cada uma destas vertentes pode nos levar por caminhos diferentes e insuspeitos. O mais sugestivo é refletir sobre suas especificidades e traçar paralelismos, conexões. Por exemplo perguntar-se se há uma conexão entre a ordem dos filmes numa curadoria de curtas-

metragens e a concepção da montagem de um filme realizado com retalhos ou fragmentos de fontes diversas. A resposta talvez seria de dúvida ou surpresa e o mais provável é que mais tarde numa nova etapa da montagem do tal filme, tratemos de imaginar o trabalho como se estivéssemos programando (uma sessão de filmes), seja para aprofundar numa temática ou nexo comum dotando-a com as constantes e os ritmos internos de cada uma das peças/filmes/retalhos e criando assim fios invisíveis entre elas a modo de diálogo para reforçar o discurso implícito na proposta. Por outro lado, é seguro que quando se pansa uma nova sessão, essa reflexão de “programar como montar” inconscientemente estará presente, fazendo com que tudo se unifique mesmo que seja de maneira intuitiva, aplicando indiretamente todo nosso percurso profissional e vivencial. Aqui poderíamos retomar alguns elementos da pergunta anterior sobre a narração ou enredo no cinema convencional. Se prestarmos atenção muitos dos filmes experimentais também (con)tem seu fio condutor, talvez não narrativo, mas sim de intensidades, com frequência com um crescendo que chega até um clímax, para terminar com um anticlímax, como acontece em varias peças que integram a trilogia CinemaScope do austríaco Peter Tscherkassky, que você já citou antes. Mas tentando responder de modo mais concreto, creio que cada vez mais dentro da comunidade, como sempre tem sido, nos encontramos com pessoas que levam adiante simultaneamente estes perfis de programador, curador, escritor, realizador, docente… como é seu próprio caso, ou foi o de Stan Brakhage, Paul Sharits, Hollis Framptom, por citar alguns nomes… O corpus que se gera em cada um destes casos é bem coerente e complementa e não deixa de ser no final

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algo indissociável, convertendo-se em algo que poderíamos comparar com um polvo e seus tentáculos que servem para abraçar diferentes aspetos num movimento expansivo. É assim que entendo este pensamento em ação, muitas vezes começa por uma intuição ou convicção proveniente de outra disciplina e pouco à pouco vamos modulando-a para sua nova localização passando pelo filtro de todas as influências/ressonâncias do momento em que nos encontramos. Muitas vezes as ideias tem um longo percurso e outras são mais imediatas em termos de concretizar e materializar. Por exemplo a última série na que estou trabalhando parte dos QR CODE (Quick Response Code), estes provêm de uma atualização dos clássicos códigos de barras com os quais convivemos diariamente, mas com a particularidade que podem integrar muita mais informação e com a caraterística que qualquer pessoa com um smartphone ou tablet pode acessar a seus conteúdos. É a partir desta imagem de nosso entorno, que me ativo pensando e perguntando de maneira bastante inconsciente “que poderia fazer com ela?”. Acontece que os QR CODES tem tudo a ver com meu estilo entorno a estruturas métricas, nas quais o elemento escolhido determina a duração da peça resultante, assim como sua estrutura e próprio conteúdo. E neste caso tem mais elementos implícitos, pois é o próprio processador quem gera uma imagem, que depois teremos que verter numa estrutura final. Só

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temos que determinar seu conteúdo - caso se decida fazer uma imagem figurativa- e o formato fílmico para levar a peça a cabo. Um diálogo complexo entre um trabalho analógico a partir de um elemento da era digital e sua posterior leitura, que pode ser analógica ou digital. Mas é a primeira da série [‘QR CODE / FILM’, 2014], a que parte dos elementos básicos cinematográficos como é a luz e não luz, seu sistema interno é binário, e provêm de algo digital a ser transcrito de modo analógico que depois pode ser lido ou decodificado por um aparelho eletrônico para ver seu conteúdo numa tela de uso pessoal portátil. Tem múltiplos jogos e concepções. Estes são o tipo de processos que gosto, trabalhar com uma ideia, desenvolvê-la e procurar experimentando o melhor modo de materializa-la. Esse caminho a percorrer que poderíamos chamar de “processo criativo” é o mais interessante. Também as experiências realizadas previamente em trabalhos como ‘GIOCONDA / FILM’ (1999) ou ‘KINOSTURM KUBELKA / 16 variaciones’ (2009), a segunda da trilogia antes mencionada, são peças que se mostram também como estruturas de luz ou bem expostas penduradas na parede. A série dos “QR CODES”, começando por ‘QR CODE / FILM’, também pode ser exposta desta maneira, pois é a própria obra que contém o código, constrói-se na sua estrutura a partir dele é que o dispositivo o lê a modo de escaneio.

É conveniente destacar, que esta série nasceu e convive numa época na qual as pessoas se lamentam das dificuldades que tem para ativar os dispositivos analógicos, seja por sua pouca acessibilidade ou por sua acelerada extinção na “renovação” das ferramentas nos espaços de exibição e novos prédios. É ali onde coexiste uma série como esta, no limbo do analógico atrelado pelos dois mundos do digital, isto é, o que serve para gerar seu próprio organismo interno e o de sua leitura para dar-lhe movimento. É um passo coerente no uso do analógico, adaptando-o às novas tecnologias e revisando com ele

todos os formatos existentes para a serie como é o 8 mm, Super 8, 9,5 mm, 16 mm, 35 mm, 70 mm vertical (5 perfurações) e 70mm horizontal (Imax/ 15 perfurações). Em várias peças se rende homenagem aos realizadores que influenciam este trabalho e a forma de proceder, como são as peças ‘QR CODE / FILM [#1A] y [#1B]’ que partem dos míticos painéis -frozen film frames- de ‘N:O:T:H:I:N:G’ (1968) de Paul Sharits e outras de suas obras, a partir da minha filmagem em Super 8 durante a exposição retrospectiva que lhe foi feita no Fridericianum Museum de Kassel (Alemanha) no passado novembro 2014 - fevereiro 2015.

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Talvez não respondi a pergunta diretamente, mas dei exemplos dando conta das influências e fazendo um percurso a partir da série em que estou trabalhando atualmente. Em outros contextos, não tão conceituais esse pensamento-cinema é mais fácil de perceber ou de seguir, como é a critica à dublagem em chave de humor que esta presente tanto em ‘FILM QUARTET / POLYFRAME’ (2006-2008), como em ‘G/R/E/A/S/E’ (2008-2013). Como dizia antes, ao final esse pensamento vaza é perpassa todos nossos campos de ação, “inspiramos” ele e em cada “expiração” , faz passar pelo “ato de criação”, ele retorna ao mundo como uma variação singular. S: Se nos focamos de cheio no fato de fazer cinema sem câmera, é quase como uma conversa entre cozinheiros e artesãos. É um processo de cocção lento, pois o drama se vive a cada fotograma. Tudo acontece aí, dentro do fotograma, todo problema ocorre e se resolve aí no seu interior ou no salto/intervalo entre fotogramas. Penso em três elementos que fazem a esta cocção e artesanato manual. 1. Entrar em outra temporalidade do fazer, do processo, do transito manual ( pode tomar meses, anos), dali que não me surpreenda a admiração de Brakhage por Tarkovsky ( pena que o encontro entre eles não foi tão alegre). 2. De tanto entrar na matéria, nunca deixar de se surpreender pelas mudanças que podem chegar no seguinte fotograma. 3. Os três famosos preceitos de McLaren: “Animation is not the art of DRAWINGS- that- move but the art of MOVEMENTS-that -are- drawn./ What happens between each frame is much more important than what exists on each frame./ Animation is therefore the art of manipulating the invisible interstices that lie between frames.” Na sua experiência pessoal como sente que seja essa cocção de um filme feito sem câmera?

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A: Gosto de todas e cada uma das colocações que você faz a respeito, e também que você faça essa comparação com o fazer de um cozinheiro. Nessa linha temos as referências dos livros de Helen Hill (‘Recipes for Disaster. A handcrafted film cookbooklet’, 2005), Steven Woloshen (‘Recipes for Reconstruction: The Cookbook for the Frugal Filmmaker’, 2010), ou mais recentemente o de Esther Urlus (‘Re:inventing the Pionners: film experiments on handmade silver gelatin emulusion and color methods’ 2013). Todos eles tratam o tema como se tratasse de cozinha, compartilhando suas receitas para transmitir conhecimentos através de fórmulas experimentadas, e depois como também acontece no contexto da cozinha, cada um ir colocar seu estilo e temperos pessoais para dar um gosto único e fazê-lo seu. No meu caso concreto, também tenho meus cadernos de anotações a modo de receitas, de fórmulas ou ideias a testar, antes e durante a construção, por exemplo com G/R/E/A/S/E -que espero ou gostaria poder publicar a modo de fac-símile em algum momento-. Também tenho podido ver alguns dos cadernos de Tscherkassky em algum documentário para/com seu trabalho de “dark room”, e são bem interessantes e úteis durante o processo de trabalho. Mas o que quero dizer é, que meu modo de emprego do “cinema sem câmera” tem sido variado ao longo do tempo, e não estou me referindo aos modos das técnicas empregadas, mas sim à concepção das mesmas, minha relação com os materiais. Se tivesse que fazer uma síntese, seria um pouco como isto: nos primeiros tempos não foi outra coisa que um acercamento ao meio puro e duro, isto é, a partir do 35mm conhecer suas dimensões reais de trabalho - seja respeitando ou não a separação entre fotogramas, o nervo; os elementos que permitem intervir sem perder sua qualidade translúcida - apliquei diferentes tipos de tintas; e depois começar a brincar

com o tempo dos retalhos de filme, quase sempre aplicando elementos da realidade ou de meu entorno mais próximo como foram as peças de um quebra-cabeças, as impressões digitais da mão, colando fitas de Super 8 de outros filmes sobre transparente, etc. Adoro poder utilizar o dispositivo cinematográfico como uma lupa que amplia os elementos da realidade, ao mesmo tempo que lhes da uma outra temporalidade.

Gosto de entender a arte da cinematografia, como a de uma câmera que captura algo com o olhar e o inscreve -imprime- sobre um suporte, o comprime, o condensa,... e a continuação é o projetor encarregado de esculpir na tela essa imagem encapsulada, projetá-la/ atravessá-la com seu feixe de luz para ampliá-la a uma nova escala. É ai onde entendo o “cinema sem câmera” tomado literalmente, isto é pulando esse primeiro passo, e tentando depositar esses elementos que poderíamos ter feito com a câmera, mas capturá-los ou colecioná-los realmente, em sua forma material e física, dispondo-os diretamente sobre o suporte, para que depois seja o projetor o que nos apresente seus mistérios, texturas e segredos por meio do passo da luz dessas partículas ou elementos que arrastra consigo o celuloide -ou o suporte do qual esta feito o

formato, isto é, poliéster, acetato…-. Gosto de chamar os workshops que realizo de “Esculpir a luz”. Cada docente-cineasta tem um nome que o caracteriza e define sua concepção de aproximar-se ou entender essa forma de fazer, por exemplo Steven Woloshen nomeia suas oficinas “Scratchatopia” ou similares. No conjunto das minhas peças dessas primeiras buscas e paqueras com a dita técnica que levei a cabo a partir de 1995, encarava elas como uma espécie de catálogo para uso pessoal, obrigava-me a levar a cabo uma prática-filme de uns 50 segundos até um máximo de dois minutos de uma única técnica específica, com o propósito de ver seu resultado a continuação. Tenho que esclarecer que naquela época quando realizei todos esses testes não tinha podido ver em “movimento” o trabalho de Len Lye, Harry Smith ou Stan Brakhage, e muito menos em seus formatos originais. É por isso que considero meus trabalhos daquele primeiro período como “early films”, com a ingenuidade que isso traz de primeiros acertos, testes, buscas, tateios, surpresas, encontros...e tropeços. Às vezes penso que foi uma lástima não poder ver no momento as obras dos mestres, e assim ter evitado todos esses trabalhos de teste e erro, e sobretudo os longos tempos investidos; mas ao mesmo tempo acho que foi um aprendizado importante para conhecer de perto, com paciência e perseverança algumas das possibilidades inerentes que esta técnica contém em seus meios e materiais. O meu, foi um caminho autodidata e solitário, pois a cidade onde nasci e cresci é pequena e afastada de outros grandes centros urbanos, e minha família não tinha contato nenhum com o mundo das artes. Também

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essas circunstâncias, e as dificuldades de ter acesso a utilizar qualquer tipo de câmera de registro, levaram-me à utilização do trabalho direto com as mãos para levar a cabo minha vocação de fazer cinema que começou aos 13 ou 14 anos. Voltando a esse conjunto de peças realizadas naquele período, começam a se destacar aquelas primeiras que despontam por seu caráter conceitual, e nas quais a duração é dada pela escolha do próprio elemento a inscrever sobre o suporte, tais são os exemplos de ‘GIOCONDA / FILM’ o ‘Música visual en vertical’ (1999-2000), assim como a peça ‘Sumando al centro’ (2000-2001), na que a soma numérica de seu conteúdo da duração do “Plano.”

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Depois, em sucessivas etapas este trabalho “sem câmera” tem transitado por obras com um vínculo mais conceitual como a citada trilogia “Film quartet”, assim como as sucessivas que estou fazendo agora ou tenha na lista de espera para sua realização, mencionadas antes como a série “QR CODE” ou outra série inspirada na Op Art, a primeira desta série é “MOTION/RGB I”. É interessante assinalar que justo no trabalho realizado em ‘KINOSTURM KUBELKA / 16 variaciones’ (2009), minhas intensões se centravam em pesquisar sobre o intervalo, nos ‘entres’ dos que também comentou Werner Nekes. Isto é, ao mesmo tempo que pegava a conhecida obra de Peter Kubelka “Arnulf Rainer” (1958-1960), para fazer uma remake adaptando-a a minha concepção de montagem do “film quartet”, pretendia mostrar o corte do qual o filme estava construído, mostrar literalmente o corte, fazê-lo visível, tirá-lo de sua função de nervo que une cada um dos fotogramas. A partir do conceito de “film quartet”, com o agregado de não ter referências para o operador do projetor que determine onde está a ponta de início ou de fim do filme, assim como tampouco uma composição “correta” para estabilizar a imagem em suas 4 perfurações, permite que um mesmo troço de filme contenha em si mesmo 16 versões distintas, sendo o acaso quem determine qual delas será projetada. Mais uma vez, trata-se de procurar novas possibilidades de como poderia ser entendido o dispositivo cinematográfico, ao mesmo tempo que se propõe uma reflexão sobre seus próprios elementos a modo de “metacinema” ou “para-cinema”, descobrindo novas potencialidades contidas nele mesmo.

S: Um elemento proeminente no seu cinema é a música, que vai desde o uso de partituras na hora de conceber um filme, como foi o caso de “KINOSTURM KUBELKA / 16 variaciones” até a notável parceria em G/R/E/A/S/E com Dirk Schaefer. Para falar de música, antes de tudo é falar de ritmo, de modulação de ritmos. Como você sente que um pensamento musical/composicional acontece no seu trabalho, assim como a noção de ritmo? De igual modo lembro uma conversa que tivemos, onde você me falava de ter atingido uma suspensão crítica, uma atmosfera imersiva em G/R/E/A/S/E, que a meu ver passa muito pelo uso da música. Talvez você poderia falar mais um pouco sobre este ponto, pensando a relação cinema experimental/ música e a parceria que você tem pensado fazer com John Zorn para seu próximo filme MACBETH /The Empire State. A: A utilização de elementos provenientes da “linguagem” ou para melhor dizer da disciplina da música, como a maioria dos elementos

que tem se integrado em minhas formas de construir os filmes, tem sido um processo orgânico, natural e não premeditado ou forçado...Tenho chegado a esse ponto não como uma meta, mas como um ponto de partida. Apoiando-me de outros elementos que funcionam muito bem no contexto para o qual foram pensados, e graças a essa transposição que se repete de maneiras diversas em cada projeto, consigo que se libere de um enclave original, como acontece na essência do trabalho de “found footage film” ou de apropriação, para assim transitar num novo contexto e ser utilizado com outras finalidades. Entendo sempre este conceito como uma forma de expandir suas possibilidades, quebrar com os limites estabelecidos, explorar as potencialidades implícitas que estão contidas, pensá-las desde outra perspetiva, despojá-las de sua domesticação - no caso particular do pentagrama musical - que se aplique a novos contextos. Uma ideia que prevalece neste sentido, é a de poder representar em um troço de papel uma estrutura de montagem

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que me permita ter uma visão de conjunto, algo que gosto de outras disciplinas visuais como é a pintura. Graças à partitura musical, utilizada como anotação de montagem, consigo escrever previamente ou depois do trabalho de montagem, sua estrutura interna para construir o quebra-cabeças, representar sua arquitetura de luz interna ou organismo. Desse modo posso fazer uma leitura das durações dos planos ou fragmentos do filme, entender de alguma maneira os ritmo que desejo desenvolver, e ao mesmo tempo facilita o trabalho para materializar a montagem seguindo o padrão criado no papel. É uma forma de ordenar o trabalho a ser feito, e de conseguir pensá-lo quase de uma maneira matemática, como poderia fazer um músico quando escreve uma composição. Gosto às vezes de fazer o caminho inverso, partir de uma montagem intuitiva, deixar-me levar pelo material que tenho nas minhas mãos, e uma vez visto na moviola, passá-lo ao papel para assim perceber melhor a essência dos ritmos. Este procedimento funciona muito bem sobretudo quando realizo o trabalho de quebrar o fotograma em 4 partes, a citada técnica “film quartet”. O fato de empregar a partitura é para capturar criativamente esses ritmos internos da montagem, seja antes de sua realização ou depois para dar conta e

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conseguir visualizá-los para além da projeção. Sinto que a figura de Paul Sharits neste contexto específico influenciou-me muito, gosto da ideia de ter em papel certos desenhos codificados que fazem referência ao conteúdo e sobretudo aos ritmos internos do filme, é como “congelar” o tempo, a velocidade e movimento e (re)tê-los ou (con) tê-los num único esquema ou diagrama visual. Também tenho muito presente as partituras “livres” e muito visuais do músico e compositor Frank Zappa, nas quais tentava capturar seus delírios sonoros ou criativas composições musicais em desenhos como é o caso de ‘The Yellow Shark’ (1993). As partituras visuais do catalão Josep Maria Mestres Quadreny, são também um bom exemplo. Nesta linha encontro também influências nas partituras de Oskar Fischinger ou nas obras de Paul Klee. No caso particular de ‘G/R/E/A/S/E’, a parceria com Dirk Schaefer consistiu em propor um diálogo aberto, para encontrar o design sonoro adequado. Em nosso primeiro encontro presencial, em seu apartamento-estúdio em Berlim, levei uma primeira versão do filme para vê-la juntos várias vezes, estudar suas possibilidades, e a partir dali ele começaria a trabalhar. Simultaneamente, no quarto do lado eu comecei a fazer novas versões do filme, acrescentando novos elementos

de acordo com as proposta sonoras do Dirk para ir fazendo uma construção conjunta e colaborativa.

cope) com mixagem de som Dolby Digital realizada com Ricard Casals, nos desaparecidos estúdios Sonoblok de Barcelona.

Fizemos varias sessões de scratch com vinis da trilha sonora do filme original. Eu fiz alterações nos vinis e depois fizemos capturas normais da trilha, que Dirk empregou para criar partes do design sonoro. Trabalhando a distância - Berlim /Berna- íamos trocando fragmentos já em sincronia com a imagem, como a cena da corrida de carros. Cada vez encontrava-me com gratificantes surpresas por conta do acontecido na imagem em contato com a trilha sonora em processo, que depois ajudavam-me também a avançar nas novas versões da montagem do filme.

Sobre a “suspensão crítica”, lembro ter falado do tema, pois depois de várias prejeções do filme foi que percebi esse fato. Uma reflexão que poderia elaborar da seguinte maneira: desde sempre uma caraterística básica do cinema de vanguarda e experimental tem sido fazer visível seu artifício. Tudo isso para que o espetador não se identificasse com o projetado na tela e suas interrupções constantes atrapalhar a “narrativa” da obra por deixar aparente a construção do filme, ao mesmo tempo que ele acontece. Em ‘G/R/E/A/S/E’ mesmo apresentando toda a materialidade do filme, sua construção e artificio, seus riscos e intermitências dos planos que compõem e descompõem o movimento, etc., há uma capacidade de manter-nos dentro do filme, essa “suspensão critica” que nos permite mergulhar nele mesmo com sua estrutura desorganizada, e demais elementos integrados no filme.

Desde o começo da produção do filme, já se passaram 5 anos, sendo que o primeiro ano e meio foi para conhecer e estudar o material, com anotações e storyboards. Uma análise detalhada de como poderia proceder com o material, desde suas possibilidades de intervenção até o estado da cópia em 35mm que usei. Durante esse mesmo período realizei também esquemas e diagramas - seguindo a técnica do “film quartet”- avaliando as possibilidades de montagem que poderia aplicar no material. Os dois anos seguintes foram única e exclusivamente de intervenção do material, sendo que às vezes o trabalho levava jornadas de até 13 horas diárias. A intervenção direta do 35mm teve uma ampla variedade de técnicas do ‘cinema sem câmera’ assim como de novas de minha própria invenção. Foi um tempo de muita concentração e dedicação física. O ano e meio restante estive dedicado ao trabalho na parte musical e de reajustes na montagem a partir das sucessivas versões acontecidas. Mais ou menos dos 43 minutos totais manipulados, o resultado final foi de 21 minutos de duração… Muito material ficou fora trás cada nova versão da montagem. ‘G/R/E/A/S/E’ foi finalizado em cópia em 35mm (CinemaS-

Acredito que parte deste efeito acontece porque partimos de um material que o espetador conhece muito bem, onde ele sabe qual é o enredo original. Acontece então um quebra-cabeças na cabeça do espetador entre o filme de 1978 e sua composição/ descompõem em ‘G/R/E/A/S/E’, os dois filmes coexistindo, e criando uma nova camada no e do próprio filme. De fato é algo que eu já tinha experimentado ao ver pelo menos duas das peças da trilogia CinemaScope de Tscherkassky, ‘Outer Space’ (1999) e ‘Dream Work’ (2001), além de ‘Instructions for a Light and Sound Machine’ (2005) –para a qual Dirk Schaefer realizou a trilha sonora-. Em todas elas podemos reconhecer o filme original, sobretudo na última, cuja fonte é o famoso western do italiano Sergio Leone, ‘Il buono, il brutto, il cattivo’ (1966). Os procedimentos sobre a matéria fílmica são nítidos e ao

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mesmo tempo uma pulsão narrativa através de sus intensidades perdura. Acontece algo parecido em alguns filmes de Bill Morrison, como ‘Light Is Calling’ (2004) ou ‘The Mesmerist’ (2003), mas nesses casos seria já outro o problema... Ao respeito do trabalho a ser feito com John Zorn, será um tanto diferente, suponho. O nosso acordo é que eu lhe levarei uma montagem orientativa do longa-metragem realizado. Iremos para um estúdio de gravação com 4 ou 5 músicos que tocarão sobre o filme ao longo de várias sessões contratadas até atingir um resultado satisfatório. A partir desses takes das sessões com os músicos, poderei re-editar de novo o filme incorporando a música, efeitos sonoros, e demais... com a liberdade de poder utilizar a música de Zorn abertamente, cortando e colando ali onde o próprio material visual o necessite. Esta foi uma das caraterísticas que mais gostei da forma do Zorn entender o trabalho, e uma das razões pelas quais escolhi ter uma parceria com ele -além de minha admiração por muitos de seus trabalhos e trilhas sonoras já realizados-. Foi em uma conversa com Abigail Child lá em 2009 em Barcelona, a partir de seu trabalho ‘The Future is Behind You’ (2005), que fiquei sabendo da forma de trabalho do Zorn com a parceria que estabeleceu com ela, e pensando em meu trabalho para ‘MACBETH / The Empire State’ acreditei que seria perfeito este método de concepção aberta de ida e volta. O fato de poder aplicar e construir com a música não partindo de uma montagem fechada, mas sim que a música seja matéria prima para construir atmosferas, desenvolver conceitos “fílmicosonoros”, antes que leitmotivs enfáticos para uma “narração”. Ir para além de um entendimento convencional da música no cinema, como algumas das ideias do alemão Theodor Adorno. Resumindo, trabalhar com Zorn me permitirá ter as liberdades que o próprio material e projeto exigem.

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S: Ao mesmo tempo pensar em música, é pensar em montagem. Lembro que você me disse que gosta de transpor teorias do “cinema convencional” para o cinema experimental como as que tem proposto Walter Murch. Como você sente que suas ideias e outras de montagem mais “narrativo ou convencional” tem influenciado seu trabalho? A: Bom, sempre falo isso como um jogo que me diverte, isto é, por exemplo uma das teorias de Murch é que o corte de um plano a outro tem que -ou deveria- coincidir justo com o piscar do espetador, é ali onde respira o plano e sincroniza-se com o piscar da plateia… ele tem vários exemplos dos que gosto ou supostos experimentos em seu livro ‘In the Blink of an Eye. A perspective on Film Editing‘ (1992) a respeito desse sincronismo. Mesmo assim, acredito que esse sincronismo ou teoria perde sentido diante de filmes limites como ‘La Région Centrale’ (Michael Snow, 1971), algum de Sharits ou de Tony Conrad na linha dos flicker films. Nesse sentido teríamos que criar nossas próprias referências teóricas, algo assim como o que fez o próprio Hollis Frampton em alguns de seus celebres textos. Respondendo a sua pergunta, sinto que gosto destas teorias porque aprendo delas, e depois aplicadas no território do experimental seguem tendo certa validade, mesmo que seja para seguir por outra direção… mas elas contém um ponto de partida. Só que não se correspondem diretamente, mas servem de mapa, seja para seguí-las ou para quebrá-las. Sempre gostei de ter presente este exemplo, que para responder mal a um questionário de respostas tipo A, B, C, ou D, é preciso saber a resposta correta, pois se o fazemos na base da sorte, em algum momento acertaremos e teremos falhado nosso propósito. Assim é como em alguns casos avançava Brakhage em algumas de suas buscas, quando ia em contra das indicações dos manuais. Conhecer

as regras e teorias para subvertê-las. Então entramos no território das desobediência e irreverências, algo que me apaixona muito. Algo que gostaria de destacar é, que foi graças às leituras dos textos de Dziga Vertov e do próprio Murch (‘The Conversations: Walter Murch and the Art of Editing Film’, 2002) que comecei a incorporar no meu trabalho uma “notação de montagem cinematográfica”. Elemento fundamental para chegar até a trilogia “Film Qurtet” como já ficou claro mais acima. Nessa lógica de anotações e esquemas, também foi determinante a influência mesmo que inconsciente do trabalho realizado por Paul Sharits. É uma viagem de ida e volta pegar ideias que vem de outros campos (música, pintura) e levá-las ao território do experimental, onde elas podem ter outra particularidade. Em certo sentido, inconscientemente tenho incorporado nos próprios títulos de meus filmes uma mostra visual do corte cinematográfico, como podemos ver nessas barras diagonais [/] em muitos dos títulos de minha filmografia. É uma forma de fazer visível essa referência aos cortes no próprio título que os contém e anuncia, assim como incorporar algum gráfico ou esquema nos créditos finais do filme, como em ‘FILM QUARTET / POLYFRAME’. S: E nessa relação de ideias de montagem você sente que há uma especificidade que faz particular a montagem no cinema experimental? A: É complexo e não acredito que exista uma única maneira de entender a montagem dentro do experimental, do mesmo modo que não existe uma única maneira de aplicar a montagem no convencional. Mas com certeza há significativas diferenças entre um e outro, assim como migrações. A época de MTV é um bom exemplo da migração

de procedimentos do experimental para o mainstream. Há alguns tipos de montagens que até o dia de hoje continuam me surpreendendo, os cortes de ‘Meshes of the Afternoon’ (Maya Deren, 1943); de autores mais contemporâneos gosto do estilo do inglês John Smith y su ‘Blight’ (1996) ou mais recentemente o trabalho do prolífico Robert Todd, em obras como “Short” (2013). Cada um deles tem seu estilo determinado e pessoal, que lhes ajuda a atingir os resultados desejados para cada projeto. Nesse sentido não podemos generalizar e almejar algo assim como um catálogo ou “manual de montagem experimental”. Mas para mim é claro que seus procedimentos são mais ricos e diversos que os do “convencional” e certamente tem chegado a lugares muito mais sugestivos e complexos. O fato de não estar ancorado a uma vontade narrativa e uma grande liberdade para a montagem… às vezes essa liberdade vaza e atinge às lógicas de filmes que circulam do lado do comercial/ convencional como a raridade de “Enter the Void’ (Gaspar Noé, 2009), mas é só uma exceção. Também poderíamos destacar que no experimental a ideia de montagem tem que ser ‘visível’, isto é, que não se oculta e faz parte da própria linguagem ou se converte no próprio protagonista do filme, o oposto à “montagem invisível” que predomina no cinema de Hollywood. Seu lema era, ou ainda é: “quanto menos se note o corte, melhor”, isto é uma montagem “correta”. Uma montagem “incorreta” que mostra o corte, pode por exemplo se apresentar na forma de montagem em câmera que cria cadências na própria filmagem, como podemos ver no cinema de Jonas Mekas ou Marie Menken em certas peças como ‘Andy Warhol’ (1965).

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Assim como a “montagem por contato” do argentino Pablo Mazzolo ou a montagem de “quarto obscuro” de Tscherkassky. Estes casos servem para demostrar que a lista de possibilidades é muito extensa, sendo ela na verdade infinita. Poderíamos dizer quase que para cada peça nova, uma montagem tem que ser inventada. Para encerrar essa pergunta gostaria dizer que poderíamos pensar um filme feito “sem câmera” como um longo plano sequência, se aplicamos os termos do cinema convencional, pois está feito de sua sucessão como poderia ser ‘Mothlight’ (Stan Brakhage, 1963), peça na que de fato não se respeita a separação que estabelece os frames… quebra com tudo isso, o filme é uma superfície continua/ plano sequência. Ao invés de ‘REcreation’ (1956) de Robert Breer, onde cada segundo contem um 1/24 de imagem diferente e autônomo. S: Para que terminemos de momento deste lado do Atlântico, saindo um pouco do processo criativo e voltando a sua fase como curador, gostaria que você me falasse um pouco de sua relação com o cinema experimental latino-americano. No passado você foi curador de “Cine a Contracor-

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riente”, evento que deixou um importante precedente para pensar a produção destas latitudes. E no momento você encara um novo projeto curatorial onde tem começado a mapear o “cinema sem câmera” feito na região. Você se animaria a propor um diagnóstico ao respeito? Você sente que é possível identificar alguma(s) singularidade(e) nas produções latino-americanas atuais ou históricas? A: Ainda é muito cedo para fazer um diagnóstico. Tenho feito algumas viagens de pesquisa de campo, para conhecer de perto os contextos de produção de alguns países, assim como estabelecer conversações com alguns dos realizadores atuais ou bem com os familiares ou herdeiros dos cineastas. Sim, poderíamos estabelecer um antes e um depois entorno dos anos 1980, isto é, os filmes que tenho podido ver das décadas de 1950 e 1970 tem uma forte influência por parte do trabalho desenvolvido pelo National Film Board of Canada, particularmente pela figura de Norman McLaren, que teve um intenso contato com cineastas da região. Esse período foi muito rico em experimentos que dialogavam fortemente com a estética de McLaren. A partir dos anos 80 essa influência perde força, e os trabalhos são mais de pesquisa formal. Na atualidade há um forte ressurgimento deste tipo de técnicas, coletivos e comunidades que tem revitalizado os trabalhos desta linha e que estão bastante articulado se cientes do que acontece em outros contextos. O interessante é que há uma grande diversidade, para além da animação figurativa ou a “música visual”, linhas mais conceituais aparecem como no trabalho de Jorge Lorenzo Flores Garza, em seu recente ‘On the Road by Jack Kerouac’ (2013).

Fragmentarismo horizontal. Um manifesto

Por Antoni Pinent

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