FALO, LOGO EXISTO: ANOTAÇÕES TEÓRICO-CRÍTICAS DAS CONVERSAS ENTRE MARCAS E CONSUMIDORES EM REDES SOCIAIS

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FALO, LOGO EXISTO : ANOTAÇÕES TEÓRICO-CRÍTICAS DAS CONVERSAS ENTRE MARCAS E CONSUMIDORES EM REDES SOCIAIS

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Professora Doutora Vanessa Cardozo Brandão Docente na Faculdade de Comunicação e Artes – PUC Minas

RESUMO Nos últimos anos, a partir do paradigma conversacional inaugurado pelas redes sociais na web, as marcas parecem ter descoberto na resposta aos consumidores uma nova estratégia retórico-dialógica para lhes conferir credibilidade e força discursiva, a partir da ampla circulação em rede de conversas com (e entre) consumidores. Esse artigo se propõe a colocar as premissas iniciais de uma pesquisa iniciada em 2013 para perceber o cenário em duas perspectivas: por um lado, busca-se colocar elementos para uma análise de estratégias enunciativas que rondam o discurso de resposta das marcas aos consumidores, a partir da teoria da enunciação e da dimensão dialógica do conceito de discurso (Benveniste, 1995); por outro, deseja-se evidenciar formas estratégicas de circulação e visibilidade de conteúdos publicitários na lógica “spreadable” de uma cultura de convergência, conceito de Jenkins (2013).

PALAVRAS-CHAVE Redes sociais; Retórica dialógica; Publicidade Conversacional; Spreadable. PUBLICIDADE CONVERSACIONAL – A RETÓRICA DIALÓGICA DE MARCAS EM UM CENÁRIO DE CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA Diante de um cenário complexo de amplas transformações, ocorridas na última década, a Comunicação se transformou não apenas como área de conhecimento, mas também como campo de atuação profissional. De fato, essas duas posições, que anteriormente                                                                                                                         1

Trabalho apresentado no V Pró-Pesq PP – Encontro de Pesquisadores em Publicidade e Propaganda. De 21 a 23/05/2014. CRP/ECA/USP.

chegaram a ser tomadas como antagônicas pelo embate teoria versus prática (não raro fomentada pela própria Universidade e também pelo mercado de Comunicação), se tornaram ainda mais imbricadas na dinâmica da sociedade contemporânea. A posição de separação entre Academia e Mercado – o primeiro tomado como o lugar do pensamento e o segundo lugar do fazer – torna-se inviável no cenário atual, em que a experimentação de novos arranjos comunicacionais acontece sob um paradigma relacional, de forma a construir novos usos de meios tradicionais já consolidados, bem como para a invenção de meios que surgem com muito maior frequência do que em qualquer outro momento da história da cultura das mídias. As transformações do campo comunicacional acontecem de forma cada vez mais rápida, e são fortemente impulsionadas pela emergência cotidiana de novos dispositivos tecnológicos, a partir da revolução iniciada com o advento da internet e o paradigma de comunicação em rede. Desde a explosão do ambiente digital, na década de 90, até o cenário que vivemos hoje, as tecnologias da comunicação se dinamizaram de forma tão intensa que se fala da evolução da internet em “ondas”: são constantes as mudanças dentro do próprio paradigma em rede, que já passou pela web 2.0, pelo conceito de web semântica, e mais recentemente traz novas promessas com o avanço dos dispositivos móveis e dos dispositivos wearable e internet das coisas. Há uma profusão acelerada de novos modelos de meios digitais: em menos de uma década, discutiu-se o surgimento de blogs, microblog, dos buscadores e seu modelo de hierarquização robotizada de informação no mundo digital, de plataformas de conteúdo em audiovisual como Youtube e Vimeo, e ainda das redes sociais, como demonstra o fenômeno Facebook, que impulsionou ainda outras experiências que parecem se multiplicar. Mais recentemente, a alteração de cenário segue em processo com o crescimento rápido e contínuo do uso dos dispositivos móveis, que ocorre enquanto o campo ainda tenta compreender as possíveis implicações de uma migração da audiência de massa para o consumo de conteúdo e informação nos dispositivos tecnológicos “nômades”, nos termos de Muniz Sodré (2002). Nesse contexto, como Sodré também aponta, a mídia, enquanto aparato técnico, ganha uma nova dimensão e passa a integrar a própria vida social, entrando na esfera da cultura e tornando-se mais do que simples artefato. Essa visão é compartilhada por outros importantes estudiosos da Comunicação:

Ocorre a disseminação de novos protocolos técnicos em toda extensão da organização social, e de intensificação de processos que vão transformando tecnologias em meios de produção, circulação e recepção de discursos. (FAUSTO NETO, 2008, p. 92)

O que se quer destacar é o modo como essa transformação do cenário da cultura pósmídia vai além do mero avanço tecnológico, e atinge o próprio modelo de produção e circulação de informação, que impacta na estrutura sócio-cultural. A estrutura horizontal da comunicação em rede, para além de descentralizar os meios, deu relevo à própria ação comunicativa como lugar de constituição da experiência subjetiva. É através da comunicação que o sujeito se estabelece como ser no mundo: ele se constitui tanto pelo que consome em termos de informação, quanto pelo modo como se apropria desse conteúdo, realizando sentidos próprios, e finalmente pelo que produz e insere em um circuito comunicacional um-a-um/grupo-a-grupo/muitos-a-muitos. De maneira particular, interessa a esse artigo colocar uma importante questão: a forma com as marcas tem se utilizado de conversas “particulares” travadas com consumidores, principalmente em redes sociais, para responder a questões colocadas por sujeitos que falam e interpelam as marcas, convertendo esses diálogos privados (um-a-um) em discursos estratégicos e persuasivos, que depois serão amplamente midiatizados (tanto na lógica spreadable – ou viral, como se chama no mercado publicitário – quanto a partir de formatos de publicidade paga pelas marcas), para criar uma arena, um auditório massivo de consumidores que assistirá às conversas com a marca (de um-a-um para o uma-a-um-a-muitos). Assim, o consumidor que assiste a esses diálogos particulares se sente impressionado não simplesmente com o conteúdo da resposta dada por uma marca, mas principalmente a um argumento oculto, subjacente à retórica dialógica dessa estratégia publicitária: “essa marca nos escuta”. Tudo isso apenas se torna possível dado o contexto midiático que cerca os consumidores de hoje. São sujeitos da comunicação, e sujeitos em comunicação, como destaca Vera França (2006). Eles assumiram o papel ativo não apenas na decodificação das mensagens, como as teorias críticas da década de 50, ainda sob o impacto da semiótica, dos estudos de enunciação, e em especial com os mais recentes estudos do processo de produção de sentido na recepção de textos midiáticos. Nesse momento em

que vivemos, a interação no processo comunicacional é mais do que aquela desenhada pelo interacionismo simbólico: a dimensão da interatividade nos meios digitais transformou o consumidor em sujeito que fala, inclusive sobre as marcas. Produzir vídeos, imagens, textos: fotografar o cotidiano, dar uma opinião, falar. Enfim, comunicar através dos novos dispositivos midiáticos em rede tornou-se parte da própria experiência de ser e estar em sociedade. A partir do que compartilha, e de como estabelece pontes entre o conteúdo do sistema midiático centralizado com a sua experiência no mundo, o sujeito dessa cultura pós-mídia vive sua experiência no mundo contemporâneo. Nesse cenário, a ideia de separação entre os modelos de mídia massivos e os modelos interativos precisa ser ultrapassada. Afinal, estes modelos raramente existem assim, separados e em estado puro, mas vivem se atravessando mutuamente, gerando uma cultura de fluxos comunicacionais em várias direções, chamada por Henry Jenkins (2008) de “cultura da convergência”. O termo, empregado por vários autores nos estudos de comunicação atuais, ganha um contorno mais claro pelos estudos de Jenkins:

A convergência dos meios é um processo em andamento, ocorrendo em várias interseções de tecnologias de mídia, indústrias, conteúdo e audiências; não é um estado final. Nunca haverá uma caixa preta para controlar todos os meios. Ao invés disso, graças à proliferação dos canais e à natureza cada vez mais ubíqua da computação e das comunicações, nós estamos entrando numa era onde a mídia estará em toda a parte, e nós usaremos todos os tipos de meios de comunicação relacionando-os uns aos outros. Nós desenvolveremos novas habilidades para controlar a informação, novas estruturas para a transmissão por meio desses canais, e novos gêneros criativos para explorar os potenciais dessas estruturas emergentes (JENKINS, 2008, p. 93).

Essa forma de compreender a convergência dos meios, e também o atravessamento entre eles, revela o modo como as mídias devem ser concebidas cada vez menos como suportes – em seu caráter material e técnico – mas principalmente como um traço que desenha a forma de existência em nosso tempo. Nós nos relacionamos através das mídias, fazendo apropriações e usos particulares delas e criando linguagens particulares, dinâmicas. Nas palavras de Vera França, “os estudos das recepções buscam a inserção dos sujeitos em redes sociais, e identificam um sujeito que resiste, negocia, dribla os

propósitos do emissor e promove usos particulares e diferenciados dos produtos consumidos” (FRANÇA, 2006, p. 4). Em particular, pensando no papel do publicitário diante desse cenário de convergência midiática, cabe destacar os desafios – e responsabilidades – ainda maiores no processo de (re)formação do profissional, buscando o desenvolvimento de competências específicas para este novo tempo de Cultura da Convergência. Além de o fato de a mídia estar em toda a parte, como Jenkins coloca, uma constatação também importante é a de que ela tende a se apresentar de forma cada vez mais mutante, e de suas mutações serem promovidas não apenas pelo avanço tecnológico dos meios mas também pelas apropriações feitas pelas pessoas em seus usos cotidianos das mídias. No mais recente livro Spreadable Media (2013), através da frase “if it doesn’t spread it’s dead”, Jenkins se debruça sobre um fenômeno recente: a forma como a circulação de conteúdo, nessa cultura da convergência, pode ser feita em processos descentralizados. Em contraponto ao processo de circulação das mídias de massa tradicionais, que se realiza como uma distribuição vertical do conteúdo partindo de uma minoria que produz informação para uma audiência em massa, Jenkins investiga formatos de mídias onde o movimento do conteúdo é circular e a audiência, participativa. […]Spreadable Media examines an emerging hybrid model of circulation, where a mix of top-down and bottom-up forces determine how material is shared across and among cultures in a far more participatory (and messier) ways. The decisions that each of us makes about whether to pass along media texts – about whether to tweet the latest gaffe from a presidential candidate […] or share a video of a shoplifting seagull – are reshaping the media landscape itself. (JENKINS, 2013, p. 1-2)

Percebendo o surgimento de novas tecnologias de comunicação, capazes de fomentar da participação da audiência na disseminação, adaptação e criação de conteúdo, o termo spreadable pretende dar importância a uma informação pela forma como ela se espalha nas redes: com o que as pessoas se engajam, o que promove a mobilização e participação das pessoas? A evolução e acesso facilitado a essas tecnologias apenas aumentou o número de participantes, mas o ponto de vista da pesquisa, feita por Jenkins e outros 2 pesquisadores, é o de que as ferramentas tecnológicas não são responsáveis

por criar esse novo movimento da informação. A visão é a de que os novos meios agem como facilitadores na função de suprir uma necessidade enraizada na humanidade, que é a de compartilhar acontecimentos.

“spread,” “spreadable,” or “spredability” to describe these increasingly pervasive forms of media circulation. “Spreadability” refers to the potential – both technical and cultural – for audiences to share content for their own purposes, sometimes with the permission of right holders, sometimes against their wishes.” (JENKINS, 2013, p. 3)

Essa dinâmica complexa, de um cenário em que mídias de função massiva podem ser interpeladas e atravessadas por sentidos construídos em mídias pós-massivas, em processos de comunicação abertos e colaborativos, acaba criando a necessidade de se formar um profissional de Comunicação Publicitária que entenda não apenas dos limites e especificidades de cada meio, com também dos processos dialógicos de interação através dos quais os meios são utilizados para produzir e compartilhar valores por parte da sociedade como um todo, ou mesmo de grupos sociais, em específico. É preciso romper com o pensamento que faz equivaler meio e linguagem, e pensar a lógica midiática em suas fronteiras – de narrativas, de linguagens e de sentidos. Assim, a visão que se coloca aqui neste artigo parte dessa compreensão de que a convergência tecnológica ultrapassa a constituição dos meios digitais e passa a ser um modo de organização de pessoas no mundo: a comunicação deixa de ser apenas a ferramenta, mas se torna a própria ordem ambivalente de técnica/humanidade, em um cenário que coloca as condições para resgatar um sentido de sociabilidade fundante do ato comunicacional. Dado o poder que a Comunicação ganha, ao se configurar como locus fundador da experiência social, o princípio da escuta no processo de formação das marcas torna-se ainda mais imperativo na base do profissional de publicidade. Não apenas porque a atuação do profissional pode interferir em processos midiáticos, agenciando e produzindo sentidos em uma atividade que exige extrema responsabilidade. Mas o desenvolvimento de competências de linguagem para uma publicidade conversacional é ainda mais fundamental hoje, quando se discute o papel do publicitário um cenário em que, não raro, o público "leigo" (sem formação específica na área de conhecimento) está

desempenhando a função de produção e veiculação de conteúdos informacionais, por vezes de forma bastante crítica. Assim, busco colocar em relevo o modo como a Publicidade passa a encenar jogos de linguagem entre sujeitos comunicacionais – a marca e o consumidor. Essa dimensão dialógica, de uma ponte do eu-marca para o tu-consumidor no discurso publicitário, já foi apontada pelos estudos de Vander Casaqui (2003) e Jean-Jacques Zozzolli (2010). Por um lado, Casaqui destaca a forma como a publicitária se constrói a partir da categoria filosófica do ethé, colocando em logo dos ethos (discursivos): o sujeito marca, como agente de fala, e o sujeito consumidor, a quem a marca precisa conhecer em profundidade, desde suas predisposições até seu universo sígnico, para conseguir encenar como sujeito que produzirá interações com o discurso formulado pela marca. Nos estudos de Zozzolli, a ideia de uma “ontologia” das marcas também parece ser de particular relevância para o que se quer apontar nesse novo processo de retórica dialógica das marcas em redes sociais: as marcas são entes, e ao entrar na dimensão de seres elas ganham contorno de uma idividualidade, que se projeta de diversas formas (simbólicas) no discurso publicitário. Em registros de atuação das agências de publicidade digitais que gerenciam redes sociais de marcas, em seus processos de atendimento aos clientes/marcas, uma das novidades é a sugestão de uma metodologia nova chamada de “persona”, como processo para preparar os publicitários que administram as conversas com consumidores da marca: se uma marca vai falar, que pessoa ela é? Se vai fazer uma postagem no Facebook, ou Instagram, como ela o faz? Com que tom? Que tido de conteúdo ela “curte”? A quais filmes assistiu? É comum se desenhar um avatar – essa marca é masculina ou feminina? No Twitter, algumas marcas levam a cabo essa “personalização”, com personagens como o Pinguim do Ponto Frio, ou a “ruivinha” do Netflix. A seguir, mostro algumas imagens das conversas do perfil do Pinguim do Ponto Frio no Twitter:

Imagem 1: captura de tela de uma postagem “divertida” do Pinguim do Ponto Frio

É notável a forma como a personagem construída do Pinguim tem uma imagem corpórea, construída no avatar, mas gostaria ainda de destacar elementos de elaboração discursiva, em um ethos que encena um universo próprio à marca: o Pinguim tem uma namorada (a Pinguina é dona de outro perfil em Twitter), tem um léxico próprio (diz “Pontia” ao invés de “bom dia”, dispara seus “muaks”, abusa dos emoticons. Enfim, utiliza-se de um registro de voz que o aproxima do cotidiano das pessoas, e assim passa a ser visto também como uma pessoa, conseguindo gerar conversa com consumidores:

Imagem 2: captura de tela de diálogos de consumidores com o Pinguim do Ponto Frio

O método da construção de “persona” para as marcas anuncia-se como uma técnica, acima de tudo, narrativa. Um modo de contar histórias, que favorece a construção de uma imagem subjetiva da marca, com elementos que convertem a convertem a própria comunicação entre marca e consumidor em um evento: uma experiência. Trabalho de linguagem apurado, pensando no cenário de consumo experiencial – termo empregado por Lipovetsky (2008) para designar uma nova forma de ordenamento da sociedade de consumo contemporânea. O que significa construir uma marca alegre, bem-humorada, séria, tranquila, descontraída? Para além de discutir a validade do uso da técnica da construção da “persona” das marcas por agências de publicidade, o que pretendo apontar é o modo como essa elaboração planejada por marcas e publicitários se transforma em scripts de interação, com critérios para nortear uma “voz” da marca em conversações travadas com consumidores em redes sociais.

Imagem 3: captura de tela de conversa iniciada por um consumidor, e respondida pelo Pinguim do Ponto Frio.

A ideia de ethos discursivo já vista na retórica aristotélica e retomada por Casaqui ganha, então, nova dimensão ainda mais dinâmica e dialógica na construção de uma semiose aberta não apenas pela decodificação da mensagem por parte do público como “leitor” (HALL, 2003), mas principalmente pela nova posição de produtor do conteúdo, que lhe confere a posição nova de agente de fala. E se o consumidor fala para as marcas, é porque quer ser ouvido. Evidente que isso cria um desafio para as marcas: a marca é uma apenas, mesmo que tendo suas falas construídas por uma equipe de profissionais, ela tem o desafio de responder e conversar com inúmeros consumidores. Sem entrar nos méritos dos critérios das marcas para escolher com quais consumidores irão dialogar (questão que, sozinha, desencadearia outra pesquisa sobre o estatuto da credibilidade

dos consumidores), interessa-nos aqui mostrar alguns casos em que a fala do consumidor recebe uma resposta por parte das marcas, e ganha uma dimensão argumentativa no espetáculo que a própria marca ajuda a criar em torno dessa “mística da escuta”, fazendo do ato da resposta um elemento de persuasão clandestina, para utilizar a expressão cunhada de Baudrillard, ou de sedução, termo utilizado por Baudrillard (1998) e também Lipovetsky (2007) – em um mecanismo ideológico que apela à carência do consumidor (como sujeito que fala de diversas maneiras em redes sociais) e ao seu desejo de ser ouvido (que denota uma carência existencial de ser e estar no mundo pela comunicação, preenchida pela retórica dialógica das marcas). A seguir, será apresentado um exemplo que dimensiona o trabalho discursivo de uma marca nessa posição “nova”, de ouvinte que precisa responder (de forma estratégica) e um consumidor que fala. O caso ocorreu no perfil de uma marca inglesa de absorventes: a Bodyform. A empresa que atua no mercado de produtos de higiene feminina desde 1940 e faz parte do grupo SCA que desenvolve e produz produtos de cuidados pessoais e está presente em cerca de 100 países. Não muito diferente das outras marcas de absorvente, a Bodyform se apresenta como a melhor amiga de suas consumidoras, dizendo que sua função é fazêlas se sentirem tão seguras e confiantes nos dias de menstruação como no resto do mês. O uso de discursos fantasiosos para abordar um tema tão delicado e desconfortante quanto o período menstrual já é bem conhecido, tanto aqui no Brasil quanto em qualquer outro canto do mundo. Pergunte para qualquer mulher e com certeza ela irá afirmar que o mundo perfeito dos comerciais de absorvente não existe. Mas e quando um homem resolve cobrar satisfações de uma marca? De forma hilária e pública? Esse foi o desafio que a Bodyform encarou quando em outubro de 2012 recebeu em seu mural no Facebook um desabafo de um homem que queria saber porque a marca o havia enganado durante tanto tempo. Diante disso, em 8 de outubro de 2012 Richard Neill, um suposto usuário comum, publica, no mural da página da Bodyform no Facebook, o seguinte desabafo2:                                                                                                                         2

“Oi, como um homem, eu preciso perguntar por que vocês mentiram para nós durante todos esses anos. Quando eu era criança, assistia aos comerciais com muito interesse, pensando em como esse momento do mês devia ser maravilhoso, já que a mulher pode aproveitar tantas coisas, e eu sentia um pouco de inveja. Quer dizer, andando de bicicleta, de montanha russa, dançando, pulando de paraquedas. Por que eu não podia aproveitar esse momento de alegria

 

Imagem 4: captura de tela da postagem do consumidor na fanpage da marca

Em seu texto, com um tom de brincadeira e teor sarcástico, Richard expressa claramente o estranhamento dos que se identificam ao ver esse tipo de comercial, tanto das mulheres que mensalmente enfrentam outra realidade ao vivenciar o período menstrual, quanto pelos homens que convivem com elas durante essa fase. Para enfatizar a sua fala, ele utiliza de elementos típicos da escrita mediada pelo computador, como por exemplo, repetição de letras, palavras e pontuação, com o intuito de chamar a atenção do leitor e reforçar sua indignação por ter sido enganado pela marca. A publicação de Richard fez muito sucesso por ser uma verdade e provocar a identificação de uma multidão de pessoas. No momento auge do caso, havia quase 100 mil curtidas e 4 mil comentários na referida postagem. Diante desse alcance tomado pela interação do usuário através do seu post em sua Timeline no Facebook, a Bodyform decidiu responder ao Richard de uma forma irônica e sincera. Diferente do internauta que expressou seu descontentamento em forma de                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             e “líquido azul” e asas!! Maldito pênis!! Então eu arranjei uma namorada e mal podia esperar para poder aproveitar essa época de aventura e alegria do mês… e vocês mentiram!! Não existia alegria, nem esportes radicais, nem liquido azul derramando de asas e nem uma trilha sonora legal, não não não. Em vez disso, eu tive que lutar contra todas as minhas necessidades masculinas, além de resistir gritar “woooooaaahhh, booooddddyyyyfoooorm, bodyformed para você”, enquanto minha garota se transformava de uma mulher amável, gentil e com um tom de pele normal na garotinha do exorcista, com veneno e a cabeça girando em 360º. Muito obrigado por me fazer cair na mentira, Bodyform, sujeitinho astuto”.

texto, a marca elaborou sua resposta em formato de vídeo, o que deu ainda mais visibilidade à ação, já que esse recurso é visualmente mais atrativo e permite uma riqueza de detalhes, trejeitos, traços, características e expressões que proporcionam maior efeito expressivo. No vídeo, compartilhado em sua fanpage no facebook em 16 de outubro de 2012, a atriz que assume o papel de CEO da marca e confirma, em um tom irônico e sarcástico, diz que eles mentiram sim durante todos esses anos porque os homens não aguentariam a verdade e ainda o agradece por revelá-la ao mundo, num típico humor inglês.

Imagem 5: captura de tela de postagem da resposta da marca na sua fanpage do Facebook

Nesse post, diferentemente do comentário no texto do Richard, a marca publica o vídeo resposta com um discurso indireto que se apóia na pessoa do Richard para promover sua imagem, dizendo (com um toque de refinada ironia) que a marca é grata pela expressão da opinião de seus usuários. Durante todo o seu discurso, a atriz mantém um tom sereno em sua voz como uma forma de mostrar que ela está tendo um diálogo de igual para igual, aproximando de

uma conversação com o público. Apesar de irônica, mantêm uma linguagem formal e uma postura educada, já que representa a CEO de uma empresa. Para ironizar ainda mais o seu discurso, ela retoma trechos do texto de Richard, e inclui até mesmo o que ele não escreveu, reforçando que tudo que eles fantasiaram em seus anúncios não é representação do real: “O uso descarado de imagens de paraquedismo, patinação e mountain-bike – você esqueceu equitação, Richard – são na verdade, metáforas”. Assim como no post, a fala da CEO é elaborada como um discurso irônico e crítico, se valendo dos mesmos recursos discursivos do texto de Richard, que é tratado como “inocente” pela empresa. Nesse caso, a voz da marca parece ser espelhada na do consumidor: os dois ethos se estabelecem em “comunhão” pelo tom sarcástico e pela vontade (irônica) de revelar a “verdade” aos outros consumidores. O alcance do vídeo resposta, e consequentemente do texto, e o engajamento dos usuários foi imenso. O material de análise da presente pesquisa foi coletado 7 meses depois da ação, que ainda possui comentários recentes, na pesquisa orgânica por “Bodyform” no Google os primeiros resultados são links do vídeo ou notícias relacionadas ao case. Dos quase mil comentários analisados, são recorrentes os elogios à atitude da empresa e ao trabalho da ação, ressaltando não apenas o senso de humor da marca, mas até mesmo a importância do bom profissional de mídias sociais para marcas.

Imagem 6: captura de comentários de pessoas à postagem do vídeo resposta da Bodyform

O que desejo destacar aqui (e que se desdobra em uma pesquisa ampla, que combina elementos de análise de discurso, processos de midiatização de marcas e análise de conversação na web em várias campanhas/ações publicitárias, para além do escopo desse artigo) é o modo como o ato de responder os consumidores, para todas essas marcas, transforma-se em vantagem competitiva no mercado. A forma como os casos apresentados nesse artigo são amplamente midiatizados não apenas nas mídias próprias das marcas em questão, mas ganham espaço de mídia

espontânea e acabam sendo muito lidas e elogiadas pelos próprios profissionais do mercado publicitário (já que essas ações são constantemente citadas em meios de comunicação especializados, como veículos da área de Comunicação, Publicidade Digital e sites de notícias de marketing, negócios e entretenimento), parece revelar que o mercado também acredita - e valida - que a escuta é um diferencial para marcas, no cenário contemporâneo. É como se, na resposta, aparecesse um argumento oculto: "você importa", "nós te ouvimos", que possivelmente se desdobra em uma estratégia de envolvimento do público ainda mais profundo - "você existe". Em um cenário de tão ampla midiatização, parece emblemático que a aparente "escuta" das marcas, quando convertida em respostas divertidas, emocionantes, ou meramente educadas por parte das marcas, pareça dizer para um consumidor produtor de conteúdo em redes sociais: "você fala, eu escuto, portanto, você existe". REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1997. BENVENISTE, E. Da subjetividade na linguagem. In Problemas de Lingüística Geral I. Campinas: Pontes, 1995. CASAQUI, Vander. Princípios de Constituição do ethos publicitário. Anais do 26º Congresso Intercom, 2003. CASAQUI, Vander. Publicidade, marcas e análise do ethos. In Comunicação, Mídia e Consumo, v. 2, n. 4, 2008. FAUSTO NETO, Antônio. Fragmentos de uma “analítica” da midiatização. Matrizes n.2, p. 89-105, abril 2008. FRANÇA, Vera. Sujeito da comunicação, sujeitos em comunicação. In GUIMARÃES, C., FRANÇA, V. (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano, p. 61-88. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. Hall, Stuart. Codificação/decodificação. Da diáspora: identidades e mediações culturais, p. 387-404. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Aleph, 2008. JENKINS, Henry. Spreadable Media: Creating Value and Meaning in a Networked Culture. Nova Iorque: New York University Press, 2013.

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