Falta de decoro intelectual – Observatório da Imprensa – 17/06/2014

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Falta de decoro intelectual – Observatório da Imprensa – 17/06/2014

A desinformação pode ser uma grande aliada para o descrédito e a
desonra infligida a terceiros. Já faz tempo, Rodrigo Constantino, colunista
de Veja e de O Globo vem publicando matérias, em especial em seu blog,
sobre supostas posturas indevidas da Fiocruz e em especial, à acomodação
ideológica de esquerda da instituição. Sua última investida
(http://migre.me/jQ9nk) foi contra uma pesquisa feita pela fundação, a
"Nascer no Brasil", desmerecendo, ao fim e ao cabo, uma luta de anos de
ginecologistas e obstetras: a humanização do parto no Brasil. Assim como o
articulista referido, não sou especialista no assunto, porém convivo com
uma médica em casa, ginecologista obstetra, que dedicou sua vida ao serviço
público de saúde. Pude acompanhar, de perto, o seu esforço para mudar um
quadro alarmante de mortalidade infantil e complicações pós-cesárea no
país.
Como se não bastasse escrever sobre o que não entende - ignorando
propositadamente o quase impenetrável corporativismo de parte da classe
médica - o colunista faz uma acusação desmedida, mas muito bem elaborada
para seu objetivo que, aliás, é sempre o mesmo, como se tivesse a tocar uma
vitrola com defeito: provar que a Fiocruz é uma versão moderna e
abrasileirada de um soviete marxista. Notem: por um lado, indicativos de
pesquisas respeitadas de organizações nacionais e internacionais
(http://migre.me/jQ9V1) contradizem os seus argumentos e os dos médicos a
que recorre, e por outro, seu conhecimento sobre a situação atual da
Fiocruz é, para dizer o mínimo, embaraçoso e constrangedor.
A excelência da fundação é reconhecida e não é preciso repetir aqui
dados a esse respeito, já que a própria o fez em nota recente
(http://migre.me/jQa1Y). O que é difícil de compreender (especialmente para
quem foi treinado por uma historiografia séria) é como o devido colunista é
capaz de relacionar inúmeras atividades da instituição a uma ação
deliberadamente "comunista". Ele age (e, pasmem, com seriedade!) como se
ainda pairasse sobre nossas cabeças uma ameaça revolucionária bolchevique,
como se ainda vivêssemos a histeria coletiva de uma classe média
reacionária que marcou os últimos dias de Goulart no poder. Seu discurso,
satírico e espalhafatoso, talvez seja mesmo a rebarba desses grupelhos de
meia dúzia de saudosos do Golpe de 64 que envergonharam o país ao sair às
ruas, mas que foram, para nosso alivio, retumbantemente ignorados. Para
alguém que se orgulha tanto de prover seus leitores de um conhecimento
refinado sobre o conservadorismo, lhe falta, isto sim, perspectiva
histórica.
Não sejamos ingênuos, porém. Como bem apontou Miriam Leitão em artigo
recente (http://migre.me/jQapH), esta é uma estratégia maniqueísta e
reducionista, mas com muita capacidade de agregação. Talvez mesmo pela
simplicidade rasteira, pelo tom monocórdico, pela indelicadeza, enfim, por
fatores que hoje predominam de modo geral entre aqueles que compõem a sua
audiência. É compreensível que muita gente resvale, desavisadamente, para
um anacronismo grosseiro. Historiadores de formação, constatamos isso
diariamente. No caso aqui, entretanto, é sensato distinguir politicas
públicas "esmeradas" e, porque não, "progressistas", do que é classificado,
a torto e a direito, como "comunismo", pelo detrator.
Desqualificar de forma irresponsável e um tanto tortuosa uma
instituição do porte e da competência da Fiocruz, que sobreviveu a inúmeros
governos e regimes, de composições doutrinárias as mais diversas é, no
mínimo, indecoroso. Seria prudente, ao menos, se certificar das informações
coletadas, a fim de evitar um posicionamento decididamente ideológico, do
qual o autor sempre acusa seus adversários, mas que é, ele mesmo, réu não
confesso.
Bastaria o básico para desmenti-lo. Por exemplo, uma reportagem in
loco com os alunos dos cursos de pós-graduação da Fundação. Pois bem,
aproveito a oportunidade e lhe ofereço um testemunho pessoal: quando
ingressados, somos bem recebidos, bem orientados, informados dos problemas
e dos avanços enfrentados pelos profissionais que ali atuam, enfim,
acolhidos em uma comunidade científica capacitada. Não há rigorosamente
nada, um único indício, de que esteja em marcha uma conspiração de comunas
desvairados...


Filipe Pinto Monteiro é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História
das Ciências e da Saúde
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