«Fantasmas natos. Documentarismo no imediato pós-25 de Abril: ‘Que Farei Eu com Esta Espada?’, de João César Monteiro», in Patrícia Vieira e Pedro Serra, eds., Imagens Achadas. Documentário, Política e Processos Sociais em Portugal, Lisboa, Colibri, 2014, pp. 153-173.

July 31, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Documentary (Film Studies), Documentary Film, Literatura Portuguesa
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FANTASMAS NATOS Documentarismo no Imediato Pós-25 de Abril: Que Farei Eu com esta Espada?, de João César Monteiro PEDRO SERRA Não estranhem as lágrimas nos olhos, venho de visitar o pai. A. M. Pires Cabral, 97, 99

Aninhado no processo político da Modernidade,1 o problema da revolução é o problema da representação.2 Encontramos um exemplo maior disto mesmo na impressionante curta-metragem de Jean Marie Straub e Danièle Huillet, Toute révolution est un coup de dés, de 1977. Aqui, sob a égide de uma epígrafe de Michelet, um grupo de nove pessoas é filmado a ler em voz alta, no cemitério Père-Lachaise, o poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard de Mallarmé. No ensaio que se segue, através de um “estudo de caso” – que poderá eventualmente ser um modelo de contraste produtivo –, vou propor uma leitura práctica que tenta extrair algumas consequências de que uma teoria da revolução – e, mais concretamente, de que uma teoria da memória cultural do processo revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril –, seja indistinguível de uma teoria da representação. Assim, como detonação deste ensaio, sublinho a hipótese de que o problema da revolução, o problema da Primavera de Abril, foi um problema de representação: e, claro está, de problemas da representação sabem especialmente intelectuais e artistas. Nos inícios de 1975, João César Monteiro teve a oportunidade de filmar a chegada de barcos de guerra, com pavilhão da NATO, ao estuário do Tejo. O acontecimento repete na diferença uma espécie de Lisboa sitiada. O resultado da montagem do material que recolheu veio a ser Que Farei Eu com esta Espada?, documentário estreado ainda nesse mesmo ano. As filmagens foram levadas a cabo, muito concretamente,

 

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com meios exíguos postos à disposição pela RTP: “Je voulais filmer cet épisode – diz-nos numa entrevista de 1991 publicada na revista francesa Positif – qui pour nous était tout de même un événement. Je n’avais rien préparé, je voulais improviser sur le terrain. J’avais quelques vagues idées, par exemple d’enregistrer des entretiens avec les marins qui débarquent dans le port: vont-ils dans les bars? rencontrent-ils des putains? etc. Ce qui m’intéressait, c'était l'aspect humain de ce débarquement massif” (68). Contudo, perante o mutismo dos marines norte-americanos e de outras nacionalidades que pretendeu entrevistar, o cineasta não pôde acumular metragem suficiente para um filme. Será então que a recolha de imagens de uma manifestação de extremaesquerda – convocada sob o lema “Fora Nato, Independência Nacional” – acabará por sugerir a João César Monteiro uma contrafacção: “J’ai alors imaginé – confessa, na já mencionada entrevista – ce qui se produirait en cas d’invasion: comment résister puisque nous n’avons pas de moyens militaires pour faire face à une offensive impérialiste? J’ai pensé que peut-être si je montrais l’histoire et la culture de mon pays, je disposais là d’une arme, la seule que nous ayons pour faire face. Le film s’est un peu organisé comme ça” (68). Ora, temos aqui plasmado, em poucas palavras, o lugar que se pretende ocupe a “cultura” no processo de democratização então em curso: pede-se-lhe que seja resistência à dominação, pede-se-lhe, em suma, que seja agente da revolução. O cinema, como outras formas de expressão artística, estariam assim chamados a situar-se na vanguarda de uma necessária revolução cultural. Fazer cinema, entenda-se, que conformasse um cinema verdadeiramente “nacional” e, num mesmo lance, produzisse um público de cinema em rigor inexistente no momento de chegada da democracia. Creio que o corolário deceptivo deste programa veio a ter, em Branca de Neve (2000), uma poderosa alegoria. As palavras de Monteiro que acabo de citar activam, enfim, com profunda ironia, um dos paradigmas da auto-representação moderna da nação portuguesa, piscando o olho, por exemplo, a um Eça de Queirós, que recolheu, num conhecido texto, e submeteu a derrisão, o “medo da

 

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invasão espanhola”’ Contrafactual de um Portugal invadido que nos devolve uma nação, uma comunidade imaginada, que, em 1975, parecia não poder representar-se a si mesma e determinar o seu próprio destino: perfazer a sua autonomia num quadro moderno que a torna imperativa. A arte cinematográfica, o labor documentarista, significa que João César Monteiro, juntamente com outros colaboradores, em pleno processo revolucionário, “estiveram lá.” Isto é, fizeram trabalho de campo, incrustaram-se munidos de uma lente fílmica no teatro de operações da revolução em curso: por outras palavras, devassaram com uma câmara de filmar de 16mm manifestações contra a NATO, entrevistas falhadas a soldados norte-americanos e holandeses, testemunhos de prostitutas, arengas de operários militantes da empresa Lisnave, reuniões e comícios inflamados – convocados ad hoc – de camponeses do Alentejo, conversas politizadas de jovens negros oriundos das iminentes excolónias... Na verdade, é esse “ter estado lá” que, em rigor, possibilitou a ficção documental que viria a ter por título Que Farei Eu com esta Espada? De todo aquele êxtase social se fez devassa, porque a câmara de filmar é perspectivada, efectivamente, como objecto cuja energia contém aquela “força ejaculatória do olho” (18) de que fala o cineasta, e grande teorizador do cinema, Robert Bresson. A intrusão de uma câmara de filmar num processo social em marcha não acontece sem violência, bem pelo contrário: é, decerto, essa violência a que subjazia à militância cinematográfica no momento de uma sociedade em transe. Que, no fundo, não é outra que a violência de uma “realidade que é forçada a ser ficção,”3 para utilizar a muito inteligente e bela fórmula de Maria Velho da Costa, uma das colaboradoras de João César Monteiro em Que Farei Eu com esta Espada? É verdade que, em meados dos anos 70, o chamado “cinema militante” dava já conspícuas provas de algum desgaste no lugar que o viu nascer – o solo francês –, mas o Portugal da rapidamente solúvel Primavera de Abril4 abriu a possibilidade de rentabilizar o género, intimamente associado ao documentarismo. 1974 tinha sido o ano de Lisboa, o Direito à Cidade, de Eduardo Geada, e em 1975, ano do

 

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documentário de João César Monteiro, temos ainda o importante filme Deus, Pátria, Autoridade de Rui Simões – que regressará ao tema da revolução alguns anos mais tarde, com Bom Povo Português (1981) –, e em 1976 é estreado Continuar a Viver ou os Índios da ‘Meia-Praia’ de António da Cunha Telles e o documentário histórico Cravos de Abril, de Ricardo Costa. Tão-pouco a ficção cinematográfica se subtraía ao pendor militante, e o resultado mais conseguido foi certamente Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos – filme em que, como foi frequente nesses idos, o concurso de cineastas e literatos tomou forma, ao contar com guião dos poetas Luiza Neto Jorge e Nuno Júdice. Durante o Processo Revolucionário em Curso – vulgo PREC –, assiste-se, assim, a uma impressionante detonação de cinema, na sequência da verdadeira ruptura que tinha significado o chamado Novo Cinema na década anterior. Concretiza-se, em suma, tant bien que mal, um reajuste do tempo perdido ou que a censura tinha feito perder. A mediação da lábil realidade “revolucionária” fez-se também, por conseguinte, na superfície de película, em formato de 8mm a 36mm. Assim, no âmbito relativamente autónomo da comunidade cinematográfica, nesses anos de trânsito para a democracia, nesse tempo em transe, a questão principal que estrutura o campo – pejado de controvérsias, manifestos, movimentos gremiais, promoção de novas publicações, dissensões várias – é a de saber qual é o lugar do cinematógrafo no processo revolucionário: que fazer com a arma que é o cinema? Que fazer com essa espada? Uma resposta, qualquer resposta, a esta questão só ganha pleno sentido quando carrega no bojo o grão da polémica.5 E polémico foi, como sabemos, Que Farei Eu com esta Espada? Podemos afirmar, neste sentido, que a sociedade e cultura portuguesas que sobrevieram como democracia a partir da Primavera de 1974 são filhas de um deus belicoso? O polemismo dos anos que imediatamente se seguiram foi cedendo terreno ao imperativo do consenso. Depois do agonismo de uma guerra perpétua – entre argumentos ingénuos e críticos –, viria o equilibrismo de uma paz perpétua – a necessidade de consensos “débeis”

 

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como argumento hegemónico, tanto na modelização do social como da cultura. Ora, no imediato pós-25 de Abril, e em plena fanfarra revolucionária, João César Monteiro aceitou a encomenda da Rádio Televisão Portuguesa de filmar a entrada de navios de guerra da NATO no porto de Lisboa e as reacções populares que se seguiram. Coadjuvado, entre outros, pela notável romancista Maria Velho da Costa, e tendo como director de fotografia Acácio de Almeida – implicado, por esses idos, em projectos documentaristas de Rui Simões ou António da Cunha Telles, entre outros –, o realizador de Que Farei Eu com esta Espada? depara com o problema com que se enfrenta tanto um projecto jornalístico de “fazer crónica,” como o próprio género documental. Sendo a comissão a de “ir lá e filmar a manifestação,” o cineasta tem de se enfrentar ao seguinte resultado, como viria a confessar anos mais tarde: “Résultat: je n’avais pas de matériel.”6 Confronta, enfim, os limites e os possíveis de uma câmara que fosse testemunha: como recorda Benveniste, “testemunhar” é ver em terceira pessoa;7 ou, se se quiser, testemunhar é abrir a possibilidade de re-presentar. João César Monteiro, Maria Velho da Costa e Acácio de Almeida “estiveram lá,” como já disse, e é este facto que possibilita a ficção. Eduarda Dionísio, no excelente livro Títulos, Acções, Obrigações. Sobre a Cultura em Portugal 1974-1994, coligiu dados importantes sobre a imediata recepção deste documentário.8 É verdadeiramente excepcional que tenha sido projectado na RTP, Domingo 6 de Julho de 1975, seguido de um debate no programa “Teleforum” com ampla representação dos âmbitos da política e da cultura. Assim, na hemeroteca do momento podem ser compulsados artigos e depoimentos de destacados intelectuais. É o caso do jornal Expresso, número do dia 12 de Julho de 1975. Remeto para o trabalho de Eduarda Dionísio para uma discriminação mais exaustiva dos participantes na discussão pública e das suas intervenções. Contudo, sistematizarei aqueles que me parecem ser os argumentos principais, esgrimidos em função de dois grupos: por um lado, os polemistas que ocupam cargos políticos relevantes – é o caso

 

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do Ministro da Comunicação Social, por essas datas pasta da responsabilidade de Jorge Correia Jesuíno; e, por outro, os representantes da intelligentsia – dos quais destacarei Maria Alzira Seixo, professora da Universidade de Lisboa e membro do Partido Comunista Português. Ambas figuras “da esquerda,” mas com concepções dissonantes no que se refere ao rumo da “revolução cultural,” isto é, ao papel que deveria ter a cultura na construção de uma nova sociedade. O repúdio que Correia Jesuíno manifesta pelo documentário de João César Monteiro baseia-se, inter alia, na seguinte ordem de argumentos: “Marcuse dizia que a sociedade capitalista avançada se pode permitir comprar os intelectuais críticos. Mas nós aqui não podemos. Por isso eu faço um apelo aos nossos intelectuais que, pela própria natureza da sociedade em que nasceram, são ‘críticos’ que se convertam em ‘orgânicos’. A revolução precisa disso.”9 Segundo esta linha de argumentação, o intelectual “crítico” – e é-o porque a sociedade o necessita –, deverá, pelas especificidades da própria sociedade em que se insere, suspender o exercício autónomo da sua faculdade crítica e converter-se em “intelectual orgânico:” isto é, deverá ser subsumido pela razão do novo Estado. Digamos que a noção gramsciana de “intelectual orgânico” vale aqui como figura genérica de um amplo “céu de funcionários”10 do novo estado revolucionário: deste modo, o individual concordaria com o geral. O “eu” do intelectual e o “nós” da sociedade colapsam num mesmo acordo. Em suma, “intelectual” e “Estado” confundem-se num mesmo projecto. Como mais adiante descreverei, o documentário de César Monteiro “resiste” a este modelo justamente porque os processos de subjetivação individual e colectiva não coincidem. Daí que, por exemplo, a História de Portugal não seja convocada no filme como narrativa que pudesse conceder um sentido ao novo estado democrático, e vice-versa. A este aspecto se referiu, justamente, Maria Alzira Seixo no depoimento sobre o filme: “Recusar Que Farei Eu com esta Espada? em nome da ‘complicação incoerente’ e da sua capacidade de se dar como história [...] representa a vontade de repúdio, que se pratica em nome do

 

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povo, de todas as formas artísticas mais elaboradas e denunciadoras da sua própria consciência de ser. Isto parece implicar a ideia de que ao povo só podemos dar (seria então o termo exacto... uma nova forma de caridade...) coisas simples porque só coisas simples ele entende.”11 Fala aqui, sobretudo, a professora universitária, cuja especialização nos problemas da linguagem artística se afasta de deflações simplificadoras. A “revolução” está, precisamente, na complexidade da linguagem: ao intelectual “novo,” subentende-se, não se lhe pede a posição paternalista daquele que “outorga” formas depreciadas de construção da realidade, e sim o trabalho de consciencialização da sociedade da complexa modelização discursiva do real. Que o filme suponha refracção de uma legitimação pela via historiográfica significa que não é subsumido por uma teleologia narrativa. Ora bem, como continuar a ler o documentário de João César Monteiro sem rasurar o polemismo da sua forma? Para tentar responder a esta questão, na leitura de Que Farei Eu com esta Espada? que proponho sobressaem alguns aspectos determinantes da cinematografia do filme que respondem por uma “realidade” subsumida pela “analógica” do fantasma. Vou centrar-me, algo mais especificamente, no Império – no “flagelo imperialista,” palavras do próprio cineasta que líamos mais acima –, questão maior do trânsito da ditadura para a democracia em Portugal – como fantasma, como retorno. Ainda, atendo ao comportamento dos grupos e dos indivíduos “diante da câmara,” num momento político, social e cultural em que se transformam os modos de materializar as subjectividades individuais e colectivas. Foi sobretudo diante de uma objectiva que se consumou, naqueles idos, a aspiração de uma liberdade conquistada que o fosse para, e por, o “Tomar a palavra.” Aceder ao discurso, autodeterminar-se enquanto agente discursivo, não é independente das materialidades da comunicação que hegemonizaram uma profunda mudança político e social, sobretudo o rádio e a televisão, mas também a câmara de 16mm. Por último, focalizarei de que modo o revenant do Império, indissociável do fantasma da “pequenina revolução” de Abril (César dixit), repercute no cinema de Monteiro,

 

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desde os primeiros filmes do trânsito dos 60 para os anos 70, até àquela que viria a ser a sua última obra, Vai-e-vem, de 2003. Voltemos aos inícios do ano de 1975, em pleno PREC, cronótopo que consabidamente abarca o golpe militar do 25 de Abril de 1974 até à finalização do processo constituinte com a aprovação da Constituição Portuguesa em Abril de 1976. A revolução sobreviera como a irrupção do novo: a uma já inesperada realidade política de cunho democratizante soma-se uma realidade social que superará qualquer espera.12 O presente abre-se a fartos possíveis, isto é, a História volta a pôr-se em marcha, inflacionando o futuro, e reinterpretando o passado, como modelos para a acção. O futurível, concretamente a utopia socialista, é o rumo que galvaniza a acção política dos cinco primeiros Governos Provisórios. Sob o espectro dessa “transição para o socialismo,” a revolução portuguesa procura nos primeiros meses do pós-25 de Abril conformar o desiderato de uma democracia sempre por vir. Sublinho, claro está, a tensão entre presença e promessa da democracia, como propôs Jacques Derrida, a tensão entre as condições e o incondicional, tensão marcada pela seguinte aporética: “This antinomy at the heart of the democratic has long been recognized. It is classical and canonical; it is the one between freedom and equality – that constitutive and diabolical couple of democracy. I would translate this into my own language by saying that equality tends to introduce measure and calculation (and thus conditionality) whereas freedom is by essence unconditional, indivisible, heterogeneous to calculation and to measure”.13 Tensionada, em suma, entre a política e o ultra-político, a democracia é uma promessa radical, um impossível além da disjunção entre cálculo e acaso, que permite precisamente reconhecê-la sempre “em perigo”, e possibilita também o seu aperfeiçoamento. Para o momento especialmente crítico em que foi filmado, montado e exibido o documentário de João César Monteiro Que Farei Eu com esta Espada?, é importante o mandato de Vasco Gonçalves no III e IV Governos Provisórios. De 30 de Setembro de 1974 até ao dia 8 de Agosto d 75 – mês do chamado “Verão Quente”, imediatamente antes

 

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da inflexão do 25 de Novembro –, a pauta da agenda política é determinada pelo saneamento do Estado salazarista-marcelista – o Conselho da Revolução substitui a Junta de Salvação Nacional e o Conselho de Estado –, as nacionalizações de múltiplos sectores, o desmembramento dos grupos económicos hegemónicos, a Reforma Agrária, a ocupação de terras e propriedades ou a instauração do salário mínimo, entre outras conquistas sociais. Trata-se de um momento álgido da viragem socializante, confrontado com as suas contradições intrínsecas – as que advinham da inevitável dessincronização entre a “teoria da revolução”, a possibilidade e limites de uma real “acção revolucionária”, uma realidade súbita ou tardiamente cambiante (daí, por certo, estruturalmente refractária à objetivação de uma sua teoria) – e extrínsecas, isto é, as que resultam da valoração que o processo político e social português conhecerá nos focos de poder da geopolítica global. Neste sentido, é respondendo aos receios de uma deriva comunista que a administração norte-americana mobiliza um contingente naval da NATO no estuário do Tejo, como que fazendo cerco à cidade de Lisboa, forma de determinação do sentido do processo revolucionário. Isto acontece no mês de Fevereiro de 1975, e disto pretende ‘fazer crónica’, em princípio, o documentário de João César Monteiro. O futuro veio ao encontro do corpo social “tranquilo” português – seja-se permitida a referência ao documentário Portogallo Paese Tranquilo do genial cineasta catalão Joaquín Jordà14 – naquele 25 de abril de 1974. A democracia chega como um fuzil carregado de possibilidades e, também, de ponderosas incertezas. É precisamente o que temos no documentário Que Farei Eu com esta Espada?, de João César Monteiro. O conhecido verso de Fernando Pessoa alude, aqui, sobretudo, ao discurso, à palavra e à imagem como possíveis utensílios de intervenção dos artistas comprometidos com a tão complexa, crítica e difícil categoria – mas não totalmente inútil, talvez mesmo, em certos momentos, necessária – que é ‘o seu tempo’. Façamos, então, uma entrada na cinematografia da película.

 

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Numa resenha crítica publicada na revista Seara Nova em Dezembro de 1976, Fernando Guerreiro assentou as linhas-mestras que substanciam o travejamento do filme: “Neste filme de circunstancia de JCM integram-se, numa estrutura de discurso fundamentalmente mítica, três tipos de elementos: os culturais (cinematográficos: Murnau – ou de outros domínios; p. ex., Puchinni, com a ‘Butterfly’), os históricos (castelo, espada, arcanjo-guerreiro, canções tradicionais…), os naturais (possuidores de uma carga retórica susceptível de lhes garantir uma função mítica no todo do texto)”.15 Ora, diria que a lei formal desta média metragem de João César Monteiro – o tempo de visão é de 65 minutos – estriba naquilo a que poderíamos chamar, com alguma liberdade, efeito de ‘harmonia inarmónica’ que conforma o filme como um todo. De um lado, o eixo do lirismo de temporalidade circular, mítico-simbólica, dos insertos não diegéticos como o grande plano inicial do canhão do Castelo de S. Jorge a apontar para o estuário do Tejo; as sequências do filme Nosferatu de Murnau que se vão intercalando. O chupa-sangue de Nosferatu de Murnau traz para dentro do filme o cinema expressionista, mas também uma tópica jacobina da poética inflamada do tempo da Revolução; o Cais das Colunas enquadrando o porta-aviões Saratoga; os takes das árvores decepadas de um campo alentejano; o grande plano da planta carnívora a devorar um insecto; a personagem andrógina interpretada por Margarida Gil em cenas sublinhadas pelo Tannhäuser de Wagner, vestida com o hábito de cavaleiro e empunhando uma espada – ora erguida apontando o mar, ora em posição desarmada –; o plano de pormenor da cabeça de pedra de Henrique o Navegador; o plano geral da rebentação das ondas do mar; o plano de pormenor da rosa branca no apogeu da florescência; o plano sequência de Mme. Butterfly de Puccini com um uso do zoom que encurta a distância focal em relação ao palco; a fiandeira e o pastor filmados em plano americano; o grande plano de uma bela jovem a lembrar algum take de La Jetée de Chris Marker; o velhote ensimesmado a costurar um casaco; o still da foto de Amílcar Cabral; ou, enfim, os grandes planos do mar enquadrando parte das ameias da Torre de Belém.

 

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Por outro lado, temos o eixo da temporalidade linear, históricocrítica, concretizada nos planos e sequências do processo social em marcha: o plano sequência anormalmente longo da manifestação contra a Nato convocada pela UDP, câmara-ao-ombro do operador que faz avançar o travelling no sentido inverso ao dos manifestantes, dessincronizando por momentos breves a banda-som em relação à banda-imagem; as várias sequências do ‘Saratoga’, nau transportadora de aviões fundeada no estuário do Tejo a partir de 7 de Fevereiro de 1975, colosso abordado por uma câmara que se move no rio assente num batel de reconhecimento que vai rodeando a máquina de guerra acouraçada; o navio é enquadrado em contrapicado, montando vários planos-sequência relativamente longos; o ágil e elegante movimento de câmara – a altura do enquadramento situa-se no rebordo da traineira que suportava o aparelho – contrasta com o porta-aviões em primeiro plano, massa cinzenta imóvel sublinhada na sua grandeza quase sublime por uma banda-som muito inquietante: o som metálico e mecânico dos rotores de um caça-bombardeiro; a breve entrevista aos marines com a entrevistadora – decerto Maria Velho da Costa – fora de enquadramento, voz em off; o depoimento do pescador, em plano americano, queixandose de uma vida cada vez mais cara; o plano sequência da belíssima jovem turista holandesa abordada por marinheiro conterrâneos, com a voz off que entrevista a dizer-lhes em inglês “We are portuguese, not foreigners”; a manif dos ‘Médicos da Caixa’ que literalmente ‘brincam aos médicos’; o plano geral do casal recém-casado em pose kitsch; as diferentes sequências da vida nocturna do Cais do Sodré, em planos picados, planos médios, com algum movimento panorâmico e algum travelling de seguimento, nightclubs, boîtes, soldadesca, putas, gentio noctívago; os espantosos planos da prostituta filmada, ora em plano americano ora em plano médio que conta, diante de um auditório que aparece, fantasmático, num curto inserto. A prostituta, de pé, num vai-evem pelo estrado em que se encontra, sob uma luz frontal de grande intensidade que a crava contra um fundo branco – e que, diríamos, parece um écran de cinema –, vai contando o encontro sexual com um

 

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padre – escandalizada, pois “[Foi] criada num meio religioso” –, cliente que lhe “fez um minete” que a obrigou a tratamento ambulatório prolongado, ou relatando as taras de um fetichista dos gelados que lhe lambeu o sexo barrado com um creme doce e frio. É, sem dúvida, um dos grande momentos cinematográficos deste filme, sendo pela voz da prostituta que é trazido, para dentro da película, o problema da condição feminina no processo político e social em curso; os planos dos operários metalúrgicos a proferirem palavras de ordem contra o imperialismo americano, em discursos permeados da vulgata da lutas de classes, vozes que tentam sobrepor-se ao som ensurdecedor das máquinas fabris; os planos dos trabalhadores da Lisnave com claras referências ao cinema soviético; o longo plano-sequência do ‘comício fabricado’ do Grupo Coral de Trabalhadores das Alcáçovas, onde um velho ergue a voz gritando “Viva o comunismo”, “Abaixo o fascismo”, “Ponham os olhos em mim”, “Viva a juventude”; será a voz em off deste velho de 72 anos que constitui a banda-som de ulteriores planos de tractores a arrotear os campos incultos; o plano sequência com movimentos laterais à esquerda e à direita da conversa, e enquadramento médio, dos jovens negros num quarto com cartazes do MPLA e outros, a revelar as condições de trabalho em São Tomé e Príncipe, em Angola, em Cabo Verde. Figuras que, numa eficaz mudança de plano são também filmados como silhuetas num fundo branco, somando-se ainda ao episódio takes de em registo de ‘cinema vérité’ de trabalhadores negros da construção civil, pontuados pela voz em off de um dos jovens a falar do mártir da luta da libertação ‘dos povos africanos e de todos os povos’, Amílcar Cabral; o plano americano dos lavradores alentejanos que gritam três vezes, em resposta ao cavaleiro andrógino que é quem diz “Que Farei Eu com esta Espada?”, “Ergueste-a e fez-se”; enfim, o plano fixo da marcha das camponesas alentejanas de punho levantado, caminhando em direcção ao lugar onde foi plantada, imóvel, a câmara de 16mm. A ‘harmonia inarmónica’, como lhe chamo, que justapõe estes dois eixos dos materiais do filme – de um lado o lirismo míticosimbólico que une e, do outro, a desunião do tempo social que realmente

 

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apenas avança lentamente e com descontinuidades –, resultado de um aturado trabalho de montagem levado a cabo pelo próprio cineasta,16 coloca no cerne da obra uma aporética. O filme de João César Monteiro, polarizado entre o “prazer” – o desejo mediado pelo estético – e o “desencanto” – o amargo trabalho da história –, não produz uma síntese feliz entre “desencanto” e “prazer”, vive aliás dessa condição suspensa, tem no cerne essa tensão ou transe. Condição aporética, estância marcada por uma contradição irresolúvel. Trata-se, enfim, do filme de um autor – um filme de autor –, afirmação de uma subjectividade radical, que resiste sem concessões ao enquistamento dos discursos simbólicos – poéticos ou políticos – hegemónicos. Daquela solúvel Primavera de Abril, passada a ‘fanfarra’, dir-se-ia, ficou o pharmakon do ‘riso infantil’, como no poema rimbaldiano “Matiné d’Ivresse”. Se tudo começa numa infância – a primavera de um país novo, o Portugal de Abril que é o novo ‘novilho’ do amargo poema de Armando Silva Carvalho17 – , tudo também acabará com a infância. Daí a citação de Rimbaud feita por João Vuvu naquele que veio a ser, como se sabe, o último filme de João César Monteiro: Vai-e-vem. Traduzo o seguinte trecho do poema de Rimbaud, “Matinée d’ivresse”: “Tudo começou com risos de crianças, com eles vai terminar. Este veneno permanecerá nas nossas veias mesmo quando, a fanfarra acabada, voltarmos à nossa antiga inarmonia”.18   Ficará, enfim, sobrevindo o tempo dos assassinos, o tempo da inarmonia, a beleza das palavras finais de Que Farei Eu com esta Espada?, escritas na rugosidade de um muro que pode ser um écran de cinema. E essas palavras são: “Proletários de todos os países, univos”. Assim, a cinematografia de Que Farei Eu com esta Espada? mostra-nos, ponto fundamental, um realizador que vai mais além da dimensão do filme como documento, potenciando-o como experiência estética. Ao mesmo tempo, sendo trabalho sobre imagens, trabalho sobre textos escritos, trabalho sobre sons, não aliena a questão ponderosa, que é a de saber se é possível que esta subsunção do filme a uma pulsão estética se concilie com a conformação de um modo de intervenção

 

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política. Ainda, uma das questões que atravessa esta fase inicial da carreira de João César Monteiro como cineasta prende-se com o pensar o intervalo que separa o domínio da arte, produto de um grupo avançado da sociedade – digamos, uma elite especializada –, e o ‘povo’ – ou, o ‘público’ –, entendido como espaço social conformado por uma cultura massificada. Também isto diz respeito ao título do filme. São os camponeses alentejanos – filmados num momento álgido da Reforma Agrária – que completam o verso do poema de Fernando Pessoa dito pela personagem de Margarida Gil. Verbos encarnados, versos recitados, poesia dita como numa estranha performance fabricada. A poesia tem um efeito sobre os corpos, mas os corpos também significam a afecção dos versos. O que a cena propõe é, talvez, a suspensão tanto de um dictum sem finalidade – como versos suplementados pelo estético, os versos são sem finalidade, justamente –, como a suspensão da disponibilidade daquela comunidade para a acção política. Quer dizer, na afecção cruzada e de sinal contrário do texto e do grupo – enfim, da literatura e da vida – a sequência cinematográfica permite-nos atravessar um conjunto de aporias certamente ponderosas no contexto daquele Fevereiro de 1975. Será legítimo o uso não especializado da poesia como injunção que move a acção cívica? Será legítima uma arte cuja especialização intrinsecamente enxuga o seu uso político? Suspensão irónica que nos devolve, enfim, a possibilidade ou a impossibilidade de, no tempo novo da democracia, continuar a ser sustentável a tensão não resolvida, ao longo dos anos 50, 60 e 70, entre uma ‘arte autónoma’ e uma ‘arte heterónoma’. Que é, digamos, a tensão de onde provém a cinematografia de João César Monteiro, ao atravessar o campo de conformação de um novo cinema português a partir da década 60. Uma palavra sobre a subjectivação dos corpos comunais e o modo como essa subjectivação é imaginada e pensada na obra. João César Monteiro, vemo-lo nas sequências que dizem respeito aos pequenos corpos gremiais que filma, não mostra essas assembleias temporárias na dialéctica da sua constituição e organização. Não o faz, por exemplo, ao

 

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jeito de um Rui Simões em Bom Povo Português ou Os Índios da Meia Praia de António Cunha Telles. Prevalece nas sequências do cineasta português a irredutibilidade da desarmonia e da dissonância. É a harmonia idealizada, lembremos, que tempos plasmada na poética de Sophia de Mello Breyner Andresen, uma harmonia contra a qual se filma precisamente o documentário. Digamos que a cinematografia de um Cunha Telles ou um Simões perfaz um salto ideológico, mostrando o ‘desencanto’ que infunde o processo em que a representação política necessariamente atraiçoa os representados, como em tempos formulou Eduardo do Prado Coelho.19 A cinematografia de ambos é, assim, determinada pela teoria política que lhe subjaz, chocando e progredindo sempre na questão da ‘representação’ como o problema da ‘revolução’. João César Monteiro produz, pelo contrário, um peculiar efeito de estranhamento dos espaços agoráticos e dos indivíduos que ‘tomam a palavra’. Os diferentes depoimentos, de facto, prolongam as falas dos tipos sociais – o camponês, o operário, a prostituta, o jovem trabalhador africano das ex-colónias, o soldado, o manifestante ‘comprometido’ – para além da enunciação que uma qualquer verdade e autenticidade individual ou colectiva, desembocando assim no ‘estranhamento’ dos indivíduos. Neste sentido, Fausto Cruchinho formulou, não há muito, a noção de uma “galeria de caricaturas” para se referir ao conjunto destes tipos sociais, asseverando que “o que aparenta ser um filme político militante, com recurso àqueles que nunca tiveram voz durante o fascismo, rapidamente se transforma numa caricatura”.20 Formula, ainda, que os “momentos de afirmação militante das causas políticas são particularmente decepcionantes e caricaturais”.21 Não partilho totalmente esta categoria da ‘caricatura’ para descrever o modo como o documentário figura os tipos sociais que se vão sucedendo quais ‘vinhetas’. Lembro que – e este parece-me ser um dos travejamentos centrais do cinema de Monteiro – o cineasta afirmara logo a propósito do primeiro filme, Sophia de Melo Breyner Andresen, o seguinte: “O cinema talvez seja apenas a procura da distância mais justa entre dois olhares: a distância do olhar que nos olha, o que corresponde à distância

 

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de conhecermos como somos conhecidos”.22 O cinema como olhares que se cruzam no tempo e como lugar de objectivação de uma ‘distância justa’, uma justiça que vem ‘do olhar que nos olha’ e não ao invés. Não me parece, no fundo, que Monteiro opte por focalizar a ‘realidade’ a partir da derrisão caricatural ou da morigeração da moral ideológica das personagens que o filme vai averbando nos sucessivos quadros. Os tipos sociais vão sendo somados, antes, na sua condição de ‘refractários’ e conformando uma generalizada ‘refracção’. Trata-se, pois, de uma parada de refractários. O soldado de Oklahoma, paladino da democracia que “não sabe” se acredita na democracia; o jovem negro africano, militante político que lê com dificuldade um manifesto; o operário fabril enredado na trama – tramado, digamos – da vulgata materialista; a prostituta vencida não apenas pela objectualização sexual, mas também pela moral pequeno-burguesa em que foi educada; o velho alentejano que teria muito para dizer, mas que afinal profere fórmulas páticas vazias. São todos eles sujeitos do discurso, mas também sujeitos a discursos que os dizem bloqueando uma real emancipação. Diante da câmara, neste sentido, são um misto de afirmação altiva da liberdade recém conquistada, por um lado, e, por outro, a negação dela porque sujeitos ainda oprimidos. Assim se ‘des-familiarizam’, assim se tornam ‘estranhos’; mas ao mesmo tempo visivelmente próximos, ‘familiares’, em suma. É aqui que convocaria a categoria da ‘refracção’. São seres ‘refractários’ na medida em que se repartem entre uma elegante dignidade e uma ignóbil vitimização, a que os conduz um processo político e social truncado. O sujeito ‘refractário’ é precisamente isto: a elegância que é o suplemento estético da câmara do cineasta; o estranhamento irredutível e irredimível de uma sua ‘verdade’ ou ‘autenticidade’. E não serão Max Monteiro, João de Deus – Recordações da Casa Amarela (1989), A Comédia de Deus (1995), Le Bassin de John Wayne (1997) e As Bodas de Deus (1998) – ou o derradeiro João Vuvu cifras ficcionais desta estrutural ‘refracção’ da comédia transicional lusitana? Enfim, não é João César Monteiro, cineasta, ele próprio, o arqui-nome de um dos mais geniais ‘refractários’ da cultura

 

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contemporânea portuguesa, que de todos os ‘refractários’ de Que Farei Eu com esta Espada? é, de algum modo, um resumo (em jeito de um Flaubert, que da sua conhecida personagem dizia: “Mme. Bovarie c’est moi”)? Enfim, todas elas figurações de ‘fantasmas natos’; o ‘fantasma nato’ é algo como a ontologia d’‘o português’. Os rostos falantes do documentário de criação, as poderosas imagens que o povoam, retornarão no ulterior cinema de João César Monteiro. Eis, então, outros exempla do ‘fantasma nato’ do império tatuado na mais recente filmografia do cineasta português. Concretamente, no último filme, João Vuvu – avatar de João de Deus e Max Monteiro – delira com origens familiares africanas, alucinando viagens expedicionárias por uma África necessitada da magia da medicina científica. É também expressiva uma das ‘vinhetas’ daquela nau dos loucos que é o autocarro nº100 – caixa que miniaturiza, talvez, os restos do ‘povo’ português – em que um ex-combatente da Guerra Colonial profere palavras de ordem de explícito recorte racista, lembrando episódios ignóbeis do ‘tempo da morte lenta’. Por outro lado, e numa versão aberrante de uma das mais poderosas imagens de Que Farei Eu com esta Espada?, a de Mme. Butterfly vendando os olhos do filho e colocando-lhe nas mãos uma bandeira dos EUA, lembremos ainda o pequeno oratório, estranho ‘altar doméstico’, do quarto do hospital em que acaba João Vuvu, onde o phalus que acaba de ‘dar à luz’ é colocado sobre uma bandeira norte-americana vigiada pela fotografia de George W. Bush. Todas elas imagens dos retornos do império. Cinema que nos devolve o modelo, digamos, estético e hermenêutico de uma generalizada fantasmagoria: a fantasmática dos indivíduos e dos grupos, dos seres singulares e dos entes colectivos, o processo de subjectivação de todos eles. Esta figuração é o modo como o cinema inventa essa ontologia peculiar. A ‘refracção’ é o resultado do efeito de a ficção forçar a realidade a ser ficção. Seres que são ejectados pela História, são forçados ao refúgio na Arte: ficam cravados no écran entre o sublime e o abjecto, como exemplarmente acontece com a prostituta que ‘toma a palavra’ em Que Farei Eu com esta Espada?

 

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contra um fundo branco sob uma luz impossivelmente intensa. Beleza e abjecção agonizam no ‘refractário’. De facto, na obra cinematográfica de João César Monteiro temos a conflagração do sublime e do abjecto. É de abjecção que nos fala um tremendo plano de Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, filme de 1970 em que, no meio de uma conversa de café, duas personagens masculinas observam impassíveis como uma barata mergulha dentro de um copo de água. A barata é o objecto correlativo da vida abjecta das personagens falantes, e a precisão do mergulho é, por seu turno, o correlato do rigor poético da cena: o movimento sublime da queda na água, a massa abjecta do insecto que cai e boia. Mas regressemos a Que farei com esta espada?, média metragem que nos diz do cinematógrafo em tempos da revolução, trabalhando já contra a depreciação espectacular do processo: não esqueçamos, de facto, que o filme foi também pensado para intervir no meio televisivo. Documentário de criação, cinema na ortopedia do processo político, no tremor das mudanças sociais, na convulsão dos corpos que, algo subitamente, podem ser pensados e imaginados em liberdade. Acudo, enfim, aos corpos que podem experimentar o delírio dos sentidos e, também, poetizar-se, isto é, submeter-se docilmente à legiferação do ‘rigor poético’ – ao rigor do cinema de um cineasta rigoroso: a ‘harmoniosa inarmonia’, lei formal do documentário, como proponho, é exemplo desse ‘rigor poético’. A historiografia política, a sociologia científica, vem, nos últimos trinta-e-cinco anos, conformando uma ‘teoria da revolução’, vem construindo modelos interpretativos da Revolução de 1974, em função de categorias como a de ser, a Primavera de Abril, para uns uma ‘revolução pioneira’, para outros uma ‘revolução tardia’, para alguns uma ‘revolução imperfeita’, ou ‘curto-circuito da história’, para outros ainda. Talvez se possa mobilizar, com proveito, a noção de uma revolução que – a par da série propriamente política e institucional – é, também, um acontecimento que pode ser descrito como um momento de intensificação dos sentidos.23 Essa revolução não será tanto o trânsito mais ou menos feliz da ditadura para a democracia, mas

 

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antes o transe dos corpos, o transe dos sentidos na percepção dos fenómenos históricos, dos fenómenos sócio-políticos. A arte, dispositivo produtor de desejo e das suas cinzas fulgurantes, encontra-se no cerne da democracia por vir. A arte, máquina desejante – demasiado humana, porque imperfeitamente humana – sempre configura “fracassos vitais”, porque a economia do desejo tem inexoravelmente um fim, um fim a que sobrevém o desencanto. Poderia ser esta, talvez, uma descrição do tempo criativo que vai de meados dos anos sessenta a meados dos anos setenta, cronótopo determinado pela obturação de diversos futuros – aqueles que foram conjurados sob o influxo do socialismo ou da revolução – e a sua substituição por outros futuríveis e as suas legitimações discursivas – desenvolvimento da sociedade de consumo, capitalismo tardio ou pós-modernidade. Tempo em que se escoa uma arte urgente e instalada na dificuldade da urgência, tempo de uma tensão poiética predicada pela mutilação, pela experiência da perda e a perda da experiência. Os inventores de imagens-movimento e os inventores de palavras carregadas de estesia – enfim, os cineastas e os poetas – são, fundamentalmente, artífices de imagens visuais e verbais em suspensão, isto é, retesadas entre a realidade e o desejo. No fundo, imagologia que refracta – sem se subsumir ao ‘reflexo’ ou a uma sua teoria forte – as economias contrastantes da realidade e do desejo. A economia do capital supõe cancelamento do trágico porque ao contrário do corpo desejante, o vampírico corpo que consome sempre pode voltar a consumir sem deixar cinzas melancólicas. O cinematógrafo e o trabalho poético – tão imbricados naqueles idos – são produção de desejo, são pulsão desejante que, tragicamente, conduz a um desencanto que pode admitir diferentes modulações. Mas que, seja como for, é aquele rimbaldiano “veneno que permanece nas veias”, que transita pelos corpos depois de “acabada a fanfarra”. Dando um salto vertiginoso, convoco aqui uma sequência do último filme de João César Monteiro, Vai-e-vem, de 2003, que rima com estes termos. De um modo ou outro, a cultura portuguesa pós-25 de Abril tem vindo a reverberar a revolução enquanto acontecimento. Neste

 

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sentido, e ainda que o não tematize objectivamente, Vai-e-vem é um objecto possível para ensaiar o eco dessa estrela detonada, mas de que continuam a fulgurar faúlhas anacrónicas. Filme estreado pouco tempo depois do falecimento do cineasta português, numa das cenas centrais da obra temos um longo planosequência do protagonista, o misantropo e libertino viúvo João Vuvu – avatar de Max Monteiro e João de Deus, todos eles alterizando o próprio João César Monteiro –, a conversar com o filho. Pai e filho conversam entrando pela noite, sentados num cais, contemplando os reflexos do rio Tejo que sugere um fel negro. O filho de João Vuvu chama-se Jorge e acaba de sair da prisão, onde cumpriu pena por ter cometido um duplo homicídio e assaltado um banco à mão-armada. Nesta via do crime seguida por Jorge não deixará de percutir a equívoca lição anarquista de João Vuvu. As personagens do pai e do filho são filmadas de costas, em plano americano, sem que a câmara faça concessões a uma estrutura – digamos, ‘clássica’ – de plano/contraplano na montagem da conversação. Mal vemos os seus rostos, tão-só os perfis, os seus gestos escassos. Ora esta cena constitui uma auto-citação. Já em Le Bassin de John Wayne, de 1997, a personagem de Henrique o Navegante leva Jean de Dieu ao cais da Matinha. Aí, sob “un petit coin de paraplui | contre un petit coin de paradis”, conversam e elucubram sobre o suicídio. O argonauta acabará afogado no fel negro do Tejo, e Jean de Dieu afogando as penas à procura da flor ausente de todos bouquets no fundo do copo de cabarets e bares lisboetas. Ambas as cenas ‘familiares’ são eloquentes imagens da “comédia lusitana”, consabido subtítulo de outro dos grandes filmes de João César Monteiro, Recordações da Casa Amarela, de 1989. Acrescento de minha lavra que o são, decerto, daquilo a que podemos chamar a ‘comédia transicional lusitana’. Em Vai-e-vem o fel negro do rio Tejo volta a ser lugar de enterramento líquido. A sequência começa por uma pequena tirada de João Vuvu: “Das tarântulas já nos livrámos [acabam de ter estado a jantar com duas prostitutas, uma delas em cadeira de rodas], mas ainda tenho a cabeça cheia de portugueses. Aliás, não se nasce

 

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português, fica-se português. É o atavismo, é o atavismo”. O ‘fantasma nato’ é este ‘não nascer português’; é este ‘ficar-se português’. O desenlace da sequência ocorre quando o filho de João Vuvu, Jorge, diz querer visitar o oceanário. O pai aproxima-se da beira-d’-água. Um pequeno inserto da proa da quilha de um barco é assimilado ao nariz aquilino de João César Monteiro. É então que João Vuvu chama o filho: “Vem, Jorge, vem ver os peixinhos”. O filho segue a voz do pai. João Vuvu empurra-o, assassinando-o. Ainda ouvimos o Jorge a gritar “Paaaaiiiiii!” A resposta de João Vuvu encerra a sequência: “Vai chamar Pai a outro”. Diria que a cena é, enfim, uma réplica da consciência cómico-entristecida – a tristitia, o morbo melancólico, entrincheirados na comédia – do ‘ser moderno em Portugal’24 e que modulou, pelo menos nos últimos 150 anos, a cultura portuguesa. Temo-la, vale lembrar, no poema “Nós” de Cesário Verde, no último quartel do século XIX: “E que fazer se a geração decai! | Se a seiva genealógica se gasta! | Tudo empobrece! Extingue-se uma casta! | Morre o filho primeiro de que o pai!”25 João César Monteiro imagina e pensa algo verdadeiramente inquietante: não apenas que morra o filho antes de morrer o pai, mas que morra às mãos assassinas do pai. Lance de ironista, modo de produzir uma crítica radical do conformismo social e político de uma geração pós25 de Abril que já só conheceu a democracia, uma democracia que César Monteiro diagnostica como sendo apenas formal.26 “Voici le temps des assassins”, diz-nos João Vuvu em Vai-e-vem. Na ‘comédia transicional lusitana’ terá chegado o tempo em que o pai mate o filho – o passado assassina um presente sem futuro. Enfim, algo como o contratempo do crime como uma das Belas Artes.

 

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In Imagens Achadas. Documentário, Política e Processos Sociais em Portugal, Lisboa, Colibri, 2014, pp. 153-173. Eds.: Patrícia Vieira e Pedro Serra.

 

 

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  NOTAS 1

Para uma discriminação dos vários sentidos do termo, cf. Hans Ulrich Gumbrecht, “Cascatas de Modernidade.” Interessa-me destacar este passo em que se descreve a acepção pós-ilustrada e pós-romântica do ‘moderno’: “Mas é também o lugar – e isso talvez seja a mais importante conseqüência da temporalização do século XIX – em que o papel do sujeito conecta-se ao tempo histórico. Em cada momento presente, o sujeito deve imaginar uma gama de situações futuras que têm de ser diferentes do passado e do presente e dentre as quais ele escolhe um futuro de sua preferência. Somente por meio dessa ligação com o tempo histórico e da função que ela cumpre nessa dimensão pode a subjectividade integrar o componente de ação na auto-imagem que ela oferece à humanidade. E é essa inter-relação entre tempo e ação que cria a impressão de que a humanidade é capaz de ‘fazer’ sua própria história” (16). Ao longo deste ensaio, o problema da ‘subjectivação’ que exploro, na sua relação com uma retórica da ‘temporalidade’, ou noções como ‘acção’ e ‘história’, tem na base os implicados deste lugar. 2 Para as noções de ‘representação’ e ‘política’ articuladas ao longo deste texto, cf. Bruno Latour, 2005. “From Realpolitik to Dingpolitik or How to Make Things Public.” Trata-se de uma proposta de mudança de paradigma no pensamento da res publica, comutando a filosofia política clássica por aquilo a que chama “política das coisas” –, distingue três acepções da noção de representação, central a definição do corpo político. Assim, e de modo sintético, teremos que representação refere o conjunto de formas de reunir em assembleia os indivíduos legítimos, sendo este o objecto de reflexão do direito e da ciência política; num segundo sentido, representação refere a descrição justa dos objectos que preocupam e em torno dos quais se reunem em foro os indivíduos legítimos; enfim, num terceiro significado, representação alude à composição e visualização do ‘corpo político’ (6). Sobrelevo, enfim, o seguinte trecho: “Our notions of politics have been thwarted for too long by an absurdly unrealistic epistemology. Accurate facts are hard to come by, and the harder they are, the more they entail some costly equipment, a longer set of mediations, more delicate proofs. Transparency and immediacy are bad for science as well as for politics; they would make both suffocate. What we need is to be able to bring inside the assemblies divisive issues with their long retinue of complicated proof-giving equipment. No unmediated access to agreement; no unmediated access to the facts of the matter. After all, we are used to rather arcane procedures for voting and electing. Why should we suddenly imagine an eloquence so devoid of means, tools, tropes, tricks and knacks that it would bring the facts into the arenas through some uniquely magical transparent idiom?” (11-12). 3 Cf. o depoimento de Maria Velho da Costa integrado nos extras do DVD Os Quatro Primeiros Filmes, Lisboa, Madragoa Filmes, 2003. 4 Faço aqui uma alusão ao livro de poemas Primavera Soluble do poeta salmantino Aníbal Núñez. Deparamos, neste belo livro de poemas ao que tudo indica escrito por volta de 1974, com uma lição de poesia e história: nele, a estética, a arte, não promete uma cândida simultaneidade de história e utopia. O “porvenir devorado por un incendio” (13), como lemos no subtítulo do poema que detona o conjunto, o poema “Prólogo”, epígrafe que comanda o conjunto de poemas, funciona como uma espécie de emblema. Uma espécie de No future, se se me permite conjurar o lema punk. É sob a luz deste futuro que inexiste que se calibra um presente irredimível, un presente sem primavera: “No otra primavera | comiendo grano solo sin dirección alguna” e “Pródiga es en cicuta la presente primavera”. Os “horizontes” – algo como o futuro como horizonte – são “frágiles” pois “incendia la luz del occidente un paisaje tras otro”. Sentimento de um ocidental para quem um excesso de iluminação – a “luz vivísima que mueve” – é concomitante do vazio, variação da impossível figuração da morte, singularidade que se impõe como (quase) única metafísica na obra de Aníbal Núñez. O livro de Aníbal Núñez partilha com o documentário de João César Monteiro a consciência entristecida de que, anterior a uma primavera, está a sua dissolução. 5 Cf. Roberto Esposito, 2009. “Comunidad y violencia”. Trad. Rocío Orsi Portalo. Minerva 12. Madrid: CBA, 72-76. Também Bruno Latour aponta para o agon que aninha no âmago de um sujeito comunal; cf. op. cit.: “The word ‘demos’ that makes half of the much vaunted word ‘demo-cracy’ is haunted by the demon, yes, the devil, because they share the same Indo-European root da- to divide. If the demon is such a terrible threat, it’s because it divides in two. If the demos is such a welcome solution, it’s because it also

 

 

    divides in two. A paradox? No, it’s because we ourselves are so divided by so many contradictory attachments that we have to assemble” (14). 6 Jean A. Gilli, op. cit., loc. cit. Nesta entrevista João César Monteiro revela: “J’ai alors dit à mon opérateur Acácio de Almeida: ‘Vas-y, filme la manifestation’. Comme il y avait pas mal de monde, nous nous sommes perdus, je ne l’ai revu que le lendemain. J’ai par ailleurs réussi à interviewer deux marins français très tendus qui voulaient me casser la gueule, casser la caméra... Je me suis posé la question: ‘Que vais-je faire ? Comment répondre à ma petite commande ?’”. 7 Cf. Émile Benveniste, 1995. O Vocabulário das Instituições Indo-européias. Vol. 2. Poder, Direito, Religião, Trad. D. Bottmann. Campinas: Unicamp, 278. 8 Cf. Eduarda Dionísio, 1993. Títulos, Acções, Obrigações. Sobre a Cultura em Portugal 1974-1994. Lisboa: Edições Salamandra, 206 e ss. 9 Apud idem, ibidem, 209. 10 Utilizo aqui, com alguma liberdade, o conhecido sintagma que dá título a um conhecido poema de Luís Miguel Nava, “Um céu de funcionários”. 11 Apud Eduarda Dionísio, op. cit., loc. cit. 12 Cf. idem, ibidem, 208. 13 Jacques Derrida, 2005. Rogues. Stanford: Stanford University Press, 47-48. 14 Jordà encontra-se nesse momento exilado em Itália. Trata-se de um raro documentário que também importa para a investigação da ‘miragem do Império’ nesses idos. Encomenda do MPLA, e na impossibilidade de filmar a resistência anti-colonial in loco em África, Jordà viaja a Portugal e grava, de forma clandestina, manifestações, entrevistas com opositores do regime e militares que desertaram, entrosando o material filmado com takes de discursos de Marcelo Caetano televisionados. 15 Fernando Guerreiro (1976). “As Duas Vias do Cinema Português (II)”. Seara Nova. Nº 1574. Nov./Dez. 41. 16 Cf. o depoimento de Margarida Gil coligido em Fabrice Revault d’Allones, ed., 2004. Pour João César Monteiro. “Contre tous les feux, le feu, mon feu”. Paris: Éditions Yellow Now, 98. 17 Cf. Armando Silva Carvalho, 1998. Obra Poética (1965-1995). Porto: Afrontamento, 232 e ss. 18 Arthur Rimbaud, 1995. Iluminaciones. Seguidas de Cartas del vidente. Ed. bilingüe. Trad. Juan Abeleira. Madrid: Hiperión, 32. 19 Eduardo Prado Coelho, 1983. Vinte Anos de Cinema Português. 1962-1982. Lisboa: ICALP. Num fulgurante comentário sobre Bom Povo Português (1981), de Rui Simões, Eduardo do Prado Coelho propõe-nos uma síntese dos termos principais a ter em conta para pensar a complexa problemática aqui implicada: “Mas talvez a própria ‘teoria’ política que sustenta o trabalho de Rui Simões o impeça de um esforço analítico — de que tivemos um extraordinário exemplo, em relação ao Chile, no filme La Spirale de Armand Mattelart. Porque, para Rui Simões, na medida em que ‘a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores’, sempre que um mínimo de esquema organizativo se começa a esboçar, abrindo uma distância entre representantes e representados, logo essa distância torna impróprios os representantes e faz dos representados uma instância traída. As consequências estão à vista. Por um lado, colocando-se numa posição em que qualquer relação com o poder é necessariamente negativa, Rui Simões impossibilita-nos qualquer compreensão dos mecanismos especificamente políticos.” (135). Do meu ponto de vista, a cinematografia de Que Farei Eu com esta Espada? contorna os empecilhos da subsunção às determinações de uma ‘teoria política’. 20 Fausto Cruchinho, 2007. “Que Farei Eu com esta Espada?, de João César Monteiro”. In Carolin Overhoff Ferreira, coord. O cinema português através dos seus filmes. Porto: Campo das Letras, 136. 21 Idem, ibidem. 22 João César Monteiro, 1974. Morituri te salutant. Os que vão morrer saudam-te. Lisboa: &etc, 131. 23 Proponho esta noção de ‘intensificação dos sentidos’ a partir de Luís Mourão, 1996. Um Romance de Impoder. A Paragem da História na Ficção Portuguesa Contemporânea. Braga/Coimbra: Angelus Novus, 1996: “[A] resistência à história, porém, não significa imobilismo, apenas a tensão insanável entre o calculismo de sobreviver e o incalculável de existir. Não é uma tensão que imediatamente se espelhe em luta de classes ou confrontos sociais mais alargados – embora essa hipótese não seja de excluir –, mas que primeiro que tudo atravessa o ser humano revelando-lhe o seu dilaceramento, a sua inconciliável natureza. A história é assim um perpetuum mobile sem horizonte teleológico, um vasto campo de coexistência dinâmica de todos os sentidos. As convulsões revolucionárias aceleram não o tempo mas a velocidade de deslocação dos

 

 

    sentidos, as suas imprevisíveis metamorfoses, não raras vezes a estranha reversibilidade em espiral do mesmo e do outro.” (112-113). A minha proposta de leitura comuta, e pretende pôr à prova, a figura da ‘velocidade’ pela figura da ‘intensidade’. A dimensão crítica de uma sociedade em transe, de um processo revolucionário, estriba na ‘intensificação’ sensorial. Em Que Farei Eu com esta Espada?, enquanto objecto estético, enquanto re-presentação, temos um exemplo desta dimensão estética da revolução. Por outro lado, é também exemplar de uma teoria dos ‘sujeitos refractários’. 24 Título de um conhecido livro póstumo de Ernesto de Sousa, 1998. Ser Moderno em Portugal. Orgs. José M. Miranda Justo e Isabel Alves. Posfácio José M. Miranda Justo. Lisboa: Assírio & Alvim. 25 José Joaquim de Cesário Verde, 1988. Obra Completa. Org. Joel Serrão. Lisboa: Livros Horizonte, 184. 26 João César Monteiro, numa entrevista concedida a Alexandra Carita e publicada n’A Capital (29.01.1998), assevera: “Eu não acredito na chamada democracia. Acho que é uma coisa completamente esvaziada de sentido, mas acho engraçado que se viva em regimes democráticos, porque isso é um jogo puramente formal de aparências, com aspectos cénicos curiosos” (reproduzido em AA. VV., 2005. João César Monteiro. Lisboa: Cinemateca Portuguesa/Museu do Cinema, 380). Vinte anos após o transe revolucionário, o cineasta multiplica os depoimentos de signo desencantado. Em 1992, numa entrevista mais extensa concedida a Rodrigues da Silva por ocasião da ante-estreia de O Último Mergulho, afirma: “Eu não pensei nunca que o 25 de Abril ia descambar no neomarcelismo, que é esta coisa, este cavaquismo enquistado na sociedade portuguesa. Mas isto são belos sonhos revolucionários, como de resto o texto do Hölderlin, que é um texto utopista, ainda impregnado dos ideais da Revolução Francesa. Uma utopia que se esboroou na nova Alemanha pré-bismarquiana” (idem, ibidem, 358). Estas declarações foram publicadas no Jornal de Letras (22.09.1992).

BIBLIOGRAFIA AA.

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