Farinheiras do Brasil: Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca FARINHEIRAS DO BRASIL

June 6, 2017 | Autor: Rosilene Komarcheski | Categoria: Desenvolvimento territorial, Casas de farinha, Farinha de mandioca
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Descrição do Produto

Valdir Frigo Denardin | Rosilene Komarcheski (Organizadores)

FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

MATINHOS/PR ufpr litoral 2015

Valdir Frigo Denardin | Rosilene Komarcheski (Organizadores) FARINHEIRAS DO BRASIL: TRADIÇÃO, CULTURA E PERSPECTIVAS DA PRODUÇÃO FAMILIAR DE FARINHA DE MANDIOCA

CATALOGAÇÃO NA FONTE F226

Farinheiras do Brasil: tradição, cultura e perspectivas da produção familiar de farinha de mandioca / Organizadores: Valdir Frigo Denardin; Rosilene Komarcheski. - Matinhos: UFPR Litoral, 2015. 297 p.



ISBN 978-85-63839-23-7

1. Farinheiras - Brasil. 2. Farinha de mandioca - produção. I. Denardin, Valdir Frigo. II Komarcheski, Rosilene. CDD 664.72272 Maikon Patrick Garcia, CRB 9/1681

Revisão técnica: por pares Revisão do texto: dos autores Revisão final: dos organizadores Projeto gráfico e editoração: William Leal Capa: William Leal

Universidade Federal do Paraná Setor Litoral R. JagUariaíva 512 | Caiobá CEP 83260-000 | Matinhos/PR | Brasil

SUMÁRIO

Apresentação 07

Parte I - HISTÓRIA, TRADIÇÃO E CULTURA

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Capítulo 1 13 Viver e sobreviver da farinha de mandioca no Litoral do Paraná no século XIX José Augusto Leandro

Capítulo 2 37 Os engenhos de farinha em Florianópolis: apontamentos para uma história plural Adriane Schroeder Lins Leiroza

Capítulo 3 59 Casas de farinha: cenários de (con)vivências, saberes e práticas educativas

Cirlene do Socorro Silva da Silva, Maria das Graças da Silva

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Parte II - REPRODUÇÃO SOCIOECONÔMICA

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Capítulo 4 83 Homens, mulheres e artefatos na produção da farinha de mandioca no Alto Rio Juruá - Acre Lucia Hussak van Velthem

Capítulo 5 109 Mulheres e patriarcado: relações de dependência e submissão nas casas de farinha do Agreste Alagoano

Milka Alves Correia Barbosa, Fátima Regina Ney Matos, Ana Paula Ferreira dos Santos, Ana Márcia Batista Almeida

Capítulo 6 129 A Organização dos assentados da reforma agrária para o processamento da mandioca: o caso de Capão do Cipó - RS Vilson Flores dos Santos, Paulo Roberto Cardoso da Silveira, Ana Cecília Guedes

Capítulo 7 147 Produção de farinha de mandioca e de farinha de tapioca no estado do Pará como oportunidades de negócios para empreendedores e agricultores na Amazônia

Moisés de Souza Modesto Junior, Raimundo Nonato Brabo Alves

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Parte III - IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE

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Capítulo 8 175 A multitransterritorialidade dos territórios camponeses da farinha no Vale do Juruá - Acre

Cleilton Sampaio de Farias, César Gomes de Freitas, Edna Maria S. Cabral, Cintia Raquel da C. Ferreira, Paulo Cesar C. Lima, Maria Raquel O. Pinho, Phamella M. Souza, Camila Félix

Capítulo 9 197 Farinheiras no Litoral do Paraná: uma análise a partir da noção de sistema agroalimentar localizado SIAL Farinheiras

Valdir Frigo Denardin, Mayra Taiza Sulzbach, Rosilene Komarcheski

Capítulo 10 219 A “feitura da farinha”: notas etnográficas de uma farinhada no Alto Sertão da Bahia Andrea Lima Duarte Coutinho

Parte IV - RELAÇÕES ENTRE SOCIEDADE E NATUREZA

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Capítulo 11 245 Fornos quentes, terra vestida Natalia Ribas Guerrero

Capítulo 12 273 A produção de farinha de mandioca em Guaraqueçaba - PR: entre sustentabilidade, interações e conflitos socioambientais Rosilene Komarcheski, Valdir Frigo Denardin

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APRESENTAÇÃO

A ideia de organizar um conjunto de trabalhos sobre o tema “farinheiras do Brasil” surge, por parte dos organizadores, em decorrência de um conjunto de atividade de pesquisa-ação realizadas junto às farinheiras do Litoral do Paraná. Em 2008 iniciou-se um diagnóstico para mapear farinheiras nos sete municípios que compõem o Litoral paranaense (Antonina, Guaratuba, Guaraqueçaba, Matinhos, Morretes, Paranaguá e Pontal do Paraná), motivados pelos relatos da importância socioeconômica e cultural da atividade produtiva na Região. No inicio, coletou-se informações referentes ao número de farinheiras, equipamentos utilizados, organização da produção, potencialidades e dificuldades etc. Ao longo dos anos, num processo de aproximação extensionista com as farinheiras comunitárias, foi possível conhecer a realidade das famílias produtoras de farinha e, consequentemente, ampliar os conhecimentos sobre a atividade produtiva. Ao final de quase seis anos de pesquisa-ação com as farinheiras do Litoral do Paraná, se observa que “as farinheiras” experimentam um momento de inflexão em sua história; o futuro da atividade é incerto e teme-se pela perda desta prática produtiva e cultural. Com a coletânea Farinheiras do Brasil: tradição, cultura e perspectiva da produção familiar de farinha mandioca se reúne um conjunto de saberes científicos produzidos em diferentes estados brasileiros (RS, PR, SC, BA, AL, MA, PA, AC), evidenciando a riqueza

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de elementos sociais, ambientais, econômicos, culturais e territoriais inerentes a atividade familiar de farinhar. O conjunto de textos desta coletânea deve possibilitar aos leitores um contato com um tema carregado de histórias e de saberes fazer, inerentes à cultura brasileira. No seu bojo, apresenta um conjunto de expressões que estão presentes nos convívios sociais e nas práticas produtivas de quem sabe farinhar, que possibilitariam elaborar um dicionário; “dicionário da farinha”. A presente coletânea não tem este propósito, mas possibilitará ao leitor o acesso a uma diversidade de expressões e saberes que estão além dos dicionários tradicionais. A primeira parte da coletânea História, tradição e cultura é composta por três contribuições. O texto Viver e sobreviver da farinha de mandioca no Litoral do Paraná no século XIX, de José Augusto Leandro, menciona que o ambiente rural no Litoral do Paraná, na segunda metade do Século XIX, foi marcado pela intensa transformação da mandioca em farinha. Salienta que ao redor da raiz da terra emergiu uma notável cultura material destinada à transformação do vegetal em massa, em farelo e em pó. O segundo texto, de Adriane Schroeder Lins Leiroza, Os engenhos de farinha em Florianópolis: apontamentos para uma história plural aborda a questão da patrimonialização do modo de fazer farinha de mandioca polvilhada e relata que no engenho se constroem relações e interações entre o trabalho e o lúdico expressas em brincadeiras e canções durante a produção da farinha; “a farinhada”. Apresenta o engenho como um assentamento de colonos luso-açorianos que têm sua cultura, num primeiro momento, confrontada com a do europeu e, em períodos mais recentes, cria sua identidade, o homem do litoral com sua farinha de mandioca. Finalizando as contribuições da primeira parte, o texto Casas de farinha: cenários de (con)vivências, saberes e práticas educativas, de Cirlene do Socorro Silva da Silva e Maria das Graças da Silva, relata o contexto socioeducativo e cultural das casas de farinhas em suas dinâmicas de produção e convivência em um município do estado do Pará. Neste, a produção da farinha e as relações de convivência são descritas como um processo de construção e socialização de saberes e

práticas educativas desenvolvidas no espaço das casas de farinha. A segunda parte da coletânea, Reprodução socioeconômica, contempla quatro contribuições que se complementam ao descreverem a importância da farinha na vida dos brasileiros. O texto Homens, mulheres e artefatos na produção da farinha de mandioca no Alto Rio Juruá – Acre, de Lucia Hussak van Velthem, descreve o processo da farinhada desde a chegada da mandioca na casa de farinha até a obtenção do produto final, relatando a percepção dos que trabalham na casa de farinha sobre os artefatos utilizados na produção: fornos, prensas, gamelas, entre outros. Na sequência, o texto Mulheres e patriarcado: relações de dependência e submissão nas casas de farinha do agreste alagoano, de Milka Alves Correia Barbosa, Fátima Regina Ney Matos, Ana Paula Ferreira dos Santos e Ana Márcia Batista Almeida, objetiva analisar os aspectos do trabalho das mulheres nas casas de farinha do Agreste Alagoano que, segundo as autoras, reproduzem o padrão de dominação do patriarcado tradicional brasileiro, apresentando a divisão sexual do trabalho na rotina das casas de farinha. O texto A organização dos assentados da reforma agrária para o processamento da mandioca: o caso de Capão do Cipó – RS, de Vilson Flores dos Santos, Paulo Roberto Cardoso da Silveira e Ana Cecília Guedes, que dá sequencia as leituras, apresenta as dificuldades inerentes à proposição e efetivação da alternativa de renda com a produção da farinha de mandioca para assentados da reforma agrária. Relata a experiência na elaboração de um projeto de viabilidade de uma agroindústria de farinha, bem como as dificuldades enfrentadas na liberação de recursos e a falta de apoio do poder público local. A segunda parte do livro encera com o texto Produção de farinha de mandioca e de farinha de tapioca no estado do Pará como oportunidades de negócios para empreendedores e agricultores na Amazônia, de Moisés de Souza Modesto Junior e Raimundo Nonato Brabo Alves. Neste, os autores se propõem a apresentar uma analise de rentabilidade de duas pequenas farinheiras de propriedade individual que produzem farinha de mesa e farinha de tapioca. Para tal, apresentam os fluxogramas de produção, as receitas operacionais, o ponto de equilíbrio, a margem de contribuição,

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a lucratividade e a taxa de retorno dos empreendimentos pesquisados. A terceira parte da coletânea, Identidade e territorialidade, inicia com o texto A multitransterritorialidade dos territórios camponeses da farinha no Vale do Juruá – Acre, de Cleilton Sampaio de Farias et al. no qual os autores demonstram que o cultivo da mandioca, a produção da farinha e de outros derivados são centrais nos aspectos econômicos, sociais e culturais para as famílias de dois municípios do Acre. O texto de Valdir Frigo Denardin, Mayra Taiza Sulzbach e Rosilene Komarcheski, intitulado Farinheiras no Litoral do Paraná: uma análise a partir da noção de Sistema Agroalimentar Localizado - SIAL Farinheiras apresenta e caracteriza a atividade produtiva de “fazer farinha”, a partir das dimensões histórica, técnico-teórica e institucional; categorias de análise de um Sistema Agroalimentar Localizado. Tal metodologia permite eleger recursos e ativos tangíveis e intangíveis do território, necessários para pensar o desenvolvimento local, no caso específico das farinheiras no Litoral do Paraná. A terceira parte encerra-se com o texto A “feitura da farinha”: notas etnográficas de uma farinhada no Alto Sertão da Bahia, de Andrea Lima Duarte Coutinho. A autora descreve as relações de trabalho no plantio da mandioca, na roça, e na produção da farinha em uma comunidade camponesa no Alto Sertão da Bahia, desvelando nas relações de trabalho a divisão social por gênero e geração, como também as noções de autonomia alimentar e identidade social próprias do grupo pesquisado. A quarta e última parte da coletânea, Relações entre sociedade e natureza, inicia com o texto Fornos quentes, terra vestida, de Natalia Ribas Guerrero, através do qual a autora apresenta a produção de farinha realizada numa Reserva Extrativista (Resex) no estado do Maranhão como o fio condutor para uma reflexão acerca das distintas dinâmicas de ocupação territorial de grupos que nela se encontram. A população local, através de um processo de resistência e luta frente a ameaça de expropriação, reivindica o reconhecimento de um território quilombola, cuja a solução para o conflito fundiário veio na forma de uma reserva extrativista. O texto de Rosilene Komarcheski e Valdir Frigo Denardin

A produção de farinha de mandioca em Guaraqueçaba – PR: entre sustentabilidade, interações e conflitos socioambientais finaliza a presente coletânea, promovendo uma reflexão acerca do contexto socioambiental que envolve a produção de farinha de mandioca em duas comunidades do município de Guaraqueçaba – PR, a partir de uma caracterização dos elementos socioculturais, econômicos e ambientais da produção de farinha. Os autores apresentam situações de interações e de conflitos socioambientais que levam a questionamentos sobre perspectivas de desenvolvimento sustentável para as comunidades. Os organizadores agradecem o apoio e a confiança depositados pelos autores dos textos neste projeto. Boa Leitura! Os organizadores.

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Parte I HISTÓRIA, TRADIÇÃO E CULTURA

CAPÍTULO 1 VIVER E SOBREVIVER DA FARINHA DE MANDIOCA NO LITORAL DO PARANÁ NO SÉCULO XIX

José Augusto Leandro 1

Introdução Este artigo debruça-se sobre o território abrangido pela comarca de Paranaguá no período da segunda metade do século XIX. Vasta e diversificada em suas paisagens, a comarca, na época aqui estudada, possuía domínio jurídico e administrativo sobre populações que viviam na cidade de Paranaguá, na vila de Guaratuba (ao Sul) e na freguesia de Guaraqueçaba (ao Norte); nesse domínio também estavam incluídas as ‘almas’ que habitavam em algumas ilhas e as que residiam em inúmeros quarteirões esparramados pelo interior da Floresta Atlântica. O texto que segue demonstra que o ambiente rural da região estudada foi, no século XIX, marcado pela intensa conversão da mandioca em farinha.2 Ao redor da raiz da terra emergiu, no litoral do Paraná, uma notável cultura material destinada à transformação do vegetal em massa, 1 Doutor em História Cultural, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR. Email: [email protected] 2 Algumas passagens deste texto já foram publicadas pela Revista Brasileira de História, no artigo “A roda, a prensa, o forno, o tacho: cultura material e farinha de mandioca no litoral do Paraná” (LEANDRO, 2007).

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em farelo e em pó.3 É necessário, já de saída, que esquemas explicativos generalizantes sobre o padrão alimentar brasileiro sejam afastados, como o de Josué de Castro (1937, p. 148), por exemplo, que dividiu o país em cinco zonas “correspondendo cada uma delas a um tipo de alimentação usual, e característico”. Para a zona que abarca a Região Sul, o espaço litorâneo parece ter sido ignorado, de acordo com a explanação do médico pernambucano, pois as ‘substâncias alimentares’ principais mencionadas não incluíram a farinha de mandioca. Seriam compostas por leite, carne, pão (de trigo), arroz, batata inglesa, manteiga, açúcar, verduras, frutas e café.4 A região do litoral do Paraná também ficou obliterada diante da sugestão, pelo historiador Stuart Schwartz, de divisão do Brasil colonial em duas grandes zonas referentes à produção de alimentos.5 Segundo ele, para o período seria possível identificar “a zona rural da mandioca e a zona rural do milho, já que esses eram os dois principais alimentos que serviam de base para a dieta na maioria dos lugares”. Ao norte e nordeste corresponderia a mandioca e a farinha dela extraída e, para as “regiões agrícolas mistas de São Paulo para o sul”, o milho e o trigo seriam as culturas prediletas. (SCHWARTZ, 2001, p. 126-127). Cecília Westphalen, por sua vez, percebeu que a fabricação da farinha

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3 Seguindo os ensinamentos de Fernand Braudel (1995, p.92), tudo indica que ao lado do trigo (Ocidente e partes do mundo oriental), do arroz (Oriente) e do milho (América), a mandioca também possa ser entendida como uma planta de civilização, ‘dominante’ para o Brasil, pois a partir dela “alimentos majoritários” foram gerados, organizando “a vida material e por vezes a vida psíquica dos homens com grande profundidade, a ponto de se tornarem estruturas quase irreversíveis”. 4 Obviamente Josué de Castro não estava se referindo ao Brasil do século XIX, e seu modelo explicativo não está necessariamente ‘incorreto’; o que vale reforçar aqui é o fato de que as especificidades do sul litorâneo parecem muitas vezes ‘desaparecer’ em esquemas generalizantes da história econômica, social e cultural do país. Se uma pesquisa específica sobre padrões alimentares fosse realizada na década de 1930 no litoral do Paraná, certamente a farinha ali despontaria como integrante do cardápio das substâncias principais. Muitas localidades litorâneas não se encaixam nos modelos comumente aceitos para o entendimento do desenvolvimento histórico da Região Sul do Brasil: o modelo das estâncias de gado-peonagem ou o modelo da pequena propriedade imigrante geradora de excedentes de produtos alimentares comercializáveis. 5 Toma-se a liberdade de chamar de Paraná, para o período colonial, o território que era Capitania de São Paulo, e posteriormente denominado de Quinta Comarca da Província de São Paulo. A Província do Paraná foi criada no final de 1853.

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de mandioca na região litorânea paranaense durante o período colonial constituiu atividade de relevo. Segundo ela, “a historiografia tradicional paranaense, como de resto a historiografia brasileira, tem enfatizado o achamento de ouro de Paranaguá, no século XVII, para depois, de um salto, referir-se ao ciclo da erva-mate, já no século XIX”. A pesquisadora lembra, no entanto, que, se de algum modo sobreveio decadência após o fracasso das atividades de mineração na região, esquecem-se os historiadores de registrar um importante interciclo colonial, baseado no comércio exportador da farinha de mandioca. Ele manteve, “desde o final do século XVII, e por todo o XVIII, o incipiente comércio externo de Paranaguá”. (WESTPHALEN, 1976, p. 73). Esta característica econômica moldada ao longo do período a que se refere a historiadora permaneceu presente por todo o século XIX na região, apesar de a farinha já não estar mais tão fortemente voltada para o abastecimento externo à província. Para além do melhor entendimento da circulação do produto no Paraná dos oitocentos – tema que aguarda reflexões mais encorpadas de historiadores –, o objetivo deste artigo é modesto: demonstrar que a cultura da farinha de mandioca esteve profundamente arraigada na vida da família rural do litoral do Paraná na segunda metade do século XIX, moldando, em muitos aspectos, o seu cotidiano. No dia a dia das gentes que viveram ao redor do ‘grande mar redondo’6, utensílios como a roda, a prensa, o forno e o tacho eram tão comuns quanto imprescindíveis à sobrevivência dos grupos familiares. Tais utensílios expressam uma parcela da história da cultura material litorânea e conduzem os pesquisadores a um melhor entendimento sobre “as condições de trabalho, as condições de vida ou a margem entre as necessidades e sua satisfação”. (PESEZ, 2001, p. 210211). A principal base empírica deste artigo foi composta por documentos jurídicos da esfera cível do período compreendido entre 1849 a 1887. Inventários post-mortem constituem um excelente material para 6 Grande mar redondo é o significado da palavra indígena Pernagoá. A baía de Paranaguá engloba outras baías menores: baía de Guaraqueçaba, baía das Laranjeiras, baía de Pinheiros, baía de Serra Negra. Vale lembrar que a comarca de Paranaguá, no período analisado, também englobava os habitantes que se estabeleceram ao redor da baía de Guaratuba, situada ao sul.

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investigações históricas, pois possibilitam aos pesquisadores captar uma série de aspectos que compõem as facetas materiais de uma determinada sociedade. Outros documentos jurídicos, de outras alçadas, também foram utilizados. Eles reforçam que a fisionomia da vida cotidiana no ambiente rural, naquela época, era desenhada, sobretudo, a partir das lidas ao redor da raiz da terra. Do cultivo da mandioca e dos ‘bens que o uso reclama’ Com relação ao cultivo da mandioca no Brasil, vários autores ressaltam que a raiz da terra era facilmente adaptável a quase todo tipo de solo, porém era plantada com mais frequência em solo arenoso, comum nas regiões litorâneas brasileiras. Em Santa Catarina, província do sul do país que mais produzia o produto no século XIX, Laura Hübener assim descreve o cultivo da mandioca: Para o trato da terra utilizavam o sistema de coivara ou queimada, para logo após revolvê-la com o auxílio da enxada. Sem a aplicação de qualquer outro tipo de adubo, a terra era, em geral, preparada entre os meses de maio e julho, reservando agosto para o início do plantio. Da colheita do ano anterior eram retiradas e guardadas mudas que deveriam medir cerca de 30 a 50 cm de comprimento e plantadas isoladamente. O cultivo da mandioca era relativamente fácil, pois exigia mínimos cuidados; raramente era acometida de doenças e pragas. Sua colheita era efetuada após um período de dois anos e geralmente no mês de abril. (HÜBENER, 1981, p. 78).

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De maneira geral, não havia muitas variações regionais nas técnicas de plantio da mandioca em diversas partes do Brasil no século XIX. Os lavradores faziam diversas covas no terreno e, em cada uma delas, enterrava-se “uma ‘rama’ (denominação que se dá à haste da mandioca) que [devia] ficar inclusa no solo uns 10 cm, de maneira levemente inclinada”. (COSTA, 1995, p. 27). Obviamente, o número de covas para o plantio da mandioca dependia das dimensões do terreno. Na comarca de Paranaguá, durante os oitocentos, as propriedades não podem ser classificadas como do tipo

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plantation. Dados acerca do tamanho das propriedades na segunda metade do século XIX, a partir dos inventários post-mortem, não diferem dos dados extraídos do registro de terras em pesquisa efetuada por Baracho. Afirma a autora que a estrutura fundiária de Paranaguá, nesse período, era formada basicamente por imóveis que podiam ser considerados de pequeno porte. No período 1854-1857, revela, “a maioria deles não atingia 500 braças e no período 1893-96, as áreas eram, em geral, inferiores a 60 hectares”. Segundo sua amostragem de 184 imóveis para o período 18541857, 84,78% possuíam medidas inferiores a 400 braças. Ainda segundo a pesquisadora, as propriedades mais comuns registradas – “sítios” – eram, em sua grande maioria, compostas de unidades entre menos de 50 até 200 braças. (BARACHO, 1995, p. 85 e 91). Entretanto, existiam algumas poucas exceções. Vale aqui destacar duas propriedades – a Fazenda Boa Vista e a Fazenda das Palmeiras – porque elas exemplarmente fazem o papel de contraponto para a pouca riqueza existente no ambiente rural da comarca daquela época; e porque no interior de uma dessas propriedades (que pertenceram ao último capitão-mor de Paranaguá, e cuja esposa foi inventariada em 1855) o ambiente físico de trabalho na produção de farinha de mandioca e a moradia dos escravos confundiam-se. A Fazenda Boa Vista, em Guaraqueçaba, possuía a extensão de 3 mil braças de terra (a maior em toda a documentação analisada). Principiava no lugar denominado “Ponta Calva”, corria o rio Tagaçaba e findava no rio denominado Borrachudo, “onde havia uma marca”. No inventário, anotou-se ainda que nela estavam “contidos os seus fundos, águas vertentes e cultivados”. Valia 7 contos e 500 mil réis. A Fazenda das Palmeiras, também localizada em Guaraqueçaba, com 2.500 braças de frente, possuía “uma capela com seus ornamentos” e uma casa de morada térrea avaliada em 5 contos de réis. Principiava no Rio Pirassununguinha, corria rio acima até o rio das Canoas, e seus fundos alcançavam a montanha denominada “Tromomô”. Valia, sem os seus pertences, 15 contos de réis. Na descrição pelo avaliador da Fazenda Boa Vista foi registrado algo

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bastante incomum nos inventários da comarca – senzalas. Foram arroladas duas, da seguinte forma: a primeira foi apresentada como “uma casa térrea coberta de telha com paredes de pedra e cal que serve de senzala e fábrica de farinha, tendo 72 palmos de frente e 77 de fundos”; a segunda foi descrita como “três casas pequenas unidas cobertas de telha sobre baldrame de pedra e cal com 6 portas e serve de senzala com 80 palmos de frente e 35 de fundos”. A senzala conjugada à fábrica de farinha foi avaliada em 1 conto de réis, e as outras três casinhas em 400 mil réis. As duas senzalas acomodavam um total de 11 escravos roceiros.7

A civilização da mandioca que se constituiu no litoral do Paraná tinha a seu favor a facilidade dos lavradores em desenvolver a cultura levando-se em conta o tipo de solo litorâneo, chamado pelo cronista oitocentista Vieira dos Santos de “areento”. A mandioca encontrava-se em todos os cantos das baías de Paranaguá e Guaratuba, mas, segundo ele, as plantações que prosperavam “otimamente” ficavam em terras “situadas desde o rumo de Leste a Sul; ou desde as Ilhas do Mel, Raza e Cotinga e em toda a costeira desde a Barra do Sul e Rios de Gurguassu, Correias, Macieis, Almeidas, Taguaré, até o Emboguassu, e inclusivamente até o Rio das Pedras”. (SANTOS, 1950, v. 1, p. 89). Barickman (1998, p. 167), ao estudar aspectos socioeconômicos do Recôncavo Baiano entre 1780 e 1860, destaca que um dos fatores que explica a popularidade da cultura da mandioca naquela região devia-se ao fato de ela não estar vinculada necessariamente a alguma sazonalidade, como ocorre com outras culturas, embora os meses de março e abril fossem os melhores períodos para se plantar. Julius Platzman, alemão que residiu na Ilha dos Pinheiros, na região de Guaraqueçaba, entre 1858 a 1864, anotou que as plantações de mandioca se renovavam usando os seus próprios ramos: De roças do ano anterior são arrancados ramos que ainda permanecem nos canteiros, juntados, amarrados em feixes e carregados para os novos canteiros, Estes ramos, com a grossura

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7 1855. Sem capa. Inventário de Dona Leocadia Antonia Pereira da Costa. Museu da Justiça, Curitiba. Na Fazenda das Palmeiras havia 27 escravos. O inventário post-mortem da esposa de Manoel Antonio Pereira indicou o espetacular (para os padrões litorâneos paranaenses daquela época) monte-mor bruto de 237 contos, 884 mil e 155 réis.

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de mais ou menos um dedo e vários pés de comprimento, aforquilhados, parecem ser muito nodosos, ainda mais ao tato; são cortados em pedaços com cerca de quatro polegadas chamados Piques. Lançados num cesto, são carregados ao longo dos canteiros onde são metidos, inclinadamente no centro das Covas com os nós e olhos para cima. (PLATZMANN, 2010, p. 177).

Uma vez assentada em terreno propício, a cultura da mandioca não demandava grandes cuidados, era relativamente de fácil trato. Hebe Castro (1987, p. 84) informa que “apesar de não se constituir em uma cultura permanente, possui a característica de poder ficar até dois anos sem ser colhida após o seu amadurecimento, podendo, portanto, ser literalmente armazenada na própria terra, colhida em função das necessidades do produtor”. Se o cultivo da mandioca não era lá tão complicado, a preparação da farinha, por seu turno, era circundada por uma complexidade de afazeres. Eliminar o ácido venenoso da mandioca para transformá-la em farinha bruta envolvia várias tarefas. Nos escritos de Julius Platzmann, publicados na Alemanha em 1872, ele resumiu as etapas destacando primeiramente a atividade de ralar, pela roda: “as raízes tinham sido trazidas lavadas e limpas com uma faca [...] Enquanto o homem se ocupa na manivela, a mulher monta no seu ‘cavalo’ diante da roda, aproximando as raízes brancas à voraz periferia da roda que, à velocidade de um raio, lança massa das raízes para baixo e para fora”; na sequência, a atividade de prensar/socar, que extraía boa parte do veneno da raiz, chamado ‘mantiqueira’: “aos habitantes da casa, não faltam repetidos exercícios ginásticos mediante a movimentação do eixo de acionamento da Prensa...” (PLATZMANN, 2010 p. 181 a 184). Por fim, mais duas atividades, peneirar e torrar, foram anotadas pelo viajante alemão: A massa, ainda venenosa [...] é retirada e passada por uma Peneira de Taquarubu trançada com muita precisão e extraordinariamente fina. O material peneirado, liberto dos fiapos maiores, a massa, a Massa coada, imediatamente é levada pela esposa do dono da

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casa ou por suas filhas – tão logo o comprimento de seus braços o permita – até a panela de cobre e, com o auxílio da Apá – uma pequena pá – é mexida continuamente para evitar que se queime. [...]. O veneno desaparece e – nosso pão diário – a Farinha quando pronta, jogada para o alto deve estar bem pulverizada. (PLATZMANN, 2010, p. 186).

Alguns autores apontam que o trabalho de fabricação da farinha, na maior parte do Brasil, era feito no inverno. Tal período era, por excelência, a época de se farinhar, ou seja, de se produzir a farinha de mandioca. (COSTA, 1995, p. 27). A forma de se produzir a farinha, diferentemente do cultivo da mandioca, comportava mais variações regionais no Brasil oitocentista, como até hoje. De maneira geral, é possível afirmar que o tipo de produção e a consequente qualidade do produto estavam diretamente ligados aos utensílios disponíveis no interior das unidades produtivas. Ao se acompanhar a narrativa de Platzmann sobre as etapas para o fabrico da farinha de mandioca no litoral do Paraná, percebemse similaridades com as técnicas utilizadas no século XIX em Capivari, na Província do Rio de Janeiro. Naquela região, Hebe Castro identificou três tipos de beneficiamento da mandioca visando à sua transformação em farinha e que produziam farinha d’água ou farinha gorda, farinha d’água de mistura e farinha seca. No primeiro tipo, apenas o forno era requerido, sendo primeiramente a mandioca amolecida em água exposta ao sol, espremida à mão e coada em peneira grossa. No segundo tipo, o forno de cobre e a roda de ralar eram indispensáveis, e a mandioca era “primeiramente ralada e depois misturada com água, espremida à mão e passada em peneira fina, misturando então o que ‘passou’ e o que ficou na peneira, de modo a formar novamente uma só massa, de novo espremida e levada ao forno”. No terceiro tipo, entravam em cena os utensílios mais comuns no preparo da chamada “farinha seca”: “a mandioca raspada é lavada e ralada em um ralador que pode ser movido à mão ou a água, submetida neste estado durante várias horas à ação de uma prensa,

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passada em peneira fina e levada ao forno ou tacho para ser cozida e torrada”. (CASTRO, 1987, p. 86). Inventários post-mortem da comarca de Paranaguá confirmam a popularidade do beneficiamento da mandioca com técnicas que produziam farinha a partir da roda, da prensa, do forno e do tacho. Em 196 documentos pesquisados para o período que compreende os anos de 1849 a 1887, os inventariados que legaram aos seus herdeiros bens do ambiente rural ou bens mistos (que se distribuíam tanto no ambiente urbano como no ambiente rural) totalizaram 96, dos quais 74 eram de proprietários de escravos e 22 não possuíam cativos. Dentre os inventariados que possuíam escravos, em 12 documentos detectou-se a presença da produção da farinha de mandioca articulada com outro tipo de produção (açúcar, aguardente, arroz, madeira, milho, pescado, cal); por sua vez, em 38 inventários foi constatado somente o cultivo da mandioca e a produção de farinha no interior da unidade rural. Dessa feita, tem-se um total de 50 propriedades (quase 70% dos documentos analisados com mão de obra escrava) cujo cotidiano do trabalho relacionava-se direta ou indiretamente à raiz da terra. (APÊNDICE, quadros 1 e 2). Dentre o total de 22 inventários que não possuíam cativos, 11 deles apresentaram a mandioca e a farinha de mandioca como principal referência de produção alimentar no interior da propriedade agrícola. (APÊNDICE, quadro 3). Assim, nas unidades rurais com ou sem mão de obra escrava, os bens mais comuns descritos nos inventários – a roda, a prensa, o forno e o tacho – revelam a existência de uma prevalente cultura material da farinha de mandioca no litoral do Paraná no século XIX. Aqueles que não possuíam tais bens – e certamente muitos lavradores pobres da comarca viviam esta realidade – provavelmente seguiam a receita de um jesuíta que residiu em Paranaguá em meados do século XVIII. Ele sugeriu: Se tiveres tão grande falta de dinheiro, e se for tão precário o orçamento da casa, de modo que sejas incapaz com os gastos,

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mesmo módicos, que exija uma máquina mais simples, pede auxílio ao engenho e desgasta com fricções frequentes tudo o que o teu pobre campinho tiver produzido numa tábua cujo dorso polido se revista de um pequeno ralo, a ele encostado. Coloca, assim, as raspas obtidas em cestos de junco; e (já que a pobreza cruel impede a fabricação de prensa) faze com que um grande peso estique aqueles cestos pendurados sobre uma alta viga. Torrarás a raspa, finalmente seca, revolvendo-a ao fogo, e logo porás na pobre mesa o mantimento com que se aplacará a dura fome. Isso façam os camponeses desprovidos dos bens que o uso reclama. (MELO, 1997, p. 109).

Todos comiam farinha de mandioca, principalmente os livres pobres e os escravos A importância da mandioca e da farinha de mandioca no litoral do Paraná por todo o oitocentos tem paralelos com o que Barickman (1998) identificou para o Recôncavo Baiano no período 1780-1860, a despeito desta região ser identificada também como de plantation, diferente, portanto, da configuração econômica e territorial da comarca de Paranaguá. Em todo caso, as fazendas de mandioca do Recôncavo foram sempre as fisicamente menores se comparadas às fazendas de canade-açúcar e de fumo, e as que utilizavam os menores plantéis de escravos. O que tornava singular a importância da farinha de mandioca naquela região da Bahia, para Barickman, era o fato de o produto representar o principal componente na dieta alimentar dos moradores da região, fossem eles livres ou escravos. Da raiz da terra provinha a principal fonte calórica dos que ali viviam, inclusive da gente simples que vivia em ambientes urbanos. O pesquisador ainda apontou que na época por ele estudada o costume de se fazer pão com farinha de mandioca era mais disseminado do que com farinha de trigo. Platzmann (2010, p. 187) destacou o costume de se fazerem bolos com farinha de mandioca, os beijus. Registrou que as crianças do litoral paranaense eram impacientes diante da espera do assado: “Se o forno não fosse muito alto para seus curtos bracinhos, há muito teriam tirado um

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Beiju das mãos da mãe”. Exemplo do alto consumo da farinha de mandioca na comarca de Paranaguá pode ser captado quando da construção de uma embarcação. A “conta de mantimentos para a gente que se tem empregado no Brigue Cascudo desde o seu princípio até o dia 9 de outubro de 1846”, apresentada por Jozé Francisco Barrozo, um dos responsáveis pela construção da embarcação, permite verificar alguns aspectos do consumo de alimentos pelos trabalhadores.8 O documento listou um total de 41 indivíduos livres e 33 escravos que atuaram na construção do referido brigue. Os cativos, porém, trabalharam apenas puxando madeiras do mato e somente em alguns dias santos. Ao se calcular o consumo de alimentos pelos 41 homens livres, em uma média de 130 dias de trabalho, percebese que o consumo de carne, 70,5 arrobas, foi excepcionalmente alto. Respondeu por 56,5% das despesas alimentares da conta apresentada. Tal fato certamente pode ser considerado incomum na comarca. Por sua vez, esses mesmos trabalhadores consumiram um total de 59 alqueires e meio de farinha de mandioca que foram responsáveis por quase 20% das despesas alimentares da conta apresentada. Os outros itens presentes no cardápio dos trabalhadores do brigue Cascudo eram o feijão, o arroz, o toucinho, o charque, a tainha, o sal e o vinho. Representavam, no montante das despesas alimentares, respectivamente 6,6%, 2,9%, 9,4%, 1%, 2,9%, 0,3% e 0,4%. Dois anos após a feitura da conta do Cascudo, a farinha de mandioca também foi registrada em documento sobre uma embarcação. Nesse caso, porém, de uma barca ligada ao infame comércio que singrava as turvas águas da baía de Paranaguá. Antonio Pedro d’Alencastro, inspetor do porto, em ofício enviado ao Inspetor da Tesouraria Geral da Província de São Paulo, anexou cópia àquela autoridade do manifesto da carga da barca norte-americana Luiza, datado de 30 de outubro de 1848 e assinado pelo capitão Carl Pranch. A embarcação conduzia para Bombaim pelo 8 1847. Juizo de Orfaos da Cidade de Paranaguá e seu Termo. Autuação de huma petição em que he supplicante Joze Francisco Barrozo morador desta cidade e Supplicados os herdeiros do finado José de Souza Guimarães. Museu da Justiça, Curitiba.

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rio da Prata e Zanzibar “254 sacos com 508 alqueires de arroz pilado; 146 sacos com 292 alqueires de feijão; 50 sacos com 100 alqueires de farinha; 20.700 achas de lenha; 09 barricas com roscas e bolachas; 55 barris com 03 pipas de aguardente; 05 peças de baeta; 15 clavinas e sabres; 100 cascos com aguada para lastro, e mais batatas e charque, além de obras de folha e um alambique”. Para o inspetor do porto era evidente que se tratava de um navio negreiro, pois o carregamento do Luiza era parecido com o das embarcações utilizadas na travessia atlântica. Carregamento este que abastecia a tripulação e os cativos, e que também era mercadejado com traficantes na costa africana.9 Quando da construção do brigue Cascudo, em 1847, o valor do alqueire de farinha de mandioca era de 1 mil e 200 réis. Em 1872, o alqueire custava em média 5 mil réis. (SANTOS, 1995, p. 130). Em tempos de encarecimento do produto, muito provavelmente a população litorânea paranaense comportava-se da mesma maneira que os habitantes do Recôncavo Baiano. Nesta região nordestina, quando o preço aumentava, muitos “não tinham escolha; tinham de pagar. Podiam comprar menos carne; podiam se endividar; mas comprar menos farinha era a última opção possível. E, nesses casos, isso significava fome”. (BARICKMAN, 1998, p. 53). Viver e sobreviver da farinha de mandioca Pequenos fragmentos de histórias de sujeitos que viveram no litoral do Paraná no século XIX possibilitam visualizar a civilização da farinha de mandioca como algo de ‘carne e osso’; e, para além da ‘retórica da curiosidade’, esses fragmentos apresentam o “interesse de reintroduzir o homem na história, por intermédio da vivência material”. (PESEZ, 2001, p. 210-211). A lavradora Anna do Carmo, moradora do quarteirão do rio Retiro, em Paranaguá, viveu muitos anos como se casada fosse com José Pereira e com ele teve, ao longo do relacionamento, sete filhos. Em narrativa

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9 Ofícios. Antonio Pedro d’Alencastro para o Inspetor da Tesouraria Geral da Província de São Paulo. Paranaguá, 1848. Arquivo do Estado de São Paulo.

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de seu representante legal ao Juiz de Órfãos, em 1859, foi registrado que Anna e José com o “fruto do comum trabalho adquiriram meios para a compra de uma fábrica de fazer farinha, quatro canoas pequenas, um tacho de cobre e mais objetos grosseiros próprios à serventia doméstica”; que a família plantou “quatro roças de mandioca”; e que o casal construiu “uma casa de palha aonde se abrigavam”. Entretanto, logo após a morte do companheiro, Anna precisou recorrer à Justiça porque sua sogra Joaquina passou a “assenhorear-se” de diversos bens de sua propriedade, “começando por um tacho”.10 Assenhorear-se das terras de outrem também levava os personagens do período à Justiça. Em 1872, João Antonio Ricardino Pedroso queixou-se de seu cunhado Ireno Gonçalves dos Santos, pois não conseguia “conciliar” com este último, que “estava lavrando em seus terrenos”, com fundos para o rio Itiberê, próximo à cidade de Paranaguá. Nesse caso, João afirmou que Ireno fez o roçado “sem sua autorização”. Para melhor garantir o bom desfecho de sua queixa, João de imediato anexou no processo o “primeiro traslado de escritura pública de um sítio com casa coberta de telha e fábrica de fazer farinha e árvores frutíferas com duzentas e trinta e duas e meia braças de terra no lugar denominado Ribeirão”.11 Conflito em virtude de disputa por instrumentos necessários ao fabrico da farinha de mandioca também desuniu – pelo menos durante o ano de 1888 – dois irmãos que moravam no Tromomô, região de Guaraqueçaba. Pedro e João agrediram-se fisicamente porque o último, juntamente com sua mulher e dois filhos, dirigiu-se à propriedade de sua mãe (viúva que residia com Pedro, filho solteiro) no intuito de, a todo custo, retirar de lá uma roda de ralar mandioca.12 Determinadas histórias familiares acenam para uma vivência de 10 1859. Juizo de Órfãos da Cidade de Paranaguá. Autos cíveis de entrega de bens em que é Anna do Carmo supplicante. Museu da Justiça. Curitiba. 11 1872. Juizo Municipal da Cidade de Paranaguá. Autos de petição para despejo de terrenos em que são João Antonio Ricardino Pedroso supplicante e Ireno Gonçalves dos Santos supplicado. Museu da Justiça, Curitiba. 12 1888. Subdelegcia de Policia da Villa de Guaraqueçaba. Autos de corpo de delito ex-officio. Ofendido Pedro Antonio Ribeiro. Ofensor João Antonio Ribeiro. Arquivo da Primeira Vara Criminal de Paranaguá.

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pobreza, para um cotidiano pautado pela experiência de mínimos vitais.13 Quando da morte de algum dos genitores, por exemplo, a escassez material partilhada pelos membros da família poderia ficar mais evidente. O caso da viúva Dona Margarida de Souza e Silva é ilustrativo. Mesmo tendo a finada legado aos cinco filhos herdeiros a propriedade de um escravo, a totalidade do valor dos seus bens, em 1855, atingiu pouco menos de 500 mil réis. Seu patrimônio incluía, além do cativo Constantino, de 45 anos (que vivia nas terras do genro inventariante), uma casa velha coberta de telha e alguns móveis; um oratório com cinco imagens; uma roda, uma prensa, um forno e um tacho para fabricar farinha.14 José Maia Bezerra Neto e Sidiana de Macêdo (2009, p. 4-5) afirmam que dentre as práticas alimentares dos cativos da Amazônia, no século XIX, destacava-se a farinha de mandioca ao lado do peixe seco. Segundo os pesquisadores, os cativos daquela região eram tão dependentes da farinha de mandioca “que escravos fugidos, em trânsito ou sem pouso certo, ou que não tinham como fazer suas próprias roças de mandioca, tinham que se valer de sua astúcia e da cumplicidade com outros sujeitos a fim de obter a farinha”. No litoral do Paraná não devia ser muito diferente. O caso de Gaspar, de 22 anos, ilustra a dependência da raiz da terra. Porém, ao que parece, ele contava com um quinhão de terra para roçada em meados da década de 1860. Fugido do seu senhor José Antonio Oliveira, passou a viver na região do Boguassu, um dos quarteirões rurais de Paranaguá daquela época. Ali Gaspar vivia como lavrador e habitava em uma pequena casinha de palha com sua companheira Úrsula. Depois de um ano e meio como livre, sua sorte modificou-se quando uma escolta policial conseguiu apanhá-lo. No momento da prisão, conforme relatou um dos guardas, Gaspar estava “deitado”, “descansando numa esteira”, “tendo acabado de raspar umas mandiocas...”.15

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13 A noção de ‘mínimos vitais’ para a análise de comunidades interioranas brasileiras surgiu com Antonio Candido (1977, p. 27) em seu estudo sobre o modo de vida dos caipiras de Bofete, interior de São Paulo. “Dir-se-á, então, que um grupo ou camada vive segundo mínimos vitais e sociais quando se pode, verossilmente, supor que com menos recursos de subsistência a vida orgânica não seria possível... “. 14 1855. Sem capa. Margarida de Souza e Silva inventariada. Agostinho Jose Pereira inventariante. Museu da Justiça, Curitiba. 15 1868. Traslados dos autos-crime do réu Gaspar escravo de José Antonio de Oliveira cujos autos sobem por

pARTE i CAPÍTULO 1

A sorte também parece ter abandonado, em 1859, os libertos Fermino, Protazio, Justino, João e Proto, ex-escravos de Manoel Luizino de Nores, um dos poucos bem afortunados do litoral do Paraná no século XIX. Nores, proprietário da Fazenda Santa Cruz, citado como principal destaque entre os fazendeiros da comarca na crônica de Vieira dos Santos (1950, v. 2, p. 300)16, deixou todos os seus escravos livres em testamento (com ônus de trabalho, por quatro ou oito anos, para Ricardo José da Costa). Além disso, deixou para eles a Fazenda Santa Cruz, “com as terras, engenhos, fábricas, ferramentas [...] com expressa cláusula de que tomariam conta de tudo depois de concluído o ônus de seu testamento”. Porém, cumprida a cláusula testamentária, Ricardo José da Costa teimava em não dar a liberdade aos ex-cativos como também negava-se a darlhes posse da fazenda. Na Santa Cruz havia plantações de café, arroz, cana, mandioca e produzia-se farinha. Os cinco libertos que foram à Justiça deixaram uma narrativa (escrita por José Marques da Silva a rogo dos suplicantes) que demonstrou as graves consequências da falta de acesso aos produtos básicos da terra, uma vez que a fazenda entrou em decadência. Eles alegaram viver “em um estado dúbio, de incertezas, receios, e necessidades, por efeito de tais conjecturas”. A fazenda estava “no mais deplorável estado”, e “os suplicantes” viviam “como peregrinos, aqui, ali, e acolá, procurando trabalho”; os libertos se disseram “pessoas miseráveis” e “não tendo quem os proteja” [...] porque ninguém se quer inimizar e comprometer com o Sr. Ricardo José da Costa...”.17 apelacção para o Tribunal da Relação do Districto sendo o Juízo ex-officio apelante e o dito Gaspar preso na cadeia desta cidade apelado. Arquivo da Primeira Vara Criminal de Paranaguá. Na ocasião de sua prisão Gaspar tratou de safar-se e acabou dando no soldado João Antonio Duarte uma lançada mortal na região do baço. 16 Na crônica de Vieira dos Santos, oferecida à Câmara Municipal de Paranaguá em 1850, Manoel Luizino de Nores aparece como possuidor de “mais de 60 escravos”. (SANTOS, 1950, p. 300). Infelizmente, a pesquisa não localizou o inventário de Nores. 17 1859. Juizo de Direito da Comarca da Cidade de Paranaguá. Autuação de uma petição e documentos em que é o Doutor Promotor Público supplicante e Ricardo Jose da Costa supplicado. Museu da Justiça, Curitiba. Pela pesquisa de Baracho (1995, p. 55) é possível saber que o conflito foi resolvido apenas em 1894, com registro a favor de Sérgio Arantes e outros 27 ex-escravos; também é possível saber que a Fazenda Santa Cruz possuía, nesse ano, 2450 hectares 25 ares “tendo como confrontantes a Colônia Maria Luiza e o morro do Inglês, da Colônia Alessandra, contendo dois córregos que desaguavam no rio Ribeirão, bem como engenhos movidos por animais “para fazer açúcar e aguardente” e “fábricas” de fazer farinha”.

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Os fragmentos das histórias narradas revelam, com bastante propriedade, um aspecto comum à maioria das famílias de lavradores que viveram em algum dos diversos quarteirões rurais que compunham a comarca de Paranaguá no século XIX: a estratégia de sobrevivência do grupo familiar, ligada, de maneira inextricável, à mandioca e à farinha de mandioca. Labutar ao redor da raiz da terra propiciava a sobrevivência cotidiana e garantia condições para que uma família, sobretudo a com muitos componentes, não transpusesse a barreira que separava a pobreza da miserabilidade, à época.

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Conclusão A partir dos inventários analisados é possível concluir que o principal traço do ambiente rural da comarca de Paranaguá era a vinculação das suas propriedades agrícolas ao cultivo da mandioca e sua transformação em massa, farelo e pó. A maioria das propriedades inventariadas possuía utensílios relacionados ao mundo da farinha, aquilo que o jesuíta José Rodrigues de Melo chamou, em meados do século XVIII, de ‘bens que o uso reclama’. No universo rural da comarca de Paranaguá, nas unidades agrícolas com ou sem mão de obra escrava, foi possível observar a existência de um notório modo de vida cujo trabalho girava ao redor da raiz da terra. Pela análise dos documentos é possível afirmar que a farinha de mandioca constituiu uma espécie de pão comum aos afortunados e minimamente afortunados do mundo rural da comarca. Ela estava presente na mesa daqueles que possuíam uma certa riqueza de bens para serem legados aos herdeiros e também foi notória entre os que deixaram cabedal de pouca monta no ambiente rural. A farinha de mandioca garantia os mínimos vitais da população, sobretudo dos livres pobres e dos escravos. Estes a tinham como a sua principal referência alimentar, a sua primordial fonte calórica disponível à época. Era fundamentalmente na lida com a raiz da terra que a vida dos menos favorecidos da comarca de Paranaguá, na segunda metade do século XIX, seguia seu curso.

pARTE i CAPÍTULO 1

Diante da marcante presença da civilização da farinha de mandioca no litoral paranaense nos oitocentos, é necessário reforçar a impropriedade de determinadas imagens construídas para a história do Paraná. Dentre elas, a que desconsidera o papel da cultura indígena e luso-africana na conformação do modo de vida paranaense deve ser reiteradamente refutada. Assim é o Paraná. Território que, do ponto de vista sociológico, acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, a de uma civilização original construída com pedaços de todas as outras. Sem escravidão, sem negro, sem português, e sem índio, dir-se-ia que sua definição humana não é brasileira. (MARTINS, 1989, p. 446).

Nada mais distante da asserção transcrita do que a história da comarca de Paranaguá, situada na Região Sul do Brasil. A incrível civilização da farinha de mandioca que existiu nos oitocentos – e que ainda pulsa ao redor do grande mar redondo – constitui prova de um Paraná colorido e radicalmente diferente do quadro social monocromático, equivocado, pintado por Wilson Martins em livro de 1955.18 Nada mais brasileiro, por ‘definição’, no século XIX, do que viver e sobreviver ao redor da raiz da terra.

18 O livro teve uma nova tiragem de 2 mil exemplares, em 1989, com apoio da Secretaria do Estado da Cultura. Na reedição, não houve espaço para comentários críticos à obra. Tampouco foi revisto, pelo autor, algum aspecto do conteúdo ali presente passados 34 anos. Martins entende como Paraná o espaço que se configurou a partir do final de 1853, com a criação da Província. A citação que ignora o passado luso-africano constitui parte do último parágrafo da obra.

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Referências

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Apêndice QUADRO 1 PERFIL DAS PROPRIEDADES NOS INVENTÁRIOS RURAIS COM ESCRAVOS DA COMARCA DE PARANAGUÁ-1849-1887

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TIPO DE

N°.

PRODUÇÃO

ESCRAVOS

Roda, prensa, forno, tacho

Farinha

3

Não cita

Roça de mandioca

7

Rio dos Correias (Paranaguá)

Tacho, prensa, forno, roda

Farinha

12

1852

Rio Cubatão (Guaratuba)

Não cita

Não identificado

2

1852

Ilha Rasa (Paranaguá)

Fábrica de fazer farinha, tacho

Farinha

3

1854

Riozinho (Paranaguá)

Casa de fazer farinha, engenho de cana, alambique

Farinha, açúcar, aguardente

12

1855

Cassoeiro (Paranaguá)

Roda, prensa, forno, tacho, almofariz

Farinha

1

1855

Rio dos Almeidas (Paranaguá)

Forno e tacho de cobre

Farinha

3

1856

Medeiros (Paranaguá)

Fábrica de fazer farinha, roda, prensa, forno, tacho

Farinha

7

1856

Ijipijessara (Paranaguá)

Casa com fábrica de fazer farinha, roda, prensa, forno, cocho, casa de alambique com duas fábricas, uma de soque de doze mãos e outra de cana

Farinha, aguardente

7

1860

Rio Tagaçaba (Guaraqueçaba)

Casa de fazer farinha, roda, prensa, forno, tacho

Farinha

6

1861

Rio Descoberto (Guaratuba)

Não cita

Roça de mandioca

2

1861

Segundo Distrito (Guaraqueçaba)

Casa de engenho com fábrica, casa com fábrica de fazer farinha, alambique

Aguardente, farinha

33

1863

Olho d’Água (Paranaguá)

Roda, prensa, forno, cocho

Farinha

7

1864

Tromomo (Guaraqueçaba)

Não cita

Não identificado

4

1866

Rio das Pedras (Paranaguá)

Moenda, casa de fazer farinha, alambique e capelo

Aguardente, farinha

6

1866

Rio dos Almeidas (Paranaguá)

Fábrica de fazer farinha

Farinha

2

1868

Guaratuba

Não cita

Não identificado

4

1869

Bocuhy (Paranaguá)

Roda de ralar mandioca, tachos

Farinha

1

1870

Guaraqueçaba

Fábrica de fazer farinha

Farinha

1

1871

Barra do Sul (Paranaguá)

Roda e prensa

Farinha

5

1871

Tagaçaba (Guaraqueçaba)

Não cita

Não identificado

3

1872

Rio das Pedras (Paranaguá)

Roda de ralar, forno de cobre 28 libras

Roça de mandioca e farinha

8

1873

Rio dos Meros (Guaratuba)

Roda para fazer farinha, forno de cobre, tacho de cobre

Farinha

5

ANO

LOCAL

UTENSÍLIOS

1849

Rio Grogussu (Paranaguá)

1849

Não identificado

1850

pARTE i CAPÍTULO 1

1873

Guaratuba

Roda, prensa, forno

Farinha

7

1873

Saco Tambarutaca (Paranaguá)

Roda, prensa, forno de cobre, tacho

Farinha, duas roças de mandioca

7

1874

Guaraqueçaba

Não cita

Não identificado

2

1874

Retiro (Paranaguá)

Prensa, forno, tacho

Mandioca e farinha

6

1875

Ponta Grossa (Paranaguá)

Roda, prensa, forno, tacho de cobre

Farinha

4

1876

Rocio Grande (Paranaguá)

Fábrica de fazer farinha, forno, tacho

Farinha

4

1878

Barra do Sul (Paranaguá)

Fábrica de fazer farinha com roda e forno de cobre, tacho de cobre

Farinha

2

1879

São João Pequeno (Guaratuba)

Roda, prensa, forno, tacho

Farinha

9

1880

Não identificado

Não cita

Não identificado

1

1881

Buquera (Paranaguá)

Engenho de socar

Arroz

5

1884

Guaraqueçaba

Não cita

Farinha

1

1879

Rio do Cedro (Guaratuba)

Alambique, forno de cobre

Aguardente

6

1880

Sítio Retiro (Paranaguá)

Roda, prensa, forno, tacho, bolandeira

Farinha

4

1881

Descoberto (Guaratuba)

Roda de ralar mandioca, forno de cobre

Farinha, roça de mandioca, 200 alqueires de arroz

6

1881

Rio Cubatão (Guaratuba)

Engenho para fabricar aguardente com casa de palha e pertences, roda, prensa, forno, tacho

Aguardente, farinha

4

1881

Rio das Pedras (Paranaguá)

Fábrica de fazer farinha com forno e dois cochos, tachos de cobre, rede de lancear com cabos e mais pertences, rancho para depósito de cal

Farinha, pescado, cal

7

1881

Itaqui (Guaraqueçaba)

Engenho para cana com caldeira, alambique, fábrica para fazer farinha com roda, prensa e forno

Aguardente, farinha

6

1881

Saco Tambarutaca (Paranaguá)

Não cita

Não identificado

6

1882

Bocuhy (Paranaguá)

Não cita

Não identificado

11

1882

Barra do Sul (Paranaguá)

Fábrica para fazer farinha com roda, prensa, forno e tacho

Farinha

3

1883

Guaratuba

Engenho com casa e acessórios

Aguardente, açúcar

2

1884

Não identificado

Moenda de ferro, dois alambiques, forno de cobre

Aguardente

4

1886

Imbocuhy (Paranaguá)

Casa de fazer farinha, roda e prensa para ralar mandioca com dois fornos

Farinha

9

1887

Tagaçaba (Guaraqueçaba)

Fábrica para farinha, casa para farinha

Farinha, mandioca, vigas, milho

1

1887

Guaratuba

Engenho de cana

Aguardente, açúcar

3

FONTE: Inventários post-mortem da comarca de Paranaguá.

33

FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

QUADRO 2 PERFIL DAS PROPRIEDADES NOS INVENTÁRIOS MISTOS COM ESCRAVOS DA COMARCA DE PARANAGUÁ - 1849-1887 ANO

LOCALIDADE

UTENSÍLIOS

TIPO DE PRODUÇÃO

Nº. ESCRAVOS

1849

Rio Morato (Guaraqueçaba)

Não cita

“Cultivados” (mandioca)

16

1849

Olho d’Água (Paranaguá)

Prensa, tacho, forno, cocho

Farinha

6

1852

Rio das Pedras (Paranaguá)

Não cita

Não identificado

30

1854

Valadares (Paranaguá)

Não cita

Não identificado

8

1855

Fazendas Boa Vista e das Palmeiras (Guaraqueçaba)

Fábrica de fazer farinha, 2 ranchos para depósito de madeira

Farinha, madeira

38

1859

Riozinho (Paranaguá)

Casa de farinha com roda, prensa e forno de cobre

1860

Rio Grogussu (Paranaguá)

Casa de fazer farinha

Farinha

2

1864

Guaraqueçaba (Local não definido)

Casa com fábrica de fazer farinha, 2 engenhos de serrar madeira

Farinha, madeira

2

1864

Serra Negra (Guaraqueçaba)

Roda, prensa e forno para fabricar farinha

Farinha

4

1867

Tagaçaba (Guaraqueçaba)

Não cita

Não identificado

2

1868

Rio Guaraqueçaba (Guaraqueçaba)

Engenho e casa de fazer farinha

Farinha

10

1868

Não identificada

Fábrica de farinha, roda, prensa e forno

Farinha

7

1868

Guaratuba

Não cita

Não identificado

5

1868

Rio Tagaçaba (Guaraqueçaba)

Não cita

Não identificado

8

1871

Rio dos Correias (Paranaguá)

Não cita

Não identificado

5

1871

Rio das Pedras (Paranaguá)

Forno, bolandeira

Farinha

3

1877

Guaraqueçaba

Casa de engenho

Não identificado

2

1877

Itiguassu (Paranaguá)

Roda, prensa, forno

Farinha

2

1883

Guaratuba

Alambique de cobre, cochos de madeira, depósito de aguardente, casa de engenho, bomba de cobre, cocho para água, pipas, roça de cana

Açúcar, aguardente

2

1878

Não identificado

Alambique, bolandeira

Aguardente

2

1873

Rio Cubatão (Guaratuba)

Não cita

Não identificado

1

1876

Guaraqueçaba (local não identificado)

Casa com fábrica de farinha, engenho de socar arroz;

Arroz, farinha

31

1876

Rio Guaraguassu (Paranaguá)

Não cita

Não identificado

2

1879

Barra do Sul (Paranaguá)

Roda, prensa e forno

Farinha

1

1880

Bocuhy (Paranaguá)

Fábrica de farinha com pertences

Farinha

5

FONTE: Inventários post-mortem da comarca de Paranaguá

34

Farinha

6

pARTE i CAPÍTULO 1

QUADRO 3 PERFIL DAS PROPRIEDADES NOS INVENTÁRIOS RURAIS E MISTOS SEM ESCRAVOS DA COMARCA DE PARANAGUÁ – 1857/1884 ANO

LOCAL

UTENSÍLIOS

TIPO DE PRODUÇÃO

1857

Barra do Sul

Roda, prensa, forno, tacho

Mandioca, farinha de mandioca

1868

Rio dos Correias

Roda, prensa, forno

Mandioca, farinha de mandioca

1869

Grogussu/Cachoeira

Tacho de cobre

Mandioca, lenha

1869

Ribeirão

Roda, prensa, forno, tacho

Mandioca, farinha de mandioca

1870

Rio Itiberê

Rede para lancear

Pescado, frutíferas

1871

Paranaguá (“sítio”)

Forno de ferro, tacho de cobre

Mandioca, farinha de mandioca

1872

Guaratuba

Engenhoca p/cana, alambique

Aguardente

1873

Rio Borrachudo / Rio das Canoas

Engenho e depósito de madeiras

Madeira

1876

Rio Guaraguassu

Não cita

Não identificado

1876

Rio Guaraguassu

Não cita

Não identificado

1876

Sufrague

Não cita

Café

1878

Brejatuba

Forno, tacho

Mandioca, farinha de mandioca

1880

Serra Negra

Roda, prensa, forno, tacho

Mandioca, farinha de mandioca

1880

Serra Negra

Não cita

Não identificado

1880

Rio Pequeno

Não cita

Não identificado

1882

Emboguassu

Não cita

Mandioca

1882

Tagaçaba

Não cita

Não identificado

1883

Emboguassu

Fábrica de fazer farinha

Mandioca, farinha de mandioca

1884

Barra do Sul

Fábrica de fazer farinha

Mandioca, farinha de mandioca

1884

Serra Negra

Casa de cana e alambique

Aguardente

1885

Embocuhy

Fábrica de fazer farinha, tacho

Mandioca, farinha de mandioca

1887

Não identificado

Alambique de cobre, forno velho

Aguardente

FONTE: Inventários post-mortem de comarca de Paranaguá.

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CAPÍTULO 2 OS ENGENHOS DE FARINHA EM FLORIANÓPOLIS – APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA PLURAL

Adriane Schroeder Lins Leiroza1 Introdução O presente capítulo tem por objetivo fazer um apanhado das pesquisas sobre os engenhos de farinha que efetuei e trazer, brevemente, algumas outras questões, principalmente em relação à patrimonialização do modo de fazer farinha de mandioca polvilhada. Durante a graduação em História, movida pela ligação deste tema com a história de minha família materna e da região onde nasci e cresci, em Capoeiras, bairro continental de Florianópolis. Trabalhei as interações do trabalho e do lúdico – as brincadeiras e interações sociais presentes no processo de produção da farinha (a farinhada). Durante o mestrado, ampliei a pesquisa, trabalhando os discursos em torno do tema advindos da historiografia, da imprensa, da memória, enfocando aspectos correlatos ao chamado processo de modernização regional e à tradição, seguidamente 1 Bacharel, licenciada e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Advogada (OAB∕SC 23746). Doutoranda em História pela UFSC. Professora titular de História Contemporânea pela Universidade da Região de Joinville e professora efetiva da Disciplina de História na rede municipal de ensino da Prefeitura Municipal de Florianópolis (em licença para aperfeiçoamento∕Doutorado em ambas as instituições). Endereço: Rua Doralice Ramos Pinho, 262, AP. 501, Bairro Jardim Cidade, São José, Santa Catarina. CEP 8811-310. E-mail: adriane.schistoria@gmail. com.

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FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

associados ao termo “açorianismo” e assemelhados. Nestes trabalhos utilizei fontes diversificadas: relatos de viajantes, entrevistas, jornais, obras da literatura catarinense - em especial Virgílio Várzea (inclusive textos ficcionais); na dissertação, acrescentei a estas algumas legislações municipais e estaduais, bem como relatórios de órgãos oficiais. Utilizei referências metodológicas mais correlatas à História Cultural para embasar conceitos como identidade, memória e representações. Na pesquisa para a graduação, as conclusões principais foram que o trabalho, o lúdico (brincadeiras como a aposta do capote, cantigas como as da ratoeira), bem como as sociabilidades estavam amalgamados, não havia um entrecorte temporal no estilo “hora de trabalhar”, “hora de cantar a ratoeira”, por exemplo. As abordagens metodológicas apontaram que em trabalhos predominantemente artesanais tal interação é frequente, (por exemplo, Benjamin2). A amplitude de temáticas elencadas neste primeiro trabalho levou à elaboração do projeto e posterior pesquisa para a dissertação. Na composição desta, verificou-se que vários autores catarinenses destacam o aspecto econômico da farinha, que foi o principal produto da economia catarinense destacando por cerca de 200 anos3. O produto, algumas descrições da forma de produção, modos de comer e mesmo

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2 BENJAMIN, Walter. O narrador, in: Obras Escolhidas, vol. I. São Paulo, Brasiliense,1985. 3 Ver, por exemplo: BRITO, Paulo José M. de. Memoria Política sobre a Capitania de Santa Catharina. Florianópolis, Sociedade Literária Bibliotheca Catarinense, 1932; CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História de Santa Catarina. Florianópolis, Lunardelli, 1987,500 p.; CUNHA, Idaulo. Evolução Econômico-Industrial de Santa Catarina. Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura, 1982. 216 p.; DALLANHOL, Vilmar & OLINGER, Glauco (org.). A Mandioca em Santa Catarina. Florianópolis, ACARESC, s/d. 160 p.; HÜBENER, Laura Machado. O Comércio na Cidade de Desterro do Século XIX. Florianópolis, Imprensa Universitária (UFSC), 1981. 120 p.; LAGO, Paulo Fernando. Santa Catarina - A terra, o homem e economia. Florianópolis, Imprensa Universitária∕UFSC, 1965 (?). 340 p.; MATTOS, Jacintho Antônio de. Colonisação [sic] do Estado de Santa Catharina – dadoshistóricos e estatísticos (1640-1916). Florianópolis, Gab. Typ. d’ O Dia, 1917; MIRA, Crispim. Therra Catharinense. Florianópolis, Typ. da Livraria Moderna, 1920. 286 p.; PEREIRA, Nereu do Valle. A origem e a tecnologia dos engenhos de farinha de mandioca na Ilha de Santa Catarina, in: Anais da Segunda Semana de Encontros Açorianos (1987) Florianópolis, Editora da UFSC, 1989. 343 p.; PEREIRA, Nereu do Valle. Os Engenhos de Farinha de Mandioca da Ilha de Santa Catarina. Fundação Cultural Açorianista, 1993. 208 p. PIAZZA, Walter F. A mandioca e sua farinha. Florianópolis, Faculdade Catarinense de Filosofia, 1956. 42 p. PIAZZA, Walter F. Santa Catarina: Sua História. Florianópolis, UFSC, 1983. 750p. ROSA, José Vieira da. Chorografia de Santa Catharina. Florianópolis, Livraria Moderna, 1905. 320 p.

PARTE i CAPÍTULO 2

julgamentos sobre a qualidade da farinha (inclusive no sentido de provocar doenças dentárias, de ser um alimento inferior e outros) são encontrados em fontes como os relatos de viajantes4. A análise destas fontes pela ótica metodológica evidenciou que a qualidade em si do produto era mais um ponto nos discursos de “superioridade” europeia que transparecem em tais relatos. Ainda, tais discursos refletiam a construção de identidade europeia em aspectos como: alimento (os itens “europeus” ou mais assemelhados a estes eram em geral descritos como mais saudáveis, por exemplo); população (descendentes dos povos germânicos e italianos eram descritos favoravelmente em relação aos “mestiços”, indígenas e “portugueses”); traços do cotidiano e da cultura. A tônica de “superioridade” de tais fontes é associada ao processo de expansão europeia, em especial ao longo do século XIX analisadas algumas impressões sobre o engenho e sua farinha, destacando a perspectiva econômica. As impressões da historiografia também apresentam seus julgamentos à qualidade da farinha: há autores que “defendem” a farinha do engenho como “típica” e “de melhor qualidade”, enquanto outros a qualificam de “inferior, grosseira”. A maior parte dos autores catarinenses relaciona o engenho com o assentamento de colonos luso-açorianos5. 4 Ver: AVÉ-LALLEMANT, Roberto. Viagem pelo Sul do Brasil no ano de 1858 (primeira parte). Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1953. 398 p.; CARVALHO, Alfredo de. Uma visita à Santa Catharina em 1803-1804, in: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catharina. Vol. IV (I a IV trimestres), 1915. Florianópolis, Typ. da Escola de Aprendizes Artifices, 1916.; LANGSDORF, George Heinrich Von. Bemerkungenauf Reiseun die Welt , in: Ilha de Santa Catarina — Relato de viajantes nos séculos XVIII e XIX, 3. ed. revisada. UFSC/ Lunardelli, 1992. (p. 157-184); LISIANSKY, Urey. A Voyage round the word, in: Ilha de Santa Catarina Relato de viajantes nos séculos XVIII e XIX, 3. ed. revisada. UFSC/Lunardelli, 1992. (p.147-156).; PERNETTY, Dom. Histoire d’un voyage aux Isles Malouines , loc. cit. (p. 77-108); SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Provincia de Santa Catharina (1820). São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1936; SHEVOLKE, George. A voyage round the Word, in: Ilha de Santa Catarina — Relato de viajantes nos séculos XVIII e XIX, 3. ed. revisada. UFSC/Lunardelli, 1992. (p. 31-48); SEIDLER, Carl Friedrich Gustav.Zehn Jahre in Bralisien Wahrend, in: loc. cit. (p. 277-309). 5 Ver: PEREIRA, Nereu do Valle. Cultura popular açoriana na Ilha de Santa Catarina, in: Anais da Segunda Semana de Encontros Açorianos (1987 - Florianópolis - UFSC). Florianópolis, Editora da UFSC, 343 p.; PEREIRA, Nereu do Valle et alli. Ribeirão da Ilha - vida e retratos. Florianópolis, Fundação Franklin Cascaes, 1990. 502 p.; PIAZZA, Walter F. A Epopéia Açórico-Madeirense (1748-1756). Florianópolis, UFSC/Lunardelli, 1992. 490 p.; PIAZZA, Walter F.A vitória da cultura popular açoriana em Santa Catarina. Separata do 16º Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo, Tipografia Andrade s/d. 14 p.; PIAZZA, Walter F. Fandangos e ratoeiras, in: Boletim Trimestral da Comissão Catarinense de Folclore, ano II, setembro e dezembro de 1951 (n. 9 e 10), s/ed.

39

FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

Podem ser destacados quatro tipos principais de discursos relativos a esta questão: 1) - o habitante do litoral e toda sua produção e cultura são classificados como “atrasados”, “inferiores”, “desnutridos”, “preguiçosos” e outros adjetivos do gênero, valorizando-se os “europeus”, em especial os de ascendência germânica; 2) por contraposição ao germanismo, em 1948, o I Congresso Catarinense de História reabilita o “homem do litoral” como o açoriano, legítimo portador da brasilidade; é inaugurado um monumento à colonização luso-açoriana, e à “brasilidade” desta; 3) com o desenvolvimento do turismo cultural, o “homem do litoral” é elevado a legítimo portador do açorianismo, sendo essa imagem constante na imprensa, chegando a aparecer em relatos orais; 4) um debate historiográfico da legitimidade açoriana é posto a campo, envolvendo nomes como o dos profs. Luís Felipe Falcão, Vilson Francisco de Farias e Maria Bernadete Ramos Flores6. A “qualidade” ou não da farinha está de várias formas envolta nesses meandros, especialmente nos três primeiros tipos de discurso. Tanto as falas da imprensa atual quanto as de diversos setores relacionados à propaganda e às representações do município e do

40

1951. 121 p.; PACHECO, Darcy. Engenho-de-farinha [sic], in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28 (jan. 1962/ jan. 1963), s/ ed. 129 p.; ALBUQUERQUE, Cleide M. C. P. de. Trabalho e lazer numa localidade pesqueira de Santa Catarina in: Anais do Museu de Antropologia da UFSC. Florianópolis, Imprensa Universitária, 1993 (p. 57-74); BECK, Ana Maria (org.). Roça, pesca e renda: trabalho feminino e reprodução familiar, in: loc. cit. Florianópolis, Imprensa Universitária,1993 (p. 43-56); BLASKE, Helga. O tipiti, in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28(jan. 1962/ jan. 1963), s/ ed. 129 p. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro — Memória II. Florianópolis, Imprensa da UFSC,1972. 284 p.; CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os Açorianos. Separata do volume II dos Anais do Primeiro Congresso de História Catarinense. Florianópolis, Imprensa Oficial, 105 p. CASCAES, Frankilin J. Franklin Cascaes, vida, arte e a colonização açoriana (org. Caruso, Raimundo C.). Florianópolis, UFSC,1981. CREMA, Ângelo. O carro de bois. in: Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, ano XVI, n. 27/28 (jan. 1962/ jan. 1963), s/ed. 129 p.; SANTOS, Silvio Coelho dos. Rio Vermelho, uma póvoa no interior da Ilha de Santa Catarina, in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28(jan. 1962/ jan. 1963), s/ed. 129 p. ROCHA, Elton Batista. Os engenhos de farinha de mandioca da Ilha de Santa Catarina e suas transformações, in: Anais do Museu de Antropologia da UFSC. Florianópolis, Imprensa Universitária, 1993(p.75-94). Sobre esta questão no Rio Grande do Sul, conferir: BUNSE, Heireich A. W. “Mandioca e açúcar - contribuição ao estudo das respectivas culturas e do folclore étnico e lingüísticas no Rio Grande do Sul”, in: Comissão Gaúcha de Folclore, v. 27. Porto Alegre, Departamento de Imprensa Oficial do Estado, s/d. 23 p. 6 Conferir: ANDERMANN, Adriane Schroeder, op. cit. (Cap.III); FLORES, Maria Bernardete. A invenção da açorianidade, in: Jornal Ô Catarina!, n.18. Florianópolis, julho/agosto de 1996 (p.4); Teatros da vida, cenários da História. A farra do boi na Ilha de Santa Catarina - leitura e interpretação. Tese de Doutorado. São Paulo, PUC, 1991. 341 p. HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. 316 p.

PARTE i CAPÍTULO 2

estado pelo governo bebem da fonte açorianista e tendem a classificar tudo que é florianopolitano ou litorâneo como “açoriano”. O aporte metodológico principal para minhas pesquisas foi o da História Cultural, que usei como base para a análise e discussões das fontes e da historiografia, em especial os conceitos de identidade, memória e representações, fazendo um diálogo com a História Oral, em especial pelo uso de entrevistas, principalmente as discussões acerca do uso deste tipo de fonte e dos debates sobre a memória, seus usos e possibilidades. Atualmente, grupos relacionados à cultura e patrimônio e setores da sociedade tem trabalhado em projetos para buscar o reconhecimento do modo de fazer a farinha polvilhada como patrimônio imaterial catarinense7, o que se percebe como possibilidade de um novo viés para pesquisas. Tais aspectos remetem à pluralidade que este tema apresenta, bem como à pertinência das pesquisas de diversas áreas em torno dele. Os engenhos de farinha em Florianópolis – apontamento para uma história plural

“Os propósitos da historia são variados. Mas um deles é o de prover aqueles que a lêem de um sentido de identidade, de um sentido de sua origem” (Jim Sharpe)

A Expressão “engenho”, em quase todo estado de Santa Catarina, é imediatamente associada à farinha de mandioca; ambos estão ligados à história e cultura local em Florianópolis e região, tanto quanto estes estão relacionados ao debate açorianista; este termo é uma remissão à chegada de imigrantes vindos dos Açores e ilhas vizinhas para o litoral do estado e em especial para Florianópolis e região. Agora, estão sendo utilizadas como chamariz do chamado turismo cultural e sendo ressignificadas como patrimônio imaterial do estado de Santa Catarina. A importância da farinha de mandioca na identidade cultural é tal que, na linguagem 7 É o caso do projeto em andamento “Ponto de Cultura Engenhos de Farinha”, iniciado em 22 de maio de 2010, o qual foi idealizado pelo CEPAGRO (Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo), que recebe o patrocínio do Ministério da Cultura. Fonte: http://engenhosdefarinha.wordpress.com/2010/07.

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FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

popular em geral “farinha” refere-se à de mandioca, deixando a qualificação para as demais (assim, “farinha de trigo”, “de milho” e outras). Minha própria vida familiar está diretamente relacionada à produção, consumo e venda da farinha de mandioca, tanto que meu avô materno era chamado de “Seu Zé do Engenho” e minha avó de “Dona Bia do Seu Zé do Engenho”. Vindos do município vizinho de Biguaçu, região de Três Riachos, onde já viviam em torno do engenho, tornaramse agregados de um engenho maior, pertencente à família do Sr. Bento Ouriques, situado na região de Capoeiras, na parte continental do município de Florianópolis. Cresci ouvindo histórias de engenho, vendo a “ruralidade” daquela região cada vez mais ir se esvaindo. Minha avó ainda criava patos e galinhas e meu avô plantava hortaliças e feijão no terreno vizinho, enquanto este não foi vendido no processo de loteamento do que era o sítio dos Ouriques8; ainda havia carroceiros que trocavam ferro velho por pintinhos e árvores frutíferas nos quintais. Assim, primeiramente farei um apanhado das minhas pesquisas deste tema ao mesmo tempo tão familiar e tão distante para mim – posto que minha vivência dele resumia-se às memórias de meus familiares. Em torno do Engenho: vivência pela memória, vivência pela pesquisa Envolta nas lembranças acima descritas, escolhi o tema do engenho e sua farinha já na graduação em História; neste trabalho inicial, abordei as interações entre o trabalho e o lúdico9: as brincadeiras, as cantigas de ratoeira e o capote dos quais eu ouvira falar faziam parte desse primeiro texto, que também contemplou as brincadeiras e interações sociais presentes no processo de produção da farinha (a farinhada). Ampliei a temática durante o mestrado, destacando temas correlatos à economia, cuidados com a produção e imagens tecidas sobre os engenhos10.

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8 Denominado informalmente como “loteamento São Bento”; agora, a rua onde se localizava o engenho recebe o nome de Rua São Bento. 9 SCHROEDER, Adriane. Num engenho de farinha (...) deve ter três cantadô (...) – o trabalho e o lúdico nos engenhos de farinha de mandioca em Florianópolis. Trabalho de Conclusão de Curso. Florianópolis: UFSC, 1991. 10 ANDERMANN, Adriane Schroeder. Histórias de Engenho: os engenhos de farinha de mandioca em Florianópolis. Economia, cuidados com a produção, imagens (1917-1920). Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 1996.

PARTE i CAPÍTULO 2

Destaquei os discursos em torno do tema advindos de origens diversas, em especial da historiografia, imprensa e memória, bem como aspectos correlatos ao chamado processo de modernização regional e da tradição. Estes pontos estão de várias formas associados ao termo “açorianismo” e congêneres. Nestes trabalhos utilizei fontes diversificadas: relatos de viajantes, entrevistas, jornais, obras da literatura catarinense - em especial Virgílio Várzea (na dissertação incluí textos ficcionais, como os encontrados na coletânea “A canção das Gaivotas11); na dissertação, acrescentei a estas algumas legislações municipais e estaduais, bem como relatórios de órgãos oficiais, relacionados à higiene pública. Utilizei referências metodológicas mais correlatas à História Cultural para embasar conceitos como identidade, memória e representações. Mais tarde, publiquei pela UNIVILLE12, universidade onde leciono, o livro no qual abordei alguns aspectos da dissertação, da qual foram selecionados questões relacionadas às ideias de tradição e modernidade, bem como das representações sobre os engenho e sua farinha. Na pesquisa para a graduação, as conclusões principais foram que o trabalho, o lúdico (brincadeiras como a aposta do capote13, que ajudava a acelerar a produção e a cantigas como as da ratoeira14, ambos 11 ______. A Canção das Gaivotas (contos selecionados). Florianópolis, Lunardelli, 1985. 236 p. 12 SCHROEDER, Adriane. Histórias de Engenho - os engenhos de farinha de mandioca em Florianópolis. Tradição, modernidade, representações. Joinville: Editora da UNIVILLE, 2007. 13 O capote consistia em uma espécie de aposta entre as pessoas do grupo que iria fazer raspagem das raízes, em que o (a) mais rápido (a) detinha a vitória. Uma pessoa raspava a metade da raiz, jogando-a para outra pessoa, que devia dar conta da velocidade da primeira. O vencedor era quem ficava com menos “capotes” para raspar. Assim, o capote, além de um jogo, era também uma forma de passar o tempo, não só acelerando a produção, mas se constituindo como um espaço privilegiado de convívio e socialização. O termo advém da “capa” que encobre as raízes. Tanto as referências quanto as entrevista definem da mesma forma este “jogo”. Em geral formado por mulheres e crianças, a roda do capote algumas vezes incluía homens de idades diversas. 14 A ratoeira era uma brincadeira no estilo cantiga de roda; as pessoas cantavam e dançavam; um dos participantes era colocado no centro da roda, ficando “preso na ratoeira” e então tinha que cantar um verso, às vezes de improviso, às vezes usando um já conhecido, como o que transcrevo e que era cantado por minha família materna (o qual contém muitas variações): “Ratoeira bem cantada faz chorar, faz padecer∕ Também faz um triste amante do seu amor se esquecer.∕ Meu cravo encarnado, meu manjericão,∕ dá três pancadinhas no meu coração”. Vencido o desafio, era a vez de outro ficar preso na ratoeira, e assim por diante, até todos participarem. Em geral, as quadrinhas citadas por são mais de fundo amoroso, ligadas (como uma grande parte das músicas de ratoeira) a frustrações ou alegrias do namoro; algumas delas são ligadas ao trabalho do engenho, onde a vida dessas pessoas se desenrolava. Um exemplo dessa mescla é citada por Cascaes (1981:57): “Quando o engenho de farinha∕Está coberto de poeira∕É sinal

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FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

também se constituindo em um modo de tornar o lento trabalho menos penoso), bem como as sociabilidades (como o namoro, as “fofocas”, a troca de saberes em relação a remédios e outras) estavam amalgamados, Não havia um entrecorte temporal linear, no estilo “hora de trabalhar”, “hora de cantar a ratoeira”, por exemplo. As abordagens metodológicas apontaram que em trabalhos predominantemente artesanais tal interação e ausência de linearidade do tempo é frequente, (por exemplo, Benjamin15); a amplitude das temáticas elencadas neste primeiro trabalho e sua interação com outras estimularam-me na elaboração do projeto e posterior pesquisa para a dissertação. Na análise de relatos de viajantes, uma fonte primária seguidamente utilizada mas nem por isto esgotada, há seguidas referências à farinha, que incluem algumas descrições da forma de produção (inclusive descrição de um engenho rudimentar) e comércio (preços e considerações sobre o valor do produto), modos de comer (sem uso de talheres) e mesmo julgamentos sobre a qualidade da farinha aparecem em tais relatos, inclusive em relação à saúde. Aqui, seu consumo foi associado a doenças dentárias, especificamente cáries; também foi descrita como um alimento inferior, responsável pela “palidez” e pouca “robusteza” dos que a consumiam, entre outras críticas16. A análise destas fontes pela ótica metodológica, relacionando-a à época em que foram produzidas (séculos XVIII e XIX), evidenciou que a qualidade em si do produto não

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que neste ano∕Foge muita moça solteira.”. Aqui, o “fugir” refere-se a um hábito comum das moças, principalmente as de família pobre, “fugirem” com seus namorados para forçar o casamento. Um verso da ratoeira integra este tipo de cantiga com a aposta do capote: Ó Maria pega a faca∕E vai chamar o Migote∕Que já está chegando gente∕Mode jogar o capote” (Pereira, 1991: 203). Conferir, ainda: Piazza (1951 e 1956). 15 BENJAMIN, Walter. O narrador, in: Obras Escolhidas, vol. I. São Paulo, Brasiliense,1985. 16 Ver, por exemplo: AVÉ-LALLEMANT, Roberto. Viagem pelo Sul do Brasil no ano de 1858 (primeira parte). Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1953. 398 p.; CARVALHO, Alfredo de. Uma visita à Santa Catharina em 1803-1804, in: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catharina. Vol. IV (I a IV trimestres), 1915. Florianópolis, Typ. da Escola de Aprendizes Artifices, 1916.; LANGSDORF, George Heinrich Von. Bemerkungenauf Reiseun die Welt, in: Ilha de Santa Catarina — Relato de viajantes nos séculos XVIII e XIX, 3. ed. revisada. UFSC/Lunardelli, 1992. (p. 157-184); LISIANSKY, Urey.A Voyage round the world, in: loc. cit. (p.147-156); PERNETTY, Dom. Histoire d’un voyage aux Isles Malouines, in: loc. cit. (p. 77-108); SAINTHILAIRE, Auguste de. Viagem à Provincia de Santa Catharina (1820). São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1936; SHEVOLKE, George. A voyage round the world, in:loc cit.(p. 31-48); SEIDLER, Carl Friedrich Gustav. Zehn Jahre in Bralisien Wahrend, in: loc. cit. (p. 277-309).

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era realmente o aspecto ou a preocupação central; tratava-se de mais um ponto nos discursos de “superioridade” europeia que transparecem em tais relatos. O reflexo dessa construção identitária neste contexto é encontrado numa ampla variedade de discursos relacionados a diversos caracteres. Por exemplo, em relação à alimentação, os itens “europeus” ou mais assemelhados a estes eram em geral descritos como mais saudáveis, como o uso de farinha de milho (que, apesar de originariamente ser das Américas, já estava incorporado aos hábitos europeus)17 em vez da de mandioca e de embutidos e carnes, em vez de peixes (embora também se consumam peixes em solo europeu). Quanto à população, os descendentes de povos germânicos e italianos eram descritos favoravelmente em relação aos “mestiços”, indígenas e “portugueses”, seja no aspecto físico (palidez versus robustez, por exemplo), seja em traços do cotidiano e da cultura (tais como preguiça versus trabalho). Este traço praticamente unânime de “superioridade” encontrado nestes relatos de viajantes é associado ao processo de expansão europeia, cuja hegemonia política, econômica e cultural no ocidente é representada e reforçada por estes e outros discursos. As impressões da historiografia também apresentam seus julgamentos à qualidade da farinha, mas novamente a qualidade em si é um dado a mais e não necessariamente uma preocupação ou problemática em si. Há autores que «defendem» a farinha do engenho como “típica”, “tradicional” e “de melhor qualidade”, enquanto outros a qualificam de “inferior”, “grosseira”, “feita num atrasado modo de produção”. Em relação aos aspectos culturais, a maior parte dos autores catarinenses relaciona o 17 Sobre aspectos relacionados à alimentação, percepções e representações de produtos nativos das Américas na Europa, vide, por exemplo: COE, S. D. Los alimentos do novo mundo. Los produtos del Nuevo Mundo. In: Las primeiras cocinas de América. México: FCE, 2004. p. 26-105; SANFUENTES ECHEVERRIA, Olaya. Europa y supercepción del nuevo mundo a través de lãs especies comestibles y los espacios americanos em El siglo XVI. Historia (Santiago), dic. 2006, vol.39, no.2, p. 531-556, disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?pid=S071771942006000200006&script=sci_arttext; LACOSTE, Pablo; CASTRO, Amalia; YURI, José Antonio. Construcción de la cultura de apreciación de la fruta: aporte de Las mil y una noches. Varia hist., Belo Horizonte, v. 28, n. 48, Dec. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752012000200009&lng=e n&nrm=iso>. accesson 24 June 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-87752012000200009; ARNOLD, D. La invención de latropicalidad. In: La Naturaleza como problema histórico. El médio, la cultura y La expansión de Europa. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 130-153.

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engenho com o assentamento de colonos luso-açorianos18, apesar de haver engenhos de farinha em regiões de colonização germânica e italiana, por exemplo19. Vários autores catarinenses destacam o aspecto econômico da farinha, que foi o principal produto da economia catarinense por um período de cerca de 200 anos20. O engenho em si era abordado

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18 Ver: PEREIRA, Nereu do Valle. Cultura popular açoriana na Ilha de Santa Catarina, in: Anais da Segunda Semana de Encontros Açorianos (1987 - Florianópolis - UFSC). Florianópolis, Editora daUFSC, 343 p.; PEREIRA, Nereu do Valle et alli. Ribeirão da Ilha - vida e retratos. Florianópolis, Fundação Franklin Cascaes, 1990. 502 p.; PIAZZA, Walter F. A Epopéia Açórico-Madeirense (1748-1756). Florianópolis, UFSC/Lunardelli, 1992. 490 p.; PIAZZA, Walter F. A vitória da cultura popular açoriana em Santa Catarina. Separata do 16º Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo, Tipografia Andrade s/d. 14 p.; PIAZZA, Walter F. Fandangos e ratoeiras, in: Boletim Trimestral da Comissão Catarinense de Folclore, ano II, setembro e dezembro de 1951 (n. 9 e 10), s/ed. 1951. 121 p.; PACHECO, Darcy. Engenho-de-farinha [sic], in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28 (jan. 1962/ jan. 1963), s/ed. 129 p.; ALBUQUERQUE, Cleide M. C. P. de. Trabalho e lazer numa localidade pesqueira de Santa Catarina in: Anais do Museu de Antropologia da UFSC. Florianópolis, Imprensa Universitária, 1993 (p. 57-74); BECK, Ana Maria (org.). Roça, pesca e renda: trabalho feminino e reprodução familiar, in: loc. cit. Florianópolis, Imprensa Universitária,1993 (p. 43-56); BLASKE, Helga. O tipiti, in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28(jan. 1962/ jan. 1963), s/ed. 129 p. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro — Memória II. Florianópolis, Imprensa da UFSC, 1972. 284 p.; CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os Açorianos. Separata do volume II dos Anais do Primeiro Congresso de História Catarinense. Florianópolis, Imprensa Oficial, 105 p. CASCAES, Frankilin J. Franklin Cascaes, vida, arte e a colonização açoriana (org. Caruso, Raimundo C.). Florianópolis, UFSC,1981. CREMA, Ângelo. O carro de bois. in: Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, ano XVI, n. 27/28 (jan. 1962/ jan. 1963), s/ed. 129 p.; SANTOS, Silvio Coelho dos. Rio Vermelho, uma póvoa no interior da Ilha de Santa Catarina, in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28(jan. 1962/ jan. 1963), s/ed. 129 p. ROCHA, Elton Batista. Os engenhos de farinha de mandioca da Ilha de Santa Catarina e suas transformações, in: Anais do Museu de Antropologia da UFSC. Florianópolis, Imprensa Universitária, 1993 (p.75-94). Sobre esta questão no Rio Grande do Sul, conferir: BUNSE, Heireich A. W. “Mandioca e açúcar - contribuição ao estudo das respectivas culturas e do folclore étnico e lingüísticas no Rio Grande do Sul”, in: Comissão Gaúcha de Folclore, v. 27. Porto Alegre, Departamento de Imprensa Oficial do Estado, s/d. 23 p. 19 Recentemente, visitei um engenho desativado, movido a roda d’água, na região de Nova Trento, SC, pertencente à família Wisenteiner, parentes de Amábile Lúcia Wisenteiner, a “Santa Paulina”; também visitei engenhos em Orleans (Museu ao Céu Aberto); estes estão ligados à colonização italiana (o sobrenome austríaco se deve aos processos de expansão da Áustria em relação à região de Trento, de onde vieram famílias como a Wisenteiner); Águas Mornas, Rancho Queimado e Angelina, de famílias descendentes de germânicos. 20 Ver, por exemplo: BRITO, Paulo José M. de. Memoria Politica sobre a Capitania de Santa Catharina. Florianópolis, Sociedade Literária Bibliotheca Catarinense, 1932; CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História de Santa Catarina. Florianópolis, Lunardelli, 1987, 500 p.; CUNHA, Idaulo. Evolução Econômico-Industrial de Santa Catarina. Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura, 1982. 216 p.; DALLANHOL, Vilmar & OLINGER, Glauco (org.). A Mandioca em Santa Catarina. Florianópolis, ACARESC, s/d. 160 p.; HÜBENER, Laura Machado. O Comércio na Cidade de Desterro do Século XIX. Florianópolis, Imprensa Universitária (UFSC), 1981. 120 p.; LAGO, Paulo Fernando. Santa Catarina - A terra, o homem e economia. Florianópolis, Imprensa Universitária∕UFSC, 1965 (?). 340 p.; MATTOS, Jacintho Antônio de. Colonisação [sic] do Estado de Santa Catharina - dados históricos e estatísticos (1640-1916). Florianópolis, Gab. Typ. d’ O Dia, 1917; MIRA, Crispim. Therra Catharinense. Florianópolis, Typ. da Livraria Moderna, 1920. 286 p.; PEREIRA, Nereu do Valle. A origem

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mais como centro produtor, com poucas referências ao modo de vida em torno dele; alguns autores apresentam descrições do trabalho e das peças, e, dentre estes, há os que tecem críticas à rusticidade do engenho e os que abordam o lado “folclórico”, bem como os que ligam as peças à colonização açoriana, enaltecendo os itens do engenho como “avanço tecnológico” que comprovaria o “valor dos açorianos”. Os discursos historiográficos, conforme minha percepção, podem ser elencados em quatro tipos principais. O primeiro tende a repetir ou reforçar ideias encontradas nos relatos de viajantes, abordados acima; o habitante do litoral e toda sua produção e cultura são desvalorizados, aparecendo descrições destes como “atrasados”, “inferiores”, “desnutridos”, “preguiçosos” e outros adjetivos do gênero, valorizando-se os “europeus”, em especial os de ascendência germânica e italiana. Aqui também se repetem ou retomam as impressões relacionadas a alimentos que trazem os relatos: a farinha de mandioca é desqualificada como pouco nutritiva e responsável pela “palidez” e “desnutrição”, por serem os litorâneos “mais franzinos” que os “saudáveis”, “robustos” e “corados” descendentes de germânicos e italianos. No segundo tipo, que recebe as influências do I Congresso Catarinense de História, em 1948. Busca-se a reabilitação do “homem do litoral”, procurando descrevê-lo como “o açoriano”, valente e trabalhador, legítimo portador da brasilidade, inventivo, criativo e outras representações do gênero; os historiadores catarinenses traçam uma contraposição ao então reinante germanismo, que enaltecia o “progresso” das regiões colonizadas por germânicos, em especial aquelas em que as fábricas despontavam (tais como Blumenau e Joinville). No bojo dessas discussões e ressignificações, inaugura-se um monumento à colonização luso-açoriana e à “brasilidade” desta; esse monumento pode ser entendido e a tecnologia dos engenhos de farinha de mandioca na Ilha de Santa Catarina, in: Anais da Segunda Semana de Encontros Açorianos (1987) Florianópolis, Editora da UFSC, 1989. 343 p.; PEREIRA, Nereu do Valle. Os Engenhos de Farinha de Mandioca da Ilha de Santa Catarina. Fundação Cultural Açorianista, 1993. 208 p. PIAZZA, Walter F. A mandioca e sua farinha. Florianópolis, Faculdade Catarinense de Filosofia, 1956. 42 p. PIAZZA, Walter F. Santa Catarina: Sua História. Florianópolis, UFSC, 1983. 750 p. ROSA, José Vieira da. Chorografia de Santa Catharina. Florianópolis, Livraria Moderna, 1905. 320 p.

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como uma evidência de que tais discursos não ficam apenas “na academia”, mas fazem parte do contexto da época, relacionado à construção da ideia de nacionalismo que crescera durante a “Era Vargas” (1930-1945) e que ainda era influente em vários sentidos. Uma “inversão” dessa perspectiva pode ser notada quando, a partir do desenvolvimento do turismo cultural no Brasil, principalmente a partir da década de 1990, formando o terceiro tipo de discurso detectado. Em relação a Santa Catarina, o “homem do litoral” é elevado a legítimo portador do açorianismo quando no tipo anterior “o açoriano” era o bastião da brasilidade; tal representação do litorâneo como “o açoriano” é uma imagem constante na imprensa, chegando a aparecer em relatos orais e em textos acadêmicos, principalmente os relacionados à cultura. Ainda hoje observa-se a permanência desse discurso, que também inclui uma ressignificação do estereótipo do “manezinho”21, que, antes designando um olhar pejorativo sobre o habitante da Ilha de Santa Catarina especificamente e do litoral em geral, passou a representar algo desejável, visto com simpatia. Entretanto, isto não significa que o olhar deste num nível caricato, que ainda contém traços depreciativos, tenha desaparecido; porém, hoje está mais levado para o aspecto cômico, como se observa na criação de personagens que representam o “manezinho” (como o “Seu Maneca”, a “Dona Bilica” e o “Odilho”)22. O quarto tipo apresenta um debate historiográfico do açorianismo em suas diversas vertentes, questionando inclusive a especificidade açoriana em relação aos demais grupos de origem lusa. Nomes como o dos professores Luís Felipe Falcão, Vilson Francisco de Farias e Maria Bernadete Ramos Flores se destacam neste processo,

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21 Um exemplo que ilustra bem essa ressignificação foi a criação, em 1988, do concurso “Manezinho da Ilha” pelo jornalista Aldírio Simões; a intenção do concurso era reconhecer o nativo ilhéu, bem como sua identificação com o açoriano, valorizando o que antes era menosprezado. Vide, neste sentido: FANTIN, Márcia. Cidade Dividida. Florianópolis. Cidade Futura, 2000. 22 A chamada desta matéria é significativa neste sentido: “Personagens baseados em típicos manezinhos arrancam risadas da platéia”; embora se procure moderar o tom ao longo do texto, de certa forma fazendo um “elogio” ao manezinho, mantendo a associação litorâneo∕açoriano, este é também relacionado à comédia, à caricatura. Fonte: http://ndonline.com.br/florianopolis/plural/102021-personagens-baseados-em-tipicos-manezinhos-da-ilhaarrancam-risadas-da-plateia.html.

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inclusive contextualizando a emergência do conceito de “açorianismo” em relação aos debates acadêmicos da época em que este emergiu23. As considerações sobre a “qualidade” ou não da farinha, portanto, não é uma problemática em si, como já exposto, mas é um argumento a mais, estando de várias formas envolto nos meandros destes debates, e mais enfaticamente aparecendo nos três primeiros tipos de discurso. A questão açorianista de que o terceiro tipo elencado trata é ainda presente nas falas da imprensa atual, sendo também apropriada por diversos setores relacionados à propaganda, sendo fácil encontrar representações relativas aos Açores em nomes de edifícios, ligados a produtos dos mais diversos tipos e outros; também o município e o estado usam este discurso em eventos e outros. Ainda é forte, portanto, em vários discursos, o uso do açorianismo, havendo a tendência de praticamente e classificar tudo que é florianopolitano em particular e litorâneo em geral como “açoriano”. Em relação à cultura e identidade, não apenas a farinha, mas o tipo de vida e de trabalho desenvolvido nos engenhos deixou marcas profundas na memória das pessoas. Em torno deles, diversas práticas e discursos se ergueram, sendo objeto de pesquisas de diversos matizes e áreas; também na área da propaganda e na imprensa o engenho e sua farinha são utilizados, por meio do estereótipo do manezinho da ilha, do descendente e mantenedor da cultura açoriana, e que constrói sua imagem de engenho nesse sentido. O engenho constitui-se como cenário para os acontecimentos desenrolados na vida das pessoas. A infância, o namoro, o casamento, o trabalho e até mesmo a morte estão ligados à rotina do engenho. Inclusive os objetos auxiliares do engenho estão bem presentes nessas memórias. Estes objetos eram utilizados para fins diversos, além da produção de farinha: nas brincadeiras (esconde-esconde: a parte interior do engenho, a prensa, os tipitis); na paiolagem: como camas (cochos, fora da época 23 Conferir: ANDERMANN, Adriane Schroeder, op. cit. (Cap.III); FLORES, Maria Bernardete. A invenção da açorianidade, in: Jornal Ô Catarina!, n.18. Florianópolis, julho/agosto de 1996 (p.4); Teatros da vida, cenários da História. A farra do boi na Ilha de Santa Catarina - leitura e interpretação. Tese de Doutorado. São Paulo, PUC, 1991. 341 p. HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. 316 p.

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da farinhada); para pôr galinhas a chocar (tipitis velhos), para guardar objetos de metal (paióis com farinha), e até mesmo como esconderijo. Conforme pondera Flores, os objetos do engenho eram também parte dessa interação entre a produção e o convívio social bem como os demais espaços da socialização: “A casa materna, o quintal, um pedaço da rua e do bairro, o conjunto dos objetos domésticos, etc., as pedras da cidade, são lugares de memória da infância e da juventude.” (1991:189-190). Mesmo o convívio com os bois que tocavam o engenho marcou a memória, fortemente marcada com imagens e sons que evocam a infância; estes se insinuaram pelas lembranças das pessoas, trazendo consigo memórias de medos, de alegrias e mesmo de limitações. São “as lembranças da dimensão cômica do cotidiano e do sagrado, a cantoria e a ratoeira (...), o jogo do capote na farinhada (...).” (Flores, op. cit.: 191), aparecendo de forma intensa na memória, mesclando o trabalho à brincadeira, os cuidados na produção com a interação social, inclusive namoros. Sendo uma produção manual e demorada, o trabalho no engenho abria espaço para essas interações entre a produção, os cuidados com esta e as relações sociais e lúdicas, como lembra Benjamin, comuns ao ambiente artesanal (1989:25-30). A alegria e o convívio social fazem parte da lida, de acordo com diversos que tratam do tema24. Talvez por estar tão interligado à vida das pessoas, existam, nos causos, referências a fantasmas de pessoas trabalhando no engenho. Das cantorias e brincadeiras na hora do capote, do namoro ao casamento, da infância à morte, a vida no engenho marcou essas lembranças, deixandolhes certa nostalgia por ser agora todo esse convívio perdido no tempo, na névoa do passado. Com cuidado às vezes pictórico, as pessoas descrevem com detalhes sua vida e seu trabalho, reproduzindo, algumas vezes, até mesmo o ranger das engrenagens. Como bem destaca Flores (1991, op. cit.) “A memória do trabalho é tão viva e tão presente que se transforma no desejo de repetir o gesto com as mãos e ensinar o ofício a quem escuta”. Mostrando sua importância social, o engenho, sendo um bem difícil de ser adquirido, congregava em torno de si e de seu dono toda

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24 Conferir, por exemplo: Cascaes (1981: 64-65), Costa (1995: 29); Piazza (1956: 31- ss.), Schroeder (1991: 23-44).

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uma rede de trabalhadores: dos empregados a pessoas da comunidade que a ele acorriam na época da farinhada para ajudar na lida, cuja forma de pagamento variava conforme a função ou trabalho desempenhado. O engenho é, assim, o espaço de memória, cuja lembrança evoca os sons, o trabalho e as brincadeiras, a sociabilidade, o aprendizado, as recordações da infância e algumas vezes, à própria morte. A farinha à mesa: identidade, cultura e patrimônio imaterial Tanto em minha família quanto ao longo das pesquisas, não apenas o engenho é visto de diversas formas e faz parte da construção social e identitária: mesmo a farinha não se apresenta apenas como um produto ou um item a mais na mesa. Ela também está presente no linguajar, na memória, na identidade não apenas da região litorânea, mas em praticamente todo estado de Santa Catarina. Em todos os municípios onde estive – e conheci praticamente todas as regiões catarinenses – encontrei farinha à mesa e histórias de engenho na vida das pessoas. Quando saí de meu estado natal, em qualquer região que fosse sentia falta da “nossa” farinha; por outro lado, conversando com pessoas das mais variadas regiões do Brasil, ficou ainda mais evidente que a farinha está na mesa de todos, mas não da mesma forma. “A farinha de vocês é muito fina”, reclamavam amigos e colegas. Outros, conquistados pelo paladar diferenciado da nossa farinha polvilhada, seguidamente encomendam quilos dela. A região norte e nordeste é famosa por produzir muitos tipos de farinha, desde a que vem em flocos à que se assemelha ao sagu, em cores distintas, também – da mais alva à mais amarelada. Mas a farinha catarinense se distingue pela presença maior do polvilho, que a deixa mais macia, o que faz com que os pratos elaborados a partir dela fiquem mais sedosos. Por exemplo, ao preparar o nosso famoso pirão de peixe com a farinha que levei daqui, vi amigos e familiares se surpreenderem com a textura e brilho do pirão, graças à maior presença de polvilho. O sucesso da receita se espalhou e modificou a forma de se fazer pirão entre muitos, que se tornaram fãs da farinha polvilhada.

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Essa experiência pessoal remete à amplitude de sabores da culinária brasileira em geral, bem como aos aspectos culturais relacionados a ela. A alimentação é um ponto importante da cultura e identidade de um povo, e as receitas carregam memórias afetivas e conhecimentos que passam de geração em geração, tanto de forma escrita, nos livros de receita de família, como de forma oral, ainda que não seja percebida desta forma, como expõem, por exemplo, Certeau, Giard & Mayol (2000). Do ponto de vista da análise historiográfica, a culinária regional se insere como objeto de análise como bem cultural a partir do início do século XX, em especial a partir do movimento dos Annales; não apenas o alimento e sua elaboração em si: passou-se a pesquisar, entre outros pontos, aspectos como as práticas alimentares e os ritos em torno delas e sua contribuição para o estabelecimento, o reforço e a reprodução dos elos sociais. Quando se trata de alimentação, portanto, inclui-se a todo seu entorno, desde as chamadas receitas “típicas” de um local, o modo de preparar o prato e aos pratos definidos como identificadores de uma região; os modos de preparar e usar a cozinha e demais utensílios, e, ainda, o modo de consumo que são comuns a determinados grupos. Em relação às políticas públicas, por muito tempo estas eram adstritas ao patrimônio material e à chamada “grande cultura”, havendo estigmatização do conhecimento tradicional como atrasado, inferior ou mero “folclore”. Tal painel começou a se modificar institucionalmente a partir das novas definições elencadas pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a partir das quais foi organizada a Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais cujas decisões foram sintetizadas na Declaração do México (1985)25, que ampliou a definição de cultura para incluir aspectos relacionados às mentalidades, religiões, intelectuais, questões afetivas, e, extensivamente, os diversos pontos relacionados à alimentação, entre outros. Tal documento de projeção mundial corroborou, em termos políticos, para que fossem buscadas ações que visassem proteger, no sentido da legislação, bem como preservar, através de políticas públicas, aspectos

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25 Íntegra do documento: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=255.

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relativos à identidade cultural de um povo neste sentido mais amplo que foi dado ao termo. Um dos postulados dessa declaração destaca que a “[...] humanidade empobrece quando se ignora ou se destrói a cultura de um grupo determinado” (Declaração do México, 1985, p. 2). Seguindo tais diretrizes, vários governos passam a incentivar e promover o reconhecimento da culinária como patrimônio; por exemplo, no Brasil, Morais (2004) evidencia que a Fundação Cultural de Curitiba (1984) e o Estado de Minas Gerais (1985) já apontavam na direção de reconhecer a alimentação como patrimônio. A amplitude deste reconhecimento pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) ficou ainda mais evidente com a instituição do Comitê Intergovernamental para a  Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da Humanidade, em 2003. O Brasil é estado membro da Comissão para o período de 2012 a 201626. Os alimentos e modos de fazer artesanais estão na pauta desta comissão e fazem parte de políticas públicas de vários países buscar tal reconhecimento; por exemplo, em 16 de novembro de 2010, a UNESCO estendeu sua proteção à refeição gastronômica à moda francesa, à dieta mediterrânea, à culinária tradicional do México e ao pão de mel croata27; recentemente, a culinária japonesa recebeu esta titulação28; o Brasil enviou para registro o Sanduíche Bauru (por São Paulo) e a Empada ou Empadão de Goiás (por este estado)29. Tais considerações são importantes no sentido de compreender que os aspectos correlatos à alimentação estão intimamente relacionados à identidade, por vezes tornando-a visível; por exemplo: muitos de nós temos uma memória afetiva ligada a uma receita de família a um alimento a ela relacionado, como citei acima. Ainda, é possível, ainda que correndo 26 Dados principais:http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?lg=en&pg=00430; http://www.unesco.org/ culture/ich/index.php?lg=en&pg=00024. 27 Fonte: http://www.france.fr/pt/arte-e-cultura/gastronomia-francesa-entra-para-o-patrimonio-mundialimaterial-da-unesco.html. 28 Fonte: http://www.ipcdigital.com/br/Noticias/Japao/Sociedade/Unesco-oficializa-culinaria-japonesa-comoPatrimonio-Cultural_06122013. 29 Fonte: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1110:reportage ns-materias&Itemid=39.

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riscos de estereotipar e homogeneizar aspectos que são complexos, relacionar uma região a um tipo de alimentação, a um “prato típico”, ao modo de se elaborar um alimento. Assim, não se trata simplesmente de satisfazer uma necessidade básica, a alimentação: um prato “de família” ou um considerado “típico” traz representações de experiências, estabelece uma ligação simbólica com o passado de sua família, de seu grupo, ao mesmo tempo em que o representa, bem como, de certa forma, relaciona o passado ao presente. Esse processo se acelera como resistência aos discursos que emergem no final dos anos de 1970, no contexto do que se convencionou chamar de “globalização”, em que da comida rápida (fastfood) era um dos símbolos da alegada vitória absoluta do capitalismo. O discurso de “aldeia global”, de homogeneização dos padrões, condutas, costumes era mostrado como inexorável. Tudo que não se enquadrasse nessa lógica era apresentado como ultrapassado, dando-se a impressão que agora viveríamos num presente contínuo, como apontou Hobsbawn: “A destruição do passado (...) é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.” (1995. p. 13). Na contramão dessa perspectiva, vários grupos ergueram suas críticas e novas práticas, em oposição às aparentemente imbatíveis imposições do “mundo globalizado”, em que a reinvenção da identidade é um dos pontos fortes, o que inclui os aspectos alimentares, que ganhou um movimento cujo nome já é um aviso de resistência: Comida Lenta (SlowFood), criado em 1986. Esse movimento enfoca comidas não apenas feita sem pressa, mas que retomem temperos, receitas, modos de fazer que evoquem identidades. Ainda hoje há quem corra às feiras e engenhos remanescentes para adquirir a farinha polvilhada, que evoca todos essas histórias, texturas e sabores, um modo de fazer, muitos modos de ser. Assim, a busca do reconhecimento do modo de fazer farinha como patrimônio imaterial do estado pode exemplificar as possibilidades de outro viés

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aberto a novas pesquisas. Em relação à farinha de mandioca, portanto, seu consumo e produção envolvem outros aspectos além das questões identitárias relativas à alimentação; por outro lado, os usos da farinha de mandioca não se restringem a aspectos alimentares. Por exemplo, há referências nos relatos orais e na imprensa que consultei para a dissertação ao uso medicinal da farinha de mandioca, bem como à sua distribuição para a caridade ou para fins partidários, por meio de doações ligadas ou não a candidatos eleitos ou que pretendiam alçar algum cargo político30. Destaca-se, ainda, sua importância econômica na região de Florianópolis, tanto em termos de abastecimento interno como de exportação e utilização em políticas públicas (por meio de impostos principalmente). Portanto, de muitos modos, o engenho e sua farinha fazem parte da identidade e dos discursos historiográficos e da imprensa, da propaganda e do cotidiano. Conclusões No presente capítulo, fiz um apanhado das pesquisas sobre o engenho e sua farinha, iniciadas na graduação. Retomei algumas questões referentes às interações entre o trabalho e o lúdico no processo de produção da farinha que desenvolvi então, bem como as questões que trabalhei na dissertação, destacando os discursos em torno do tema advindos da historiografia, com algumas remissões à imprensa e fontes orais que usei para tanto; Também fiz remissões aos relatos de viajantes, bem como de influências de alguns destes discursos na historiografia catarinense especificamente. Retomei as conclusões principais de ambos os textos, enfocando a questão da qualidade da farinha, tanto nos relatos como na historiografia. O que ficou pontuado foi que a qualidade ou não da farinha não é a problemática em si, nestes textos, mas que se trata de mais um dos 30 Por exemplo, a doação, pela Junta Republicana, de diversos alimentos aos pobres, incluindo a farinha de mandioca (20 sacos), em honra de Hercílio Luz, governador recém eleito de Santa Catarina (O Estado, 28/09/18). Uma comissão, encarregada do “Natal dos Pobres”, relata diversas doações e anuncia que aceita propostas em carta fechada para o fornecimento de diversos produtos , incluindo a farinha de mandioca “dos Barreiros”, valorizada na época por sua qualidade (O Estado, 12 e 15/12/19).

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aspectos dos discursos desses textos – cada qual, certamente, produto do contexto histórico em que foram erguidos. Também a questão do “açorianismo” foi revista, bem como seu reflexo na ressignificação do termo “manezinho”, que se liga a este conceito. Fiz uma breve classificação dos discursos relativos a esta questão em quatro tipos principais, bem tracei um pequeno panorama das apropriações do açorianismo por diversos setores, em especial da propaganda e às representações do município e do estado. Como ponto que pode ser objeto de novas pesquisas, trouxe a questão dos projetos que intentam o reconhecimento do modo de fazer a farinha polvilhada como patrimônio imaterial catarinense, bem como alguns pontos da legislação e da historiografia correlatos a ele. O tema, portanto, permanece plural, bem como se abre a novas possibilidades de pesquisas e abordagens. Referências

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CAPÍTULO 3 CASAS DE FARINHA: CENÁRIOS DE (CON)VIVÊNCIAS, SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS 1

Cirlene do Socorro Silva da Silva2 e Maria das Graças da Silva3

Introdução O interesse em estudar o contexto socioeducativo e cultural das casas de farinhas em suas dinâmicas de produção e convivência originouse de minha vivência enquanto educadora numa escola de Ensino Médio da rede estadual localizada no município de Mãe do Rio – PA, integrante da Amazônia brasileira. Dentre as muitas situações que marcam o cotidiano de uma escola em um município que ainda guarda muitas características rurais, uma, particularmente, inquietou-me e despertou meu interesse de conhecer os saberes práticos de jovens agricultores familiares que

1 Este texto é um recorte da Dissertação de Mestrado intitulada “Casas de farinha: espaço de (con)vivências, saberes e práticas educativas”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Pará (PPGED/UEPA), em 2011. 2 Socióloga, Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Pará - Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia, pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Meio Ambiente (GRUPEMA). E-mail: [email protected]. 3 Socióloga Doutora em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ/2002), com Estágio de Pós-Doutoramento em Sociologia Ambiental (ICS/PT), professora Adjunto IV do Centro de Ciências Sociais e Educação e do Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Líder do Grupo de pesquisa em Educação e Meio Ambiente – GRUPEMA (CNPq). E-mail: [email protected]. Orientadora da Dissertação.

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se deslocavam todos os dias de vários assentamentos e comunidades do interior desse município para estudar nessa escola. Portanto, esse interesse começou a ser pautado na preocupação de perceber que a escola não possuía em seu projeto pedagógico uma proposta de reconhecimento e incorporação desses saberes locais nas suas práticas educativas. A necessidade de conhecer os saberes culturais que esses sujeitos construíam fora do espaço escolar, especialmente nas atividades relacionadas ao mundo do trabalho, orientou a escolha pelas práticas educativas socializadas nas casas de farinha, uma vez que, estas, quase sempre foram vistas apenas como espaços de produção econômica, onde são beneficiadas as raízes de mandioca que passaram anteriormente por um processo de plantio e colheita. Esse processo envolve a realização de várias etapas e atividades, como descascar, ralar, prensar, peneirar, torrar, entre outras, que permitem chegar ao produto final, que é a chamada farinha de mandioca. Por meio desse produto, historicamente, grupos sociais, geralmente camponeses, têm construído suas condições de reprodução cultural e material de existência. Na busca de construir epistemologicamente argumentos em favor de que em todo processo produtivo cultura e educação estão inscritas, a pesquisa foi realizada no cotidiano de uma comunidade rural camponesa identificada pelos seus moradores como Comunidade Santo Antônio do Piripindeua, localizada no município de Mãe do Rio, no Estado do Pará, visando analisar formas de educação praticadas no espaço das casas de farinha. Em vista dessa perspectiva, definiu-se como objetivo geral da pesquisa: analisar, a partir da produção da farinha e das relações de convivências, o processo de construção e socialização de saberes e práticas educativas desenvolvido no espaço de três casas de farinha tipificadas inicialmente como: Familiar, Mutirão e Comunitária. Para dar conta da produção de um conjunto de dados que pudessem conformar esse objetivo foi realizada uma pesquisa de campo, que de acordo com Minayo (2000, p. 105), na pesquisa qualitativa, o campo “é o recorte espacial que corresponde à abrangência, em termos empíricos, do recorte

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teórico correspondente ao objeto da investigação”. Para a realização do estudo de caso, que é concebido por Martins (2008) como uma investigação empírica que pesquisa fenômenos dentro de seu contexto real, foram utilizadas as seguintes técnicas: a) a foto etnografia, que de acordo com Achutti (1997), tem a função de registrar , e documentar as ocorrências cotidianas, no caso, o saber-fazer da farinha; b) a observação participante, que para Martins (2008) está fundamentada na necessidade de registrar os relatos detalhados e contextualizados; e entrevistas semiestruturadas que foram realizadas, por se tratar na concepção de Macedo (2010, p. 104) de “recurso metodológico para a apreensão de sentidos e significados e para a compreensão das realidades humanas”. Para preservar a identidade dos sujeitos, na escrita do texto utilizei códigos que são: AFF – para agricultor da Casa de Farinha Familiar; AFM – para agricultor da Casa de Farinha Mutirão; e AFC – para agricultor da Casa de Farinha Comunitária. Dessa forma, este artigo traz resultados de registros e análises da pesquisa e tem a perspectiva de contribuir para a construção de uma base epistemológica e de reflexão critica para os profissionais que atuam com questões da agricultura familiar, como é o caso da produção de farinha. Objetiva também o fortalecimento e visibilidade da identidade cultural desses produtores, em seus contextos socio-histórico, econômico, cultural e ambiental. Casas de farinha e seus cenários de convivências Os agricultores familiares da Comunidade Santo Antônio do Piripindeua organizam espaços específicos para desenvolverem suas práticas de fazer farinha. São as casas de farinha, conhecidas também na comunidade por “retiro” ou ainda, “retirinho”. Na definição do SEBRAE (2008), as casas de farinha são estabelecimentos dedicados à produção de farinha e geralmente se refere a empreendimentos de pequeno porte, em contraste com as grandes farinheiras, que são aquelas voltadas para uma produção em escala industrial. Na expressão de um dos entrevistados: “a gente chama de retiro,

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mas retiro hoje é outra coisa, o certo é casa de farinha mesmo, os indígenas chamavam casa de forno, hoje é casa de farinha” (AFC, 03). Embora se considere a autodenominação de produtores locais que se referem às casas onde se produz a farinha como “retiro”, neste estudo optamos por utilizar a de casa de farinha, por considerar que além da transformação da matéria prima, raízes de mandioca em farinha e, em alguns casos, em outros produtos como a goma e o tucupi, o fazer farinha configura-se como um processo que está para além do resultado final de um sistema produtivo, porque alberga também relações de convivência e vínculos familiares na sua prática. Na Casa de Farinha, onde as práticas são dinamizadas a partir da organização da família nuclear, que estabelece o controle de todas as etapas do fazer farinha, inclusive dos instrumentos de trabalho, foi, neste estudo, denominada de Casa de Farinha Familiar pelo fato de que é o núcleo familiar (pais e filhos) que constitui a força de trabalho no fazer farinha. De acordo com a percepção de um dos agricultores entrevistados, a participação familiar no processo de produção garante a reprodução social do grupo familiar, conforme indica o depoimento a seguir: “A casa de farinha, para mim, é só pra gente de casa mesmo [...]. Tem tanta importância que dali tô tirando o pão de cada dia, direto, toda semana, na casa de farinha” (AFF, 01). A forma de organização dessa atividade produtiva aproxima a família por meio de laços de solidariedade e de colaboração, conforme indica a noção de sociabilidade construída por Martins (2008, p. 32), para quem o trabalhador “em sua produção de subsistência se produzia (e se produz ainda) um mundo de relações sociais não capitalistas”. De acordo com essa ideia, as relações assumem um sentido familiar e comunitário. Na casa de farinha na qual o processo de produção ocorre a partir de diferentes relações de parentesco, de relações de ajuda mútua entre vizinhos, e está localizada em um terreno agrícola afastado da vila da Comunidade, neste trabalho denominamos de Casa de Farinha Mutirão. Várias atividades são desenvolvidas de forma partilhada e por meio do

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espírito de pertencimento, conforme pode-se perceber no depoimento a seguir: “o meu sogro ali, se ele precisar de um serviço lá, se eu não tiver marcado com meus companheiros, eu deixo o meu aqui e vou ajudar ele. Sempre quando vem de lá vem dois me ajudar. É assim que vai” (AFM, 01). Isso acontece, segundo Castro (2000) por haver uma integração entre a vida econômica e social, uma vez que a produção faz parte da cadeia de sociabilidade e a ela é indissociavelmente ligada, facilitando, entre outros, encontros interfamiliares. Na casa de farinha que neste trabalho denominamos de Comunitária, as práticas de fazer farinha são dinamizadas a partir de uma diversidade de relações objetivadas no seu interior, como as de natureza familiar, de compadrio, de trocas, mutirão. Existe uma organização prévia da produção, que é discutida em uma reunião mensal. Essa casa foi instalada por uma política pública, um projeto do Governo Federal em parceria com o poder público municipal, que tem a função de atender não apenas os produtores de farinha da Comunidade Santo Antônio do Piripindeua, mas, também de outras comunidades próximas. A partir das narrativas dos sujeitos produtores de farinha e das observações realizadas constatou-se que nas casas de farinha da comunidade as relações de convivência, mediadoras do fazer farinha, existem sob o formato de: a) Relações familiares, que tem por base a organização social da família nuclear, em que as relações entre pais e filhos se dão unicamente em termos de participação do processo produtivo do fazer farinha; b) Relações de cooperação, que se constituem a partir das relações entre as famílias, de ajuda mútua que envolve a participação de vizinhos, conhecidos, diaristas, ou até, algumas vezes, de familiares que mesmo recebendo pagamento pelo dia de trabalho não possuem carteira assinada ou salários fixos. Essa relação é indicada pelos produtores como sendo uma ajuda ao parente. Em geral, estes sujeitos não participam de todo o processo produtivo, mas apenas de alguma(s) prática(s) que são previamente estabelecidas pelo “dono da farinha”. Trata-se de relações que guardam semelhanças com a concepção de relações pré-capitalistas de Marx (1985), para quem o trabalhador é

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o proprietário das condições objetivas do seu trabalho. Independente de qual seja a denominação, ele possui uma existência objetiva, o que permite que o indivíduo seja em relação a si mesmo, proprietário e dono das condições de sua realidade. A organização do espaço para fazer farinha e seus processos educativos O fazer farinha inclui um conjunto de práticas que vai além de plantar e de colher a mandioca, uma delas é a organização dos espaços das casas de farinha. O estudo revelou que existe por parte dos agricultores a preocupação com a organização e manutenção dos espaços que são apropriados e usados nas diferentes etapas do processo produtivo, como indica a seguinte fala: “Meu dia de trabalho no retiro: começo arrumar tudo, direitinho, começa a botar a mandioca, vai trabalhando, trabalhando, quando chega o final do dia limpo todinho, [...] pra começar de novo” (AFF, 01). As raízes, em geral, são armazenadas em espaços que por sua localização, facilitam a entrada ou aproximação do carro de boi ou outro meio de transporte. O depoimento a seguir identifica a ampliação e reorganização do espaço existente, em face do uso pelas famílias: O espaço estava pequeno demais. Tem semana que tem aqui oito famílias, precisou aumentar mais (...) melhorou muito. O cara que está trabalhando aqui sabe a necessidade, pra trabalhar, aí (na mudança do espaço) fizemos em três diárias, cada dia, veio cinco, seis... No primeiro dia, foi tirado as caixas de dentro tudinho. No segundo dia, foi lavado e colocado o piso e no terceiro dia foi pra arrumar tudinho. Ficou bom (AFC, 07).

Essa fala evidencia que os agricultores sentiram a necessidade de modificar a arquitetura original da Casa de Farinha Comunitária, ampliando o espaço físico com a construção de uma área, onde armazenam as raízes de mandioca e realizam o descascamento. Essa ampliação foi necessária em decorrência de que, em alguns dias, o número de famílias que produzem farinha nessa casa era superior à sua capacidade. Como

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afirma Gadamer (1999), as obras arquitetônicas não estão à margem da história, uma vez que esta as arrasta consigo, faz parte de sua vivência ou da relação das pessoas com os lugares em determinado tempo. Nesse sentido, a organização do espaço das casas de farinha incorpora um saber que emerge das relações de (con)vivência ou da relação com o espaço praticado, e resguarda, de acordo com o pensamento de Freire (1985), a dimensão de uma educação humanista e libertadora, uma vez que mostra a tomada de consciência que se opera nos homens enquanto agem e trabalham. A organização do espaço demonstra uma ordenação sequencial do saber-fazer farinha. Em referência ao processo de produção, o primeiro espaço é reservado à “acolhida” das raízes, na sequência, a apropriação do espaço é feita para o desenvolvimento da prática do descascar a mandioca, que em seus discursos, os agricultores também denominam de “prática de raspar”. Ao perguntar o porquê dessa variedade de denominações, uma agricultora explicou: Pra nós, que torra a farinha da massa, porque eles [de outra comunidade] que mexe com goma, essa parte que fica [próxima à casca] não é aproveitada, por isso que eles fazem o raspador. Na Ponte Nova, no mesmo da que eles sevam eles tiram a goma, né? Se eu raspar e deixar a mandioca aí, no outro dia, ela está toda roxa, por isso, que nós faz descascar (AFC, 01).

Ficou evidenciado nesse discurso que para fazer a goma, “raspar as raízes” é mais indicado, porque o amido é preservado. Entretanto, na comunidade a atividade inicial de beneficiamento da raiz é o descascar, porque ali a mandioca é destinada primeiramente para fazer farinha, portanto, é a técnica mais apropriada para fazer farinha por impedir que as raízes passem por alteração na sua coloração original. O descascar, conforme retrata a figura 01, consiste em “cortar a casca”, e o raspar, como mostra a figura 02, configura-se apenas na prática de “passar a faca na casca da mandioca” (AFC, 01).

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FIGURA 01 - O DESCASCAR

Fonte: Silva (2010).

FIGURA 02 - O RASPAR

Fonte: Silva (2010).

Antes, quando eu era solteira, a gente não descascava, a gente colocava de molho, no igarapé, né? E depois ia tirando tudo com a mão. Já viemos descascar assim, depois do motor, antes, deixava de molho pra ficar bem molezinha pra depois socar com a mão de pau, agora não, tem que descascar assim, [utilizando instrumentos cortantes] pra poder passar no motor (AFC, 01).

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O discurso acima evidencia que a necessidade de mudança na prática do descascamento das raízes da mandioca relaciona-se com a introdução de outros artefatos e tecnologias, como motor a diesel. Essa mudança exigiu que o saber descascar, fosse reelaborado e/ou reconstruído, uma vez que, no período anterior ao uso do motor a diesel, os agricultores usavam apenas as mãos para o descascamento. Atualmente são utilizados instrumentos cortantes para preparação da matéria prima antes de sevar. De acordo com as observações realizadas durante o trabalho de campo, à organização das casas de farinha configura um cenário que permite, conforme mostra a figura 03, o encontro de gerações e de socialização de informações e saberes. Trata-se de saberes da experiência que foram adquiridos ou socializados nos fazeres cotidiano de homens e mulheres, que por serem sujeitos da práxis, constroem seus projetos de vida, resistem e “tecem representações sobre o mundo vivenciado” (OLIVEIRA, 2008, p. 64). FIGURA 03 – A PRÁTICA DE DESCASCAR

Fonte: SILVA (2010).

Os registros dão conta de que o descascamento por vezes, é realizado por etapas: a mãe “faz o capote” e o filho “tira o capote”. Fazer

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o capote significa descascar a parte superior da mandioca, que é a parte mais grossa e mais difícil, enquanto tirar o capote consiste no ato de retirar a casca da parte inferior da raiz. Em uma das ocasiões durante a realização da pesquisa, presenciei um diálogo entre mãe e filho a respeito de fazer ou não o capote, o filho dizia: “eu vou tirar, eu já sei fazer o capote”. Fazer o capote quer dizer dominar uma técnica de descascamento. A mãe, no entanto, desaconselhava a fazer: “não faz o capote, se não a mandioca escurece! (AFF, 02)”. Em outras palavras, compromete a qualidade da farinha. Este diálogo indica que fazer o capote é tarefa para os mais experientes, enquanto tirar o capote é atividade que pode ser praticada por aqueles que estão iniciando. O fazer o capote facilita o descascamento e configura-se como uma prática educativa, pois, durante a sua realização são feitas várias orientações e/ou observações pelos que possuem mais experiência. Uma das orientações em relação à manutenção do capote é com relação à higiene da matéria prima durante seu manuseio, pois, contribui para que a parte já descascada da raiz seja mantida com menos impurezas, o que agrega qualidade ao produto. Essa ideia fica evidente no depoimento de uma agricultora ao responder o que era fazer o capote: É descascar meia mandioca e deixar meia, faz parte da limpeza também, porque se eu pegar aqui [mostra a parte limpa] eu já sujei, né? Aí o outro pega aqui [gestos], aí já não tem mais essa sujeira que descascar assim [toda a mandioca] e também fazendo o capote sai mais rápido. De primeiro, a gente não fazia isso não, a gente aprendeu com um cearense que veio pra cá, trouxe essa técnica de descascar a mandioca e nós aprendemos assim (AFC, 01).

O depoimento demonstra que há na prática de fazer farinha um processo de aprendizagem, no contexto do qual, procedimentos que fazem parte do saber-fazer farinha são socializados não apenas entre

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pais e filhos da comunidade, mas até mesmo entre pessoas que vieram de outras regiões ou territórios, o que indica que estes sujeitos no que se refere à construção ou reconstrução de seus saberes são favoráveis a aprendizagens que facilitem o seu fazer. Ou, como se refere Charlot (2000), existe um diálogo de saberes locais e saberes de fora. Nesta perspectiva, é possível considerar a casa de farinha como cenário de educação que se aproxima da ideia de ‘cenários de cultura’ de Brandão (2002, p. 21), pois, “propicia aos que ali convivem, a internalização não apenas de coisas, habilidades, condutas, saberes e valores, mas aprendizagem, [...] interações e integrações complexas de e entre tudo isto”. Se para alguns agricultores o saber descascar é fácil, para outros não. Trata-se de uma prática que exige, além do manuseio de uma ferramenta que é uma faca amolada, um conhecimento que ajuda a identificar as espécies de mandioca que podem ou não comprometer a qualidade da farinha, como revela o depoimento a seguir: “o cara corta a mandioca, muitas vezes, tem vários tipos de mandioca que deixa a farinha ruim, boa, amarga, às vezes. Se a pessoa não sabe identificar, tá rodado” (AFC, 05). Nesse sentido, Freire (1985) considera que no processo de aprendizagem, só aprende os que se apropriam do conhecimento, o transformam e o reinventam, com a possibilidade de aplicá-lo em situações concretas. Durante a realização da pesquisa, observou-se que a prática do descascamento favorece o diálogo e a manifestação de processos educativos e de formação. Em um desses diálogos, uma mãe na Casa de Farinha Comunitária disse para a filha adolescente: “não pegue para descascar somente as grandes, não!”, referindo-se ao tamanho das raízes da mandioca. Esta fala expressa a percepção da mãe de que não é justo deixar para as outras pessoas as raízes menores, já que é um manuseamento mais difícil. São valores éticos que, ao serem socializados no cotidiano das casas de farinha, promovem a educação do ser humano no sentido de construir relações de (con)vivência baseadas na justiça e equidade.

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Essa educação identificada nas casas de farinha está presente em diferentes práticas, como, por exemplo, na prática da lavagem. O seu desenvolvimento é quase sempre realizado próximo à cevadeira. Lavar a mandioca demonstra um zelo no fazer farinha, um saber construído no cotidiano e materializado no cuidado com a limpeza das raízes, conforme se pode perceber no discurso a seguir. A gente tem que jogar a mandioca para dentro do tanque da casa pra poder a gente começar a fazer a farinha, porque se a gente ir só daqui e chegar lá, não zelar das coisas da gente ...porque a gente tem que lavar a mandioca, não é só chegar lá e jogar pra dizer que a gente vai fazer a farinha não, a gente tem que lavar (AFC, 01).

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No entanto, nem todos os agricultores procuram colocar em prática esse zelamento. “Tem gente que faz a farinha, mas, não zela a mandioca. Só faz chegar com a mandioca, joga lá, não lava. Traz do roçado, só vai lavar ela, joga lá e pronto, e já vai torrar. Tem que primeiro lavar ela” (AFC, 06). Por alguns não participarem dessa assimilação social ou aprendizagem (PAIS, 2008), as tensões se manifestam, uma vez que os sujeitos que buscam manter o zelo no fazer farinha passam a criticar os que não têm o hábito de zelar. Na medida em que as etapas do processo de fazer farinha vão sendo realizadas, torna-se mais evidente que a organização do espaço das casas de farinha influencia direta ou indiretamente contribui no desenvolvimento dessa prática produtiva. Por exemplo, é possível perceber que: “A cevadeira fica próxima da prensa; a prensa, a cevadeira e a canoa onde se peneira têm que ficar próximas umas das outras. Porque da cevadeira vai pra prensa e não pode ficar longe” (AFM, 02). Alguns espaços das casas de farinha demandam cuidados e mais atenção dos pais com relação à aproximação dos filhos, como é o caso da cevadeira, onde se seva a mandioca, prática inerente ao processo do fazer farinha. Crianças e adolescentes são orientados a manterem-se afastados deste espaço. Essa orientação acontece em virtude dos riscos de acidente que o motor representa em funcionamento: “agora já faz quase tudo,

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quando era menor, de pequeno começou assim, rapava mandioca, ele só não fez foi sevar mandioca, que eu tenho medo dele sevar ainda” (AFF, 01). O cuidado demonstrado por alguns adultos em relação à presença de crianças na casa de farinha é uma atitude que demonstra atenção, ou como afirma Boff (2008, p. 33), “o cuidar é mais que um ato”, é zelo, desvelo, preocupação, responsabilização, envolvimento afetivo com o outro. Na casa de farinha mutirão a prensa fica localizada na parte dos fundos da casa. Sua localização é explicada na fala de uma produtora: “você não pode sentar ela pra cá [na frente da casa], no meio ou na chegada tem que ser sempre no final, porque o tucupi escorre. Se ficar pra cá, vai molhar tudo, olha como fica aí no fundo” (AFM, 02). Ao considerar que a prensa não poderia ficar localizada na frente da casa, essa fala revelou a preocupação com a estética da casa de farinha, ou conforme Brandão (2006) há uma condição de permanente recriação da própria cultura, que se realiza uma experiência humana subjetiva e intersubjetiva. Saberes que a organização do espaço revela No item anterior as análises mostram que saber organizar os espaços das casas de farinha incorporam práticas que vão para além do processo produtivo, revelam processos de socialização de saberes e experiências, que não só valorizam a qualidade do produto final como também mantém a tradição da prática de fazer farinha. Neste item as análises buscam dar conta dos saberes que estão inscritos na organização do espaço, que também se configura como um saber que incorpora um conjunto de práticas e iniciativas. Um dos saberes que a organização da casa de farinha revela é o saber prensar. De acordo com o conhecimento local, prensar “é enxugar a massa, a massa fica prensada lá dentro, coloca no saco pra prensar” (AFC, 01). Prensar configura-se como uma atividade, cuja realização demanda um saber experiente, ou seja, é realizada pelos mais experientes, porque nem sempre é o que parece à primeira vista, conforme indica o depoimento a seguir: o cara vê no plano de cima: “tá boa”. Mas, quando

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olha debaixo, às vezes sempre o canto fica mole. Às vezes as outras pessoas que estão acostumados dizem: “Pode tirar, que já tá bom já” (AFC, 05). Dessa maneira, o saber-fazer farinha é perpassado por um conhecimento técnico, que nas relações cotidianas é compartilhado como se fosse um segredo de como fazer farinha de boa qualidade. Assim, ao realizarem as práticas coletivamente, os agricultores criam possibilidades para demonstrarem a experiência acumulada e promoverem a socialização desse saber como uma prática educativa. Outro saber que emerge como parte do desenvolvimento das práticas de fazer farinha, é o saber peneirar. Ao referir-se a essa prática, uma agricultora explicou: “quando a massa vem lá da prensa, ela ainda vem com uns pedaços de mandioca” (AFM, 02). O saber peneirar permite, entretanto, que a massa passe por um processo de refinamento. Assim, descascar e peneirar são os primeiros saberes que são ensinados aos que estão aprendendo a fazer farinha, conforme demonstra o discurso: Eu iniciei com meu pai, porque a gente aprende logo com a família da gente, assim como meus filhos vão aprendendo com a gente, desde, peneirar uma massa, que é isso que tu dá conta, vai descascar uma mandioca, aí a gente vai aprendendo, vai crescendo e vai aprendendo cada vez mais, né? (AFM, 02).

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Assim, é por meio de um processo de ensino aprendizagem que crianças, jovens, homens e mulheres agricultores aprendem e se apropriam dos diferentes saberes que fazem parte do saber-fazer farinha. Por exemplo, antes de saber peneirar, precisam saber descascar para alcançar o conhecimento mais amplo da prática de fazer farinha. Em outras palavras, o discurso revela que há uma distribuição das práticas de acordo com o acúmulo de conhecimento dos sujeitos, que começa pelo que “dá conta” do saber-fazer, sempre orientado por um olhar familiar. Para Brandão (2007), entre os que ensinam e aprendem o saber atravessa, entre outros, os códigos sociais de conduta ou as regras de trabalho. Nesse sentido, nas casas de farinha, os sujeitos aprendem na prática, “vão crescendo” e ao mesmo tempo vão construindo e ampliando

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o saber inicial, até mais tarde terem autonomia na realização da prática de fazer farinha, a partir dos seus próprios saberes. Na Casa de Farinha Mutirão fica evidente de como a aprendizagem a partir da prática, influencia no saber organizar o espaço. Naquela casa, a partir do segundo esteio do lado direito, surge uma fileira composta de três fornos de cobre, como mostra a figura 04, que ficam distantes um do outro cerca de setenta centímetros. Essa disposição, de acordo com uma jovem agricultora acostumada a torrar farinha guarda relação com uma prática preventiva “porque o vento leva a fumaça pra lá. Se fosse do outro lado, o vento, o vento vem e carrega a fumaça e fica tudo no rosto da gente e a gente não consegue mexer a farinha [...] o forno é de acordo com o vento” (AFM, 02). FIGURA 04 – A DISPOSIÇÃO DOS FORNOS NA CASA MUTIRÃO

Fonte: Silva (2010).

Esse saber prático orienta não só a disposição dos instrumentos de fabricação da farinha, mas, também as interferências que fenômenos da natureza podem ocasionar nas condições de trabalho dos agricultores. Freire (2008) considera que a prática nos ensina, ou seja, no trabalho,

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o ser humano usa o corpo inteiro, e isso faz dos trabalhadores da roça, intelectuais também. Guarda em cima, pras crianças não pegarem e ficar mexendo no chão. Então parou o serviço, boto lá e quando for torrar, se ficar sujo o cabo, a pessoa tem que lavar, botar pra enxugar, pra quando chegar a hora de torrar, já está no jeito de sair (AFM, 02).

Essa fala revela que os rodos que manuseiam a torração da farinha são guardados, após o uso, próximo do telhado e da prensa, para que se tornem inalcançáveis para as crianças. Essa ação mostra o cuidado em preservá-los de sujeiras, por serem instrumentos que são colocados em contato direto com a massa da farinha. Para Silva (2008) os sujeitos são capazes de construírem habilidades e atitudes frente a situações socioambientais que permitem incorporarem-se no trabalho coletivo, em práticas onde o exercício da solidariedade objetiva um ambiente saudável. Na distribuição das práticas, por exemplo, saber torrar é um fazer desenvolvido pelos que possuem mais experiência, porque envolve técnicas de aperfeiçoamento que só o tempo pode assegurar: “nós chama de torrar e pra deixar ela bem sequinha, escalda, põe pra escaldar, que diminui a quantidade de água que ela tem” (AFC, 02). Trata-se de uma prática que está diretamente relacionada com a qualidade final da farinha. O que dá a cor na farinha é o escaldamento dela. Se você não escaldar, dá uma farinha ruim, não é uma farinha cheirosa, aí a gente escalda ela, e depois que ela estiver escaldada passa pra ali (indicou o outro forno). Passou daqui o fogo, é de um jeito, pra escaldar o fogo é de um jeito pra torrar é de outro, pra escaldar o fogo é mais alterado, tem que ser mais quente o forno que é pra poder dá essa liga que a gente chama, mas, também se passar muito vai ficar só uma cola e do jeito que ela tá ali (indica o outro forno) tem que ser com o forno bem brando, que é pra poder não queimar o pó, pra ela sair bem branquinha (AFC, 02).

O discurso acima demonstra o conhecimento sobre a técnica do

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escaldamento, que é o procedimento que assegura o sabor característico à farinha. Para isso, saber controlar a temperatura adequada do forno aprimora sua qualidade. Essa técnica pode ser explicada por um conjunto de conhecimentos (químicos, físicos, biológicos) que permitem a transformação da massa da mandioca in natura, em farinha, que embora os agricultores não expressem ou não se deem conta, é inerente ao processo. Depois que a massa “dá a liga”, é preciso uniformizá-la. O forno é desligado e a massa é retirada para ser esfarelada. Para facilitar a execução dessa prática, a caixa do esfarelador é disposta próxima do forno de escaldamento. Esse saber é essencial para garantir que os grãos da farinha fiquem uniformes na torração. Esses conhecimentos são inerentes ao tratamento técnico da massa de mandioca, por isso na fala de um agricultor, para “fazer farinha”: É preciso o cara saber trabalhar, saber quando tá no ponto de tirar. O mais difícil é o cara torrar ela. Mas agora não, agora é muito fácil, quando era no rodo, deixava o cara cansado, quando era mais novo não dava conta não, mas, agora está mais fácil pra mexer. Se não souber mexer, tem o risco de queimar a farinha. É mais fácil de fazer porque tem o forno elétrico já (AFC, 05).

Esta fala evidencia que o saber torrar era considerado um dos saberes mais relevantes do fazer farinha. Isto se deve ao fato de que nas casas onde a prática da torração ainda é manual, ou onde se “puxa a farinha” é exigido do torrador mais esforço físico e atenção em sua realização. A torração da farinha nos fornos manuais é feita com a ajuda do rodo. O seu manuseio requer uma habilidade técnica, cujo saber é construído também pela observação atenta dos sujeitos: “O rodo tem que botar na posição certa para puxar e para empurrar. Na escaldação, ele para empurrar pode amassar, e é só puxar, vai amassando e vai afinando” (AFM, 02). Para torrar a farinha, os rodos são movimentados com força e técnica. Geralmente os torradores manuseiam a farinha de um lado para

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o outro, jogam pra cima, como mostra a figura 05, prática que requer uma multiplicidade de movimentos corporais. Talvez, por isso, nem todos os torradores conseguem ter domínio dessa habilidade: “eu não sei jogar a farinha pra cima” (AFM, 01), afirmou o mais experiente produtor de farinha da Casa Mutirão. FIGURA 05 – A FINALIZAÇÃO DA TORRAÇÃO

Fonte: Silva (2010).

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O jogar a farinha para cima configura-se em um movimento de finalização da prática da torração e possui uma finalidade que é eliminar componentes que não qualificam a farinha de acordo com os padrões regionais. Assim: “jogando a farinha pra cima sai o farelo e o cuí, o cuí é bem pequeninho, é o pó, e o farelo é cumprido” (AFM, 02). Da mesma forma, o movimento de manuseio do rodo, possibilita que o pó queimado da farinha seja retirado, melhorando sua qualidade. Entretanto, na Casa de Farinha Comunitária, a maneira como os fornos estão dispostos no seu interior permite que os torradores, homens e mulheres, circulem ao seu redor, o que facilita a prática do escaldamento e torração. Nessa casa, o forno fica para o lado esquerdo: “fica para o outro lado, porque lá é tampado, fica uma parede” (AFM, 02). De acordo

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com as informações locais, para que a prática da torração da farinha seja realizada de maneira mais rápida, na Casa de Farinha Comunitária, os agricultores não manuseiam rodo como nas demais casas pesquisadas. O tipo de forno requer o manuseio de outro utensílio, as palhetas, como mostra a figura 06, cujo formato é semelhante a uma espátula e são confeccionadas em madeira. FIGURA 06 – O MANUSEIO DA PALHETA

Fonte: Silva (2010).

Nas palavras de um torrador: “as palhetas são utilizadas para ajudar na torração da farinha, mas tem que saber usar, pode machucar o braço no forno” (AFC, 07). O cuidado revelado está associado ao tipo de forno, pois, os cilindros, fazem as espátulas girarem, mas, não realizam sempre a mesma trajetória no forno. Em alguns momentos as espátulas se aproximam das bordas e em outros, distanciam-se. O manuseio da palheta requer uma habilidade técnica, que só é adquirida por meio do aprender - fazendo. Na percepção dos agricultores com a introdução do forno elétrico, a prática da torração, trouxe modificações neste saber, permitindo que os agricultores o reconstruíssem, pois ao invés de “puxarem a farinha”, utilizam as espátulas na prática de manusear a farinha. Conforme Freire

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(1983) o ser humano é um ser histórico e inserido num permanente movimento de procura, possui a capacidade de fazer e refazer constantemente o seu saber. Em conversa, um dos agricultores relatou conhecer pelo barulho da farinha e pelo cheiro, a hora certa de tirar do forno. A experiência deste agricultor remete ao pensamento de Certeau (2008, p. 219), para quem o preparo de alimentos “exige uma inteligência programadora: é preciso calcular com perícia o tempo de preparação e de cozimento”, além de uma “receptividade sensorial que também intervém”. O saber organizar o espaço possibilita que os sujeitos realizem duas práticas em um mesmo lugar, na caixa (canoa), onde a farinha é resfriada e posteriormente classificada. Classificar implica em peneirar a farinha para retirar a “coruba”, que são grãos maiores que não foram desfeitos no escaldamento, refinando o produto. Na Casa Mutirão, a “coruba” é triturada no pilão e na Casa Comunitária, passa-se em um esfarelador, que uniformiza os grãos para que sejam incorporados à farinha já beneficiada. Na Casa de Farinha Comunitária, alguns espaços foram redimensionados a partir da percepção de que a proximidade da caixa de resfriamento da caixa de sevar poderia umedecer a farinha e comprometer sua qualidade. Dessa forma, fizeram o deslocamento das caixas de resfriamento para o espaço que fica próximo de onde se pesa a farinha. Esse deslocamento da caixa de resfriamento, juntamente com o da caixa de esfarelamento que não estava sendo utilizada, permitiu ampliar um pouco mais o espaço da casa, o que demonstra que a organização do espaço, informa saberes práticos, os quais, os sujeitos produtores são portadores, assim como guardam relação com as práticas que são desenvolvidas no processo.

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Considerações finais Na introdução foi revelada a intenção dessa pesquisa transgredir a ideia das casas de farinha ser consideradas apenas como espaços de produção material. Nesse sentido, o diálogo com teóricos de várias áreas

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do conhecimento contribuiu para a interpretação e análise de saberes e práticas educativas, que emergem dos processos de apropriação e usos desses espaços e das práticas cotidianas de fazer farinha dos agricultores familiares. A pesquisa revelou que o fazer farinha requer de saberes que são transmitidos por meio da oralidade e de experiências que socializados pelos portadores desses saberes, cuja aprendizagem se dá na prática, nas vivências dos aprendizes, que buscam seguir o exemplo dos que possuem mais habilidade na execução das práticas de fazer farinha e não são construídos de forma isolada, mas, guardam relações de interdependência entre si. De maneira que o saber colher depende do saber plantar a maniva, que saber cuidar da casa e dos instrumentos influencia na qualidade do produto e, portanto, agrega valor na prática da comercialização. Ou ainda, que manusear os instrumentos e utensílios, guarda relação com a prevenção de acidentes dos praticantes e informa saber cuidar de si e do outro. Esses saberes, de acordo com os agricultores, enaltecem a qualidade da farinha que produzem, por isso, buscam aperfeiçoar cada vez mais suas práticas, ampliar seus conhecimentos. Eles defendem a necessidade de zelar na/pela prática de fazer farinha como maneira de fortalecer suas identidades de agricultores familiares camponeses, com isso, evidenciam a farinha como símbolo da comunidade. Dessa forma, é possível afirmar que nos cenários das casas de farinha, os saberes são construídos num movimento espiralar, a partir das relações de convivência dos agricultores, que dinamizam os processos socioeducativos de maneira lenta e gradual: os menos experientes vão se inserindo e sendo inseridos nas práticas consideradas mais fáceis de aprender e guardam relação com o desenvolvimento de suas capacidades físicas e cognitivas. Essa “educação familiar” que os pais desenvolvem com as crianças, permite a inserção, delas, desde cedo no fazer farinha e previne possíveis resistências ao processo produtivo ou à sua aprendizagem, pois, na percepção deles (pais), depois que crescem, interessam-se menos por essa atividade.

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Portanto, considera-se que os resultados da pesquisa trouxeram indicações de estudos de outras questões como: o processo de socialização de saberes; o diálogo com as práticas dos jovens agricultores familiares; as relações de gênero nas casas de farinha, a invisibilidade da mulher camponesa, entre outros. Referências

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Parte II REPRODUÇÃO SOCIOECONÔMICA

CAPÍTULO 4 HOMENS, MULHERES E ARTEFATOS NA PRODUÇÃO DA FARINHA DE MANDIOCA NO ALTO RIO JURUÁ-ACRE

Lucia Hussak van Velthem1

Introdução A farinha de mandioca conhecida como “Farinha de Cruzeiro do Sul” é produzida em grandes quantidades e comercializada em municípios do Alto Rio Juruá, Estado do Acre. Possui destaque de venda nos estados vizinhos, sobretudo nas cidades de Manaus e Porto Velho, e alcança, ainda o Estado do Paraná2. Adquiriu reputação favorável em decorrência das características que apresenta e por qualidades que se revelam no paladar, por se tratar de uma “farinha especial”. Nos últimos anos, várias cooperativas e instituições públicas interessaramse pelo potencial econômico desta farinha de mandioca e passaram a explorar meios de valorizar esse produto e de melhorar a sua qualidade, pois foi considerada sem uniformidade, em decorrência do processo de produção (VELTHEM e KATZ, 2012). Paralelamente, iniciativas governamentais procuram garantir a tradição de produção artesanal da 1 MPEG/SCUP – Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. 2 Os comerciantes de Cruzeiro do Sul afirmam que a farinha que produzem é misturada no Paraná à farinha local para dar-lhe tempero e assim torna-la mais saborosa.

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farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul, com vistas a aplicar-lhe o rótulo de indicação geográfica3 (EMPERAIRE et al., 2012). A produção da “Farinha de Cruzeiro do Sul” é artesanal e exige conhecimentos e habilidades técnicas de homens e mulheres. Localmente, a sua percepção representa o resultado de um processo que compreende múltiplos indicativos, relacionados com os saberes e as técnicas de produção com as potencialidades dos cultivares e também com os significados e efeitos produzidos pelos artefatos empregados. Constitui o resultado de um processo rotulado enquanto “pensamento da prática” (MATHIEU et al., 2004: 21) que é construído a partir das experiências e conhecimentos dos produtores, nas condições sociais que lhes são próprias. A atividade produtiva que resulta em uma “farinha especial” possui componentes culturais que se conectam ao histórico de migrações dos produtores das regiões áridas do Nordeste para as terras de florestas úmidas da Amazônia, e também da atualidade dos sistemas sociais de trocas e da transmissão de experiências e de informações. Implementos específicos são necessários para a produção de farinha de mandioca. Estão instalados em uma estrutura específica, conhecida no Acre como casa de farinha. Ao ser visitada, se apresenta como um espaço que abriga artefatos e utensílios ásperos e rudes, sem maiores atrativos do que a capacidade de processar as raízes de mandioca. As exegeses dos proprietários e usuários das casas de farinha do vale do Juruá revelaram um universo material extremamente estruturado, tanto do ponto de vista conceitual como relacional, aspecto que representa um dos principais eixos de sua valorização. Essa constatação permitiu que os dados coletados estabelecessem um diálogo com os recentes estudos de cultura material, cujas análises se baseiam, sobretudo em sua agencia, em termos do que as coisas fazem (STRATHERN, 1988 e GELL, 1992, 1998), e menos nas estruturas formais e materiais. Na presente abordagem dos artefatos das casas de 3 Entre as quais está a EMBRAPA - ACRE (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

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farinha do Acre, foi repensada a própria noção de objeto para se enfocar questões que pudessem extrapolar as dimensões estritamente conectadas com a sua materialidade e atuação funcional. Essa abordagem salientou a possibilidade de se observar as complexas “relações entre as séries humana e não humana” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 364) que são estabelecidas no trabalho que é executado na casa de farinha. Neste artigo busca-se, assim, compreender os utensílios empregados neste espaço a partir da apreensão dos próprios produtores. Estes enfatizam que os artefatos são capazes de se organizarem socialmente, de articularem e construírem interações e relacionamentos que se caracterizam por serem de diferentes ordens. FIGURA 1 – O ALTO RIO JURUÁ E A COMUNIDADE DE BELFORT

Fonte: LHVV.

As pesquisas foram realizadas em 2007 e 2008 no âmbito de um projeto multidisciplinar sobre agrobiodiversidade e conhecimentos tradicionais nos municípios de Cruzeiro do Sul e de Marechal Thaumaturgo4. No primeiro município, os estudos concentraram4 Programa PACTA, “Populações Locais, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados na Amazônia”, CNPq - Unicamp / IRD – UR 169, n° 492693/2004-8 com financiamentos IRD, CNPq, ANRBiodivalloc e BRG. Autorização 139, DOU (04/04/2006). As pesquisas de campo na Vila São Pedro e nos ramais dos Paulino, Macacos e Cruz ocorreram em novembro/dezembro 2007 e na comunidade de Belfort e sitio do Caxixo em maio 2008.

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se na Vila São Pedro, atravessada pela rodovia BR 364, e nos sítios da vizinhança, localizados nos ramais dos Paulino, dos Cruz, dos Macacos. Em Marechal Thaumaturgo compreendeu a comunidade de Belfort, instalada às margens do alto Rio Juruá e o sitio do Caxixo, no afluente Rio Tejo, em território abrangido pela Reserva Extrativista Alto Juruá (REAJ)5. Os sítios6 e também a comunidade nos municípios mencionados são habitados por famílias de pequenos proprietários rurais. Constituem agricultores familiares, pois são “portadores de uma tradição, (cujos fundamentos são dados pela centralidade da família, pelas formas de produzir e pelo modo de vida) mas que devem se adaptar-se às condições modernas de produzir e de viver em sociedade, uma vez que estão inseridos no mercado moderno e recebem a influência da chamada sociedade englobante” (WANDERLEY, 2003:47-48). Farinhada: o dia da produção de farinha A produção agrícola no Estado do Acre baseia-se principalmente em quatro cultivos: mandioca, milho, arroz e feijão (BERGO, 1993). Entretanto, como ocorre em toda a Amazônia, verifica-se que a mandioca constitui o elemento básico para a alimentação, sob diversas formas: farinha, beiju, bolo, ou então simplesmente cozida. As variedades de mandioca usadas pelos agricultores do vale do Rio Juruá são em sua maioria mansas, tais como caboquinha, mulatinha, amarelinha, santa rosa, fortaleza, curimé, mas existem duas variedades um pouco tóxicas, a mansi-braba e a panati. A listagem da ocorrência de outras subespécies é muito mais ampla, pois foram mencionadas três dezenas para a Reserva Extrativista do Alto Juruá (EMPERAIRE, 2002), e uma dúzia de variedades de mandiocas para os roçados da Vila São Pedro (RIZZI, 2011). O fator que determina o plantio de certa variedade de mandioca é seu rendimento quando da produção de farinha para venda e consumo.

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5 Foram entrevistadas vinte e nove famílias. Dezesseis vivem em sítios nos ramais dos Paulino, dos Macacos e dos Cruz -São Pedro - e treze na comunidade de Belfort e Caxixo. 6 Os sítios são identificados nominalmente, tais como São José, Boa Esperança, Deus me Ajude, São Raimundo, Boa Vista e outros.

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Os produtores instalados nos ramais no entorno da Vila São Pedro chamam todas as variedades cultivadas de mandioca7, ao passo que na comunidade de Belfort o termo macaxeira é mais corriqueiro. Esse tubérculo é considerado “como um legume” (RIZZI, 2011:116) dotado de cabeça e rabo, cuja parte interna, a carne, é envolta por uma pele. A maniva ou planta de mandioca é também identificada como roça, mas o lugar de cultivo de mandioca é designado como roçado. FIGURA 2 – CASA DE FARINHA NO RAMAL DOS PAULINO

Fonte: LHVV.

O sistema de cultivo da mandioca, praticado no vale do Rio Juruá, constitui um processo tradicional em que os roçados são instalados em sucessão à vegetação primária ou em áreas de capoeira, após a limpeza, derrubada e queima da vegetação existente. Após o terceiro ano a área de plantio é considerada de baixa produtividade e é abandonada (SANTOS et al., 2003; RIZZI, 2006; SIMONI, 2009). O local e a composição do solo em que a mandioca foi plantada influenciam diretamente na qualidade de suas raízes e, futuramente, da farinha que é produzida. O processo de produção da farinha ocorre em um espaço específico, designado como casa de farinha8, que abriga grandes e 7 Os termos de uso local foram identificados em itálico em sua primeira apresentação no texto. 8 A denominação “casa de farinha” predomina nos estados do Norte e Nordeste, e constituem estruturas produtivas

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complexos artefatos utilitários. Esses locais podem ser individuais ou coletivos, como é o caso das casas de farinha geridas pelas cooperativas ou então construídas através de programas governamentais. Nas casas de farinha do primeiro grupo, o processamento da mandioca congrega toda a família, porém em funções diversificadas e, em São Pedro, trabalhadores diaristas, não aparentados. Os homens executam a maioria das tarefas, exceto descascar os tubérculos, uma atribuição sobretudo feminina. O ciclo de produção de farinha constitui uma puxada e se prolonga por dois ou três dias, incluindo atividades nos roçados e na casa de farinha. Nos municípios de Cruzeiro do Sul, Rodrigues Alves e Mâncio Lima existem cerca de 2.000 casas de farinha9. Na Vila São Pedro e nos ramais foram minuciosamente inventariadas doze casas de farinha de aspecto e dimensões diferenciadas. Nesta região predominam as estruturas de uso familiar o que corresponde aos pais, filhos casados e outras pessoas ligadas por compadrio. No ramal dos Macacos foi registrada uma casa de farinha que é de uso coletivo. Em Marechal Taumaturgo, o levantamento abrangeu três casas de farinha, duas delas de uso coletivo. Localizam-se preferencialmente em área que apresenta ligeiro declive em relação às residências, mas suficientemente próximas para serem constantemente admiradas e vigiadas. Algumas casas de farinha podem ser cobertas de folhas da palmeira caranaí, chão de terra batida e serem desprovidas de paredes, outras têm cobertura metálica, piso cimentado e meias paredes de alvenaria e telas de náilon. Entretanto, todos os tipos possuem dois espaços distintos: o corpo e a varanda. O corpo corresponde à parte central e é relativamente espaçoso, abrigando o instrumental para o processamento da mandioca. As varandas são em número variável e estão dispostas nas laterais e na parte de trás das casas de farinha, onde se abrem as fornalhas e se amontoa a lenha. Nos dois municípios mencionados, os homens atribuem o sucesso da produção de uma farinha de qualidade à utilização adequada dos objetos empregados. As mulheres, entretanto, julgam que é a matéria-

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baseada na mão-de-obra familiar. 9 Segundo técnico da SEAPROF – ACRE (Secretaria de Estado de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar).

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prima o elemento determinante, muito embora algumas reconheçam que é a conjugação desses dois condicionantes que resulta em uma boa farinha. Ao estabelecerem esta distinção, homens e mulheres revelam a esfera em que mais especificamente atuam, e na qual possuem mais amplos conhecimentos. O dia de fazer farinha é conhecido como sendo o da farinhada, um termo corriqueiro na Amazônia para essa atividade (FRAXE, 2004, EMBRAPA, 2005). Antes do início dos trabalhos, a casa de farinha é previamente varrida e os utensílios são cuidadosamente limpos e lavados. A limpeza dos objetos é reconhecida como sendo um aspecto fundamental para a produção de uma boa farinha, pois evita que a massa de mandioca azede rapidamente. Em São Pedro, a produção de farinha tem início de manhã bem cedo nos roçados, quando as raízes são arrancadas e posteriormente conduzidas em carro de boi até a casa de farinha. Os tubérculos apropriados para uma boa farinha devem ser “novos” e assim não excederem um período superior a 12 meses sob a terra. A mandioca considerada “velha” é a que possui cerca de dois anos de plantio. Segundo uma produtora, “se a macaxeira não for nova, você pode praticar [exercer os seus conhecimentos] que a farinha não sai boa”. FIGURA 3 – A CHEGADA DAS MANDIOCAS/RAMAL DOS PAULINO

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Fonte: LHVV.

Ao chegarem à casa de farinha, as mandiocas são jogadas no chão. No mesmo dia são descascadas e colocadas em recipientes específicos, as gamelas ou cochas10. Uma farinha de qualidade exige que os tubérculos sejam arrancados e descascados no mesmo dia. Outrora, as mandiocas tinham o revestimento interno raspado com a faca, mas atualmente ele é inteiramente retirado. O descascamento da mandioca precisa ser cuidadoso para não deixar fragmentos de casca e nem as partículas pretas que existem na carne das raízes. Em São Pedro é usado um expediente - fazer capote –que torna este trabalho mais rápido e impede que os tubérculos retenham muita sujeira. Nesse processo algumas mulheres retiram metade da casca, do lado da cabeça, deixando a mandioca apenas de capote (termo local para camisa). Posteriormente outras produtoras tiram a que sobrou, do lado do rabo, a saber, o capote! Após serem descascados, os tubérculos são lavados em recipientes específicos, os tanques ou buques11. A mandioca precisa ser bem lavada, com uma escova, para produzir uma farinha de qualidade, não amargosa. Nessa atividade, a qualidade da água é fundamental, sendo sempre retirada de poços artesianos e cacimbas, pois como afirmou um produtor: “a água melaça [água barrenta] do rio não presta para dar uma farinha especial”. As mandiocas lavadas passam para uma armação de madeira (banco) para serem trituradas, uma tarefa que compete aos homens, pois a partir desse estágio assumem completamente o processamento da farinha. Acomodadas no recipiente central, em forma de U, as raízes são polvilhadas com açafrão (açafrão) (Curcuma longa L.) para adquirirem uma coloração amarelada. Essa prática teve início em 2000, a pedido dos comerciantes, já que os consumidores de várias regiões preferem uma farinha amarelada a uma de cor branca. A farinha amarelada pelo açafrão perde a cor com o passar do tempo, mas isso não impede o seu consumo 10 O primeiro é provido de pernas, o outro repousa no chão. 11 Os tanques podem ser de alvenaria ou de madeira, os buques são feitos de pneus velhos.

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pelo produtor. FIGURA 4 – MANDIOCAS POLVILHADAS COM AÇAFRÃO/RAMAL DOS PAULINO

Fonte: LHVV.

No cumprimento da orientação dos comerciantes, os produtores devem adquirir certa expertise na dosagem da açafroa, porque senão obterão uma farinha amarga e de várias tonalidades que não são apreciadas. Outro problema que pode ocorrer é a formação de grânulos esbranquiçados, quando a massa de mandioca ralada não adquire, de modo uniforme, a cor amarelada desejada. Esses grânulos, quando associados aos resíduos de um descascamento apressado das raízes, atestam visualmente que se trata de uma farinha que não é de boa qualidade. Devidamente polvilhados com açafroa, os tubérculos são empurrados para serem triturados pelo ralador (bola ou caititu). Os produtores denominam esse processo de cevar ou roer, verbos que descrevem a própria ação desse artefato. Compreendido como dotado de particularidades de ação, o ralador procederia como o próprio porco caititu (Tayassu tacaju L), o qual “rói a mandioca para se alimentar e tornar-se cevado [gordo]”. O elemento que rala a mandioca é um cilindro de madeira onde foram encaixadas estreitas serras de metal (tariscas).

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Para ralar bem a mandioca e valorizar a farinha, o artefato deve comportar 30 tariscas, todas do mesmo tamanho, alinhadas e afiadas como os dentes deste animal. Caso as mandiocas não sejam finamente trituradas, a massa não ficará homogênea, pois ocorrerá a multiplicação de grânulos grandes (croeira), que posteriormente deverão ser descartados. O amido (goma) é muito apreciado pelas famílias dos produtores e é retirado da massa de mandioca depois de triturada. É então aspergida com água, espremida em uma peneira e o líquido posto a decantar. Com amido é produzida a farinha de tapioca ou são preparados beijus, mingaus, bolos. Para a produção de uma farinha de qualidade, saborosa, o amido não deve ser extraído, ou então apenas uma pequena parcela. Quando o amido não é retirado a massa triturada é logo aparada em um recipiente de madeira, a gamela de massa do qual é retirada para ser envolvida em fragmentos de tela de náilon e formarem os forros de massa ou pneus, a serem dispostos na prensa. Em São Pedro são utilizados dois tipos de prensa, a prensa de varão e a de parafuso12. Em Belfort só é encontrada a prensa de varão, com duas variantes: caixa e arapuca. Uma vez acomodados os pneus de massa, a prensa é acionada para os comprimir durante umas doze horas, o que permite eliminar um líquido, a manipuera, e secar a massa de mandioca. Uma prensa só contribui para a qualidade da farinha se ela “estiver bem aprumada” e os seus componentes ajustados. Caso contrário, a massa retém líquido e fica molhada e a farinha “não sai boa, não fica alvinha, fica escura” conforme o comentário de um produtor de Belfort. No dia seguinte, a massa de mandioca volta para o banco e é novamente triturada para ficar bem fina. Passa então por uma peneira circular, disposta em um dos lados de um comprido recipiente para a retirada de fiapos e grânulos de croeira. Em seguida esta massa é levada ao menor dos fornos para ser escaldada ou grolada, com o auxílio de uma pá semicircular de madeira ou com o rodo. Essa atividade corresponde a uma primeira secagem e precisa ser rápida, em baixa temperatura, e aos poucos, para a massa não ficar “meio crua” e não influir negativamente

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12 Para referências mais completas sobre estes artefatos consultar Velthem (2008).

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na qualidade da farinha. Retornando à gamela, a massa é passada em outra peneira para a retirada dos grumos resultantes da primeira secagem. Para a valorização da farinha é fundamental que a massa de mandioca ralada seja peneirada duas vezes, pois uniformiza a sua textura e evita a produção de uma farinha cheia de fiapos e caroços. Peneirar a farinha já torrada dispensa uma das operações, mas isso não é considerado compensatório. O passo seguinte é a secagem completa da massa já escaldada, em maior quantidade e mais lentamente no outro forno, com o auxílio de um instrumento de cabo comprido, o rodo. A secagem adequada da massa exige uma fornalha que tenha uma boa e constante pressão do fogo, o que é também garantido pela qualidade da lenha empregada. Em Belfort, o combustível apreciado é classificado como lenha forte, pois queima devagar e fornece carvão em brasa. Provém sobretudo das árvores conhecidas como mulateira, murici, envira-preta, urana. FIGURA 5 – ESCALDANDO E TORRANDO A FARINHA/RAMAL DOS PAULINO

Fonte: LHVV.

Os fornos são retangulares e podem ter tamanhos diferentes. São compostos de uma chapa ou torrador e de uma moldura de madeira. Apoiam-se em uma armação de alvenaria sob a qual está a fornalha. Os

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fornos são os mais importantes utensílios da casa de farinha e influem diretamente na torrefação da farinha: «quem vai mandar, [determinar] que a farinha vai ser boa é o torrador». Muitos cuidados são tomados com a sua instalação, pois não podem ser muito altos para não gastar muita lenha, uma vez que aquecem dificilmente e esfriam muito rápido, mas também não podem ser muito baixos porque as chapas metálicas esquentariam demasiadamente. Ademais, a chapa precisa ser grossa, porque uma chapa fina aquece muito rapidamente e assim queima o pó13 da farinha que adquire uma cor avermelhada. Quando os fornos estão separados há maior controle da temperatura de cada um deles, o que não ocorre quando estão juntos, pois se aquecem mutuamente. O elemento fundamental da produção de farinha é o conhecimento humano. O aprendizado tem início nas atividades de escaldar a massa de mandioca, mas este saber se aprofunda na etapa posterior, pois o torrador, o homem que executa essa tarefa deve ser evidentemente, um especialista. Para ser um torrador consagrado é preciso ter grande habilidade no manejo do rodo e também preparo físico: “tem de estar acostumado, pois quem não está acostumado a trabalhar no forno, queima o pó da farinha”. Ademais, deve saber o momento preciso de tirar ou de colocar lenha para regular a temperatura da chapa e ainda de ser capaz de orquestrar uma percepção multissensorial que indica que a farinha está torrada, que ela “está no ponto”. Assim que a farinha está torrada é transferida para um grande recipiente de madeira, a caixa, de onde é retirada para ser acondicionada em sacos duplos, dos quais um é de fibra sintética. A farinha deve ser ensacada no mesmo dia, ainda quente, para permanecer crocante. Quando essa tarefa é adiada, o produto esfria e perde excelência como pondera uma produtora de Belfort, se a farinha “pega frieza, fica mole, deixa de ser seca”. A farinha especial, de boa qualidade, tem uma grande durabilidade, basta estar bem acondicionada e armazenada.

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13 A farinha é composta de caroço e pó.

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FIGURA 6 – FARINHA PRONTA PARA SER ENSACADA/RAMAL DOS PAULINO

Fonte: LHVV.

As sacas, pesando 50 quilos14 são fechadas e depositadas em um estrado, para a farinha não umedecer no contato com o chão, enquanto se aguarda a vinda do comerciante ou do atravessador de Cruzeiro do Sul que pesa e compra a farinha nos ramais de São Pedro. Em Belfort, os produtores dirigem-se à Marechal Thaumaturgo para vendê-la, mas também a transacionam na própria comunidade ou em comunidades vizinhas. Uma farinha de primeira qualidade, deve ter uma produção limitada, que não exceda 250 quilos, o que significa que os produtores devem «puxar somente para cinco sacas». Um importante aspecto do trabalho executado na casa de farinha é o âmbito em que as diferentes tarefas estão organizadas e que afeta igualmente os humanos e os utensílios. Algumas pessoas e objetos trabalham na frieza e outros trabalham na quentura, atividades que são diametralmente opostas. A primeira condição compreende todas as 14 Outrora a medida para a farinha era o paneiro, cuja capacidade correspondia a cerca de 25 kg ou então a duas latas de farinha.

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atividades em que não há aquecimento nas etapas de produção da farinha: arrancar as mandiocas e transportá-las para a casa de farinha, descascálas e lavá-las, ralar os tubérculos, prensar a massa, ralar novamente a massa e, por fim, a peneirar. A segunda, por seu turno, compreende justamente as etapas em que há calor nos procedimentos: acender o fogo sob os fornos, escaldar e peneirar a massa e também torrá-la e secá-la nos fornos, transferir a farinha para a caixa e depois ensacá-la ainda quente, retirar as brasas da fornalha. Pessoas e artefatos que trabalham na quentura não trabalham na frieza e vice-versa. Apenas um utensílio, a gamela de peneirar a massa de mandioca, trabalha nas duas esferas tendo, portanto, uma posição intermediária. Entretanto, estas esferas não são intercambiáveis, pois um dos lados desse utensílio recebe sempre a massa fria retirada da prensa e o outro a massa escaldada provinda do forno. Algumas gamelas possuem mesmo uma divisão interna para bem delimitar os diferentes espaços. Esse é igualmente o motivo porque são duas as peneiras, uma para a massa triturada e outra para a massa escaldada e, para não haver trocas, uma é circular e a outra é retangular. No processamento da mandioca, o âmbito da quentura é considerado como o mais importante, o crucial, pois está em jogo a qualidade da farinha produzida. As mulheres realizam diferentes tarefas no âmbito da frieza tais como descascar, lavar, ou mesmo triturar a mandioca, mas raramente trabalham em atividades que envolvem calor e quando o fazem não é por muito tempo. As pessoas não devem transitar por essas esferas antagônicas e, sobretudo, não podem estar sujeitas à sua dupla ação. Esse é um dos motivos porque o local onde está instalada a abertura da fornalha recebe um telheiro, uma vez que a pessoa que retira as brasas não pode se molhar com alguma chuva repentina. A oposição frieza/quentura não consiste em uma estratégia que é restrita aos trabalhos na casa de farinha, mas opera em outros domínios da vida dos produtores rurais do vale do Juruá, como a produção de rapadura. A bipolaridade constitui um pressuposto que está no “cerne do pensamento das populações tradicionais do Acre” (CUNHA e

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ALMEIDA, 2002:12). Essa oposição é fundamental na produtividade dos roçados e desta forma, consideram os produtores de farinha de Belfort, as manivas que despontam no solo, estão na quentura, mas as suas raízes, as mandiocas, por estarem enterradas, estão na frieza. Esta dupla condição é ideal para o desenvolvimento desta planta (FRANCO et al. 2002). Entretanto, as manivas não podem ficar muito aquecidas, porque senão escaldam e não crescem. Assim, devem ser plantadas de modo espaçado, para não aumentar o mútuo aquecimento, da mesma forma que os fornos devem estar separados para permitir o controle do calor distribuído pelas chapas. Os que “vivem” na casa de farinha A percepção dos produtores do Alto Rio Juruá dos artefatos que guarnecem as casas de farinha, não comporta categorias indefinidas. Desta forma, cada utensílio é sempre identificado, nomeado, uma vez que o nome lhe fornece sentido, permitindo a sua inserção cultural. A maioria dos artefatos da casa de farinha são complexos e fixos: o banco, a prensa, os fornos, as gamelas, mas outros são móveis, como as peneiras, rodos e recipientes diversos. Os artefatos encontrados na casa de farinha são compreendidos como “vivendo” neste espaço, do qual não se afastam para serem utilizados no âmbito doméstico. Uma vez que “vivem” na casa de farinha, os objetos possuem cada qual o seu lugar, que é referido como sendo o seu canto. Trata-se de um espaço que corresponde à posição - sentada ou deitada - que ocupam permanentemente ou na qual se imobilizam quando não estão sendo empregados. Os grandes artefatos como a prensa ou os fornos são fixos no chão e, portanto, estão “sentados em seu canto”, outros descansam sobre os grandes artefatos ou são suspensos em suportes presos nos pilares ou vigas e, assim, estão “deitados em seus cantos”.

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FIGURA 7 – A PENEIRA DEITADA E O BUQUE SENTADO, CADA QUAL EM SEU CANTO/SÃO PEDRO E BELFORT

Fonte: LHVV.

A disposição dos artefatos na casa de farinha obedece a uma sequência linear permitindo descortinar, de seu principal acesso, uma paisagem que compreende, da esquerda para a direita: o recipiente para receber a mandioca descascada e logo atrás o tanque para lavá-la, ao lado está instalado o banco, e logo depois a prensa e a gamela com as peneiras. Mais adiante estão os fornos, que podem ser unidos ou separados e que fecham esse alinhamento paralelo. A gamela de aparar a massa, que pertence ao complexo do banco, está disposta próxima a este; a caixa, o estrado e o trapiche do forno, estão perpendiculares aos fornos, mas paralelos entre si. Essa forma de dispor os artefatos na casa de farinha constitui, segundo os produtores, uma estrutura que lhes é própria, definida como “um modelo coordenado por nós”. Esse alinhamento é considerado ideal porque potencializa os trabalhos de produção de farinha e assim estabelece uma nítida separação entre dois campos de disposição e de utilização dos artefatos que são necessários ao processamento da mandioca. A casa de farinha e todos os objetos existentes são geralmente de

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propriedade de um indivíduo, o “cabeça da família” que é o genitor. Este possui o direito de vendê-la e aos artefatos que a guarnecem, transação que é feita, geralmente com uma pessoa aparentada. O proprietário pode ter confeccionado a totalidade dos objetos empregados ou apenas alguns destes, encomendando outros a um artesão mais habilidoso ou os adquirindo no comércio de Cruzeiro do Sul ou de Marechal Thaumaturgo15. Os artefatos e utensílios da casa de farinha são todos de confecção masculina, exceto os cestos cargueiros feitos de cipó (titica ou morceguinho), que geralmente são de confecção feminina. As matériasprimas empregadas na produção dos artefatos compreendem madeiras de diferentes tipos, identificadas como angelim, bacuri, biridiba, birro, branquinha, cedro aguina, cedroado, itaúba, louro, louro bacate [louro abacate], morapiranga [muirapiranga], quaricoara [acariquara], tamacoaré, tarumã, toari, cuúba [ucuuba]16. São retiradas dos trechos de mata secundária e de velhas capoeiras que ainda persistem nos lotes ocupados. O que determina a escolha de uma espécie vegetal é antes a sua disponibilidade do que uma imposição técnica. Alguns apetrechos constituem exceções, como os mourões e os bolinetes da prensa que devem ser de muirapiranga ou acariquara porque constituem lenhos resistentes à pressão que estes artefatos recebem. Os rodos, ao contrário, devem ser sempre de louro para se tornarem leves e relativamente maleáveis ao serem empregados. Nesse repertório de matérias-primas naturais se insere as industriais: telas e sacos de náilon, chapas de metal, pneus de carro e caminhão e o filtro do motor de trator, considerado indispensável para a confecção de uma peneira eficiente e durável. Não devem ser esquecidas as ferragens que integram a prensa de parafuso e o pequeno motor a diesel que gira o ralador de mandioca. Um artefato ou utensílio deteriorado está “no fim da rama” e pode ser consertado ou então reciclado para ter outra serventia. Entretanto, 15 Como peneiras de arame, feitas em Petrópolis, Estado do Rio. 16 Para a identificação botânica consultar Emperaire (2002).

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quando a degradação é intensa, o objeto passa a ser referido como defunto, o que pressupõe o seu descarte em local afastado da casa de farinha. Os artefatos e suas “famílias” Cada utensílio da casa de farinha estabelece interações de diferentes ordens com aquele que o confeccionou e com o seu proprietário, e também com aqueles que o utilizam. Efetivamente, a propriedade de um artefato da casa de farinha não pressupõe uma utilização exclusiva, pois o dono compartilha seu uso com a família, representada por uma parentela extensa que inclui a esposa, os filhos e filhas, as noras, os genros, os irmãos destes, sobrinhos, primos. Os vizinhos próximos, ligados ao proprietário através de laços de compadrio, também estão aptos a utilizá-los. O uso individual e exclusivo de um artefato ocorre quando há a possibilidade do mesmo adquirir, do usuário, um “determinado jeito” que influencia a sua durabilidade. Este é o caso do terçado, cuja empunhadura logo se parte se esta ferramenta for utilizada por muitas pessoas. Homens e mulheres possuem, assim, cada qual o seu terçado. FIGURA 8 – A PRENSA, UM COMPLEXO ARTEFATO/BELFORT

Fonte: LHVV.

A interação dos artefatos entre si estabelece uma íntima relação

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que resulta na formação de um “conjunto coerente” (BONNOT, 2002:8) que é complexo, porque os utensílios estão destinados ao cumprimento de funções igualmente complicadas. Ademais, um conjunto possui a característica de ser organizado porque é submetido a certa disciplina – simbólica e efetiva - que é determinante para a efetivação do processamento da mandioca (VELTHEM, 2008). Assim sendo, no cumprimento de suas funções, os artefatos se aglutinam em conjuntos coerentes e organizados que são percebidos pelos produtores enquanto “famílias”, o que é potencializado pelo fato de “viverem” sob um mesmo teto, a casa de farinha. O sentido de família, aplicado aos artefatos, representa a plena inserção das coisas no sistema de produção local, estreitamente relacionado com a unidade doméstica (CUNHA e ALMEIDA, 2002). Portanto, como os humanos produzem farinha a partir da estrutura familiar, os objetos também precisam se organizar da mesma forma para atingirem os mesmos objetivos, comparando-se assim, a pessoas. Os elementos que permitem definir o parentesco dos artefatos são as coincidências de nomenclatura, de aspecto formal ou de função. O parentesco estabelecido acarreta uma relação de parceria e de complementaridade entre artefatos na execução das funções requeridas para o processamento da mandioca e são fundamentais para o seu êxito. FIGURA 9 – A FAMÍLIA DO BANCO/RAMAL DOS PAULINO

Fonte: LHVV.

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Na casa de farinha, imperam três grandes famílias: banco, prensa e forno, as quais possuem um número variado de componentes. Em todas essas famílias, um elemento constitui o genitor ou genitora, referido como sendo o “cabeça da família”, tal como ocorre entre os humanos. O que determina se a família de objetos é regida por um pai ou por uma mãe é a designação, masculina ou feminina, do elemento principal. Esse elemento constitui o componente que executa a função que é atribuída à sua família, e da qual ele é parte integrante. Em outros termos, tratase daquele fundamental componente que permite que uma determinada família de objetos torne-se efetiva e produtiva. Para a maioria dos produtores de farinha não há hierarquias entre as famílias, todas são igualmente importantes no processamento da mandioca. A posição preponderante do objeto “cabeça de família” não lhe confere, entretanto, o direito de nomear o conjunto que dirige, mas pode particulariza-lo, como no caso da prensa que comporta, na atualidade, dois diferentes tipos, a prensa de parafuso e a prensa de varão. O parafuso e o varão são considerados, portanto, os elementos principais da família da prensa porque são os que permitem espremer a massa de mandioca. Na família do banco, o elemento de maior importância é o caitetu porque ele rala a mandioca, e na família do forno é a chapa, porque é ela que seca a massa, transformando-a em farinha. FIGURA 10 – DOIS PARES DE IRMÃOS: OS RODOS E OS FORNOS/BELFORT

Fonte: LHVV.

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O sentido de família, operante entre os artefatos não se resume a essas considerações. Ele se expressa de outra forma, quando ocorre um detalhamento do parentesco. Assim, são considerados da mesma família, por serem irmãos, os artefatos que tem o mesmo nome, seja ele masculino ou feminino, muito embora possam ter aspecto formal diferenciado, como é o caso das peneiras que são circulares ou retangulares. Nessa mesma acepção, os rodos são considerados irmãos entre si, assim como os fornos. As gamelas, as pás, as peneiras, por terem nomes femininos, formam diferenciados grupos de irmãs. O conjunto dos irmãos pode se diferenciar entre primogênitos e caçulas, de acordo com a ordem de confecção ou com o tamanho, como é atestado entre os fornos. O de secar a massa é maior e assim é o “mais velho”, o de escaldar é o “mais novo”, uma vez que é sempre menor e, em alguns casos, mais baixo. O estado de conservação do artefato, o esmero de sua confecção ou o aspecto formal determina apreciações de outra ordem, relacionadas com a estética corporal, exclusiva dos objetos considerados femininos, pois os masculinos não são alvo de apreciações desse teor. No conjunto das gamelas existem as “irmãs mais feias” e que são as que acondicionam a mandioca descascada e as que recebem a massa triturada. Diferenciamse da gamela em que são peneiradas a massa crua e a escaldada que é considerada a “irmã mais bonita da família”. Esse atributo deve-se ao fato deste artefato se apoiar em uma armação elevada, identificada como sendo “as suas canelas, que são finas” e por isso mesmo apreciada, ao contrário das demais gamelas que repousam diretamente no chão, ou se elevam em “pernas curtas e grossas”. Os objetos da casa de farinha se reúnem em famílias não apenas pelos motivos acima referidos, mas, sobretudo porque há sobre os mesmos a nítida percepção de que “trabalham”. Nos municípios do Alto Rio Juruá, a organização do trabalho gira em torno dos laços familiares, na unidade doméstica, aspecto que é válido tanto para pessoas como para artefatos. Assim congrega pais e filhos, genros, noras, netos, sobrinhos e, além da produção de farinha, embasa momentos de socialização e envolve processos culturais de transmissão de conhecimentos entre gerações

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de uma mesma família, como também assinalaram Cunha e Almeida (2002) e Rizzi (2006). Para as peneiras, fornos, prensas e outros objetos utilitários, o trabalho na casa de farinha constitui a própria razão de ser, porquanto são essencialmente utilitários. Em outros termos, a função é o elemento que identifica o trabalho dos artefatos e para que o mesmo seja eficaz é necessária a sua aglutinação em um conjunto coerente e organizado: a família. Ação, interação e transcendência Os estudos que enfocam a cultura material de povos indígenas na Amazônia brasileira se multiplicaram nas duas últimas décadas (VELTHEM, 2003, LAGROU, 2007). A complexidade técnica e conceitual, atribuída aos artefatos indígenas, proporcionou requintadas análises através do prisma da antropologia da arte, acarretando grande visibilidade para o tema. Essas pesquisas permitiram revelar categorias de percepção estreitamente relacionadas com a cosmologia e a organização social, e apontaram para a importância da estética na construção de identidades. No outro extremo, a ausência de atributos estéticos seria uma das características dos objetos produzidos em outras sociedades amazônicas, tais como a dos pequenos agricultores, dos pescadores artesanais, dos ribeirinhos. Esse aspecto acarretaria desinteresse pelos estudos da materialidade existente nesses segmentos sociais, gerando invisibilidade e desconhecimento de aspectos pertinentes sobre o tema17. Esse quadro precisa ser reavaliado e, para tanto, o estudo antropológico que se defronta com objetos aos quais não se atribui, a priori, nenhum tipo de valorização, deve ultrapassar o utilitarismo das usuais abordagens - caso da maioria dos estudos sobre o processamento da mandioca – e neles encontrar a transcendência oculta. As páginas anteriores procuraram demonstrar que os artefatos das casas de farinha encontradas nos municípios de Cruzeiro do Sul e Marechal Thaumaturgo são percebidos por seus proprietários como

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17 Evidentemente há exceções, um das quais é o estudo de Carlos Sautchuck (2007).

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dotados de atributos que extrapolam a sua utilização. Essas características se expressam de diferentes formas, uma das quais compreende um estatuto individual, próprio a cada objeto, e que permite identificá-lo, através do nome e do sexo. Há igualmente uma apreensão coletiva dos artefatos que os insere em um sistema que reflete diferentes relações, as quais são de base familiar, porquanto cada um se associa a outros através de laços de parentesco consanguíneo e afim. Assim, na casa de farinha “moram” objetos que são identificados enquanto irmãos, pais e filhos ou casais. As interações operantes no espaço da casa de farinha englobam ainda as que são estabelecidas entre os objetos e as pessoas. Desta forma se evidencia uma participação mútua em uma cadeia de dominação que compreende a dos humanos sobre os não-humanos, os objetos, e a que estes exercem sobre as mandiocas. Consequentemente, as pessoas dominam os artefatos através da sua ordenação na casa de farinha, colocando cada qual em “seu canto”, e também por intermédio das matérias-primas de confecção, que lhes transmitem robustez ou leveza e, ainda, do uso de medidas que impedem a sua locomoção. A forma como os objetos agem sobre as mandiocas não é anódina, pelo contrário, como demonstra o vocabulário empregado pelos produtores: a faca rapa, ou melhor, esfola os tubérculos; o ralador rói a mandioca, o que significa que a tritura com seus afiados dentes; a prensa achocha a massa de mandioca ou a espreme em “apertado abraço”; o forno, ao secar a massa, na realidade a desidrata completamente. A resistência dos artefatos é decorrente das complexas ações transformativas que são requeridas, de coisas e pessoas, para o processamento da mandioca. Os objetos utilitários compreendem seres providos de ação, robustos e eficazes, que complementam a ação dos corpos humanos, porquanto representam eles mesmos, outros “corpos”18, masculinos e femininos. Este é o motivo porque devem espelhar o referencial humano e, portanto, o funcionamento dos artefatos, é percebido como sendo um “trabalho” o qual, em sua estruturação, deve 18 A respeito da corporalidade dos artefatos ver, entre outros, Velthem, 2003 e Lagrou, 2007.

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refletir a principal organização social operante na região, que é justamente a família. A ação dos artefatos não é apenas evidente, mas é fundamental no espaço da casa de farinha, pois são compreendidos como “pessoas” que dominam o processo que transforma a mandioca em farinha. Sem a ação dos artefatos nada acontece e, portanto, é preciso considerar nesse processo que os objetos não são passivos, mas oferecem resistência, são cheios de “vontades”: a prensa deve “querer” apertar a massa de mandioca, o rodo precisa se tornar “dócil”; o forno é que “determina” se a farinha será boa ou não. Nesse contexto, cabe a afirmação de Gell (1992: 48) para quem é a “resistência” oferecida pelos objetos o elemento que verdadeiramente os valoriza. Essas considerações enfatizam, portanto, que nas casas de farinha dos municípios de Cruzeiro do Sul e Marechal Thaumaturgo, objetos e pessoas constituem presenças que ao compartilhar um mesmo cenário, podem ter uma mesma atuação, pois constituem formas de agir complementares, as quais reforçam, efetivam e transformam os relacionamentos já estabelecidos. Referências

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pARTE ii cAPÍTULO 4

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CAPÍTULO 5 MULHERES E PATRIARCADO: RELAÇOES DE DEPENDÊNCIA E SUBMISSÃO NAS CASAS DE FARINHA DO AGRESTE ALAGOANO

Milka Alves Correia Barbosa1, Fátima Regina Ney Matos2, Ana Paula Ferreira dos Santos3, Ana Márcia Batista Almeida4

Introdução A divisão de trabalho entre indivíduos e grupos advém do início da vida humana grupal, podendo ser encontrada em todas as sociedades do passado e contemporâneas; contudo guardando formas peculiares decorrentes do processo histórico e civilizatório de cada povo, nação ou grupo. Segundo Carloto (2001), a divisão sexual do trabalho é uma constante na história das mulheres e homens. E as explicações para tal, frequentemente, apoiam-se no discurso do determinismo biológico que 1 Doutoranda em Administração. Universidade Federal de Alagoas – Campus Arapiraca. Av. Manoel Severino Barbosa, s/n, Bom Sucesso, Arapiraca – AL, CEP: 57309-005. E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Administração. Universidade de Fortaleza. Av. Washington Soares, 1321, Bloco P, Sala 17, Bairro Edson Queiroz, Fortaleza – CE, CEP: 60811-905. E-mail: [email protected]. 3 Pesquisadora. Universidade Federal de Alagoas. Av. Manoel Severino Barbosa, s/n, Bom Sucesso, Arapiraca – AL, CEP: 57309-005. E-mail: [email protected]. 4 Doutoranda em Administração. Universidade Federal de Pernambuco – Centro Acadêmico do Agreste. Rodovia BR-104, Km 59 - Nova Caruaru, Caruaru - PE, 55002-970. E-mail: [email protected].

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procura ratificar o papel das mulheres como protagonistas da reprodução biológica: A tentativa de construir o ser mulher como subordinado vai ter a marca da naturalização, do inquestionável, já que dado pela natureza. A diferença biológica vai se transformar em desigualdade social e tomar uma aparência de naturalidade (CARLOTO, 2001, p. 02).

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De fato esta divisão não se dá sem consequências; a ela são atribuídas práticas que “mudam conforme os diferentes tipos de sociedades e seu momento histórico” (CARLOTO, 2002, p. 01). Apesar disso, observando-se a sociedade capitalista percebe-se que o trabalho das mulheres ainda não recebe a mesma valorização e remuneração atribuídas ao trabalho masculino. Para Marx (1982), o trabalho das mulheres começou a ser utilizado pelo sistema capitalista com a chegada da maquinaria que revolucionou a mediação formal das relações do capital, o contrato entre trabalhador e capitalista: “o trabalhador vendia anteriormente sua própria força de trabalho, da qual dispunha como pessoa formalmente livre. Agora vende mulher e filho. Torna-se mercador de escravos” (MARX, 1982, p. 23). Assim, a mulher foi submetida à dupla exploração; de um lado ao capital diretamente nas fábricas; de outro, propriedade de seu marido. Ao afastarem-se do “lar” – seu habitat “natural” – as mulheres que trabalhavam nas fábricas viram seus filhos perecerem e tornaram-se degradadas moralmente. Note-se ainda que, a noção de divisão sexual de trabalho pode ser compreendida como prática social, na medida em que assume formas conjunturais e históricas, bem como conserva tradições que ordenam tarefas masculinas e femininas na indústria (LOBO, 1991). Neste sentido, tal divisão “não é a causa da subordinação e da desigualdade das mulheres no mercado de trabalho, mas sim está inserida na divisão sexual da sociedade com uma evidente articulação entre trabalho de produção e reprodução” (BRITO; OLIVEIRA, 1997, p. 252).

PARTE ii Capítulo 5

Em outras palavras, pode-se entender que as relações de gênero (especialmente o feminino) e as relações de trabalho inserem-se em um sistema de práticas e relações sociais existentes ao longo da história de determinada sociedade. Especificamente no caso da história do Brasil, sabe-se que o processo de colonização caracterizou-se por unidades familiares orientadas pelo latifúndio, escravagismo e patriarcado. Até as primeiras décadas do século XX, as mulheres brasileiras não tinham garantido ainda os direitos civis dos quais gozavam os homens. Assim, a posição da mulher na família e na sociedade ainda demonstrava que a família patriarcal tinha sido um elemento determinante em nossa organização social. Por outro lado, reconhece-se que a sociedade brasileira vem passando por significativas transformações econômicas, sociais e demográficas nas últimas duas décadas; dentre elas o aumento acentuado da participação feminina no mercado de trabalho. No entanto, apesar da desintegração do patriarcado rural, a mentalidade patriarcal permaneceu na vida e na política brasileira, pelas vias do coronelismo, do clientelismo e do protecionismo (CHAUÍ, 1989). Desta forma, a gênese de atitudes autoritárias com a condição feminina verificadas nos meios urbano e rural contemporâneos pode ser entendida à luz dos esquemas de dominação que caracterizaram o patriarcado tradicional brasileiro (SOUZA, 2000; FREITAS, 1997). Vale dizer, ainda que as mulheres possuam o mesmo ou melhores níveis de escolaridade que os homens, não se pode afirmar que a igualdade entre os gêneros já foi alcançada. Não raro muitas delas continuam percebendo remuneração menor que a do homem, ainda que ocupem cargos iguais ou semelhantes, ou mesmo que desempenhem dupla jornada de trabalho. Diante dessa desigualdade, os estudos organizacionais que abordam a questão do gênero estão distantes de serem esgotados, conquanto várias questões sobre esse fenômeno ainda precisem ser esclarecidas (CAPPELLE et al., 2006). O interesse por trabalhos que abordem as relações de gênero

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tem crescido e justifica-se na medida em se faz necessário lançar questionamento sobre o conjunto das relações sociais e econômicas no universo do trabalho no Brasil. Nesse sentido, acredita-se que a casa de farinha pode ser tomada como lócus no qual a divisão sexual de trabalho pode ser observada com vistas a compreendê-la. A casa de farinha é o lugar onde acontece a fabricação da farinha de mandioca. Muitas dessas casas ainda guardam a mesma forma que tinham na época da colonização: “uma edificação normalmente realizada sem vedações laterais, coberta de palha, deixando evidente os equipamentos de produção” (SILVA; ALCIDES, 2006, p. 4). Para as autoras, as casas de farinha asseguram a permanência de um patrimônio de cunho produtivo, com forte impacto na vida de inúmeras comunidades espalhadas por grande parte do norte e nordeste brasileiro. Oportuno esclarecer que mesmo nas casas de farinha que já utilizam energia elétrica e equipamentos ainda há manutenção de hábitos como a cantoria, o trabalho associativo, a reunião e a cooperação de grupos familiares. A fabricação da farinha, também conhecida como farinhada, continua a agregar o núcleo familiar, a despeito da tecnologia empregada no processo (SILVA; ALCIDES, 2006). Neste cenário, o objetivo deste trabalho foi analisar os aspectos do trabalho das mulheres nas casas de farinha do Agreste Alagoano que ainda reproduzem o padrão de dominação do patriarcado tradicional brasileiro. Em Alagoas, a mandioca é a segunda maior produção agrícola, caracterizando-se pela forte presença da agricultura familiar. Somente no agreste, a subsistência de cerca de 25 mil famílias está relacionada à cadeia produtiva da farinha (MDIC, 2004). Historicamente, a tradição de fazer farinha vem passando de geração a geração. A quantidade de casas de farinha é expressiva nos municípios da região do agreste alagoano: são 459 unidades, sendo 67 comunitárias (15%) e 392 particulares (85%). Os municípios de Girau do Ponciano (15 unidades), Arapiraca (14) – onde ocorreu a pesquisa – e Igaci (12) foram os que mais investiram em unidades comunitárias (MDIC, 2004).

PARTE ii Capítulo 5

Um traço comum à maioria dessas casas é que se tratam de empreendimentos familiares, que contam com a participação de homens, mulheres e crianças na produção, sendo cada um dos membros da família responsável por diferentes tarefas do processo produtivo. Fazer farinha é uma arte centenária que atravessa gerações e retrata a cultura local e a verdadeira história de homens, mulheres e crianças da região. O presente estudo adotou uma perspectiva predominantemente qualitativa. O enfoque qualitativo adotado justifica-se na medida em que se trabalhou com um nível de realidade que dificilmente pode ser quantificado e que procurou responder a questões muito particulares, específicas de um determinado contexto (MINAYO, 2004). No desenvolvimento do trabalho procurou-se conservar os aspectos definidos por Bogdan e Biklen (1994) que melhor caracterizam a pesquisa qualitativa: o ambiente natural (as casas de farinha) como fonte direta dos dados e o pesquisador como instrumento-chave; ênfase na descrição; a preocupação do pesquisador com o processo e não simplesmente com os resultados e o produto; os dados analisados indutivamente e a captação de significados como preocupação essencial. Merriam (1998) classifica a pesquisa qualitativa em cinco tipos, a saber: estudo qualitativo básico ou genérico, estudo etnográfico, fenomenologia, grounded theory e estudo de caso. Nesta pesquisa optouse pela realização de um estudo de caso. Casos podem ser constituídos por indivíduos, grupos, programas, organizações, culturas, regiões, Estados, incidentes críticos, fases na vida de uma pessoa, ou seja, qualquer evento que possa ser definido como um sistema delimitado, específico, único (PATTON, 2002). O caso em estudo foi constituído pelo conjunto de casas de farinha, formais e informais, da região do agreste alagoano. O critério para escolha dos empreendimentos baseou-se na tipicidade e desta forma, foram escolhidas aquelas casas de farinha que refletiam uma situação ou eram exemplo do fenômeno de interesse do pesquisador (MERRIAM, 1998). A pesquisa deu-se em seis casas formais de farinha do município de Arapiraca e quatro casas informais do município de Girau do Ponciano.

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No estado de Alagoas, existem unidades industriais particulares e coletivas de pequeno e médio porte; casas de farinha comunitárias baseadas na prática cooperativa; e pequenas casas de farinha propriedade de pequenos produtores – as casas de farinha onde se deu a presente investigação fazem parte deste grupo. O estudo de caso apresenta um caráter particularizante e tem poder de generalização limitado (BRUYNE et al., 1977). Desta forma, os resultados obtidos nesta pesquisa não devem ser transpostos para contextos semelhantes. O que se pretendeu não foi generalizar, mas analisar um grupo de casas de farinha situado no agreste alagoano considerando suas especificidades. Como técnicas de coleta de dados foram utilizadas análise documental, entrevista semiestruturada e observação participante. Deste modo, adotou-se o expediente da triangulação: a combinação de diferentes técnicas no estudo do mesmo fenômeno (DENZIN; LINCOLN, 2000), tendo por objetivo abranger a “máxima amplitude na descrição, explicação e compreensão do foco em estudo” (TRIVIÑOS, 1987, p. 138) e diminuir “a influência dos vieses do pesquisador no resultado final das análises” (VIEIRA; ZOUAIN, 2004, p. 23). As entrevistas foram realizadas nas casas de farinha ou na casa das trabalhadoras, entre os meses de novembro de 2010 a março de 2011. Os sujeitos da pesquisa foram mulheres que trabalham nas casas de farinha quer seja realizando todo o processo ou apenas partes. Foram selecionadas as respondentes que pudessem efetivamente ajudar a compreender o fenômeno em estudo (MERRIAM, 1998), portanto, a seleção proposital, intencional ou deliberada foi adotada. A quantidade de sujeitos participantes foi determinada pelo princípio da redundância ou saturação, ou seja, à medida que foram sendo vivenciados casos similares, adquiriu-se confiança empírica de que não mais se encontraria dados que pudessem contribuir para a pesquisa (GLASER; STRAUSS, 1967). A saturação foi atingida na décima entrevista, mas como não existe fórmula que assegure a saturação e essa depende exclusivamente do

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discernimento do pesquisador, achou-se por bem continuar as entrevistas até uma margem considerada segura, tendo em vista que a quantidade de sujeitos é menos importante do que a qualidade das informações. Para efeito da pesquisa, foram considerados os dados obtidos nas dez primeiras. Esclarece-se que, das entrevistadas, seis foram provenientes de casas de farinha de Arapiraca e quatro de Girau do Ponciano. Em respeito ao anonimato dos sujeitos, as falas das mesmas serão seguidas pela palavra ‘Entrevistada’, seguida por numeral que varia entre 1 e 10, de acordo com a ordem em que foi realizada a entrevista. A observação direta participante também foi escolhida como método de coleta de dados por trazer um contato em firsthand com o fenômeno que se pretende estudar e por proporcionar entendimento de aspectos que dificilmente seriam captados somente por meio de entrevistas ou documentos (MERRIAM, 1998; VERGARA, 2008). Foram realizadas 08 (oito) visitas às casas de farinha com duração aproximada de uma hora. Também foram realizadas observações durante o Fórum Permanente da Mandioca que acontece mensalmente e conta com a presença de trabalhadores do setor. Quanto a análise documental, tevese acesso a relatórios do Arranjo Produtivo Local (APL) de Mandioca, a relatórios do Sebrae, a websites, folhetos, manuais das casas de farinha. Realizadas a observação e as entrevistas, procedeu-se à análise de conteúdo (BARDIN, 2004), sendo os dados coletados tratados fundamentalmente de forma qualitativa: categorizados e analisados a partir dos termos e categorias analíticas definidas a posteriori. Sendo assim, a próxima seção está organizada de acordo com as categorias que emergiram durante o tratamento dos dados. A divisão sexual do trabalho na rotina das casas de farinha Embora difundida em todo o Estado de Alagoas, é no Agreste que se encontra a maior concentração de produtores e de casas de farinha, respondendo por aproximadamente 58% da produção estadual. Na grande maioria são pequenos e médios produtores que utilizam a mão-

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de-obra familiar para a produção de farinha (SEBRAE, 2008). O início dos trabalhos é celebrado com o cantarolar e as conversas das mulheres. Em geral, elas trabalham 10 horas diárias, com pequenos intervalos para alimentação, com horários alternativos em função da demanda. O horário de trabalho é definido pelo dono da casa de farinha, e no período da safra de mandioca, com o aumento da produção de farinha, o ritmo de trabalho torna-se mais forte: Não tem horário certo, mas a gente chega umas seis horas e para umas onze e meia e começa de novo uma da tarde e vai até cinco. Às vezes é de segunda a sexta, às vezes vai até o sábado meio dia (Entrevistada 5). Não tem horário certo, pego de seis horas largo no fim da tarde, dependendo do tanto de mandioca, trabalho de terça a sábado (Entrevistada 2). Não tem dia, nem horas; só é a gente chegar na casa de farinha e começa de sete até às cinco; quando tem muita mandioca é de segunda a sábado (Entrevistada 8). Não vou falar que tem horário porque quando a casa de farinha está funcionando as mulheres brigam pra [sic] chegar determinado horário e raspar mais, questão de ganhar mais. É três horas da manhã, quatro horas, sete horas até umas oito horas da noite. No período da safra, de fazer farinha que é setembro, são quase todos os dias (Entrevistada 3).

Nas casas de farinha pesquisadas, observou-se que o processamento da farinha de mandioca segue as seguintes etapas: transportadas em caminhões, camionetas, carroças ou mesmo em carros de bois, as raízes chegam às casas de farinha. Lá são distribuídas em lotes (também conhecidos como caçuás, ou balaios) para serem descascadas ou raspadas, operação que é executada por mulheres. Descascada as raízes, são depositadas em caixas plásticas, em lonas, para evitar o contato com impurezas (o que nem sempre acontece). Como poucas casas de farinha possuem o equipamento lavador/descascador, foi desenvolvido o processo de “repinicagem”, um

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tipo de triagem realizada por mulheres para melhorar a qualidade final do produto processado. Na sequência, as raízes são transportadas para o ralador. A massa resultante do processo de ralação é então depositada em um tanque de alvenaria revestido por azulejos. Com auxílio de pás ou baldes, essa massa é transportada para a prensa para que seja retirado o líquido conhecido como manipueira que é bastante tóxico no seu estágio inicial. A referida massa é colocada em panos de algodão para ser levada à prensa. Assim, depois de seca a massa é retirada da prensa, e quebrada e peneirada em peneiras (ou raladores). Após essa etapa, a massa é levada aos fornos para ser torrada até atingir o nível de umidade desejado. Finalmente, uma vez pronta, a farinha é deixada em cochos de madeira para esfriar, e ser peneirada e embalada em sacos de polipropileno. Todas as etapas descritas no parágrafo anterior são executadas por homens. Eventualmente, ou melhor, somente em casos extraordinários as mulheres participam dessas fases. No máximo peneiram a massa. Cabe a elas exclusivamente a raspagem da mandioca, a limpeza da casa de farinha (varrer, lavar banheiros), juntar as cascas e colocá-las em sacos: As mulheres raspam e os homens arrancam a mandioca e carregam o carro pra [sic] espalhar pra casa da gente (Entrevistada 3). A gente raspa a mandioca e quando acaba cedo, ai por conta de nós mesmo ai a gente limpa para ajudar o patrão (Entrevistada 1). Os homens mexem e imprensam a massa e as mulheres raspam, lavam o banheiro todo dia; às vezes faz a limpeza, varre o terreiro (Entrevistada 4). Os homens impressa [sic] traz da roça e bota aqui, as mulheres já raspa, daqui eles pega bota no motor e do motor vai pra prensa e da prensa vai pro forno (Entrevistada 6). As mulheres também às vezes mexe [sic] a farinha, às vezes boto prensa ai, ajudo a apanhar mandioca; agora não é todas as mulheres; as mulheres dos maridos associados é as que trabalha mais aqui e as outras as vezes rapa mandioca e vão embora, e outra tem que ficar aqui (Entrevistada 5).

Essa divisão de trabalho é definida pelos donos da casa de farinha

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– que em sua totalidade são homens. Não há inversão de tarefas ou outra forma de divisão de trabalho. Aos homens cabe o trabalho com as máquinas, o transporte da mandioca; às mulheres cabe o trabalho manual. Quando chegam para trabalhar na casa de farinha elas já sabem o que devem fazer, pois sua tarefa já está previamente definida pelo dono da casa de farinha: A mulher não vai pegar lenha para botar no forno, não pode pegar em saco de farinha pra pesar [sic], isso tudo as mulheres não podem. As mulheres podiam peneirar somente, porque já ia aliviando mais o trabalho (Entrevistada 10). Os homens mesmo decidem: as mulheres vai raspar e nós vamos fazer os outros serviços (Entrevistada 7). O dono da casa de farinha é quem decide o que a gente vai fazer: varrer a casa de farinha, raspar a mandioca, tirar a tapioca; a gente faz só o básico mesmo (Entrevistada 9).

Verificou-se que o trabalho masculino está direcionado a outras atividades que demandam maior força física, maior destreza e habilidade com máquinas, e que envolvem risco de perigos eminente tais como fogo, por exemplo. Enquanto às mulheres cabe o trabalho manual e teoricamente mais leve, de raspagem da mandioca. Assim, a divisão do trabalho nas casas de farinha é justificada principalmente pelo discurso das diferenças corporais entre mulheres e homens, reforçando a divisão sexual do trabalho (DURKHEIM, 1999). Juntamente a essa realidade, tem-se a concentração do trabalho feminino em tarefas manuais que remonta às tarefas domésticas que lhes eram atribuídas na estrutura de organização patriarcal. Observou-se também que essa segmentação reproduz-se na definição dos espaços físicos da casa de farinha, deixando claro onde homens e mulheres devem realizar as suas tarefas. De fato essa segmentação sexuada dos espaços profissionais vem acompanhada das relações de dominação/subordinação, conforme apontado por Matias dos Santos (2007).

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Como o processamento da mandioca obedece a etapas bem definidas, então a tarefa da raspagem executada pelas mulheres influencia todo o andamento das demais. Qualquer atraso nessa etapa compromete todos os procedimentos seguintes. Somente sob este ponto de vista, as tarefas desempenhadas pelas mulheres e o papel feminino no processo já poderiam ser consideradas como relevantes: o trabalho realizado por elas dá inicio a um processo que resultará em renda para empresários, famílias, além manter a tradição da mandiocultura da região. Não obstante tal argumento, grande parte das entrevistadas não reconheceram a importância do trabalho que realizam e quando o fizeram associaram ao reconhecimento por parte dos donos da casa de farinha: Não ganho nenhum dinheiro pelo meu trabalho. O primeiro dono valorizava mais, mas o segundo não valoriza. O primeiro não dava nada, mas ele chegava, conversava mais com a gente, ele gostava, colocava mandioca a vontade pra quem quisesse. Levou nós prá [sic] praia no final da safra. E o segundo já não gostei (Entrevistada 3). A agricultora é sempre a mais fraca, ai ninguém reconhece nosso trabalho, ele não reconhece nosso trabalho (Entrevistada 7). Tinha uns patrões que além de pagar ainda me davam farinha, me ajudava com qualquer coisa (Entrevistada 4). Só recebo mesmo o pagamento, mas eu acredito que valia mais (Entrevistada 5). Eles são muito bons aqui; eu faço o meu, mas não sei se reconhecem ou não (Entrevistada 1). Tem pessoas que não acham que esse trabalho é um trabalho, não reconhecem, pensa que isso é um passatempo (Entrevistada 8).

O perfil das mulheres das casas de farinha As mulheres entrevistadas eram casadas e solteiras, a grande maioria com pelo menos três filhos. Nenhuma delas tinha nível de escolaridade acima do ensino médio incompleto; algumas eram algumas analfabetas. A faixa etária das entrevistadas compreendeu dos 21 a 69 anos. As entrevistadas trabalham nas casas de farinha há pelo menos

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cinco anos e eram de famílias que já lidam com a mandiocultura há gerações. Apesar de considerarem o trabalho desgastante, reconhecem que ele é imprescindível para ajudar no sustento de suas famílias e para sua satisfação pessoal: Meu trabalho é bom, nós depende [sic] tudo daqui, roupa, calçado, comida, tudo, tudo (Entrevistada 2). Não é um trabalho muito favorável, é cansativo, o trabalho aqui não é bom, mas é o suficiente para quem não tem renda. Eu não tenho renda; a renda é essa aqui, ai eu acho bom (Entrevistada 10). Pra mim é demais, a gente tem alegria trabalhando. A gente ficar em casa só esperando, esperando por quem? Só por Deus não dá. Para mim é demais quando eu trabalho lá na casa de farinha (Entrevistada 3). Ajudar o esposo, a família, a questão familiar porque são poucos o dinheiro recebido, mas ajuda muito na família (Entrevistada 5). Se eu não fizer outra pessoa faz, não é obrigatório. Porque eu ganho dinheiro, é divertido, agora nós tá no verão às vezes fica sem fazer nada e o que aparecia era até bom, nós aqui fazia [sic] nossas resenhas, para não ficar parada (Entrevistada 9).

Vínculos e relações sociais nas casas de farinha As mulheres não têm vínculo empregatício formal; prestam serviço informalmente para a casa de farinha, num sistema de subcontratação e facção. A escolha das pessoas (homens e mulheres) para trabalharem na casa de farinha ainda se pauta em laços de parentesco, amizade (ainda que remotos); talvez essa característica reforce a casa de farinha ainda como lócus de trabalho de família, de amigos, de comunidade, de união (Da Matta, 1991). Nesse cenário os laços econômicos, de solidariedade e de lealdade aos donos das casas fortalecem-se, reforçando a relação de subalternidade e de submissão das mulheres aos homens, posto que são eles quem decidem o que e o quanto deve ser produzido, o quanto deve ser pago pela

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raspagem da mandioca, decidem o horário de trabalho e a organização do processo produtivo. Enfim, são os homens os protagonistas do processo de produção nas casas de farinha. Entendendo o patriarcado como poder masculino, e não poder do pai, a autoridade centrada no poder masculino se fez presente nas casas de farinha estudadas (Narvaz; Koller, 2006; SCOTT, 1995). Nas casas de farinha estudadas, a compreensão de que o privado/ público, o patriarcado e as relações de gênero articulam-se entre si mostrou-se particularmente importante para explicar a dinâmica das relações de subordinação/dominação, das práticas organizacionais e interações sociais lá encontradas. No fórum da mandioca realizado mensalmente, observou-se que as mulheres são minoria e permanecem a maior parte do tempo caladas, sem expressar qualquer ideia ou opinião, mesmo que os assuntos discutidos tenham relação direta com sua realidade de trabalhadoras na cadeia produtiva da mandiocultura. Nos documentos analisados percebeu-se que os grupos de participantes de missões e visitas técnicas organizados pelo SEBRAE são formados basicamente por homens. Pode-se ainda considerar a casa de farinha como um ambiente que favorece a interação social dessas mulheres, pois, ao mesmo tempo em que trabalham de forma coletiva, elas conversam, trocam ideias, dividem suas tristezas e alegrias. Entretanto, seria prematuro afirmar que há encaminhamento para reorganizar relações de trabalho, ou a divisão do trabalho nas casas de farinha. Condições de trabalho e relações de submissão nas casas de farinha Para realizarem a tarefa de raspagem as mulheres usam facas e ficam sentadas em tamboretes de madeira ou mesmo no chão batido. São remuneradas de acordo com a quantidade de quilos, ou a quantidade de caçuás/balaios que conseguirem descascar. O valor pago por caçuá está em torno de R$ 3,00 (três reais). Deste modo, seguindo a tradição, as mulheres são remuneradas com valores irrisórios para trabalhos desenvolvidos em condições

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precárias - com dores fortes no corpo, devido ao esforço repetitivo e a posição em que executam o trabalho, por exemplo. O baixo nível de remuneração exige também que mais elementos de uma mesma família trabalhem para proporcionar aumento na renda familiar, ultrapassando o limite legal de oito horas diárias de trabalho. Ainda sobre a baixa remuneração do trabalho das mulheres, poder-se-ia tentar justificá-la pelo discurso instrumentalista de que isso talvez aconteça pelo fato de os donos das casas de farinha não poderem pagar mais por esse trabalho, sob pena de inviabilizar financeiramente a atividade, considerando a composição dos custos. Outra possibilidade é realmente a priorização do lucro. De fato, em qualquer uma das situações, dentro do contexto econômico e social, as mulheres da casa de farinha continuam subordinadas hierarquicamente aos donos da casa de farinha, conquanto as atividades realizadas por elas são definidas, supervisionadas, subordinadas às definidas para eles e realizadas por eles. Importa esclarecer que foi possível visitar casas de farinha que contam com tecnologia e maquinário moderno e mulheres trabalhando em estações de trabalho. Entretanto, mesmo em tais ambientes, as relações também eram centradas na figura masculina da “pessoa do dono da casa de farinha” (Entrevistada 3), plena de poder - o chefe da parentela descrito por Davel e Vasconcelos (1997). Resgatando-se o nível de escolaridade das mulheres envolvidas no processo produtivo, coadunado com o baixo nível de remuneração e com as relações de trabalho, mantêm-se as condições que promovem e reafirmam a submissão das trabalhadoras ao homem - dono da casa de farinha - além de alijá-las de participar de outros ambientes de trabalho que demarcam exigências diferenciadas, como o grau de instrução, por exemplo. Algumas mulheres vislumbram que poderiam participar de outra maneira e em outras etapas da produção da farinha, mas ainda assim, continuariam em tarefas manuais:

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PARTE ii Capítulo 5

As mulheres poderiam participar mais com a limpeza, poderiam tirar a goma, que a gente sabe que dá dinheiro, mas a maioria das mulheres daqui não faz, simplesmente só raspa a mandioca e acabou (Entrevistada 3). Antes da reforma as mulheres peneiravam, a gente podia voltar a peneirar (Entrevistada 7).

Há perspectiva de implantação de uma mini fábrica de biscoitos à base de mandioca, a ser comandada pelas trabalhadoras casadas com os produtores de mandioca. Trata-se de um grupo de aproximadamente vinte mulheres que já trabalham de forma rudimentar há dois anos; e foram capacitadas pelo Senac e Sebrae para prepará-las para essa forma de gerar renda e emprego. Talvez isso sinalize uma oportunidade de mudanças nas condições de vida de algumas das mulheres e suas respectivas famílias. Entretanto, cabe um olhar mais crítico no sentido de perceber se esse será mais um espaço em que as mulheres estarão desempenhando somente atividades manuais (de preparo de alimentos) sob a supervisão de homens ou se terão, de fato, autonomia para gerenciar a mini fábrica, caminhando na direção de ruptura da relação de submissão a que estão submetidas. Conclusões Considerando o objetivo deste trabalho, pode-se afirmar que vários aspectos do trabalho das mulheres nas casas de farinha do Agreste Alagoano ainda reproduzem o padrão de dominação do patriarcado tradicional brasileiro. Os dados coletados (principalmente a fala das entrevistadas) mostraram que nesse mesmo ambiente a divisão sexual do trabalho é aceita como resultado de diferenças físicas entre homens e mulheres. Assim sendo, aparentemente dever-se-ia aceitar de pronto que nas casas de farinha estudadas o gênero figura como variável binária apoiada na diferença sexual entre homens e mulheres, e como tal, a partir de uma visão estática, esse padrão de divisão do trabalho dificilmente mudará. Entretanto, analisando essa realidade a partir de uma perspectiva

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histórico-social, vê-se que essa divisão sexual do trabalho aproxima-se do binômio exploração-dominação descrito por Saffioti (2008), que vincula a dominação masculina aos sistemas capitalista e racista. Para a autora, [...] o patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração. Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno econômico (SAFFIOTI, 2008, p. 50).

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Assim, a dupla jornada de trabalho (casa de farinha e trabalhos domésticos), a baixa remuneração, as condições precarizadas de trabalho, o respeito e a lealdade à autoridade do dono da casa de farinha – como provedor de salário, comida, trabalho -, são algumas das condições que alimentam a exploração sob as quais as trabalhadoras estão submetidas. Agregue-se a isso o caráter histórico das relações desiguais de gênero que se fazem presentes na sociedade brasileira desde a colônia e chega-se aos dias atuais observando-se que nas casas de farinha do agreste alagoano, a base material do patriarcado não foi destruída, não obstante os avanços femininos. Pode-se questionar como não encontrar relações de dominação patriarcal numa casa de farinha, já que lá a divisão de trabalho baseiase originalmente na diferença sexual entre homens e mulheres. Neste sentido, pontua-se que relações de gênero não são necessariamente imutáveis tampouco são desiguais por natureza. Entretanto, para que mudem e tornem-se mais igualitárias, faz-se necessário pelo menos o questionamento das relações de poder determinadas pelo patriarcado que traz ao seu cerne desigualdade, controle e medo. A despeito de programas e iniciativas - como a criação do APL de Mandioca - que buscam melhorar também a geração de empregos, de renda e agregar valor a mandiocultura -, a realidade dessas trabalhadoras das casas de farinha mostra que as relações de gênero continuam desiguais e hierarquizadas. Nesse aspecto, concorda-se com Matias dos Santos

PARTE ii Capítulo 5

(2007) que “a divisão sexual do trabalho é algo que se reatualiza e vai permanecendo, embora adquirindo novas formas” (p. 07). Na presente pesquisa, a divisão sexual do trabalho perpetua-se com a dominação patriarcal e reflete-se nas condições precarizadas de trabalho sob as quais se encontram as mulheres das casas de farinha estudadas. Como contribuição tentou-se ilustrar a presença da dominação patriarcal na divisão do trabalho das casas de farinha do Agreste Alagoano. Para aquelas mulheres ainda há um longo caminho a ser percorrido até que seu local de trabalho caracterize-se por relações mais igualitárias de poder. De fato, talvez essa realidade não seja exclusiva deste grupo. Assim, como direção para futuras pesquisas, seria oportuno conhecer a realidade em outras casas de farinha e outros ambientes organizacionais, a partir da abordagem feminista pós-colonialista enfocando-se aspectos de gênero articulado com classe, raça, entre outros. Referências

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CAPÍTULO 6 A Organização dos assentados da reforma agrária para o processamento da mandioca: o caso de Capão do Cipó - RS

Vilson Flores dos Santos1, Paulo Roberto Cardoso da Silveira2 e Ana Cecília Guedes3

Introdução Nos últimos vinte anos têm sido intensos os debates em torno da importância da agricultura familiar no cenário agrícola e agrário do país. Abramovay (1998, p.57) destaca a agricultura familiar como capaz de fornecer melhores condições de vida ao homem rural, considerando este local como possuidor de valores da tradição, do folclore e da pureza, contrapostas ao cenário urbano, onde estas características não estariam mais presentes. Para o autor “faz parte dos valores que a agricultura familiar incorpora a primazia do desenvolvimento e do poder locais e a 1 Doutor em Extensão Rural, Pesquisador e Coordenador do grupo NEMAD, Pesquisador do grupo NEPALS, Professor do PROIPE – Programa de Inovações Pedagógicas da UFSM. E-mail: [email protected]. 2 Zootecnista, Msc. Extensão Rural, Doutor pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas, Prof. do Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural da UFSM, Coordenador do Núcleo Interdisciplinar em Extensão e Pesquisa sobre Alimentação e Sociedade – NEPALS. E-mail: [email protected]. 3 Tecnóloga em Gestão de Cooperativas, Engenheira Agrônoma, Mestranda em Extensão Rural pela Universidade Federal de Santa Maria, pesquisadora do grupo NEPALS-UFSM; E-mail: [email protected].

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ideia de que, neste plano, os negócios públicos podem ser geridos com a participação direta dos cidadãos”. De acordo com Oliveira e Ribeiro (2002), a agricultura familiar pode ser vista como uma possível alternativa para um desenvolvimento rural menos excludente e ambientalmente mais equilibrado. Destacamse suas características específicas no tocante à produção capaz de gerar renda e ocupação para um contingente expressivo, além de contribuir econômica e socialmente, através da produção de alimentos, da distribuição mais equitativa da renda e no fortalecimento dos laços comunitários e organizacionais. Como reconhecimento deste potencial da agricultura familiar e a considerando como instrumento de preservação dos recursos naturais, o estado brasileiro tem destinado a este segmento um conjunto de políticas públicas, as quais vão desde o crédito, os serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural - ATER, comercialização4 e programas de formação para as famílias agricultoras. Além destas políticas de ação conjuntural, ressaltam-se aquelas que têm o objetivo de reestruturar as relações cidadecampo, destacando-se neste aspecto os incentivos à agroindustrialização das matérias-primas agrícolas e os projetos de assentamentos de reforma agrária. A primeira política busca reintroduzir nos espaços rurais o processamento das matérias-primas agrícolas, o qual nos anos 1950 foi assumido pelas grandes agroindústrias processadoras de alimentos em uma conjuntura em que a legislação sanitária constituiu barreiras intransponíveis para os agricultores familiares e pequenas unidades processadoras (SILVEIRA e ZIMERMANN, 2004; GUIMARÃES e SILVEIRA, 2007, SULZBACHER, 2011). A segunda visa alterar a estrutura fundiária vigente, redistribuindo a posse da terra no Brasil. No entanto, tais políticas apresentam limites, os quais têm raízes no modelo agrícola brasileiro que privilegia a monocultura voltada

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4 Neste caso, assume destaque pelo número de beneficiados o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos gerenciado pela CONAB- Companhia Nacional de Abastecimento e o PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar, gestado pelo MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário em parceria com as instituições de ação local.

PARTE ii Capítulo 6

à exportação, a qual tem proporcionado um crescimento intenso da agricultura de larga escala e marginalizado um grande contingente de agricultores familiares. Neste contexto, os assentamentos de reforma agrária não têm conseguido contrapor a tendência de concentração fundiária e nem aplacado os conflitos pela posse da terra, cada vez mais intensos em zonas de expansão recente deste tipo de agricultura, chamada popularmente de agronegócio5. Da mesma forma, as chamadas agroindústrias familiares rurais têm enfrentado dificuldades diante da concorrência das grandes redes agro-alimentares, as quais forçam a manutenção de uma ordem institucional desfavorável ao seu desenvolvimento (VENTORINI e SILVEIRA, 2011; SULBACHER e SILVEIRA, 2012; DEON et al., 2013). De acordo com Fernandes (2005), a conjuntura agrária atual é resultado do avanço do capitalismo no campo, pois de um lado há uma apologia ao agronegócio como setor importante para o crescimento econômico e, de outro, a criminalização da luta pela terra, ambos produzindo conflitos em relação ao processo de desenvolvimento em curso no país. Embora os movimentos sociais ligados à agricultura familiar e os movimentos de luta pela reforma agrária, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), tentem contrapor as políticas governamentais com a denúncia de um modelo agrícola exportador, excludente e ambientalmente insustentável, percebe-se a consolidação da hegemonia do agronegócio. A experiência aqui analisada se situa em um ambiente onde se entrecruzam essas duas políticas públicas de corte estrutural: a organização de um processo de agroindustrialização e a consolidação dos assentamentos de reforma agrária. Ao defrontar-se com o desafio de constituir um projeto capaz de aumentar a renda das famílias agricultoras e, ao mesmo tempo, 5 No Brasil este termo tem sido usado como sinônimo de uma agricultura em grande escala, voltada para produção de commodities e com objetivo de maximizar a lucratividade do capital investido. Este segmento representado por grandes proprietários de terra e agricultores integrados às agroindústrias processadoras tem sido acusado da degradação ambiental em função dos métodos de produção utilizados, baseados no intenso uso de agroquímicos e mecanização pesada.

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alavancar um processo de desenvolvimento local no assentamento “Nova Esperança”, município de Capão do Cipó – RS, surge à proposição de desenvolver a partir da cultura da mandioca (a qual apresenta um grande potencial de produção local), um empreendimento agroindustrial (unidade de processamento da matéria-prima). Buscava-se evitar que a venda in natura fosse à única possibilidade de comercialização, pois se verificava a relação desfavorável dos agricultores assentados diante dos equipamentos de varejo. Sabe-se que projetos de desenvolvimento rural para a agricultura familiar devem respeitar as especificidades regionais, envolvendo culturas com potencial de produção, mas que também possam possibilitar a apropriação pelos agricultores da maior parte do valor agregado gerado e que dialoguem com a formação de identidades e a diferenciação das regiões no cenário econômico mais amplo (ABRAMOVAY, 2000). Neste sentido, tratava-se de buscar uma atividade que pudesse oferecer lucro aos quatro assentamentos de Capão do Cipó, os quais envolvem mais de duzentas famílias, despertando assim uma perspectiva de desenvolvimento. Muitas vezes, estes projetos dependem da capacidade de ação coletiva dos agricultores e da atuação dos agentes de desenvolvimento, efetivando a animação social, considerada um processo de potencialização da ação local pelos agentes externos quando do “start” inicial das experiências de construção social (SILVEIRA e GUIVANT, 2011). E no caso em discussão havia a necessidade da construção social de mercados, pois não se tratava de organizar os agricultores para inserir-se em uma cadeia produtiva tradicional6. Assim, os assentados foram induzidos a agir coletivamente, criando uma organização em torno do projeto em desenvolvimento, pois seria inviável a implantação de uma unidade de processamento sem uma gestão coletiva e sem a participação de um conjunto de famílias. Tal situação é imposta pela necessidade de justificar a aplicação de

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6 Considera-se aqui uma cadeia produtiva tradicional aquela em que os compradores são conhecidos e as regras de relacionamento entre os diferentes agentes envolvidos são de conhecimento público.

PARTE ii Capítulo 6

recursos públicos no empreendimento de processamento de mandioca e a organização necessária para produção de matéria-prima. Cabe destacar que os agricultores assentados encontravam-se descapitalizados, após vários projetos de produção frustrados, sendo necessário trabalhar com base nas condições presentes no local sem exigir vultosos investimentos em capital. Assim, decidiu-se pela estruturação e qualificação da cadeia produtiva da mandioca visando assim: a) produzir uma cultura com pouca necessidade de investimento e capaz de gerar renda; b) trabalhar com uma cultura já em produção nos assentamentos locais e que as famílias conhecessem o processo produtivo; c) trabalhar com uma cultura agrícola com bom desempenho nas condições locais de solo e microclima; d) agregar valores a esta produção, através do processo de agroindustrialização; c) oportunizar a participação de todos os agricultores assentados por mínima que seja sua produção. Salienta-se que a Manihot Esculenta, popularmente conhecida como mandioca, é um dos produtos mais populares da alimentação brasileira desde os primórdios da colonização portuguesa. Segundo Pinto (2002), a mandioca está “Fortemente presente no imaginário popular, a mandioca é portadora de tradições [...]. Produzida de norte a sul do país, o baixo custo da produção permite o seu cultivo pela população mais pobre, da qual constitui alimento básico [...]”. Decide-se então trabalhar-se a cultura da mandioca, sendo que seu processamento poderia servir como alternativa de renda para estes agricultores familiares assentados de reforma agrária. Esta experiência se desenvolveu no município de Capão do Cipó, o qual se localiza na mesorregião Centro Ocidental Rio-grandense, possui cerca de 3.180 habitantes, abrigando em seu território quatro Projetos de Assentamento de Reforma Agrária: Assentamento Federal Novo Santiago, Assentamento Federal Quatorze de Julho, Assentamento Federal Sepé Tiarajú e Assentamento Estadual Nova Esperança, numa área de 3.847 hectares onde foram assentadas 197 famílias, e nos tempos atuais vivem cerca de 227 famílias (devido a subdivisão de lotes para os filhos, que passaram a viver na mesma gleba), representando cerca de 20% da população do

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município e tendo significativa importância na economia local. Devido a temática aqui desenvolvida apresentar particularidades em relação aos demais públicos relacionados com a agricultura, optou-se por relatar esta experiência como um desafio proporcionado por novos espaços rurais criados a partir dos assentamentos da reforma agrária na região das missões no sul do Brasil. A reflexão que aqui realizamos se ancora na participação dos autores em momentos diferentes do processo transcorrido, desde a gestação da ideia até a concretização do projeto da unidade de beneficiamento, incluindo o acompanhamento do esforço organizativo e as negociações em torno da viabilização dos recursos para sua efetivação. A sistematização da experiência, visando sua análise e documentação utilizou a pesquisa qualitativa, a qual, no entendimento de Creswell (2007), ocorre em ambiente “natural” (onde não se artificializa um momento de investigação) e permite ao pesquisador apreender um maior nível de detalhamento sobre as ações locais. Lança-se mão de dados colhidos no escopo da vivência dos autores nos assentamentos da região e na efetivação dos projetos de extensão: A ação da universidade na re-construção sócio-ambiental das práticas alimentares em assentamentos rurais – o caso dos assentamentos do município de Capão do Cipó/RS desenvolvido pelo NEPALS (Núcleo Interdisciplinar em Extensão e Pesquisa sobre Alimentação e Sociedade) da UFSM, desde 2010 e o Programa SOMAR7, realizado através de convênio entre UFSM e INCRA-RS com objetivo de assessorar a implantação de agroindústrias nos assentamentos de reforma agrária no RS (2009-2012). Através dos procedimentos metodológicos utilizados, estabeleceu-se uma relação entre a teoria e a prática, esta analisada via discursos instituídos dos atores sociais envolvidos. A metodologia baseou-se em uma pesquisa descritiva, que de acordo com Rudio (2003), se interessa em descobrir e observar os fenômenos, procurando descrevê-los e interpretá-los. A experiência vivenciada

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7 Sistema de Orientação e Mobilização Assistida com Responsabilidade Técnica.

PARTE ii Capítulo 6

1. As primeiras tratativas Quando da atuação como professor da rede pública estadual do Rio Grande do Sul na Escola Estadual Chico Mendes no assentamento Sepé Tiarajú, no ano de 2008, o primeiro autor deste artigo foi convidado por um grupo de agricultores familiares dos Assentamentos Nova Santiago (conhecido como Santa Rita), Sepé Tiarajú, 14 de Julho e Nova Esperança no município de Capão do Cipó, para uma reunião. O objetivo deste encontro era para contribuir na busca de alternativas que possibilitassem viabilizar novas fontes de renda para estes agricultores familiares que se encontravam com problemas financeiros, oriundos da quebra de safra da soja, a qual era produzida em monocultura. Com a presença de cerca de oitenta agricultores dos quatro assentamentos foram discutidos várias possibilidades, sendo que entre as quais as duas que mais receberam a aceitação foram: a produção de canade-açúcar para ser comercializada na usina de produção de álcool que se localiza no município de Porto Xavier; e a produção e transformação da mandioca com a possibilidade de produzir a farinha de mandioca, comercializar a mandioca pré-cozida e embalada a vácuo. Esta segunda hipótese foi muito bem aceita pelos agricultores familiares assentados. FIGURA 1 – REUNIÃO COM PRODUTORES

Fonte: Arquivo pessoal de Vilson Santos.

Nascia assim, a ideia da produção em escala comercial de

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mandioca nesta região, que já de início apresentava alguns desafios, como a distância dos centros consumidores já que não se podia contar com o mercado local: o município possuía na época 3.180 habitantes sendo estes distribuídos entre 428 habitantes na cidade e 2.752 habitantes no rural8, logo o mercado consumidor seria incipiente para o projeto que se buscava. O segundo desafio era como envolver os diferentes seguimentos de agricultores familiares do município e da região (agricultores familiares assentados e agricultores tradicionais9); o terceiro desafio era como superar as distâncias dos centros consumidores, uma vez que o município de Santiago fica distante a cerca de 50 Km, o município de Santa Maria (sede regional de redes de supermercados), cerca de 200 Km, e o município de Santo Ângelo, a uma distância de 200Km. Isto evidenciava uma necessidade de um investimento em logística de transporte, considerando as exigências sanitárias. Na busca de superar estes obstáculos foi sugerido pelo Prof. Vilson F. dos Santos a criação de uma comissão permanente para coordenação do projeto, sendo que este passou a atuar como mediador do processo de animação social, considerando-se a necessidade de estimular os agricultores a não desistir diante das dificuldades surgidas e a moderação diante dos conflitos existentes no processo de organização. Montada esta comissão ela passa a propor as discussões que resultou na promoção de muitas reuniões e a apresentação de propostas para superar as duvidas que fossem surgindo ao longo do processo, entre as quais estariam: como produzir, como qualificar o produtor, como adquirir o maquinário adequado, quais as variedades apropriadas ao tipo de solo local, quais técnicas a serem utilizadas, formas de comercialização, armazenamento na entre safra, escoamento da produção. Na seqüência, a comissão permanente aponta ser necessário para que o projeto tenha seu início dois pontos básicos: a) O primeiro seria qualificar os produtores que iriam se

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8 Grande parte dos habitantes do município direta ou indiretamente está envolvida com a agricultura, tendo acesso aos alimentos produzidos localmente. 9 Entende-se aqui os agricultores familiares da região que não são assentados da reforma agrária.

PARTE ii Capítulo 6

envolver no processo inicial, sendo que a idéia era de que estes deveriam, posteriormente, realizar a qualificação dos demais produtores que desejassem participar. Foi então contatado o SENAR de Santiago, o qual prontamente atendeu a solicitação de envio de instrutor para ministrar o curso que foi realizado na propriedade do agricultor Claudio no assentamento Nova Esperança. O curso envolveu 40 h realizado durante uma semana, no mês de janeiro de 2009, no qual participaram 27 agricultores, onde se debateram as técnicas básicas de produção de mandioca. b) O segundo ponto seria a escolha de variedades que mais se adaptassem a região, já que tecnicamente esta região não é considerada própria para este tipo de cultivo. Sendo então buscado o contato com o Instituto Federal Farroupilha - IFF de São Vicente do Sul, onde era sabido haver uma pesquisa de campo sobre variedades de mandioca para esta região. Foram disponibilizados pelo Departamento de Extensão Rural do IFF, com auxílio da COPTEC10, 21 variedades de mandioca, as quais foram plantadas de forma experimental na propriedade do agricultor Claudio (Figura 02), onde passaram a ser observadas pelos agricultores e por técnicos da COPTEC. Após este tempo e com a distribuição para algumas famílias de algumas varas para sementes das variedades que se julgaram mais apropriadas, o projeto sofre uma estagnação, pois passou a ter forte influência as dificuldades vivenciadas na comercialização dos primeiros cultivos (não havia transporte, o produto era in natura e os produtores não desejavam vender a varejo, além da exigência dos compradores de entregas sistemáticas de produtos); neste período, somente o agricultor Claudio levou em frente seu comércio, resumindo-se a venda de algumas centenas de quilos do produto de forma in natura.

10 Cooperativa de Prestação de Serviços Técnicos.

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FIGURA 2 – ÁREA EXPERIMENTAL DE MUDAS DE MANDIOCA

Fonte: Arquivo pessoal de Vilson Santos.

Após este período de estagnação, no ano de 2010 acontece uma retomada deste processo a partir de ações de extensão do Grupo SOMAR/ UFSM11 em moinho colonial no Assentamento Santa Rita, onde acontece o reencontro dos extensionistas com os agricultores organizados para produção da mandioca, quando tem início novamente a discussão de como retomar-se o projeto. Neste contexto, marcaram-se então os primeiros encontros, os quais foram muito promissores no sentido de uma nova estruturação do trabalho com base na experiência anterior, desta vez contando com mais apoio das autoridades locais, órgãos representativos dos agricultores e empresas constituídas de extensão rural, e principalmente, com a experiência dos integrantes da equipe SOMAR/INCRA/UFSM12. Assim, tomou corpo a nova proposta que resultaria em um projeto de uma unidade de beneficiamento de mandioca. 2. A Retomada do Projeto Com o reinício das discussões da nova proposta a ser implantada, definiu-se que seriam necessárias algumas ações, sendo estas necessariamente interligadas entre si: a) A primeira parte seria a constituição de uma associação de produtores assentados, o que demandou várias reuniões para construção

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11 Projeto coordenado pelo segundo autor. 12 Contando com arquiteto, administrador, técnicos na área de tecnologia de alimentos e em gestão ambiental, além de extensionistas rurais (onde se inserem os autores deste artigo).

PARTE ii Capítulo 6

de estatuto, o qual versa sobre a relação entre os associados; b) A assistência técnica a cargo da COPTEC e com apoio de extensionistas da UFSM, deveria estruturar a produção (área a ser plantadas, variedades, gestão e encaminhamento da produção) e os projetos para aquisição de maquinário destinado ao preparo do solo e coleta da matéria prima, recursos estes que deveriam ser captados nas esferas administrativas (Federal, Estadual e Municipal), além de emendas parlamentares de políticos ligados à região; c) Caberia à equipe SOMAR a elaboração de projeto da unidade de beneficiamento, o qual exigiu varias reuniões para discussão dos muitos aspectos envolvidos, como a escala de produção pretendida, tipos de produtos a serem produzidos e quais os subprodutos que poderiam ser gerados e que possuem possibilidade de encadeamento com outras atividades produtivas locais, como a produção leiteira. 3. O Projeto Elaborado Com base na construção coletiva, foi elaborado um plano de implantação da unidade de processamento de mandioca, envolvendo um conjunto de ações necessárias para que seus objetivos fossem alcançados, as quais deveriam ser coordenadas e fiscalizadas pelo grupo gestor do projeto (constituído por agricultores assentados e as instituições de apoio: Prefeitura Municipal, COPTEC, NEPALS-UFSM). Destacam-se aqui os principais aspectos a serem contemplados: a) O cadastramento dos produtores – Coube ao grupo gestor cadastrar os agricultores que desejavam participar do plano de produção da mandioca; neste cadastro estava explicito a área a ser plantada de cada um dos agricultores; desta forma, obteve-se a estimativa de área plantada e, por consequência, a produção pretendida; b) A produção – O calculo da produção foi realizado com base no numero de produtores inscritos, sendo 21 produtores, onde onze destes plantariam cerca de meio hectare, oito plantariam um hectare, e dois gostariam de plantar cerca de dois hectares. Assim, em primeiro plano teríamos uma área de produção inicial estimada em 17,5 hectares que

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com uma media produtiva nesta região resultaria em uma estimativa de 210 toneladas de mandioca in natura, nesta fase inicial. Ficou também acertado que os demais produtores que poderiam a vir a se somar neste contexto produtivo, seriam inscritos para as próximas safras, uma vez que era necessário planejar a venda do produto; c) Entretanto, o cálculo final debatido com o grupo gestor era que a meta final seria de atingir 30 ha de mandioca, considerando 12 ton\ha de produtividade, teríamos 360 ton\ano; se considerarmos que a mandioca seria processada por oito meses, visando manter a qualidade da matéria-prima, teríamos 45 ton\mês; se estimarmos uma venda in natura de 15 ton\mês, teremos que processar 30 ton\mês; trabalhando 22 dias\mês, teremos 1360 Kg\dia; a instalação de beneficiamento teria que comportar este volume, o que foi utilizado como critério para seu dimensionamento. E para descascar toda esta quantidade foi constatada a necessidade de mecanizar tal atividade; d) A assistência técnica – tendo por base que a assistência técnica nestes assentamentos rurais estava a cargo da COPTEC, por força de edital de contratação pelo INCRA, a mesma passaria a ser o vetor principal de assistência técnica aos agricultores assentados, mas contaria com apoio de extensionistas da Secretaria Municipal de Agricultura e da Universidade Federal de Santa Maria, através do Grupo NEPALS/UFSM (principalmente na área de gestão do empreendimento e na viabilização de parcerias interinstitucionais); e) Em relação à unidade de beneficiamento, a equipe SOMAR em discussão com grupo gestor resolveu aproveitar a significativa quantidade de resíduos representada pelas cascas, sendo projetada a possibilidade de produção de adubo orgânico via compostagem a ser utilizado para recuperação do solo. Pensou-se utilizar as folhas e ramas para produção de ração, vinculando-a aos resíduos do processamento de farinha no moinho colonial existente no assentamento Nova Santiago, o qual estava previsto para entrar em operação em 2012; f) Para que nesta primeira parte do processo, a implantação da produção de mandioca tenha sucesso eram necessários equipamentos e

PARTE ii Capítulo 6

maquinas que permitissem aos agricultores um cultivo adequado, com base em suas experiências, formação e conhecimento. Assim foi projetado que deveria ser disponibilizado um trator equipado para o preparo do solo com equipamento adequado ao plantio (poderia ser viabilizado pelo poder público municipal, pois este estava recebendo recursos federais para aquisição de patrulha agrícola); este mesmo trator deveria ser equipado com reboque, pois ele faria inicialmente a preparação do solo e o transporte de insumos se necessário, além do produto da lavoura dos produtores para a agroindústria rural de transformação. Houve também acalorada discussão em torno de uma maquina artesanal de arrancar mandioca. Ressalta-se que este conjunto de equipamentos deveriam ser adquirido com verbas de emendas parlamentares ou captado junto aos Ministérios do Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento Social, além de recursos advindos do governo do Estado. A obra física da agroindústria rural projetada é constituída da construção de instalações para processamento da produção em uma área de 228 m², incluindo cercamento e tratamento de efluentes (Figura 03). O projeto da unidade de beneficiamento foi elaborado em duas partes conexas, mas potencialmente separadas, viabilizando sua implantação em partes: a unidade de processamento da mandioca e a unidade de preparação de ração. Para a realização do projeto foi necessário uma série de negociações entre os agricultores, pois de fato eram representantes de quatro assentamentos rurais, onde todos tinham o desejo de sediar a agroindústria rural. Decidiu-se, entretanto, que iriam prevalecer os princípios técnicos para a localização e, assim, técnicos da equipe SOMAR/ UFSM, COPTEC e da Secretaria Municipal de Agricultura, juntamente com o grupo gestor chegaram a um acordo de que a localização deveria ser em local de fácil acesso para o escoamento da produção, próxima a redes de água e energia elétrica, visando o melhor funcionamento do empreendimento.

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FIGURA 3 – MAQUETE ELETRÔNICA DA AGROINDÚSTRIA A SER INSTALADA

Fonte: Grupo SOMAR/UFSM.

Foi escolhida uma área no assentamento Nova Esperança, próxima a rodovia asfaltada que dá acesso a sede do município (distância de 350 m), mas para tanto era necessária a cedência do terreno, ainda de posse do Governo do Estado (trata-se de assentamento estadual), o que foi feito prontamente por um agricultor assentado com a anuência do órgão competente (Departamento de Desenvolvimento Agrário da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural). Foi destinado um hectare de terra (10.000 m²) para a instalação da agroindústria. O processamento da mandioca para sua comercialização embalada a vácuo e sua transformação em subprodutos, torna-se uma necessidade diante da dificuldade de comercialização hoje realizada in natura e diante do volume produzido nos quatro assentamentos do município de Capão do Cipó. A implantação de uma unidade agroindustrial significava uma importante fonte de geração de renda, agregando valor a mandioca e seus subprodutos. Este processo objetivava ofertar ao mercado três produtos distintos: mandioca descascada e embalada a vácuo em porções de consumo para duas pessoas, a mandioca descascada e embalada in natura, e a mandioca in natura lavada com casca; e ainda, em um segundo momento, projeta-se a produção de farinha de mandioca, o que

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depende de aumento na produção e de aquisição de novos equipamentos, estes já constantes no projeto elaborado. Para viabilizar esta estratégia de comercialização, estão previstos equipamentos para preservação do produto (freezers e câmaras frias), além de embaladoras a vácuo. O grande desafio percebido foi a gestão do processo, o qual necessita ser um aprendizado continuo e que deverá basear-se na cooperação e na decisão coletiva. Neste ponto, trona-se fundamental a assessoria da universidade e demais instituições envolvidas no planejamento e gestão do empreendimento. Decidiu-se coletivamente que ao final de cada ano na assembleia da associação seriam feitos os ajustes de compra e venda para o próximo período, ou seja, depois de efetivados todos os pagamentos das despesas de operação, transformação e venda do produto transformado se veria sobre o recurso restante, então decidindo-se sobre novos investimentos ou distribuição de dividendos aos produtores ou, ainda, o financiamento da próxima safra. Debateu-se também a necessidade de projetar-se, futuramente, uma estrutura adequada para comercialização, sendo previsto a aquisição de um caminhão frigorífico para fazer o escoamento da produção até os centros consumidores, sendo que estes recursos viriam através de projetos específicos para captação de recursos públicos federais e estaduais. Considerações Finais Esta experiência se constitui em um trabalho impar na região em foco e muito tem motivado os produtores assentados e agricultores familiares tradicionais em apostar na viabilidade do cultivo da mandioca e sua transformação. Tal experiência tem grande importância na medida em que passou a figurar como uma importante ferramenta no desenvolvimento rural deste espaço geográfico e uma ótima alternativa de renda para estes agricultores, aumentando assim a auto-estima e a participação dos produtores em processos coletivos de cooperação. No entanto, as dificuldades de liberação de recursos federais somadas as deficiências do poder público local, sejam de ordem administrativa ou de qualificação técnica, bem como, as divergências

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políticas presentes nos espaços políticos locais, impediu que a unidade de beneficiamento pudesse ter sido concretizada até o momento. Tal frustração implicou em um desestímulo para que os agricultores se organizassem em torno da produção da mandioca, apesar de ainda permanecerem esperançosos na retomada do projeto. No momento, várias iniciativas acontecem no sentido de viabilizar os recursos para implantação do projeto, se não em sua totalidade, pelo menos em parte. A universidade agora em 2014 retoma junto ao poder público municipal e a organização dos assentados, a discussão de encaminhamentos que viabilizem a execução do projeto. E para 2015, espera-se, passado o ano eleitoral, ações concretas neste sentido. Referências

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PARTE ii Capítulo 6

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CAPÍTULO 7 Produção de farinha de mandioca e de farinha de tapioca no estado do pará como oportunidades de negócios para empreendedores e agricultores na amazônia Alves2

Moisés de Souza Modesto Júnior1 e Raimundo Nonato Brabo

Introdução Pessoas em todo o mundo, principalmente aquelas que possuem perfil empreendedor, possuem o sonho de abrir seu próprio negócio e conduzir um empreendimento lucrativo. Em 2013, foram constituídas no Brasil 471.915 empresas (DEPARTAMENTO..., 2013), portanto, estimase que quase um milhão de brasileiros, cerca de 1 a cada 212 pessoas, tenham realizado seu sonho pela primeira vez ou resolveu abrir outra empresa em 2013, sem contar os microempreendedores individuais. Essa estatística contabiliza predominantemente os empreendimentos urbanos que estão regularizados, ficando de fora milhares de empreendedores rurais que trabalham na informalidade. 1 Eng.-agrôn. Especialista em Marketing e Agronegócio. Analista da Embrapa Amazônia Oriental. Tv. Dr. Enéas Pinheiro, s/n, Caixa Postal 48, CEP 66.095-100, Belém, PA. E-mail: [email protected]. 2 Eng.-agrôn. M.Sc. em Agronomia. Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental. E-mail: raimundo.brabo-alves@ embrapa.br.

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Empreender e montar o próprio negócio sem planejamento aumenta os riscos de não sobreviver no mercado. Para quem quer iniciar uma empresa com maiores condições de êxito, aconselha-se pesquisar por informações e dados que possam subsidiar sua estruturação, desde o conhecimento do mercado e suas demandas, passando pelo levantamento de recursos para viabilização do negócio, escolha do melhor local para instalação da empresa, entre outros. É preciso investir em planejamento e em tecnologias de processos para oferta de produtos e serviços competitivos. A produção de farinha de mandioca e de farinha de tapioca apresentam-se com excelente potencial para constituição de pequenos negócios rurais na Amazônia, porém, ainda são processadas por pequenos empreendimentos na informalidade, em ambientes denominados no Estado do Pará de “Casas de Farinha”, que são estruturas produtivas que processam pelo método artesanal as raízes de mandioca. De acordo com o Censo Agropecuário Brasileiro de 2006, o Estado do Pará conta com 67.456 estabelecimentos agropecuários que produzem mandioca, o equivalente a apenas 8,1% dos estabelecimentos existentes no Brasil (IBGE, 2006), um percentual muito baixo considerando que há 22 anos (1992 a 2013) o Pará vem se destacando no cenário brasileiro como o maior produtor de mandioca do Brasil (IBGE, 2013), com uma área cultivada de 298.190 hectares e produção de 4.681.102 de toneladas de raiz em 2013. Torna-se importante o estudo da viabilidade de farinheiras para produção de farinha de mesa e de farinha de tapioca onde um número expressivo de famílias do meio rural paraense vive da produção e do processamento da farinha e de outros produtos. No caso específico da farinha de tapioca, sua produção ocorre desde 1940 no município de Santa Isabel do Pará (CEREDA & VILPOUX, 2003). Em sua maioria, tratamse de produtos com processamento simples e baixo nível tecnológico, mas que apresentam um potencial de agregação de valor altamente significativo. Não é tarefa fácil estimar a rentabilidade de produção artesanal

PARTE ii Capítulo 7

proveniente da agricultura familiar, sendo difícil afirmar com qualquer grau de precisão se existe viabilidade econômica dos empreendimentos, incluindo a remuneração da mão de obra familiar. Portanto, diante deste ambiente de grande incerteza, tornam-se relevantes estudos econômicos que resultem em racionalização das atividades para maximizar a produtividade e minimizar os custos de produção. Estudos de análises econômica do cultivo da mandioca e de agroindústrias familiares para determinação da receita bruta, margem bruta e ponto de equilíbrio têm sido realizados no Estado da Paraíba por Souza et al., (2013) e no Pará por Alves e Modesto Júnior (2012) e Modesto Júnior e Alves (2013). O presente trabalho objetiva analisar a rentabilidade de duas pequenas farinheiras de propriedade individual no Estado do Pará, que produzem farinha de mesa e farinha de tapioca. Mais precisamente visase identificar os fluxogramas de produção, as receitas operacionais, ponto de equilíbrio, margem de contribuição, lucratividade e taxa de retorno dos empreendimentos. Para isso, o artigo está dividido em seções: a metodologia, por meio da qual se auferiram os objetivos propostos; os relatos sobre a produção de farinha de mesa e de tapioca com os resultados obtidos; finalizando com as considerações finais. Materiais e Métodos No empreendimento de produção de farinha de mesa a pesquisa foi realizada em três etapas: em setembro de 2011, março de 2013 e junho de 2014. No empreendimento com farinha de tapioca, a pesquisa também foi realizada em três etapas (setembro de 2010, março de 2013 e junho de 2014), porém, a avaliação ocorreu quando a farinheira utilizava processo inteiramente manual em todas as etapas em 2010 (ALVES & MODESTO JÚNIOR, 2012) e após a introdução no processo de produção das seguintes inovações: uma cevadeira elétrica para trituração de massa; uma betoneira elétrica de aço inox para o encaroçamento: uma plataforma elétrica com peneiras vibratórias para uniformização dos caroços de tapioca: um ventilador para alimentar a fornalha na

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substituição de queima de madeira por semente de açaí; e um forno mecânico de espocamento do caroço em farinha de tapioca. O empreendimento de produção de farinha de mesa é representativo do processo de fabricação artesanal na região Nordeste Paraense, localizada no Município de Castanhal e a agroindústria de produção de farinha de tapioca está localizada no Distrito de Americano, no Município de Santa Isabel do Pará, na Mesorregião Metropolitana de Belém, cuja unidade produtiva é representativa de mais de 140 existentes no arranjo produtivo. Estas farinheiras são de propriedade familiar e de uso individual. Foram obtidas informações por meio de entrevista pessoal com os proprietários dos empreendimentos sobre o fluxograma de produção com as inovações introduzidas no período, os custos de produção de farinha de mesa e de farinha de tapioca e o preço de comercialização, características dos empreendimentos, atividade econômica do proprietário, custos de produção de farinha de mesa, tipo de mão de obra utilizada, cujos dados foram tratados com recursos de planilha Excel. Observações visuais e anotações do funcionamento dos equipamentos introduzidos complementaram as informações. Os resultados médios dos custos de produção e preço dos produtos foram submetidos a uma análise financeira durante o período estudado para determinação das Receitas Operacionais que correspondem às operações normais de vendas da produção; Ponto de Equilíbrio, obtido pela razão entre o custo total e o preço de venda do saco de 60 kg produzidos, que é o momento quando despesas e lucros se igualam, ou seja, quando o produto deixa de custar e passa a dar lucro; Margem de Contribuição, gerada pela diferença entre receita operacional e o custo variável, dividindo-se pela receita operacional em percentagem, que é a quantia que irá garantir a cobertura do custo fixo e do lucro, após a empresa ter atingido o ponto de equilíbrio. Lucratividade indica o percentual de ganho obtido sobre as vendas realizadas e Taxa Interna de Retorno (TIR) valor que aplicado a um fluxo de caixa, faz com que os valores das despesas, trazidos ao valor presente, seja igual aos valores

PARTE ii Capítulo 7

dos retornos dos investimentos, também trazidos ao valor presente e foi obtida pela razão entre o lucro líquido e o investimento inicial em percentagem. A TIR expressa em meses significa o tempo necessário para retorno do investimento inicial, obtido pela divisão entre investimento inicial e o lucro líquido (MARTINS, 2003). A produção da farinha de mandioca no Pará A mandioca é uma cultura pré-colombiana. Quando os colonizadores portugueses chegaram ao Brasil já encontraram os povos americanos consumindo a mandioca e a confundiram com o inhame, tubérculo já então conhecido no continente europeu. O cultivo da mandioca tem sua origem da cultura indígena, tanto que, o seu consumo no Pará é mais diversificado que nas demais regiões do Brasil, pois envolve consumo de farinha de mesa, farinha de tapioca, tucupi, folha, goma (amido com 45% de umidade) e in natura após cozimento. Somente o consumo per capita de farinha de mesa na região metropolitana de Belém é de 34 kg, sendo o mais alto do Brasil e 2,35 vezes maior que o consumo da região metropolitana de Salvador, que é o segundo maior consumidor deste produto no país (CARDOSO et al., 2001). A mandioca foi tão importante para a colonização do país que sem ela estariam inviabilizadas as grandes navegações, considerando que a farinha de mandioca passou a ser a fonte alimentar de carboidratos nas caravelas. Nas Entradas e Bandeiras rumo à conquista do sertão brasileiro, juntamente com a carne de boi, viabilizou a dieta dos exploradores com a dupla “carne seca e farinha”, tanto que ficou conhecida como “farinha velha de guerra”. No Pará é considerada uma cultura tão abençoada que mesmo sendo cultivada em diferentes níveis tecnológicos, ainda assim se constitui na mais importante cultura nacional, do ponto de vista da segurança alimentar. Tanto que para os agricultores familiares descapitalizados, a última cultura que eles deixam de plantar é a mandioca. Na pior das condições de cultivo, ainda assim, produz no mínimo uma tonelada de proteínas e duas toneladas de carboidratos (ALVES & MODESTO JÚNIOR, 2013).

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O Estado do Pará lidera o ranking nacional de produção de raiz de mandioca, com participação de 22,05%, seguido pelo Paraná com 18,21%, a Bahia com 8,72%, o Maranhão com 6,24% e Rio Grande do Sul com 5,49%. Esses estados somam 60,73% do volume produzido pelo País, em 2013 (IBGE, 2013). É a cultura de maior importância econômica, social e cultural, chegando a ocupar duas pessoas durante o ano para cada três hectares cultivados, com estimativa de geração de 200 mil empregos diretos no meio rural no Estado do Pará. Praticamente toda a produção de raízes de mandioca do Pará é consumida na forma tradicional de farinha de mesa, representando assim um dos principais componentes da dieta alimentar da população. A produção de farinha ocorre nos “retiros ou casas de farinha” de agricultores familiares, com infraestrutura rústica, processo artesanal de produção e na informalidade. Destacam-se dois grupos de farinha classificados conforme o processo de fabricação: farinha de mandioca d’água e farinha de mandioca seca, divididas em diferentes granulometrias (fina, média e grossa). Segundo Chisté e Cohen (2006) a principal diferença entre as farinhas d’água (farinha de puba) e seca é a existência de uma etapa prévia de fermentação na produção da farinha d’água, por aproximadamente quatro dias.

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O caso de uma farinheira do Nordeste Paraense A farinheira situada no município de Castanhal possui estrutura de porte médio, que utiliza processo artesanal de fabricação de farinha seca (em maior quantidade) e farinha d´água, com instalações rústicas (Figura 1), entretanto com bom nível de organização das etapas de produção (Figura 2). A mão de obra é contratada e composta por 12 pessoas, sendo 8 descascadores, 1 lavador que também conduz a raiz no triturador mecânico, 1 prensador que também executa a etapa de esfarelamento da massa e 2 torradores. Em prospecções feitas pelo Pará observou-se a existência de retiros de farinha com apenas um forno e processo totalmente manual e artesanal, com capacidade de produção de 3 sacos de farinha/trabalhador/

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semana, totalizando 144 sacos de 60 kg de farinha por trabalhador/ ano. Na farinheira pesquisada, representativa do sistema semiartesanal, observou-se que a capacidade de produção foi de 280 sacos/trabalhador/ ano, cuja diferença está relacionada à escala de produção devido à introdução de equipamentos mecanizados em algumas etapas de produção da farinha. Se considerarmos um valor médio de produção anual dos dois sistemas de fabricação na ordem de 212 sacos/trabalhador é possível estimar a ocupação de 92.000 pessoas no Estado do Pará, trabalhando nas agroindústrias e “casas de farinha”, considerando que a produção de 4.681.102 t de raiz de mandioca foi transformada em 1.170.276 t de farinha no Estado do Pará, em 2013 (IBGE, 2013). FIGURA 1 – FARINHEIRA DE PORTE MÉDIO PRODUTORA DE FARINHA SECA E FARINHA D´ÁGUA NO MUNICÍPIO DE CASTANHAL, PA, 2014

Foto: Moisés Modesto.

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FIGURA 2 – FLUXOGRAMAS DE PROCESSAMENTO DA FARINHA DE MANDIOCA SECA E FARINHA DE MANDIOCA D´ÁGUA NO MUNICÍPIO DE CASTANHAL, PA, 2014

Recepção de Raiz de Mandioca

O manual Descascamento Imersão em tanque com água por 15 minutos para lavagem

O

Imersão da raiz com casca em água, ao ar livre em igarapé com água corrente

Trituração mecânica das raízes

Trituração mecânica das raízes

Prensagem manual da massa triturada

Prensagem da massa triturada deixando 30% de umidade

Esfarelamento mecânico (desintegrar a massa)

Esfarelamento mecânico (desintegrar a massa)

Torragem manual

Torragem manual

Peneiraento manual (grossa, media e fina)

Peneiraento manual (grossa, media e fina)

Embalagem (saco de 60 kg) 24 horas

Embalagem (saco de 60 kg) 24 horas

Farinha de mandioca seca pronta para consumo

Fonte: dados da pesquisa.

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Recepção de Raiz de Mandioca

Farinha de mandioca d´água pronta para consumo

PARTE ii Capítulo 7

O investimento para montagem do empreendimento foi estimado em R$20.580,00 referente à construção de um galpão em madeira com cobertura de telha de amianto e os seguintes equipamentos: um tanque em alvenaria para lavagem da raiz; um triturador de raiz de mandioca com motor a diesel de 90 HP; uma prensa manual para espremer a massa (Figura 3); um triturador elétrico para esfarelar a massa prensada; dois fornos para torragem manual da farinha (Figura 4); três cochos de madeira de lei para recebimento da farinha torrada, peneiras e uma balança com capacidade de 150 kg. Identificou-se que a capacidade de produção de farinha de mesa foi constante no período estudado, com média de 280 sacos de 60 kg por mês. Toda a matéria-prima necessária para a produção da farinha na ordem de 67,2 toneladas/mês de raiz foi adquirida pelo empreendimento no valor de R$160,00 em setembro de 2011, R$ 750,00 em março de 2013 e R$ 165,00 em junho de 2014. FIGURA 3 – PRENSA MANUAL UTILIZADA PARA ESPREMER A MASSA DA RAIZ DE MANDIOCA, 2014

Foto: Moisés Modesto.

FIGURA 4 – FORNOS DE TORRAGEM MANUAL DA FARINHA DE MESA, 2014

Foto: Moisés Modesto.

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O produto final dessa agroindústria segue padrão de consumo e regulamentação nacional, sendo predominante a farinha seca dos subgrupos média e fina, classe amarela e tipo 1. A comercialização é feita de modo coletivo com mais agricultores, que entregam o produto a um produtor de farinha de mesa com maior capacidade de produção, que se incumbe de colocar no mercado o produto embalado em pacotes de 1 kg com código de barra e logomarca. Os custos operacionais médios mensais da agroindústria de farinha de mesa nos meses de setembro de 2011, março de 2013 e junho de 2014 são descritos na Tabela 1. Houve uma breve redução nos custos fixos, devido à redução da retirada dos sócios (R$ 1.000,00/mês em 2011 e 2013 para R$ 600,00 em junho de 2014), mas as despesas com água, luz, manutenção e depreciação de equipamentos (R$ 371,50) permaneceram constantes. No período estudado houve um aumento no custo da mão de obra direta de 79,07% contra um fator de reajuste de 17,04% do salário, segundo o Índice Nacional de Preços do Consumidor (IBGE, 2014), índice este muito utilizado pelo Governo Federal como parâmetro para o reajuste de salários em negociações trabalhistas. Em setembro de 2011, o saco de 60 kg de farinha de mandioca era comercializado ao valor de R$ 66,00, em março de 2013 subiu para R$ 250,00 e em junho de 2014 caiu acentuadamente para R$ 85,00. Comparando-se 2011 com 2013 a farinheira teve um lucro líquido fantástico saindo de R$ 475,65 para R$ 5.848,68. Porém, com a queda no preço da farinha em junho de 2014, o lucro ficou na ordem de R$ 1.628,55. A margem de contribuição aumentou de R$ 1.900,00 em 2011 para R$ 10.335,00 em março de 2013 e se estabilizou em R$ 2.781,00, em junho de 2014, que representa quanto a empresa dispõe para pagar as despesas fixas e gerar o lucro líquido. O elevado lucro líquido obtido pela farinheira em 2013 ocorreu devido à elevação atípica do preço de mercado da farinha de mandioca que se iniciou em 2012. Nesse ano a farinha de mandioca foi o produto da cesta básica que mais elevou seu preço, mais de 90% de aumento em todo o país (GUNDALINI & SAKATE, 2012), tornando a cesta

PARTE ii Capítulo 7

básica local a mais cara de todos os estados da federação, considerando que a farinha é o produto da alimentação básica mais consumido pelo paraense. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese/PA), o quilo da farinha nas feiras e supermercados de Belém no período de março 2012 a março de 2013 aumentou de R$ 3,09 para R$ 7,41, um aumento de 139,81%, enquanto a inflação para o mesmo período ficou em 7,22% (INPC/IBGE, 2014). Considerando os preços de venda do saco da farinha no período estudado, o ponto de equilíbrio em setembro de 2011 era de 279,27. Em março de 2013 caiu para 247,03 ficando estável em junho de 2014 com 267,18, que corresponde à quantidade mínima de sacos de farinha que o empreendedor deve comercializar por mês para cobrir as despesas fixas e variáveis. Neste período o retorno do investimento caiu de 72,25 meses para apenas 6,48 meses, se estabilizando em 23,45 meses, considerando as taxas de 1,38%,15,43% e 4,27%, respectivamente para os três períodos estudados. A redução de mão-de-obra no campo, as obrigações trabalhistas e encargos sociais, a concorrência com os programas sociais do governo, a mudança dos agricultores para outras atividades mais rentáveis, a precária infraestrutura das instalações da grande maioria das casas de farinha que, associado ao processo de fabricação artesanal, de baixa escala e baixo rendimento de produção, forçaram a elevação do custo de produção e influenciaram na redução da oferta de farinha de mesa e aumento de preço no mercado paraense. Outro fator que pode ter interferido na elevação do preço da farinha foi o aumento da demanda pelo produto ocasionada pela duplicação da população urbana paraense, que, de acordo com os Censos de 1991 e 2010, passou de 2,61 milhões de habitantes, em 1991, para 5,19 milhões de habitantes, em 2010, enquanto que a população rural reduziu de 2,57 milhões de habitantes para 2,39 milhões de habitantes, respectivamente (IBGE, 2010). Isso indica que a demanda por alimentos duplicou e que a mesma população no campo precisa dobrar a produção para sustentar a população urbana.

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TABELA 1 – RESULTADOS OPERACIONAIS DA AGROINDÚSTRIA DE FARINHA DE MANDIOCA EM SETEMBRO DE 2011 E MARÇO DE 2013 E JUNHO DE 2014 Discriminação

Setembro/2011

Junho/2014

R$ 1,00

%

mês

R$ 1,00

%

mês

R$ 1,00

%

mês

1. INVESTIMENTO INICIAL

34.367,85

-

-

37.896,65

-

-

38.182,65

-

-

1.1. Equipamentos e construção civil

20.580,00

-

-

20.580,00

-

-

20.580,00

-

-

1.2. Outras despesas

4.400,00

-

-

4.400,00

-

-

4.400,00

-

-

1.3. Reserva técnica

3.124,35

-

-

3.445,15

-

-

3.471,15

-

-

2. CUSTOS

18.431,50

-

-

61.756,50

-

-

22.710,50

-

-

2.1. Custos fixos

1.371,50

-

-

1.371,50

-

-

971,50

-

-

2.2. Custos variáveis

17.060,00

-

-

60.385,00

-

-

21.739,00

-

-

2.2.1. Mão de obra direta

4.892,00

-

-

8.100,00

-

-

8.760,00

-

-

2.2.2. Materiais diretos

12.168,00

-

-

52.285,00

-

-

12.979,00

-

-

3. RECEITA OPERACIONAL

18.960,00

-

-

70.720,00

-

-

24.520,00

-

-

3.1. Venda de 280 sacos de farinha

18.480,00

-

-

70.000,00

-

-

23.800,00

3.2. Venda de 240 sacos de raspa de raiz

480,00

-

-

720,00

-

-

720,00

-

-

4. LUCRO OPERACIONAL

528,50

-

-

8.963,50

-

-

1.809,50

-

-

4.1. Contribuição social (10% do item 4)

52,85

-

-

896,35

-

-

180,95

-

-

5. SUB-TOTAL

475,65

-

-

8.067,15

-

-

1.628,55

-

-

5.1. Imposto de renda

0,00

-

-

2.218,47

-

-

0,0

-

-

475,65

-

-

5.848,68

-

-

1.628,55

-

-

1.900,00

10,0

-

10.335,00

14,6

-

2.781,00

11,3

-

279,27

-

-

247,03

-

-

267,18

-

-

9. LUCRATIVIDADE

-

9,98

-

-

6,84

-

-

8,82

-

10. TAXA DE RETORNO / PRAZO DE RETORNO

-

1,38

72,2

-

15,4

6,5

-

4,27

23,4

6. LUCRO LÍQUIDO 7. MARGEM DE CONTRIBUIÇÃO 8 PONTO DE EQUILÍBRIO (SACOS)

Fonte: dados da pesquisa.

158

Março/2013

-

PARTE ii Capítulo 7

O desempenho financeiro dessa agroindústria pode melhorar com aperfeiçoamentos nas etapas de descascamento, lavagem e torragem. A substituição da torragem manual para a mecanizada, a ampliação dos tanques de lavagem e melhoria nos fornos de torragem visando economia de lenha podem melhorar o desempenho dos indicadores financeiros. A produção da farinha de tapioca no Pará A farinha de tapioca é um produto genuinamente paraense de grande aplicação na culinária e bastante consumido com açaí, café e como sorvete pela população, mas são raras as informações na literatura a respeito desse produto (GUIMARÃES et al.. 1988). É um produto obtido tendo a fécula (amido) como matéria prima, considerada o subproduto mais nobre da mandioca, sendo empregada desde a indústria de alimentos até a extração de petróleo (FELIPE et al., 2013). A farinha de tapioca possui característica granular, coloração branca alva, crocante, elevado teor de amido e baixo teor de proteína, portanto constituindo-se em um alimento altamente calórico (Figura 5). Segundo Cereda e Vilpoux (2003), a tecnologia de fabricação de farinha de tapioca surgiu aproximadamente em 1940, no Distrito de Americano, município de Santa Isabel do Pará, pelo produtor João Miguel. Nesse local, havia 23 farinheiras em 1988, das quais apenas 4 produziam goma ou fécula úmida e 19 a farinha de tapioca. Atualmente, estima-se que existem cerca de 140 fabriquetas de farinha de tapioca. No município Mojuí dos Campos, recém emancipado na região do Baixo Amazonas, existe um outro arranjo produtivo local de farinha de tapioca. As farinheiras apresentam a autonomia de extração da fécula, não dependendo do mercado do Estado do Paraná e no fluxograma de fabricação não possui a fase do espocamento, atendendo uma exigência do mercado local de uma farinha de grãos mais consistentes à mastigação.

159

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FIGURA 5 – FARINHA DE TAPIOCA PRONTA PARA CONSUMO PRODUZIDA NO DISTRITO DE AMERICANO, MUNICÍPIO DE SANTA ISABEL DO PARÁ, 2014

5

Foto: Moisés Modesto.

160

Em 2013 a produção nacional de fécula foi de 473,72 mil toneladas, sendo o Paraná o principal produtor com 70% da produção nacional. O Pará produziu apenas 1.500 toneladas de fécula, o que corresponde a 0,3% da produção nacional (ALVES et al., 2014), mesmo tendo uma capacidade instalada para processamento de 200 toneladas/ dia (FELIPE, 2012). Toda a fécula utilizada na produção de farinha de tapioca no Distrito de Americano é importada do Estado do Paraná, que detém 56% das fecularias e concentra 68% da capacidade instalada total no país (GROXKO, 2011). De acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea-Esalq/USP), o setor atacadista seguiu como principal comprador de fécula de mandioca em 2012 (25% das vendas totais), acompanhado pelo setor de massa, biscoito e panificação (18,6 %), papel e papelão (15,8%), frigoríficos (13,2%), varejistas (7,6%), gerais (5,6%), outras fecularias (5,2%), indústria química (4,7%), setor têxtil (3,7%) e exportação com apenas 0,6% (CEPEA, 2013). O Pará, como maior produtor de mandioca, poderia atender ao consumo da região norte e exportar possíveis excedentes de produção. A capacidade instalada é praticamente da única fecularia industrial em funcionamento com sede no município de Moju, que, por problemas de logística de coleta de matéria prima (raiz de mandioca) oriunda de

PARTE ii Capítulo 7

pequenos roçados de mandioca, tem operado sempre abaixo de 20% de sua capacidade. O caso de uma farinheira de tapioca do Nordeste Paraense O empreendedor pertence ao gênero masculino, com 32 anos de idade, escolaridade de nível fundamental incompleto e atua no ramo de agroindústria de farinha de tapioca há 12 anos. Antes, era empregado de serraria no município de Tailândia-PA e aprendeu a atual atividade por meio de seus familiares e observando o processo de outras agroindústrias da região. No início, contava com apoio de seus familiares e de mão de obra contratada atuando na informalidade e no final de 2010 constituiu microempresa com objetivo de efetuar compra direta da principal matériaprima (fécula) do Estado do Paraná, emissão de nota fiscal e regularização perante o Ministério do Trabalho e Ministério da Previdência Social. A farinheira é de instalações rústicas, de piso revestido com cimento, cercado de grade de madeira de 2 m de altura, estrutura de madeira roliça, cobertura de telha de concreto, sem divisórias e sem forração. Essa observação também foi constatada por Ponte (2000) como característica predominante nas farinheiras do Distrito de Americano. Na Figura 4 observa-se o fluxograma de produção de farinha de tapioca em 2010 com todas as etapas feitas por processo manual e o fluxograma em 2013 com as inovações destacadas em negrito. A literatura disponível sobre o processamento de farinha de tapioca é escassa, porém relatos de (PONTE, 2000; ALVES & MODESTO JÚNIOR, 2012; SILVA et al., 2013) indicam que o produto é fabricado de forma artesanal e em baixa escala. Cereda e Vilpoux (2003) relatam que os equipamentos utilizados na produção de farinha de tapioca não são fabricados em linha, somente por encomenda. Porém constatase que alguns produtores fazem experimentação de adaptação de máquinas e equipamentos, o que resulta em diferenças de instalações e equipamentos de uma agroindústria para outra. Foi com esta concepção que a agroindústria prospectada aperfeiçoou as etapas de encaroçamento com utilização de betoneira de aço inox (Figura 6) e torragem da farinha de tapioca em forno mecânico.

161

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FIGURA 6 – FLUXOGRAMAS MANUAL E COM AS INOVAÇÕES DE FABRICAÇÃO DE FARINHA DE TAPIOCA FEITA PELA AGROINDÚSTRIA FAMILIAR DO DISTRITO DE AMERICANO, EM SANTA ISABEL DO PARÁ, 2013 Fluxograma em Setembro de 2010 FÉCULA

Fluxograma em 2013 com as inovações FÉCULA

Hidratação – 48 horas

Hidratação – 48 horas

Gomificação – 4 horas horas

Gomificação – 4 horas horas

Enxugamento 24 horas no verão 7 dias no inverno

Enxugamento 24 horas no verão 7 dias no inverno

Peneiramento Manual Peneira de Guarumã

Trituração da massa em Cevadeira Elétrica

Encaroçamento Manual Peneira de 3 mm

Encaroçamento em Betoneira Elétrica

Escaldamento Manual 45 minutos

Peneiramento em Plataforma Elétrica

Classificação

Escaldamento Manual 45 minutos

Descanso para esfriar 24 horas

Classificação

Torragem Manual 20 minutos

Descanso para esfriar 24 horas

Descanso para esfriar 10 minutos

Torragem em Forno Mecânico

Peneiramento retirada de impurezas

Peneiramento retirada de impurezas

Ensacamento FARINHA DE TAPIOCA

Peneiramento retirada de impurezas Ensacamento FARINHA DE TAPIOCA

Fonte: Alves; Modesto Júnior (2012).

162

Fonte: Dados da pesquisa.

PARTE ii Capítulo 7

Das mudanças que se configuraram como inovação tecnológica descreve-se: a introdução de uma cevadeira elétrica (Figura 7) para trituração da massa (goma), adaptação da betoneira elétrica de aço inox (Figura 8), normalmente utilizada para bater massa de concreto, obtendo sucesso no encaroçamento da massa, com a retirada das aletas de turbilhonamento e peneiramento em plataforma elétrica, substituindo as etapas manuais do processo que mais absorviam mão de obra, o encaroçamento manual. A substituição da torragem manual para espocamento da farinha pela mecanizada (Figura 9) também foi importante na elevação da produtividade da farinheira. FIGURA 7 – CEVADEIRA ELÉTRICA UTILIZADA PARA TRITURAÇÃO DA MASSA (GOMA)

Foto: Moisés Modesto.

163

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FIGURA 8 – BETONEIRA ELÉTRICA DE AÇO INOX SEM AS ALETAS DE TURBILHONAMENTO UTILIZADA PARA ENCAROÇAMENTO DA MASSA

Foto: Moisés Modesto.

FIGURA 9 – FORNO MECÂNICO UTILIZADO PARA TORRAGEM E ESPOCAMENTO DA FARINHA DE TAPIOCA

9

Foto: Moisés Modesto.

164

O investimento feito com equipamentos e construção civil em 2014 foi de R$ 36.475,00. A introdução das inovações aumentou a escala de produção média mensal da farinheira que passou de 180 em 2010 para

PARTE ii Capítulo 7

399 pacotes de 14 kg de farinha de tapioca em 2013 e 2014, representando um aumento de produtividade de 221% com a mesma mão de obra, que sendo remunerada por produtividade, praticamente dobrou seu salário mensal. O torrador que recebia mensalmente R$ 580,00 em 2010 passou a receber R$1.200,00 em março de 2013 e junho de 2014. A evolução de pagamento da mão de obra (direta dos demais empregados é mostrada na Tabela 2. Observa-se que as funções desempenhadas pelo encaroçador e peneirador/classificador tiveram seus rendimentos reduzidos de 2013 para 2014 devido à introdução de equipamentos (betoneira elétrica e peneira em plataforma elétrica) no processo produtivo. TABELA 2 – EVOLUÇÃO DO CUSTO COM A MÃO DE OBRA DIRETA PARA FABRICAÇÃO DE FARINHA DE TAPIOCA NO DISTRITO DE AMERICANO, MUNICÍPIO DE SANTA ISABEL DO PARÁ, NO PERÍODO DE 2010 A 2014 2010

2013

2014

Função

Quantidade

Torrador

1

580,00

1200,00

1.200,00

Encaroçador

1

480,00

960,00

800,00

Peneirador/

(R$)

1

200,00

720,00

600,00

Embalador

1

480,00

678,00

728,00

TOTAL

4

1.740,00

3.558,00

3.328,00

Classificador

Fonte: dados da pesquisa.

O preço do fardo da fécula (25 kg) aumentou até 38,88% no período de 2010 a 2013 passando de R$ 54,00 para R$ 75,00, porém reduziu o preço em 2014 para R$ 65,00, enquanto o preço do fardo da farinha de tapioca (saco com 14 kg) passou de R$ 65,00 em 2010 para R$ 85,00 em 2013, caindo para R$ 80,00 em junho de 2014, representando aumento de até 30,76%, nos dois primeiros períodos estudados. O custo operacional mensal da agroindústria de farinha de tapioca está descrito na Tabela 3.

165

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TABELA 3 – RESULTADOS OPERACIONAIS DA AGROINDÚSTRIA DE FARINHA DE TAPIOCA ANTES E DEPOIS DAS INOVAÇÕES INTRODUZIDAS NO SISTEMA DE PRODUÇÃO. SANTA ISABEL DO PARÁ, 2010 A 2014 Setembro/2010

Discriminação

Junho/2014

%

mês

R$ 1,00

%

mês

R$ 1,00

%

mês

1. INVESTIMENTO INICIAL

27.932,44

-

-

48.739,93

-

-

52.258,09

-

-

1.1. Equipamentos e construção civil

17.775,00

-

-

33.075,00

-

-

36.475,00

-

-

1.2. Outras despesas

4.400,00

-

-

4.400,00

-

-

4.400,00

-

-

1.3. Reserva técnica

2.539,31

-

-

4.430,90

-

-

4.750,73

-

-

2. CUSTOS

10.975,13

-

-

29.393,08

-

-

26.264,26

-

-

2.1. Custos fixos

1.478,13

-

3.276,03

-

3.304,36

-

2.2. Custos variáveis

9.497,00

-

-

26.117,05

-

-

22.959,90

-

-

2.2.1. Mão de obra direta

1.740,00

-

-

3.558,00

-

-

3.328,00

-

-

2.2.2. Materiais diretos

7.757,00

-

-

22.559,05

-

-

19.631,90

-

-

3. RECEITA OPERACIONAL

11.825,00

-

-

34.115,00

-

-

32.107,50

-

-

3.1. Venda de farinha de tapioca

11.700,00

-

-

33.915,00

-

-

31.920,00

-

-

3.2.Venda de farinha para sorvete

125,00

-

-

200,00

-

-

187,50

-

-

4. LUCRO OPERACIONAL

849,87

-

-

4.721,92

-

-

5.843,24

-

-

4.1. Contribuição social (10% do item 4)

84,98

-

-

472,19

-

-

584,32

-

-

5. SUB-TOTAL

764,89

-

-

4.249,73

-

-

5.258,24

-

-

5.1. Imposto de renda

0,00

-

-

1.168,67

-

-

1.446,20

-

-

764,89

-

-

3.081,06

-

-

3.812,72

-

-

2.328,00

19,7

-

7.997,95

23,4

-

9.147,60

28,5

168,85

-

-

345,80

-

-

328,30

-

-

9. LUCRATIVIDADE

-

5,08

-

-

4,27

-

-

3,51

-

10. TAXA DE RETORNO/PRAZO DE RETORNO

-

2,74

36,5

-

6,32

15,82

-

7,30

13,7

6. LUCRO LÍQUIDO 7. MARGEM DE CONTRIBUIÇÃO 8 PONTO DE EQUILÍBRIO (SACOS)

Fonte: dados da pesquisa.

166

Março/2013

R$ 1,00

PARTE ii Capítulo 7

O desempenho financeiro melhorou com as inovações no processo de fabricação da farinha de tapioca e o lucro líquido médio mensal que era de R$ 764,89 em 2010 passou para R$ 33.081,06 em março de 2013 e R$ 3.812,72 em junho de 2014, representando um acréscimo de 498,46%. A lucratividade de 5,08% baixou em 2010 para 3,51%, mantendo uma boa média percentual de ganho sobre a venda realizada por uma microempresa. A margem de contribuição de R$ 2.328,00 em 2010 passou para R$ 9.147,60 em junho de 2014, elevando o recurso que a empresa tem para pagar as despesas fixas e gerar o lucro líquido. O ponto de equilíbrio que equivalia à venda de 168,85 fardos de farinha de tapioca (equivalentes a 14 kg ou 100 litros) em 2010 ao preço unitário de R$ 65,00 se elevou para 345,80 e 328,30 fardos ao preço de R$ 85,00 e R$ 80,00 em março de 2013 e junho de 2014, respectivamente, volume comercializado para cobrir as despesas fixas e variáveis, que significa dizer que abaixo desses volumes de produção e preços o fabricante tem prejuízo. A taxa de retorno do investimento melhorou, passando de 2,74% para 6,32% e 7,30%, reduzindo o retorno do investimento de 36,5 meses, para 15,82 meses e 13,7 meses, em 2010, 2013 e 2014, respectivamente. Do ponto de vista operacional, alguns ajustes tais como o deslocamento da matéria-prima por esteiras objetivando reduzir o manuseio pode aumentar a escala de produção melhorando os indicadores financeiros e a substituição dos equipamentos de madeira e ferro por aço inox podem melhorar a qualidade do produto, apesar da farinha de tapioca produzida em Santa Isabel do Pará já atender aos padrões da Legislação Brasileira (SILVA et al., 2013). Com relação à comercialização da produção de farinha de tapioca 36,7% dos empreendedores vendem diretamente para atravessadores e atacadistas, 49% comercializam para pontos de vendas nas feiras livres de Belém, 13,3% para supermercados e tabernas e apenas 1% exporta para outros estados. A capital Belém absorve cerca de 50% de toda a produção, 13% é vendido em Castanhal, 10% em Santa Isabel, 6,67% em Ananindeua e o restante em menores quantidades para os municípios de Abaetetuba,

167

FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

Barcarena, Ilha do Marajó, Tucuruí, Santa Maria, Salinas, Bragança e para o Estado de Fortaleza, CE (ALVES & MODESTO JÚNIOR, 2012). Lenha: a energia usada na fabricação das farinhas de mesa e de tapioca No processo artesanal na produção de 280 sacos de farinha de mesa são gastos cerca de 40 m3 de lenha, no valor total de R$ 1.440,00 em junho de 2014, correspondendo a 6,34% dos custos totais de produção. De acordo com Homma (2001), uma das grandes limitações dos atuais produtores de farinha de mandioca no Estado do Pará se refere ao insumo lenha, que chega a participar entre 10 a 15% do custo de produção. Esse autor destaca que há necessidade de políticas para auxiliar os produtores desse segmento, citando, dentre muitos exemplos, a implantação de casas de farinha comunitárias (comunitárias) e mecanização parcial do processo de fabricação de farinha. De acordo com Lopes (2006), 61,3% dos agricultores de três comunidades nos municípios de São Domingos do Capim e Mãe do Rio, no Nordeste Paraense, também utilizam a lenha para fabricação de farinha de mesa e cocção de alimentos. Em empreendimento de fabricação artesanal de derivados de mandioca, como o tucupi e a goma, os agricultores consomem em torno de 6 m³ de lenha por mês, correspondendo a 5,64% dos custos de produção de 1.440 litros de tucupi e 680 kg de goma por mês (MODESTO JÚNIOR; ALVES, 2012). Na fábrica de farinha de tapioca o consumo mensal de lenha em 2010 era de 14 m3 ao preço total de R$ 420,00. A partir de 2013, toda a lenha foi substituída por 80 sacos de sementes de açaí ao custo de R$ 80,00/mês, na geração de energia para os fornos, equivalente a uma economia mensal de R$ 340,00. Observou-se melhor uniformidade no aquecimento dos fornos queimando semente de açaí com ventilação forçada de ar e menor produção de fumaça em comparação com a queima de lenha usada anteriormente. O fruto de açaí é proveniente de uma palmeira amazônica e seu suco é diariamente consumido pela população paraense juntamente com

168

PARTE ii Capítulo 7

farinha de mesa ou farinha de tapioca, camarão, peixe, entre outros. O Estado do Pará é o maior produtor de açaí com 110.937 toneladas de frutos (IBGE, 2012) e a maior parte é processada na cidade de Belém, capital do Pará, por cerca de 3.000 estabelecimentos que comercializam o açaí processado, atendendo um consumo diário de 440 mil quilos de fruto, gerando cerca de 80% de resíduo, o equivalente a 365 t.dia-1 descartado na forma de caroço em céu aberto às margens de ruas e nas redes de esgotos (FARINAS et al., (,) 2009). Análises (análises)químicas do caroço de açaí feitas por Nagaishi (2007) demonstraram alto teor de carbono fixo (20,94%) e baixo teor de cinzas (1,47%) com poder calorifico de 4.252 kcal/kg, cujas características são consideráveis e adequadas para uso como produto energético de diversas formas, destacando-se a elétrica e carvão vegetal. A substituição da lenha pelo caroço de açaí foi importante na redução do custo de produção em razão do preço elevado e da dificuldade crescente de acesso à lenha pelas restrições ambientais. Segundo o empreendedor entrevistado, cerca de 10 fábricas existentes no Distrito de Americano já mudaram a lenha pelo caroço de açaí. Considerações finais O empreendimento familiar de fabricação de farinha de mesa vem se destacando como um grande negócio, pois gera emprego e renda e atualmente permite o retorno do investimento em apenas 23,45 meses. A farinheira de tapioca também obteve viabilidade econômica no período de 2010 a 2014, porém só foi possível devido ao investimento nas inovações para mudança em diversas etapas do processo de produção que resultou em aumento da escala de produção. Pois o custo da mão de obra dobrou de 2010 para 2013 e a matéria-prima aumentou 38,88%. E o aumento de apenas 30,76% no preço da farinha de tapioca não seria suficiente para gerar lucro e a empresa teria que fechar suas portas se não tivesse feito as inovações. As oscilações de preço dos produtos da mandioca estão correlacionadas com as alterações das áreas de cultivo que oscilam ao longo dos anos. Quando o preço da farinha se eleva

169

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muitos agricultores se motivam a plantar, o que eleva a oferta de raiz e o preço tende a cair, fechando o ciclo de oscilações de preços. Os indicadores econômico-financeiros do empreendimento podem melhorar se a matéria-prima (fécula) for adquirida de produção local, pois o custo do frete seria reduzido. Porém a sobrevivência do empreendimento irá depender da capacidade do empreendedor adotar tecnologias que aumentem a eficiência de sua produção. Outro aspecto relevante para melhorar a eficiência das farinheiras refere-se à necessidade de investimentos da planta industrial, em equipamentos de aço inox com maior rendimento de processamento, padronização das unidades de produção, estímulo para atendimento das exigências sanitárias na produção, inclusive criando potencial para o mercado de exportação. Tais investimentos podem ser realizados de forma gradual de acordo com as situações críticas identificadas nas etapas ou elos de produção e em função do capital de giro da empresa. As unidades familiares produtoras de farinha de mesa e de tapioca deveriam receber a atenção de agentes financeiros visando à oferta de crédito para investimento e capital de giro. Agradecimentos Os autores agradecem à analista da Embrapa Amazônia Oriental, Narjara de Fátima Galiza da Silva Pastana, pela revisão do resumo em inglês. Referências

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Parte III Identidade e territorialidade

CAPÍTULO 8 A multitransterritorialidade dos territórios camponeses da farinha no vale do juruá acre

Cleilton Sampaio de Farias1, César Gomes de Freitas1, Edna Maria Secundes Cabral2, Cintia Raquel da Costa Ferreira2, Paulo Cesar C. Lima2, Maria Raquel Oliveira Pinho2, Phamella M. Souza2, Camila Félix2

Introdução Nesses primeiros anos do século XXI a abordagem geográfica focalizada no conceito de território tem se expandido significativamente, se levarmos em consideração o mesmo período do século passado. Com isso, o próprio conceito que era “restrito” ao espaço dominado, passa a aderir os aspectos sociais, culturais e econômicos de um povo circunscrito a certo lugar no espaço geográfico, dando margem a novas interpretações mais abrangentes. Diversos são os autores que se propõem a descrever os territórios, seus processos de construções/criações e os agentes responsáveis pela 1 Docente EBTT do IFAC Campus Rio Branco, Doutorando em Ensino de Biociências e Saúde – FIOCRUZ/IOCRJ, Grupo de Pesquisas “Relações Sociais e Educação – RESOE”. 2 Graduandos em Agroecologia, Instituto de educação, ciência e tecnologia do Acre – IFAC/ Campus Cruzeiro do Sul.

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obra. Contudo, é evidente o caráter relacional e em rede como um dos princípios das novas abordagens. Além disso, percebe-se uma evolução no sentido de conceber o território em várias dimensões sejam materiais e imateriais ou simbólicas. Nesse contexto, resolvemos conciliar o aspecto da nova abordagem do conceito de território e das formas de territorialidades com as características dos municípios de Cruzeiro do Sul e Rodrigues Alves no Vale do Juruá-AC, onde o cultivo camponês da mandioca para a produção de farinha e outros derivados possuem extrema importância e centralidade na formação, organização e identidade territorial. O que fortalece esta afirmativa é o fato de que nestas localidades a vida da comunidade local gira em torno do cultivo da mandioca e da fabricação da farinha. Em certa época do ano as pessoas ficam ocupadas no plantio da mandioca, que após alguns meses será colhida, depois processada na “casa de farinha”, transportada em suas embarcações ou outros meios de transportes e, por fim, comercializadas. Para dimensionar a importância da farinha para estes lugares, no ano de 2010 de todos os produtos transportados pelo caminhão de apoio à produção da Secretária de Agricultura e Desenvolvimento Agrário do Município de Cruzeiro do Sul, 80,78% corresponde a farinha, ou seja, 23.370 sacas de farinha (50kg), totalizando 1.685,500 toneladas. Os outros produtos representam, respectivamente, 2.085 sacas de mandioca (50kg) totalizando 104,25 toneladas, 1.830 sacas de arroz (50kg) totalizando 91,5 toneladas, 570 sacas de laranja (50kg) totalizando 28,5 toneladas e 768 sacas de outros produtos (50kg) (tangerina, coco, goma, pimenta e verduras) totalizando 38,4 toneladas (CRUZEIRO DO SUL, 2011). Além disso, no mesmo ano foram transportadas pelos barcos de apoio à produção da Secretária de Agricultura e Desenvolvimento Agrário do Município de Cruzeiro do Sul, 11.324 sacas de farinha (50kg), totalizando 556.2 toneladas, 153 sacas de arroz (50kg) totalizando 7.650 toneladas, 1.148 sacas de milho (50kg) totalizando 57.400 toneladas e 912 sacas de outros produtos (50kg) (tangerina, mamão, goma, feijão e verduras) totalizando 45.600 toneladas. No transporte fluvial a farinha

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também foi o produto com maior quantidade, representou 83,65% dos produtos transportados (CRUZEIRO DO SUL, 2011). Essa prevalência da mandioca e da farinha entre as demais produções, não significa, necessariamente, apenas uma estratégia econômica de obter lucro, muito pelo contrário, uma parte da produção é destinada ao consumo da própria comunidade, que utiliza a farinha e os seus derivados em “quase” todas as suas refeições. A farinha está presente na vida dessas comunidades que inclusive empresta o nome para designar a melhor qualidade de farinha fabricada na região, a “farinha de Cruzeiro do Sul” que é considerada uma vantagem comparativa, por também ser produto para exportação. Para tanto, o problema da pesquisa foi tratado em duas abordagens intercomplementares: qualitativa com entrevistas direcionadas para os gestores de órgãos públicos ligados com a produção agropecuária, tais como: SEAPROF/Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima, Secretárias de Produção de Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima, Cooperativas de Produtores de Farinha e Associação de Trabalhadores Rurais e, quantitativa com a aplicação de 37 questionários estruturados nas comunidades do Ramal da Mariana I e II, Comunidade Assis Brasil, Comunidade Pentecoste, Comunidade Santa Luzia (Ramal I e II), Ramal dos Cardosos, Ramal Preguiça e Comunidade Belo Jardim. Para organizar a execução do projeto as ações foram divididas em três fases: 1ª) levantamento bibliográfico e documental da temática; 2ª) trabalho de campo: entrevistas, questionários e observação e; 3ª) sistematização de dados e conclusão da pesquisa. Com essas técnicas foi possível obter as minúcias do objeto de pesquisa. Assim, considerando a realidade pesquisada apresentamos os resultados alcançados iniciando pela discussão da “a expressão da multitransterritorialidade na formação dos territórios da farinha no Vale do Juruá e na identidade territorial farinheira” e, por fim, trataremos sobre “as características das multitransterritorialidade e territórios camponeses da farinha no Vale do Juruá - Acre”.

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A expressão da multitransterritorialidade na formação dos territórios da farinha no Vale do Juruá e na identidade territorial farinheira O território como a expressão territorializada do poder se manifesta na forma pela qual foi formado/organizado, que corresponde a sua territorialidade. Mas, a própria territorialidade, como um senso de exclusividade ou compartimentação do vivido, é moldada pelas características exclusivas que compartilha certa coletividade e que se exterioriza através de símbolos, ou seja, símbolos da identidade, nesse caso ligados a produção da farinha (RAFFESTIN, 1993). “A identidade, portanto, não é algo dado, mas é sempre processo (identificação em curso), que se dá por meio da comunicação com outros atores (diálogo e confronto). A territorialidade é, nesse caso, expressão deste processo no cotidiano dos atores sociais” (SOUZA; PEDON, 2007, p. 135). É dessa forma que se relaciona o território, a territorialidade e a identidade territorial. Haesbaert (1997, p. 46) esclarece que as identidades sociais são produzidas como representações simbólicas da realidade visando a um reconhecimento social da diferença. Em alguns casos, considerando o território como produto das relações sociais no decorrer de um tempo histórico expresso na materialidade e em símbolos, “a simbolização significa então concebê-lo num processo de apropriação social [...] que tem a sua própria eficácia, ou seja, um “poder simbólico” que, em parte, acaba forjando as identidades territoriais” (HAESBAERT, 1997, p. 49 50). O poder simbólico, invisível por essência, permite obter os mesmos benefícios daquilo que é adquirido com o uso da força ou poder coercitivo, por isso se apresenta irreconhecível, sem a distinção daquele que o exerce, mas, mesmo assim, forma uma rede de aspectos – símbolos e representações – que espalhados pelo território permitem constituir a identidade territorial (HAESBAERT, 1997, p. 50). É dessa forma que a identidade territorial farinheira foi se formando na região do Vale do Juruá com a construção de símbolos que foram compartilhados de forma subjetiva. Por isso, o compartilhamento

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desses fatores é o principal componente de formação do território, permitindo agrupar os atributos internos de cada indivíduo no momento da territorialização do território da farinha, mais os valores e símbolos construídos e adicionados no percurso temporal, ou seja, do território ou territorialidade seringueira. Assim, são dois períodos neste processo: o ponto inicial e sua identidade territorial e o andamento do percurso, ou seja, o movimento de sua constituição e as precedentes e permanentes transformações que vão ocorrendo ao longo da história. Acredita-se que a ligação com a farinha de mandioca iniciouse como alimento base, quando a região ainda vivia do extrativismo da borracha e evoluiu para fonte de renda com a crise da borracha. Na época, a população era composta de imigrantes nordestinos e de indígenas. No entanto, o ponto inicial de formação da identidade farinheira na região só ocorreu com a desterritorialização da produção de borracha a partir do látex nativo da seringueira. Com a decadência desta atividade, por volta da década de 40 do século XX, acarretada pelo cultivo racionalizado nos seringais de cultivo nas colônias inglesas na Ásia, a região passou por um período de decadência e transição até que por volta da década de 1970 mudouse a estrutura econômica regional com a inserção ou territorialização da agropecuária e como consequência também se mudou os aspectos socioculturais da região. Se por um lado, a atividade econômica altera – do extrativismo para a agropecuária - que estruturava o território, por outro, os atores permanecem com a sua identidade forjada anteriormente, que constituía os fundamentos da sociedade desterritorializada e conviverá com os novos atores que estão se territorializando. Como enfatiza Haesbaert (2007, p. 19) [...] “muito mais do que perdendo ou destruindo nossos territórios, [...], estamos na maior parte das vezes vivenciando a intensificação e complexificação de um processo de (re)territorialização muito mais múltiplo, “multiterritorial”. A multiterritorialidade eminente se expressará na diversidade material e simbólica no novo tempo, permanecendo aspectos

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estruturantes e esculturantes da territorialidade anterior mais os aspectos da nova territorialidade e, por fim, os aspectos transculturais ou híbridos. Por isso, após a falência do extrativismo da borracha a cultura seringueira ainda permanecerá, mesmo que em minoria, e compartilhará o mesmo território dos recém-chegados agricultores e pecuaristas. A multiterritorialidade implica, assim, a passagem de um território (ou territorialidade) para outro, assumindo-se novas condições em momentos diferentes de um mesmo processo T-D-R. Se por acaso a multiterritorialidade se manifesta com a ênfase no estar-entre, no efetivamente híbrido, produzido através dessas distintas territorialidades, o melhor termo para designar este processo é a transterritorialidade. Para Haesbaert e Mondardo (2010, p. 35): Transterritorialidade, assim, envolve não apenas o trânsito ou a passagem de um território ou territorialidade a outra, mas a transformação efetiva dessa alternância em uma situação nova, muito mais híbrida. Destaca-se a própria transição, não no sentido de algo temporário, efêmero e/ou de menor relevância, mas no sentido de “trânsito”, movimento e do próprio “atravessamento” e imbricação territorial – não um simples passar por mas um estarentre.

Assim, o espaço do seringal com algumas modificações passou a ser a fazenda e o mesmo seringueiro passou a ser o agricultor, no entanto, as memórias do seringal e do seringueiro não foram apagadas como a mudança, mas à sua identidade foi adicionada fatos e símbolos novos, fazendo dele um hibrido de seringueiro com agricultor. Por isso, as referencias simbólicas dos territórios e territorialidades em trânsito na década de 1970 do século XX, na região, construíram a multitransterritorialidade ou transterritorialidade que constituiu os territórios da farinha no Vale do Juruá. Um dos principais elementos que existia na territorialidade inicial e que permaneceu na nova identidade multitransterritorial era, sem dúvida, a alimentação. Grande parte dos atributos e apetrechos que

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permeavam os gêneros alimentícios e a fabricação dos alimentos era fruto da carga cultural carregada pelos migrantes de sua região de origem para esta região, por exemplo, a fabricação de farinha de mandioca. Nas entrevistas com os representantes dos territórios, percebemos que o cultivo da mandioca para a alimentação era um legado das populações tradicionais e o cultivo para a fabricação de farinha era uma avanço construído com a apropriação da cultura pelos migrantes nordestinos que chegaram na região do Vale do Juruá, como pode ser observado a seguir. “Essa cultura é uma cultura indígena mais foram os nordestinos que deram uma grande alavancada na produção de farinha” (José de Souza Menezes, Fundador da COOPERFARINHA, em 2011). Isso por que a dinâmica indígena não prevê o lucro, mas, tão somente, a subsistência. Porém, os nordestinos com a falência da borracha fizeram da farinha de mandioca uma fonte de renda, aumentando o plantio e a fabricação de farinha para além da subsistência. “Eu acredito que essa cultura seja dos índios, porém, os nordestinos também contribuíram para fortalecer essa cultura” (Anízio Barreto, Secretário municipal de agricultura do município de Rodrigues Alves, em 2011). Historicamente falando, eu não vou dizer isso como registro, mais é a historia que eu ouvi desde que eu cheguei aqui: que antes vinha a farinha do Pará que se chamava farinha d’água, da cultura dos nordestinos ou até mesmo dos indígenas que é um de seu alimento básico. Então foi trazido para os nordestinos, o que já existiam que é a cultura dos índios da nossa região (Erni Dombrowski, Secretário municipal de agricultura e produção do município de Cruzeiro do Sul, em 2011). Antes dos nordestinos começarem a desbravar a Amazônia, em particular o vale do Juruá eles se depararam com uma população que aqui já existia. Então eu acredito que a origem foi com os índios, mais com a chegada dos nordestinos foi se melhorando a prática de como cultivar a mandioca (Aldair Pereira de Lima, Gerente da SEAPROF em Cruzeiro do Sul, 2011).

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A apropriação da cultura pelos primeiros habitantes da região deu-se em no momento de crise do sistema de aviamento. Os imigrantes chegando à região, presos ao sistema de aviamento, sofreram a exploração do seringalista e ficaram impedidos de exercer parte de sua cultura em relação ao cultivo de certos alimentos no interior do seringal. Como o sistema de aviamento3 não era suficiente para fornecer todos os gêneros alimentícios necessários à dieta do seringueiro, parcialmente era concedido permissão para o cultivo nas horas de folga de produtos que não fizesse concorrência com os do barracão. Assim, era possível cultivar os “roçados”, com localização bem próxima ao “tapiri” do seringueiro para facilitar o trabalho, que em alguns casos era executado pela companheira do seringueiro que ficava em casa enquanto ele cortava “seringa”. Nesses “roçados” eram privilegiadas aquelas espécies que serviam de base para a alimentação do seringueiro, por exemplo, a mandioca, que servia como alimento de diversas formas: cozida, para a fabricação de farinha e, também, para alimentar os pequenos animais da família como suínos e aves. Além disso, a cultura da mandioca não requeria muito conhecimento técnico para o plantio, assim, o pouco conhecimento dos seringueiros juntamente com a incipiente necessidade de nutrientes no solo, possibilitou que a mandioca pudesse ser desenvolvida com mais propriedade, como observamos a seguir. Então, a mandioca por ser uma cultura onde os produtores têm uma prática e uma técnica centenária, considerando que é uma cultura que se adapta em solos ácidos, ela não é muito exigente em termos de nutrientes. Para manter mandioca não precisa ter muitos cuidados técnicos, por esses motivos ela se tornou a cultura de maior valor econômico. A cultura da mandioca é a cultura que se faz a farinha da mandioca e é a farinha da mandioca que aquece a economia do vale do Juruá (Aldair Pereira de Lima, Gerente da SEAPROF em Cruzeiro do Sul, em

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3 Fornecimento aos seringueiros de gêneros alimentícios e utensílios necessários para o trabalho de extração do látex no seringal (ALBUQUERQUE, 2001).

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2011).

Assim, a mandioca fez parte do processo de territorialização da borracha, e, diante da desterritorialização/falência do seringal surgiu como a alternativa para o consumo e posteriormente para a renda da população no processo de territorialização da agropecuária, contudo, a presença da farinha em todas as fases faz dela um dos principais símbolo da multitransterritorialidade atual. [...], a princípio, a farinha há algum tempo atrás era exclusivamente para alimentação familiar e era uma fonte de renda do excedente da produção ou então havia desde essa época uma produção específica para gerar renda para família dentre outras cultura, exemplo as frútices como o abacate e a laranja [...] (Erni Dombrowski, Secretário municipal de agricultura e produção do município de Cruzeiro do Sul, em 2011).

Esses relatos nos mostram o ponto em que a mandioca ganha centralidade e importância na produção do território e nas vidas das pessoas nos aspectos econômico, social e cultural. O fato é que o processo de multiterritorialização/transterritorialização só ganhou força por volta da década de 70 do século XX, aí sim a agricultura passou a ser a principal atividade econômica em oposição ao extrativismo da borracha, como veremos a seguir. Eu acredito que a farinha se desenvolveu com a perda da borracha. Os próprios seringueiros desenvolveram o cultivo da mandioca e a produção de farinha. Então para maioria dos agricultores a fonte de renda é a produção da farinha (José de Souza Menezes, Fundador da COOPERFARINHA, em 2011).

Considerando os limites tecnológicos e naturais que a região apresentava, a mandioca para a fabricação de farinha pareceu, na época, uma alternativa econômica para a região. Com o passar do tempo,

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percebeu-se que a variedade de farinha produzida na região tinha um sabor inestimável entre as demais, considerada como a melhor da região, por isso, a produção despontou sendo considerada com uma “vantagem comparativa”. Nos diálogos abaixo percebemos a evidencia de sua importância: “Eu vejo que a mandioca tem um potencial muito grande na região, o que já é cultura e tentamos fortalecer cada vez mais essas produções de farinha” (Anízio Barreto, Secretário municipal de agricultura do município de Rodrigues Alves, em 2011). A importância da farinha de mandioca não faz do território uma forma de monocultura, “é o principal meio de produção, porem não é o único” (Lauro da Silva Oliveira, Gerente da SEAPROF no município de Rodrigues Alves, em 2011). Esses relatos possibilitam a visualização panorâmica do território da farinha, em especial na questão de sua história e da importância, expressas pelos representantes da coletividade. Além disso, foi possível compreender como se forma a multitransterritorialidade farinheira com o somatório da identidade territorial seringueira mais a territorialidade agropecuária. Na sequência, passaremos a caracterizar as bases do território através da apresentação dos seus componentes econômicos, cultuais e sociais. Assim, poderemos entender com mais subsídios a importância da farinha de mandioca para esses lugares. As características das multitransterritorialidades e territórios camponeses da farinha no Vale do Juruá - Acre Na segunda parte da pesquisa que realizamos com a aplicação de questionário, percebemos que a maioria dos entrevistados é do gênero masculino (59%), na faixa etária de 31 à 40 anos. Além disso, 97% nasceram na cidade de Cruzeiro do Sul por isso possuem uma forte ligação com a cultura farinheira e possuem família composta por em média seis componentes. Em se tratando de economia camponesa (FREITAS; FARIAS; VILPOUX, 2011), essa quantidade de membros se justifica pela responsabilidade que a família tem na divisão do trabalho

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no estabelecimento, sendo necessários muitos membros, principalmente do sexo masculino, para manter viável a produção. Em relação à escolaridade apareceu um dado preocupante: grande parte ou é analfabeto ou cursou o ensino fundamental e não terminou. Aparecem como causa para este fato a distância das pouquíssimas escolas existentes e as unidades de produção e a falta de oferta de ensino médio nas escolas da comunidade. A renda mensal obtida com a fabricação da farinha fornece em média um salário por mês para a maioria (92%), enquanto que poucos conseguem obter dois salários mínimos (8%). Isso ocorre por que segundo os entrevistados a fabricação da farinha é muito penosa, não sendo possível realizá-la em todos os dias ou em todos os meses do ano. Para fabricá-la tem que reunir a família, colher a mandioca e passar dia e noite empenhada na limpeza, raspagem, moagem e prensa da massa para retirada do líquido excedente. Do processamento é obtida quantidade de farinha que será repartida entre o consumo próprio e a comercialização. A renda obtida financiará a unidade camponesa até outra “farinhada”, que poderá ser na próxima semana ou mês. Em alguns casos a renda é complementada por auxílios governamentais. Entre os principais fundamentos da economia camponesa, a propriedade da terra e dos meios de produção sempre mereceu destaque, por nisso residir o poder da liberdade para o camponês. Para Oliveira (2007, p. 41) a propriedade da terra é um dos elementos estruturais da produção camponesa, é o local de trabalho e possui sentido amplo: [...] é na unidade camponesa, propriedade familiar, privada para muitos, porém diversa da propriedade privada capitalista (a que serve para explorar o trabalho alheio); na propriedade familiar se está diante da propriedade direta de instrumentos de trabalho que pertencem ao próprio trabalhador, é terra de trabalho, é propriedade do trabalhador, não é, portanto, instrumento de exploração; nesse particular, três situações podem-se colocar para o camponês: ele ser camponês proprietário, ser camponêsrendeiro (pagar renda para poder ter acesso à terra), ou ser

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camponês-posseiro(recusar-se a pagar a renda e apossar-se da terra) (OLIVEIRA, 2007, p. 41).

Como característica da economia camponesa, grande parte das unidades de produção são próprias, ou seja, 73% do total. Possuem de 1 a 10 hectares, caracterizadas como pequenas propriedades. Adquiridas através da compra do titular (49%), herança (24%) e pela reforma agrária (21%), dentre outros meios. Dentre as práticas agrícolas utilizadas nas plantações, as queimadas ainda prevalecem com 63%. Essa atividade é combatida pelo poder público, no entanto, na inexistência de outros meios – como grande parte dos agricultores só dispõe da gradagem para preparar o solo (54%) - ela passa a ser o mais utilizado (Gráfico 1). GRÁFICO 1 – PRÁTICAS AGRÍCOLAS UTILIZADAS NAS PLANTAÇÕES DE MANDIOCA

Fonte: Dado da pesquisa.

A principal atividade produtiva do território é a produção da farinha a partir da mandioca, no entanto, não é o único, também são cultivadas outras variedades de frutas, cereais e leguminosas como atividades que complementam o consumo e a renda da população.

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PARTE iiI Capítulo 8

O território é caracterizado pelo desenvolvimento da policultura como atividade adicional à produção de farinha. Percebe-se que, como a renda obtida da produção de farinha não possibilita manter o estabelecimento camponês em tudo (FREITAS; FARIAS; VILPOUX, 2011), a família necessita cultivar outras variedades que se destinarão, sobretudo, para o consumo próprio. Contudo, em alguns casos essas variedades também são destinadas para o comércio, principalmente quando há excedentes. Dentre as variedades cultivadas encontram-se as hortaliças, presentes em somente treze unidades e ocupando principalmente menos de um hectare por unidade. As frutas são cultivadas em trinta e duas unidades, ocupam predominantemente menos de um hectare por unidade. Já os cereais mais necessários para a dieta familiar como arroz, feijão e milho são os que menos são cultivados por unidade camponesa, aparecendo respectivamente em seis, oito e nove unidades. Esses baixos valores são justificados pela exigência de insumos que essas culturas necessitam e pela baixa disponibilidade desses insumos nas unidades. Já em relação à mandioca a situação é diferente, ela é cultivada em trinta e sete unidades, ocupando principalmente as áreas no intervalo de um a cinco hectares, conforme tabela 1. TABELA 1 – VARIEDADES AGRÍCOLAS CULTIVADAS POR UNIDADE CAMPONESA (MÊS) Variedades Tamanho (ha)

Hortaliças

Frutas

Arroz

Feijão

Milho

Mandioca

Menos de 1

13

21

03

08

06

05

1–5

03

05

02

-

03

29

5 – 10

-

01

01

-

-

03

11 – 20

-

01

-

-

-

-

Total

16

28

06

08

09

37

Fonte: Dados da pesquisa.

A quantidade das variedades colhidas liga-se diretamente à quantidade plantada. Com a maior área plantada, a cultura da mandioca fornece mais de 1.000 kg para a maioria dos produtores que a cultivam por mês. Isso já não ocorre com as outras variedades que são mais utilizadas

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FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

para a alimentação interna da unidade. Por exemplo, a produção de arroz fornece menos de 100 kg para três produtores e mais de 1.000 kg para outros três produtores, isso indica que para os primeiros a produção é para subsistência e para os outros, como é colhida quantidade superior, pode ser destinada para a comercialização, conforme tabela 2. TABELA 02 – VARIEDADES AGRÍCOLAS COLHIDAS POR UNIDADE CAMPONESA (MÊS) Variedades Quantidade (Kg)

Hortaliças

Frutas

Arroz

Feijão

Milho

Menos que 100

16

18

03

06

05

Mandioca 1

100 – 200

-

07

-

02

01

4

201 – 300

-

-

-

-

03

4

301- 400

-

01

-

-

-

5

400 – 500

-

02

-

-

-

2

500 a 1000

-

04

-

-

-

2

Mais de 1000

-

-

03

-

-

19

Total

16

32

06

08

09

37

Fonte: Dados da pesquisa.

Quando analisamos a quantidade dessas variedades que são comercializadas, percebemos que também está na mandioca o produto mais comercializado. Somente 16,3% dos produtores comercializam hortaliças, 51,4% comercializam frutas, 10,9% comercializam arroz e 9,0% comercializam feijão. Enquanto quase não há comercialização das outras variedades, a mandioca é comercializada por 86,4% dos produtores, em média de 500 a 1.000 kg por mês. Essa quantidade de mandioca comercializada não compromete a produção de farinha, em alguns casos a venda é efetuada com o vizinho que precisou de mais matéria-prima para finalizar o seu ciclo de produção. Nesse caso, não se paga em dinheiro em espécie mais em produto, ou seja, em mandioca in natura. Além da forte produção de mandioca, a mão-de-obra também é uma das estruturas do território. Proveniente na maioria de descendentes de nordestinos e/ou de indígenas, os “farinheiros” guardam, com o passar

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PARTE iiI Capítulo 8

dos anos, os segredos que permitem produzir a melhor farinha da região. Eles conhecem os melhores solos para cultivar a mandioca sem utilizar técnicas de análise de solo, sabem quando plantar e quando colher se baseando somente no movimento de translação da terra e utilizam ferramentas rudimentares para fabricar tamanha iguaria. Quase não há diferença entre as pessoas que realizam o plantio da mandioca, que efetuam a colheita, que fabricam e comercializam a farinha. São basicamente as mesmas pessoas que participaram de todas as fazes do processo que se repete diversas vezes no decorrer do ano como um ciclo. Esses trabalhadores são, em suma, provenientes da própria família (61%) com faixa etária entre 31 e 40 anos (43,2%), seguidos pelos parceiros (28%) com faixa etária entre 31 e 40 anos (71,4%) e complementados por assalariados temporários (11%) com faixa etária entre 21 a 40 anos (88,8%). Nesse sentido, a mão que move o ciclo é da própria família, mas, em alguns casos, quando ainda há muita mandioca plantada em risco de comprometer a sua qualidade, é realizado um mutirão onde todos os membros da família são envolvidos, mesmo os que não habitam na unidade e, também, quando esses não conseguem dar conta, solicita-se auxílio dos parceiros. Esses são, na maioria das vezes, vizinhos que estão temporariamente ociosos e que fornecem a sua contribuição em troca de parte da produção e/ou de recompensa com a mesma atividade na propriedade dele. Quando não há disponibilidade de parceiros é que se utiliza a mão-de-obra assalariada. Isso não é tão comum, principalmente por que não há condição financeira para tal. Mesmo assim, em casos excepcionais é realizada a contratação do trabalhador assalariado, o pagamento dele sairá do lucro da produção, como nesse caso é sempre baixa, no balanço final a unidade sofrerá prejuízo. Os farinheiros, em qualquer condição, são em sua maioria do sexo masculino, seja de origem familiar com 78,3%, assalariado temporário 100% ou parceiro 66,6%. Isso é explicado, pois a atividade requer muito

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FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

esforço físico, por isso é dominada por homens. As mulheres são mais presentes na fabricação da farinha, principalmente na atividade de raspagem e limpeza da mandioca, conforme gráfico 2. GRÁFICO 2 – GÊNERO DOS TRABALHADORES

Fonte: Dados da pesquisa.

Esses homens e mulheres, por terem nascidos distantes das cidades e por destinarem quase todos os seus tempos para a atividade agrícola, não conseguiram chegar ou permanecer na escola. Dentre os trabalhadores da própria família 40,5% são declarados analfabetos, 5,5 não terminaram o ensino fundamental e 54% concluíram o ensino fundamental. Dentre os temporários e os parceiros também não há ninguém que começou o ensino médio. Observe que na tabela 3 abaixo só constam as opções analfabeto, fundamental incompleto e fundamental completo, pois só foram essas opção encontradas.

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PARTE iiI Capítulo 8

TABELA 3 – ESCOLARIDADE DOS TRABALHADORES Trabalhadores Escolaridade

Família

Assalariado temporário

Parceiro

Analfabeto

15

02

06

Fundamental incompleto

02

05

11

Fundamental completo

20

-

01

Total

37

07

18

Fonte: Dados da pesquisa.

A baixa escolaridade mostrada acima não influencia na qualidade da farinha que é produzida e apreciada pela população. Tudo indica que o conhecimento empírico permite superar a inexistência de técnicas científicas de plantio, cultivo e colheita, produzindo o sabor especial da farinha de Cruzeiro do Sul, garantindo a venda por um preço razoável. A “casa de farinha” é o espaço físico destinado ao processamento da mandioca. Localiza-se bem próximo a residência da família e quando não está sendo utilizada, serve também de depósito da própria farinha ou dos outros produtos cultivados. Predominantemente, a casa de farinha é de propriedade privada da família (81%), adquirida através da compra (59,45%) e, dentre os tamanhos encontrados, destacam-se aquelas que possuem 60m² com 40,5% do total e as com 50m² com 32,4%. Como no local ainda existe muita madeira as casas de farinha são quase todas (80,9%) construídas com essa matéria prima, possuem menos de cinco anos de uso (38%) e entre dez a cinco anos de uso (38%). Possuem cobertura de alumínio em 76,1% das unidades, sobretudo, por que esse produto é o mais barato para cobertura. Sem rede de esgoto em 95,2% das unidades, com a destinação dos resíduos através de valas, que em muitos casos se direcionam para os igarapés e rios. Possuem acesso a rede de energia elétrica em 57,1% das unidades, permitindo a produção durante a noite. São abastecidas principalmente com água sem tratamento, proveniente de poços. Não possuem tela de proteção em 85,7% das unidades e possuem piso de terra batida (57,1%), conforme figura 1 abaixo.

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FIGURA 1 – CASA DE FARINHA LOCALIZADA NO RAMAL MARIANA II, CRUZEIRO DO SUL (2011)

Fonte: Cleilton Sampaio de Farias.

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É possível notar a condição precária da casa de farinha na fotografia acima, isso também acontece com as outras que visitamos durante a pesquisa. É corrente o uso das seguintes atividades nas unidades de produção: raspagem manual, transporte da mandioca por meio de “carroça de boi” e forno movido à lenha. Essas características descrevem bem a situação de rusticidade que se apresentam as casas de farinha. Grande parte disso implica em problemas de sanidade, saúde pública, poluição e degradação ambiental, sendo necessárias correções urgentes para superar esses que acreditam serem os gargalos do ciclo. As casas de farinha produzem em média 1.000 kg mensais, que se destinam para a comercialização e para o consumo. O intermediário é uma figura muito presente no ciclo da mandioca, por isso a venda para o mercado interno ocorre em 75,67% dos casos. No entanto, esse intermediário usurpa a renda da terra produzida pelo agricultor ao revendê-la ao mercado externo com valor muito maior que o adquirido. Esse é um dos problemas que impede o desenvolvimento do ciclo, pois com o agricultor não fica renda suficiente para investimentos na produção. A produção é escoada principalmente por dois meios: o rodoviário e o hidroviário. Quando a região passava a maior parte do ano isolada, por conta das chuvas intensas, entre os meses de setembro

PARTE iiI Capítulo 8

a abril, onde a principal via de ligação com o resto do Brasil, a BR 364 ficava interrompida, o transporte utilizado era o hidroviário. No entanto, quando se permitia o transporte rodoviário, entre os meses de junho a setembro, toda a produção que se encontrava estocada era transportada. Nesse sentido, na estiagem o transporte rodoviário ficava intenso, sendo responsável pela exportação de 78,3% da produção anual. Além da produção de farinha, ocorre também a produção de outros derivados da mandioca, para o consumo e para a comercialização. A fécula é produzida por 51,3% dos agricultores, no entanto, somente 5,4% desses objetivam a comercialização, ou seja, produzem mais de 1.000 kg por mês, o restante produz por volta de 100 kg por mês somente para o consumo. Outros produtos possuem um valor individual relativamente alto por isso são fabricados em poucas quantidades para comercialização mensal, por volta de 100 kg no máximo. O biscoito de goma (fécula), produzido de forma artesanal é uma iguaria do território, disponibilizado principalmente para exportação por ter um alto valor comercial, R$ 5,00 por 300 g, é produzido por somente 5,4%, em pequenas quantidades, 100 kg por mês. Isso também acontece com os outros derivados, tais como: a tapioca produzida por 35,1% em 100 kg mensais, o beiju produzido por 37,8% em 100 kg mensais e o bolo de mandioca produzido por 18,9% em 100 kg mensais. A baixa produtividade dos derivados se justifica pela dificuldade de processamento no modo artesanal, no entanto, isso influencia positivamente na qualidade dos produtos e no valor de venda. Enfim, essas são as características dos territórios camponesas da farinha no Vale do Juruá – Acre e de suas multitransterritorialidades. Espera-se que as informações acima possam ter contribuído para a compreensão do porquê que esses lugares são assim denominados. Considerações As novas abordagens do conceito do território permitem compreende-lo como espaço material ou imaterial, apropriado ou dominado. Além disso, também é possível perceber que no território

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FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

há uma identidade territorial compartilhada suficientemente para criar símbolos que inconscientemente são compartilhados por um grupo de pessoas criando uma forma de territorialidade. Toda essa discussão conceitual não apareceu neste trabalho por acaso. Mas era o objetivo concilia-la com as caraterísticas do Vale do Juruá – AC. Assim, compreendeu-se que o forte apego da população com a atividade farinheira, acarretou ao longo do tempo a formação de uma sociedade que compartilha as mesmas “diferenças”, ou seja, os símbolos que compõem a sua identidade e, que, ao serem fixados e espalhados pelo espaço limitam e individualizam o território, ou seja, criam a multitransterritorialidade farinheira. Nela estão incluídos os aspectos sociais, econômicos e culturais compartilhados através das relações internas e externas indicando que o território possui centralidade neste tipo de produção, podendo ser mencionado como um “território da farinha”. Nesse território a produção da farinha de mandioca é fruto do trabalho familiar camponês, com maior intensidade do trabalhador do gênero masculino, que possui baixíssima escolaridade e que cultiva a mandioca em propriedade privada, com os próprios meios de produção. A produção do setor é apropriada por intermediários que compram ainda nas proximidades das casas de farinha por um preço baixo e que revende para outros municípios e estado por um preço mais alto, apropriando-se da renda da terra que não é contabilizada pelo produtor. Mesmo assim, grande parte dos produtores sobrevive financeiramente somente desse tipo de produção, ainda que cultive outros produtos para subsistência. Além disso, podemos citar como ponto positivo a policultura, a pequena propriedade e o trabalho familiar com o emprego de muitas pessoas.

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PARTE iiI Capítulo 8

Referências

ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de. Espaço, cultura, trabalho e violência no Vale do Juruá – Acre. São Paulo, 2001. 246p. Tese (Doutoramento em História Social). Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. CRUZEIRO DO SUL, Secretária de agricultura e desenvolvimento agrário do município de. Apoio de transporte rodoviário e fluvial para a produção da agricultura familiar. 2011. FREITAS, César Gomes de; FARIAS, Cleilton Sampaio de; VILPOUX, Olivier François. A produção camponesa de farinha de mandioca na Amazônia Sul Ocidental. Boletim Goiano de Geografia. Goiânia, v. 31, n. 2, p. 29-42, jul./dez. 2011. HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia. Ano IX – Nº 17 – 2007. _______. Des-territorialização e Identidade: a rede “gaúcha” no Nordeste. Niterói: EdUFF,1997. _______; MONDARDO, Marcos. Transterritorialidade e antropofagia: territorialidades de trânsito numa perspectiva brasileiro-latino-americana. GEOgraphia. Vol. 12, No. 24 (2010). OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de­­. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007, 184p. RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. SOUZA, Edevaldo Aparecido; PEDON, Nelson Rodrigo. Território e identidade. Revista Eletrônica da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Três Lagoas Três Lagoas MS, V 1 – n.º6 - ano 4, Novembro de 2007.

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CAPÍTULO 9 FARINHEIRAS NO LITORAL DO PARANÁ: UMA ANÁLISE A PARTIR DA NOÇÃO DE SISTEMA AGROALIMENTAR LOCALIZADO - SIAL FARINHEIRAS

Valdir Frigo Denardin1, Mayra Taiza Sulzbach2 e Rosilene Komarcheski3

Introdução A noção de Sistema Agroalimentar Localizado (SIAL) pode contribuir para a construção de um enfoque agroalimentar de base territorial que permite compreender o funcionamento e organização de um conjunto de atividades produtivas e sociais no meio rural. Possibilita pensar estratégias para dinamizar a agroindústria familiar com o intuito de contribuir para a geração de renda e auxiliar na reprodução social dos agricultores. 1 Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ/CPDA. Professor da Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial Sustentável, PPGDTS/UFPR. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Desenvolvimento Econômico pela UFPR/PPGDE. Professora da Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial Sustentável, PPGDTS/UFPR. E-mail: [email protected] 3 Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo PPGMADE/UFPR. Doutoranda no Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPR. E-mail: [email protected]

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FARINHEIRAS DO BRASIL Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca

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O Litoral do Paraná possui uma área física de 6.057 Km2 entre o Oceano Atlântico e a Serra do Mar, distribuídos em sete municípios (Antonina, Guaratuba, Guaraqueçaba, Matinhos, Morretes, Paranaguá e Pontal do Paraná), sendo Guaraqueçaba o maior, com área de 2.019 Km2 e Matinhos o menor, com área de 117 Km2 (IBGE, 2014). Em termos populacionais, o Litoral possui 265.392 habitantes, sendo Paranaguá o município mais populoso, com 140.469 habitantes e Guaraqueçaba o município que apresenta menor contingente populacional, 7.871 habitantes (IBGE, 2014). As principais atividades econômicas, descritas por Estades (2003), são a portuária (porto de Paranaguá), a agropecuária e o turismo de sol e mar. A região possui a maior área de remanescentes florestais bem conservados do bioma Mata Atlântica do estado do Paraná, sendo visível a conservação natural desta região em relação à supressão e fragmentação de ecossistemas que ocorreu no restante do Paraná. A cobertura vegetal da região é composta por Floresta Ombrófila Densa (Aluvial, de Terras Baixas, Sub-Montana e Montana) alterada e primária e por Formações Pioneiras de Influência Marinha (Restinga), Fluviomarinha (Manguezal) e Fluvial, as quais compõem o complexo estuarino lagunar do local (IPARDES, 2001). A partir da década de 1980 foram criadas diversas Unidades de Conservação (UCs) na região, que, juntamente à efetivação da fiscalização ambiental levaram a restrições efetivas quanto ao uso do solo, com vistas à redução de impactos ao ambiente natural. O litoral paranaense, em 2006, possuía 82% de seu território coberto por UCs. Neste contexto, os municípios que merecem maior destaque são Guaraqueçaba, Guaratuba e Antonina, com, respectivamente, 98%, 98% e 85% de suas áreas protegidas por UCs (DENARDIN et al., 2008). Entre os produtos cultivados pelos agricultores familiares no Litoral paranaense, pode-se afirmar, segundo Denardin (2010), que a produção de mandioca atua como uma “atividade amortecedora” em dois aspectos: contribui para a segurança alimentar das famílias no meio rural e apresenta-se como atividade potencial para geração de renda, podendo

PARTE iiI Capítulo 9

ser comercializada in natura ou industrializada (farinha de mandioca) entre outros subprodutos. O artigo tem por objetivo apresentar e caracterizar o Sistema Agroalimentar Farinheiras (SIAL Farinheiras) no litoral do Paraná. A questão que norteou a pesquisa foi: como o SIAL Farinheiras no litoral do Paraná permitiria evidenciar os recursos e ativos genéricos e específicos do território? Para atingir tal propósito utilizou-se de informações resultante de ações de pesquisa-ação realizadas no Litoral paranaense ao longo de sete anos (2008-2013) por um conjunto de projetos/programa que se complementam, sendo: projeto Estudo da cadeia produtiva da mandioca como estratégia para o desenvolvimento da agroindústria familiar no Litoral paranaense, projeto Reestruturação produtiva de farinheiras comunitárias no Litoral do Paraná e, posteriormente, pelo Programa de extensão farinheiras no Litoral do Paraná. Farinheiras no Litoral do Paraná – SIAL Farinheiras O litoral Norte do Paraná, que engloba os municípios de Antonina, Guaraqueçaba e Morretes, possui sessenta e três farinheiras. O litoral Sul, por sua vez, composto pelos municípios de Guaratuba, Matinhos, Paranaguá e Pontal do Paraná apresenta setenta farinheiras. As farinheiras identificadas nestes municípios foram classificadas como ativas, autoconsumo, inativas e comunitárias (Tabela 01). As farinheiras ativas caracterizam-se por serem agroindústrias que produzem farinha para o consumo da família, bem como para comercialização. As farinheiras de autoconsumo caracterizam-se por serem agroindústrias que produzem farinha para o consumo próprio, podendo ser comercializado uma pequena parte, porém em quantidade inexpressiva. As farinheiras inativas caracterizam-se por serem agroindústrias que não produzem mais farinha, porém ainda existem os equipamentos e as instalações. Em sua maioria, as farinheiras inativas estão em propriedades de pessoas idosas que não possuem condições físicas para realizar as atividades relacionadas à produção de

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farinha (farinhar). Por fim, as farinheiras comunitárias caracterizamse por serem agroindústrias que foram construídas através de políticas públicas (Paraná 12 Meses), visando atender a grupos de famílias. São farinheiras que possuem infraestrutura física construídas em alvenaria e buscavam atender as exigências da legislação sanitária em vigor na época (praticamente todas estas unidades estão desativadas).

Litoral Sul

Litoral Norte

TABELA 01 – SITUAÇÃO DAS FARINHEIRAS, QUANTO AO SEU FUNCIONAMENTO, NO LITORAL DO PARANÁ (2008) Municípios

Ativas

Autoconsumo

Inativas

Comunitárias

Total

Antonina

8

11

0

0

19

Guaraqueçaba

10

13

3

4

30

Morretes

7

3

2

2

14

Guaratuba

17

27

3

1

48

Matinhos

2

1

0

0

3

Paranaguá

9

1

6

1

17

Pontal do Paraná

1

0

1

0

2

Total

54

56

15

8

133

Fonte: Elaborada pelos autores.

O município de Guaraqueçaba, entre os municípios do litoral Norte, apresenta o maior número de farinheiras. Nas visitas foram mapeadas trinta unidades, principalmente nas comunidades da Potinga, Açungui, Tagaçaba, Tagaçaba de Cima e Pedra Chata. Como parte do município, de difícil acesso (inclusive ilhas), não foi visitada estima-se que existe um número igual ou superior de farinheiras ainda desconhecidas. O diagnóstico inicial permitiu a classificação e localização das farinheiras no território. Possibilitou, também, identificar alguns problemas que as unidades produtivas enfrentam. A noção de SIAL e o dialogo com os recursos territoriais A noção de SIAL, segundo Muchnik et al. (2008) surge em 1996, como resultados de pesquisas do Centre de Coopération Internationale em Recherche Agronomique pour Le Développment (CIRAD-SAR),

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PARTE iiI Capítulo 9

realizadas em países da América Latina e África com foco na transformação dos produtos dos agricultores familiares visando aumentar suas rendas e contribuir para a alimentação das populações urbanas, por meio dos recursos locais. As pesquisas que iniciaram na década de oitenta permitiram constatar a existência de concentrações espaciais de pequenas empresas rurais, como exemplo da farinha de mandioca no Brasil e das queijarias no Equador e concluem, entre outros resultados, que as agroindústrias rurais permitiam aumentar o valor agregado dos produtos, melhorar a renda das famílias e criar empregos no meio rural, bem como contribuíam para a segurança alimentar da população rural e urbana (MUCHNIK, 2006). Na década de noventa, em meio as discussões sobre questões ambientais, desenvolvimento sustentável, multifuncionalidade da agricultura, produção orgânica, entre outros temas, duas noções de SIAL começam a se sobrepor (Muchnik, 2006, p. 4): o SIAL como um “objeto concreto, um conjunto de atividades agroalimentares territorialmente constituídas e visíveis” e o SIAL como “um enfoque, uma maneira de abordar o desenvolvimento dos recursos locais, ainda que o sistema não exista como tal”. Nas duas situações o autor menciona que o SIAL pode constituir uma referência metodológica para a construção e orientação de projetos de desenvolvimento local. A noção de SIAL foi apresentada nos trabalhos do CIRAD-SAR como: Organizações de produção e de serviços (unidades de produção agrícolas, empresas agro-alimentares, comerciais, de serviços, gastronômicas...) associados por suas características e seu funcionamento em um território especifico. O meio, o produto, as pessoas, suas instituições, seu saber fazer e seus comportamentos alimentares, suas redes de relações se combinam em um território para produzir uma forma de organização agroalimentar em uma escala espacial dada.” (MUCHNIK, et al., 2008, p. 514)

Para Muchnik et al. (2008) existem três estágios de evolução da noção/conceito de SIAL, no primeiro SIAL se aproximava do conceito

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de clusters ou de sistemas produtivos locais, inspirados pelos distritos industriais italianos. No segundo a ênfase é dada aos processos de qualificação territorial dos produtos via certificações de qualidade territorial. Por fim, no conceito emergem temas como localização/ deslocalização de atividades produtivas, multifuncionalidade das propriedades e espaços rurais, restrições ambientais e manutenção da biodiversidade. O enfoque de SIAL, segundo Muchnik et al. (2008, p. 514), deve estar pautado sobre as relações homem/produto/território, uma vez que as “especificidades territoriais” permitem “caracterizar o SIAL, compreender sua diversidade e sua dinâmica”. Nesta perspectiva os autores avançam ao mencionar que “é a analise das especificidades territoriais que permite caracterizar o SIAL, compreender sua diversidade e sua dinâmica” (p. 513). Assim, “a noção de SIAL é demandada como enfoque teórico para a compreensão de fenômenos em curso de desenvolvimento e como ferramenta operacional para a orientação de projetos territoriais de inovação” (MUCHNIK, 2006, p. 10). O SIAL, segundo Ambrosini et al. (2008) se apresenta como uma forma particular de Sistema Produtivo Localizado estando associado a existência de uma concentração espacial de agroindústrias no território4. Para os autores a concentração permite a valorização de um saber fazer específico em um território específico, possibilita, também, exercitar relações de solidariedade e confiança e a acumulação de um patrimônio cultural para a coletividade. O SIAL, portanto, é uma noção socialmente construída. Para Muchnik (2006) os SIALs representam uma forma de organização das atividades agroalimentares na qual as “dinâmicas territoriais” possuem um papel determinante para a coordenação dos atores e o desenvolvimento das atividades produtivas. São para Muchnik 4 Uma discussão que evidencia as distinções entre Distritos Industriais, Sistemas Produtivos Localizados e Sistemas Agroalimentares Localizados pode ser encontrada em Muchnik et al. (2008).

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et al. (2008) as especificidades territoriais que permitem caracterizar o SIAL, compreender sua diversidade e sua dinâmica, merecendo destaque três especificidades: a dos homens e de suas instituições, a dos produtos e dos processos de qualificação associados e a dos consumidores e de suas culturas alimentares que reconhecem esses produtos. Especificação de recursos territoriais e desenvolvimento local O desafio das estratégias de desenvolvimento territorial constituise na apropriação dos recursos específicos do território e promover especificação ou ativação destes recursos, ou seja, transformar recursos em ativos específicos. O território, nesta perspectiva, é uma unidade ativa de desenvolvimento, que possui recursos específicos, únicos, que não são transferíveis de uma região para outra. Os recursos podem ser materiais, como jazidas ou imateriais como o saber fazer, ligado a cultura local. A valorização dos recursos específicos pode possibilitar ao território uma renda de qualidade territorial desde que estes passem a ser contemplados como ativos específicos. Território dado, segundo Pecqueur (2005, p. 12), é “a porção de espaço que é objeto de observação. Neste caso, postula-se o território como pré-existente e analisa-se o que aí acontece.” O autor menciona que o território dado é sinônimo de território institucional, por exemplo o município, o estado, a região. Para Flores (2006), o território dado é definido por uma decisão político-administrativa, é um processo top down. O território construído, por outro lado, é produto de um processo de melhorias, fruto do jogo dos atores e é constatado a posteriori. É o resultado de um processo de construção social pelos atores (PECQUEUR, 2005). O território construído é um espaço-território que se forma a partir do encontro de atores sociais, em um espaço geográfico dado, que buscam identificar e resolver problemas comuns (FLORES, 2008; CARRIÈRE e CAZELLA, 2006). Para Flores (2006) o território construído é um espaço de relações sociais, no qual existe um sentimento de pertencimento

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por parte dos atores com respeito à identidade construída e associada ao espaço de ação coletiva local, em que se criam laços de solidariedade entre os atores. Segundo Carrière e Cazella (2006), um território dado, cuja delimitação é político-administrativa, pode abrigar vários territórios construídos. Os territórios possuem recursos, que segundo Pecqueur (2005, 2006a, 2006b), são fatores a explorar, a organizar, ou ainda, a revelar. Tais recursos podem ser genéricos e específicos. O autor os considera uma reserva, um potencial latente ou virtual que pode, se as condições de produção e inovação tecnológica permitirem, se transformar em ativo. Os ativos, segundo Carrière e Cazella (2006), são os fatores de produção em atividade, em uso no processo produtivo. Quando o recurso é incorporado no sistema produtivo ele passa a ser tratado com um ativo (PECQUEUR, 2005). Importante evidenciar a diferenciação entre ativos e recursos genéricos de ativos e recursos específicos. Os ativos e recursos genéricos são totalmente transferíveis e seu valor é um valor de troca, estipulado no mercado via o sistema de preços. Estes ativos e recursos não permitem que um território se diferencie de forma consistente (duradoura) de outros, uma vez que eles são transferíveis, ou seja, são transacionados no mercado. Pecqueur (2005, p. 13) menciona que eles são um “conjunto dos fatores tradicionais de definição espacial discriminados pelos preços e que são objetos de um cálculo de otimização”. Para Carrière e Cazella (2006, p. 34) os recursos e ativos genéricos “são totalmente transferíveis e independentes da aptidão do lugar e das pessoas onde e por quem são produzidos”. Os ativos e recursos genéricos não são únicos, eles existem em outros territórios e não são objetos de diferenciação do território. Os ativos específicos, por sua vez, possibilitam um uso particular e seu valor é função das condições de seu uso. Além disso, eles apresentam um custo de transferência que pode ser alto e irrecuperável. Segundo Pecqueur (2005, p.14), o ativo específico “possui um custo de redirecionamento”. Os recursos específicos, pelo seu caráter de diferenciação,

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merecem maior atenção. Pela sua especificidade endógena ao território eles podem apoiar o desenvolvimento local. Os recursos específicos, ao contrário dos recursos genéricos, não são mensuráveis, não são expressos em preços e não podem ser transferidos como qualquer produto transacionado no mercado. Para Pecqueur (2005, p.15) a “produção desses recursos resulta, pois, de normas, costumes, de uma cultura que são elaborados num espaço de proximidade geográfica e institucional, a partir de uma troca não mercantil: a reciprocidade”. Os recursos específicos, segundo esta concepção, só existem no estado virtual e não podem ser transferidos. Eles resultam de um acumulo de memória, de uma aprendizagem cognitiva coletiva, surgem de processos interativos carregados de cultura, de saber local. Quando conhecimentos e saberes heterogêneos são combinados, segundo Pecqueur (2005), novos conhecimentos são produzidos. O processo de “especificação de ativos” pode proporcionar a diferenciação de um território dos demais e se contrapõe ao regime de concorrência baseada na produção standard ou de produtos commodities. Para Pecqueur (2006a), a dinâmica de desenvolvimento territorial visa revelar os recursos inéditos e é por isso que ela se constitui uma inovação. Carrière e Cazella (2006, p. 34), por sua vez, mencionam que a metamorfose dos recursos em ativos específicos “é indissociável da história longa, da memória social acumulada e de um processo de aprendizagem coletiva e cognitiva (aquisição de conhecimento) característica de um dado território”. O processo de especificação consiste na qualificação e diferenciação de recursos que os atores locais revelam no processo de resolução de seus problemas comuns. Para Carrière e Cazella (2006, p. 34), o “ponto máximo de maturação de um território construído consiste na geração de uma renda de qualidade territorial”. Elementos constitutivos do SIAL farinheiras A caracterização do SIAL, segundo Muchnik (2008, p. 518), passa pela analise das especificidades dos recursos mobilizados: “os produtos,

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as técnicas e o saber fazer necessários para implementá-los, as culturas alimentares, o patrimônio natural e cultural, seus atores, suas atividades e suas organizações, assim como rede de instituições do território”. Para o autor, “especificar os recursos” é um primeiro passo para por em funcionamento os processos de inovação que contribuem para a fixação/ enraizamento das atividades em um território. Para possibilitar pesquisa empírica relacionada aos SIALs, Muchnik (2006, p. 4-5) sugere estruturá-la em quatro dimensões: a dimensão histórica – permite avaliar o processo de formação do SIAL, a dimensão institucional – evidência a relação entre os atores, suas estratégias individuais e coletivas, a dimensão técnica – centrada na observação, descrição e análise dos saberes e das técnicas utilizadas e dimensão alimentar – inerente as relações sociais, culturais e econômicas, entre o produto e o consumidor5. Para o autor os SIALs são diversos por sua história, por sua organização espacial e por sua organização econômica e social (MUCHNIK, 2006, p.13). O enfoque SIAL, segundo Muchnik (2006, p. 16), é uma ferramenta metodológica que permite analisar as produções agroalimentares locais, uma vez que evidencia: articulações entre produtores e consumidores, articulação entre atores e atividades territoriais diferentes (produção, serviços, turismo) e articulações entre dinâmicas rurais e urbanas. Os recursos e ativos territoriais inerentes ao SIAL podem ser agrupados, segundo Ambrosini et al. (2008, p. 3), em três eixos de análise: a dimensão histórica, a dimensão técnico-teórica e a dimensão institucional. A dimensão histórica permite “apreender o processo de formação das experiências investigadas e o sentimento de pertencimento, bem como sua possível influência no comportamento de cooperação e de concorrência entre os atores”. Nesta perspectiva, o território é o lócus de relações sociais que possibilita comportamentos cooperativos baseados na confiança e as atividades econômicas estão enraizadas

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5 As dimensões evidenciam, segundo Muchnik (2006, p 10-11), laços históricos através da origem e das referências indenitárias dos atores; laços materiais inerentes ao tipo de solo, clima, paisagem, técnicas etc,; e laços imateriais relacionados a imagem do território, sua cultura, seus saberes e tradições etc.

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nas atividades sociais, determinando e favorecendo seus resultados. A dimensão técnico-teórica, por sua vez, se pauta na “observação, descrição e análise dos saberes e técnicas utilizadas, bem como no saber-fazer compartilhado como um ativo da comunidade”. A dimensão técnicoteórica valoriza o saber fazer local ao compartilhar técnicas, patrimônio coletivo do território, seja em práticas agrícolas ou nos processos de agroindustrialização. Por fim, a dimensão institucional possibilita analisar “as relações entre os atores sociais, através de suas estratégias individuais e coletivas (...)” (AMBROSINI et al.; 2008, p. 3). As três dimensões acima descritas estão presentes nas perspectivas técnica (tecnologia, inovação, recursos naturais etc.) e humana (social, cultural, econômica etc.) apresentadas por Barjolle et al. (1998), bem como em Lins (2006). As três dimensões acima apresentadas, permitem uma aproximação entre teoria e campo empírico na analise do SIAL Farinheiras. A dimensão histórica do SIAL farinheiras O cultivo da mandioca e o seu processamento em forma de farinha era realizado pelos indígenas que habitavam o território. Relatos feitos por Staden (1999) ao passar pelo litoral Norte do Paraná (Guaraqueçaba) entre 1548 e 1555 descreve a produção de mandioca (plantio) e seu processamento na forma de farinha (diferentes tipos e técnicas utilizadas). Relatos feitos por Saint-Hilaire (1978), do início do século XIX, também evidenciam a presença da cultura da mandioca e seu processamento na forma de farinha. O autor mencionou que a farinha de mandioca produzida no Litoral do Paraná era exportada pelo Porto de Paranaguá. Martins (1995), que passa pelo Litoral do Paraná entre os anos 1854 e 1856, corrobora com os escritos de Saint-Hilaire no que se refere a produção e a exportação da farinha, porém feita em escalas menores do que a da erva mate, do arroz e da madeira. Por fim, Leandro (2007) relata a ocorrência de comercialização de farinha de mandioca no Litoral paranaense e seu excedente comercializado em Curitiba na segunda metade do século XIX.

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A organização das famílias rurais em torno das farinheiras lhes permitia dialogar com maior frequência e trocar informações, troca de saberes, sobre a atividade produtiva, espaço no qual o saber fazer é repassado entre as gerações. A produção industrial e as regulamentações sanitárias para a produção e comercialização passam a inibir a venda deste produto. A construção das farinheiras comunitárias no projeto Paraná 12 Meses, realizado no inicio da década de 2000, tinha como propósito possibilitar a produção e a venda da farinha de mandioca dentro dos padrões recomendados pela vigilância sanitária, nas áreas rurais do litoral do Paraná. Ao mesmo tempo para que fosse possível o uso coletivo, os produtores deveriam se organizar para gerenciar e auto-gestionar a unidade produtiva: organizar escalas de uso, definir a forma de manutenção dos equipamentos, taxa de contribuição financeira etc., ou seja, elaborar coletivamente um termo de uso, regras, da unidade produtiva. As farinheiras comunitárias, segundo Sachs (2007), podem proporcionar a produção de meios de subsistência decentes ao passa que um empreendimento coletivo, possibilita maior equidade na distribuição de renda. Independentemente do espaço (farinheira) ser comum para a produção da farinha de mandioca, para a sua produção com frequência as famílias se ajudam em mutirões (ou guajus – expressão local). A farinheira se torna um espaço para confraternização/socialização do trabalho coletivo. Esta é uma atividade na qual a mulher esta presente, raramente se observa a produção de farinha sem a sua participação. Neste espaço saberes e valores identitários são compartilhados, por exemplo em relação a matéria prima tem-se o diálogo sobre épocas de plantio, variedades das ramas, tratos culturais e tempo de permanência no solo para propiciar maior rendimento em farinha. A pesquisa-ação junto a comunidade proporcionou observar com relação a transformação da mandioca em farinha (processamento), trocas de saberes em relação aos cuidados ao descascar a mandioca (limpeza), tempo necessário de permanência da massa na prensa,

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cuidados para controlar o fogo para manter uma adequada temperatura do tacho, cuidados ao mexer a farinha durante a torra e noção do tempo necessário que constituem uma verdadeira arte, a “arte de torrar”. Saberes que não se encontram em nenhum manual, saberes que não são repassados por técnicos, no entanto cada agricultor tem sua receita, sua lógica, sua racionalidade. Os agricultores tem a capacidade de produzir uma farinha mais fina, mais grossa, mais ou menos torrada. Estes saberes identitários são, com frequência, compartilhados, seja entre familiares ou nas relações de vizinhança. A produção de farinha, nas farinheiras, ocorre graças a um conjunto de “artefatos”; equipamentos que assumem formatos não padronizados e usam materiais diversos para sua produção. Como no passado a madeira era abundante e as restrições legais para sua extração eram menores, se observa muitos equipamentos para a produção da farinha construídos com o uso deste material, combinando com o uso do metal. O saber fazer/reformar/consertar os equipamentos esta presente entre os mais velhos, como exemplo relata-se um momento vivido para a reforma de um descascador mecânico para a farinheira comunitária do Açungui, em Guaraqueçaba. Reunidos em mutirão os agricultores escolheram a madeira adequada, cortaram de acordo com as medidas necessárias, mantiveram distâncias e inclinação nas e entre as madeiras afixadas na parte de metal, ou seja, a partir de suas experiências vividas reconstruíram um equipamento extremamente útil para a realização de suas atividades. Estes relatos se relacionam a história e a cultura deste território, que se construiu por meio da interação de seus atores. Território como o lócus de relações sociais inerentes ao conjunto de práticas e saberes relacionados à produção de mandioca, a construção e manutenção das farinheiras e seus equipamentos e à produção da farinha. A atividade de produzir farinha esta enraizada nas relações sociais, determinando e favorecendo seus resultados. No Litoral do Paraná fazer farinha representa a continuidade de uma atividade que os jovens, infelizmente, não estão dispostos a

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seguir. Nestas comunidades se observa que quem produz farinha são pessoas mais velhas, muitas vezes aposentados. A atividade representa a manutenção e o resgate de uma cultura local, um saber fazer, expressa na arte de fazer farinha, farinhar. Atrelada a atividade se observa um sentimento de pertencimento ao território, “território da farinha”, no qual se fundam as relações sociais em torno de “mandioca, farinheira e farinha”, presente no cotidiano das famílias. A dimensão técnico-teórica do SIAL farinheiras A dimensão técnica e teórica denota aspectos relacionados ao uso dos recursos naturais tanto na produção da matéria prima; a mandioca, bem como no processo de agroindustrialização; a arte de farinhar. Compreende, também, os equipamentos e técnicas utilizadas na elaboração da farinha. Para a produção da matéria prima se faz necessário observar as características biofísicas do território (tipo de solo, clima, paisagens etc.), sendo que a relação das atividades produtivas com o ambiente natural no território é determinante para a “localização” destas, pois não seriam passíveis de “deslocalização” para ambientes com características muito distintas. Conforme Cazella et. al (2009, p. 39), “o território é uma unidade ativa de desenvolvimento que dispõe de recursos específicos e não transferíveis de uma região para outra”. Sendo o Litoral paranaense composto por um mosaico de Unidades de Conservação, os agricultores tiveram que rever suas práticas e locais de cultivo; o uso dos recursos naturais. Os produtores de raiz e farinha de mandioca adaptaram suas produções segundo as normas estabelecidas pela legislação ambiental vigentes, produzindo em pequena escala e em áreas de pouca declividade, respeitando as restrições das UCs, mantendo preservadas as áreas de Áreas de Proteção Permanentes (APPs), e evitando o uso de agrotóxicos. No Litoral paranaense as etapas do processamento para a produção de farinha, após a colheita, são: descascamento, lavagem, ralação, prensagem, esfarelamento, torração e embalagem. O descascamento pode

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ser manual ou mecânico. O descascamento manual é realizado com facas afiadas, tomando-se os devidos cuidados para que não fique pedaços de cascas sem retirar e para que se retirem os pontos pretos existentes na mandioca, fatores esses relevantes, pois influenciam na qualidade do produto final. O descascamento mecânico é realizado em cilindros de madeira ou metal (ou misto). O cilindro é rotacionado por um motor elétrico, que faz com que as mandiocas que estão no seu interior sejam descascadas por atrito contra a parede do cilindro, que possui ranhuras na parte interna. Nesta fase os resíduos gerados são as cascas e a água de lavagem. A ralação pode ser mecânica ou manual. A ralação manual da mandioca pode ser feita em ralador simples de inox, utilizado nas residências. No Litoral paranaense, este processo ocorre em algumas farinheiras de autoconsumo. Há também o método de ralação manual feito com uma roda fixada por um eixo, em uma estrutura de madeira. A ralação mecânica, por sua vez, utiliza-se de um motor que rotaciona um cilindro de madeira revestido com aço cheio de ranhuras. Quando a mandioca é atritada contra o cilindro, ocorre a ralação da mesma, resultando em uma massa branca que cai em um recipiente (cocho). A prensagem, também, pode ser manual ou mecânica. A prensagem manual ocorrer numa prensa de madeira ou metal. A prensa de madeira possui uma estrutura com formato de trave de futebol, na qual na sua parte superior encontra-se uma rosca na madeira que se encaixa a um parafuso de madeira, denominado  “fuso”; é um sistema de porca de parafuso, porém feito artesanalmente em madeira e em tamanho grande. Nesta prensa coloca-se a massa proveniente da ralação em sacos com pequenas perfurações (em alguns casos se utiliza o “tipiti”, cesto construído com bambu), exercendo pressão sobre os mesmos para a retirada da água da massa. Este processo é realizado lentamente. A água liberada é denominada “manipueira”, ou “mandiquera”, como denominada na Região. A prensagem mecânica tem a mesma lógica de funcionamento, porém é feita com uma prensa de metal hidráulica, que faz a prensagem da massa com menor esforço humano.

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O esfarelamento consiste em soltar a massa que foi prensada. No esfarelamento manual abrem-se os sacos que foram utilizados e despejase a massa prensada, que está compactada, em um cocho, geralmente de madeira, e com as mãos se faz a descompactação da massa. O esfarelamento mecânico a massa é colocada em uma estrutura de metal que possui em seu interior hastes, que giram e fazem a desagregação da massa. A torração, por sua vez, é realizada em forno (linguagem local) ou tacho, alimentado por lenha, que necessita que a massa seja constantemente mexida, processo que pode ser realizado manualmente ou mecanicamente. Este processo consiste basicamente em retirar a umidade existente no produto e torrar o mesmo. A massa esfarelada é colocada em um tacho, com fogo mais alto, para realizar a “vivuia”, como é denominada localmente, que consiste em fazer uma pré-torração. Após, a massa retorna ao forno com fogo mais baixo, onde é realizada a torração até o ponto ideal do produto, reconhecido pelos produtores pelo cheiro. No processo manual, a massa é mexida com pás de madeira, já no processo mecânico, a massa é mexida por um agitador de madeira, que gira rente ao forno, rotacionado por um motor elétrico. Nas unidades produtivas os dejetos gerados são as cascas, água de lavagem e mandiquera. As cascas retornam diretamente ao solo ou em composteiras. A água de lavagem retorna ao meio ambiente. O resíduo com maior impacto negativo ao meio ambiente do processo produtivo é a mandiquera. O destino dado a este produto cabe a cada agricultor e os usos são diversos: inseticida natural (combate de formigas, broca da bananeira etc.) e herbicida (usado para o controle de ervas daninhas). Existem outras possibilidades de uso como na alimentação humana ou produção de sabão, no entanto os agricultores ainda não o fazem não tradição. A lenha utilizada nos fornos, segundo os agricultores, é retirada das matas, derivadas de árvores e galhos secos, sema derrubada da floresta, prática não permitida em UCs. A estrutura física das farinheiras diverge, podendo ser de alvenaria, madeira, mistas de madeira e alvenaria, cobertas com telha

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de amianto, argila, palha, com ou sem forro, com ou sem paredes laterais (DENARDIN et al., 2011). Não existe uma homogeneidade de equipamentos ou espaço físico destinado à farinheira. Sua construção depende da disponibilidade de recursos financeiros e de materiais (madeira, metais etc.) e principalmente o saber fazer, como mencionado anteriormente, que se altera entre os agricultores nas comunidades/ localidades. A arte de farinhar no Litoral do Paraná deriva-se de um saber fazer tradicional, cujo público que o demanda reconhece-o pelo sabor. Neste sentido, o produto é sem dúvida um patrimônio coletivo deste território como evidenciado por Ambrosini et al. (2008, p. 20): o “processo de qualificação, ou valorização de um produto, apoia-se num saber-fazer tradicional, onde o alimento passa a ter um valor identitário, e o conhecimento público e partilhado de técnicas é visto como um patrimônio coletivo do território”. O saber fazer é inerente a todas as atividades, o cultivo da mandioca, a construção da farinheira e dos equipamentos, o destino e uso dos dejetos e principalmente o fazer farinha. O segredo, segundo os agricultores, esta no “torrar” a farinha e cada agricultor menciona que sua farinha é mais ou menos torrada, mais ou menos fina que a de seu vizinho, observa-se, portanto, uma resistência natural à homogeneização de sistemas produtivos, afastando-se da lógica inerente da produção em larga escala, commodities. A dimensão institucional do SIAL farinheiras A dimensão institucional do SIAL Farinheiras considera um conjunto de elementos relacionados à organização e à cooperação existente ou não entre os agricultores, bem como relava a presença e a importância de atores e instituições que de alguma forma influenciam as atividades inerentes à produção de mandioca e a agroindustrialização da farinha. Os agricultores, em sua maioria, possuem suas próprias farinheiras. No entanto uma prática comum é a participação de familiares em “guajus”, onde diversos membros da família se ajudam mutuamente,

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indicando que mesmo no caso de unidades produtivas individuais a cooperação em muitos casos esta presente. Outra prática comum consiste em emprestar ou alugar a farinheira para familiares e vizinhos mais próximos com pagamento realizado através da troca de dias de trabalho ou com produto farinha. Merece destaque no Litoral do Paraná oito farinheiras comunitárias construídas através do programa estadual “Paraná 12 meses”. Em 2008 todas estavam desativadas. A partir de tal constatação desencadeou-se um conjunto de projetos de pesquisa e extensão junto a Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral que permitiu, em parceria com os agricultores, reestruturar três farinheiras, duas no município de Guaraqueçaba e uma em Guaratuba. As ações de extensão se relacionam ao apoio institucional a atividade produtiva. Nestas unidades um conjunto de práticas relacionadas ao trabalho coletivo e cooperação foi desencadeado para recuperar sua infraestrutura física (pintura, telhado, forro, etc.) e equipamentos. Entre as instituições que direta ou indiretamente se relacionam a atividade produtiva da farinha de mandioca que merecem destaque estão o Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR) que fornece capacitações novas variedades de ramas para os agricultores e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Paraná (EMATER). No entanto, com a crise que afeta estas instituições públicas o apoio técnico tem sido precário e se faz necessário uma maior intensidade de ações que visam estimular o plantio e o processamento da farinha. As prefeituras e suas respectivas secretarias de agricultura são ausentes em termos de atuação. Para piorar a situação, constata-se no Litoral paranaense uma invasão do cultivo de palmáceas, reduzindo significativamente a área plantada com mandioca. A fragilidade das instituições e a ausência de ações não permitem fazer um diagnóstico favorável quanto ao futuro desta atividade, pelo contrário, se observa a ausência de jovens nas farinheiras e os agricultores deixando de cultivar e processar o produto. Conclusões

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Produzir farinha de mandioca faz parte da cultura dos pequenos agricultores familiares do Litoral do Paraná. O produto é utilizado para a alimentação diária das famílias, contribuindo para a soberania alimentar, bem como possibilita a geração de renda com a comercialização. Nas visitas realizadas aos agricultores que possuíam farinheiras foi possível perceber que fazer farinha é uma arte que é repassada de pai para filho ao longo de gerações e a farinha produzida não é homogênea, cada agricultor produz do seu modo, possui um saber fazer único. A existência de Unidades de Conservação permite que o produto resultante da produção no entorno ou mesmo nas áreas de UCs onde a produção é permitida apresente potencial agroecológico, uma vez que não se recomenda o uso de produtos químicos em áreas de proteção ambiental. O SIAL farinheiras foi caracterizado e apresentado a partir das dimensões histórica, técnico-teórica e institucional. Esse procedimento, metodologia, permitiu evidenciar os recursos e ativos tangíveis e intangíveis do território. A farinha industrializada em grande escala pode ser considerada um recurso genérico, no entanto, quando produzida pelos agricultores familiares, como produzida no Litoral do Paraná pode se considerada um recurso e no futuro um ativo do território. Esta farinha produzida estará condicionada ao saber fazer dos agricultores locais, tornando-se específico e relacionado ao território. A dinâmica do desenvolvimento territorial consiste, portando, em revelar estes recursos. A estratégia de valorização dos produtos com identidade territorial constitui-se assim na operacionalização do modelo. Enquanto estratégia, a farinha de mandioca pode vir a se tornar o produto líder para compor a “cesta de bens” do território (PECQUEUR, 2006b). Outros produtos derivados da mandioca (biju, chips, pão de mandioca, berereca etc.) e demais produtos do território (bala de banana, cachaça, polpa de açaí etc.) podem vir a complementar a cesta de bens. Por fim, entre os problemas enfrentados no Litoral do Paraná está a fragilidade das instituições de apoio à organização da atividade produtiva e ao planejamento de ações pró desenvolvimento territorial a partir da valorização dos recursos existentes no território, inviabilizando desta

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forma a possibilidade de obtenção de uma “quase renda” atribuída ao território. Referências

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CAPÍTULO 10 A “FEITURA DA FARINHA”: NOTAS ETNOGRÁFICAS DE UMA FARINHADA NO ALTO SERTÃO DA BAHIA

Andrea Lima Duarte Coutinho1

Introdução Este texto tem sua origem nas impressões obtidas em momentos da pesquisa de campo na comunidade camponesa de Lagoa do Saco, localizada no município de Monte Santo-BA, lócus da minha pesquisa de mestrado sobre a produção local de farinha de mandioca e sua relação com a identidade do grupo em questão. Muito do que aqui é exposto têm sua origem na investigação sobre os variados hábitos alimentares e nos momentos de leitura de textos, que deram descanso ao levantamento bibliográfico e fizeram brotar palavras sortidas para qualquer uso e para qualquer graça. Como nos tempos da escola, os mitos e suas explicações sobre a invenção das formas, dos conteúdos, das técnicas, das ações, dos sentimentos, dos potenciais dos homens do Mundo e dos Deuses, ilustraram o processo de compreensão acerca da diferença entre o alimento e a comida. 1 Cientista Social e Mestre em Cultura e Sociedade- UFBA. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais (NUCLEAR)- Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas /Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected].

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Eis que surgiu a questão: optar por Deméter2 ou Gaia3? Aquela que ensina a plantar ou A Mãe Terra, propriamente dita? A opção se deu pelas duas. Poderia ser por Tântalo4 e sua polêmica oferta dos alimentos aos humanos e o tão célebre e imenso castigo ao qual foi condenado, por ter desagradado os deuses. Também poderia ser por Cronos, que em atos de antropofagia e retroalimentação, comia os próprios filhos e se encantava. Poderia ser. Mas, aqui o elogio está posto especialmente a Mani5 e as Senhoras que propiciam o alimento. Dessa forma, podemos

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2 “Deméter ou Demetra (em grego: Δημήτηρ, “deusa mãe” ou talvez “mãe da distribuição”) é uma deusa grega, filha de Cronos e Reia, deusa da terra cultivada, das colheitas e das estações do ano. É propiciadora do trigo, planta símbolo da civilização. Na qualidade de deusa da agricultura, fez várias e longas viagens com Dionísio ensinando os homens a cuidarem da terra e das plantações”. Fonte: http://www.brasilescola.com/mitologia/demetra.htm. Acesso em: 02 de junho de 2014. 3 “Gaia, a segunda divindade primordial segundo a mitologia grega, surgiu apenas depois de Caos, representando a Terra. Com uma enorme potencialidade geradora, Gaia gera pontos, montanhas e seu principal filho e posterior esposo, Urano”. http://www.brasilescola.com/mitologia/gaia.htm. Acesso em: 02 de junho de 2014. 4 “O Suplício de Tântalo: Tântalo, filho de Zeus e de Plota, era rei da Frígia. Muito querido entre os deuses, freqüentemente era convidado a partilhar das suas refeições no Olimpo. Durante um desses banquetes, Tântalo abusou da confiança dos deuses roubando-lhes um pouco de néctar e ambrosia, alimentos que davam a imortalidade, porém um privilégio somente do Olimpo. Tântalo, julgou que também era um deus poderoso e convidou os deuses para um jantar em sua casa, servindo-lhes como refeição, o seu próprio filho Pélops em pedaços, para testar a divindade dos deuses. Os convidados deram conta do crime de Tântalo, mas Deméter comeu o ombro de Pélops. Tântalo foi condenado ao suplício de fome e de sede eternas. Mergulhado em águas até ao pescoço, quando ele se debruçava para beber água, esta desaparecia. Por cima de sua cabeça, pendiam ramos de árvores com frutos saborosos, porém o vento retirava do seu alcance sempre que tentava apanhá-los. O aviso dos deuses ficou na memória de todos: todo ser humano que provar da ambrosia dos deuses seria condenado ao suplício de Tântalo”. http://consumonobrasil.wordpress.com/2013/05/28/mitologia-grega-o-suplicio-de-tantalo/. Acessado em: 02 de junho de 2014. 5 “Conta-se que e filha de um chefe indígena chamado de morubixaba apareceu grávida em uma determinada aldeia. Seu pai (o morubixaba) lhe teria pressionado para que dissesse quem a tinha desonrado. Como ela não lhe dissera, seu pai, resolveu matá-la como castigo; nessa ocasião crucial aparece um homem desconhecido, branco, defendendo a menina, dizendo que esta era inocente e que realmente não tivera contato com nenhum homem. Como o pai convenceu-se de que era mesmo verdade o que a sua filha lhe dissera, deixou que a gravidez prosseguisse. Nascendo a menina viram que esta era branca, desembaraçada, pois, com poucos meses falava e discorria sobre tudo. Deram-lhe o nome de Mani. A menina atraiu muitas pessoas, inclusive povos vizinhos, curiosos para ver o fenômeno da menina que era de raça diferente, tinha o dom da inteligência e sabia coisas fantásticas para a sua idade. Quando Mani completou um ano de idade, morreu sem explicação aparente. Enterraram-na próximo à casa de sua mãe. Como de costume jogavam sempre água no lugar onde a menina fora enterrada. Pouco tempo depois nasceu ali uma planta que eles ainda desconheciam, e deixaram-na crescer. Os pássaros que a comiam tinham uma sensação de embriaguez, e com isso os indígenas ficaram admirados.Um dia fendeu-se a terra e tiraram o seu excesso descobrindo, da planta, o tubérculo de sua raiz, no qual, acreditavam, estava representado o corpo de Mani. Comeram o tubérculo e com ele também fizeram uma bebida fermentada, chamada cauim”. Fonte: Clerot, Leon F.R. Glossário etimológico dos termos de origem Tupi/Guarani, incorporados ao idioma nacional – Brasília:

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começar a pensar: Os deuses propiciaram o alimento. Os mortais inventaram a comida. A comida deve ser definida como o alimento transformado. A transformação se dá de diversas formas. O início da transformação está na escolha; o alimento que será transformado em comida passa por uma série de seleções e combinações que por sua vez, estão contidas em imensos conjuntos formados pelos arcabouços culturais dispostos. Porque não transformamos alguns alimentos em comida, mesmo quando estes alimentos estão disponíveis na Natureza e são passíveis de transformação? Primeiro porque não foram escolhidos como “comestíveis” e em um segundo momento por não condizer com o que serve ao gosto: aquilo que não pertence ao conjunto de aparatos técnicos e simbólicos e que corresponde aos costumes. Ou seja, o abismo de significados que separa o alimento da comida é a cultura. Determinados pratos ou receitas podem definir um costume alimentar, assim como explicitar características intersubjetivas e públicas muito mais eficientemente que depoimentos ou enormes tratados. A comida fala. Fala sobre escolhas, combinações, proibições, emoções, cotidianos. A pretensão maior deste texto é realizar uma breve descrição das relações de trabalho que envolvem o plantio da mandioca e a produção da farinha na Lagoa do Saco, com o objetivo de desvelar relações pautadas pela divisão social do trabalho por gênero e geração, como também a noções de autonomia alimentar e identidade social próprias deste grupo. Estas relações foram observadas em campo (através de pesquisa com forte base etnográfica) em uma determinada situação e um determinado contexto: A Farinhada realizada na Casa de Farinha Comunitária6 da comunidade de Lagoa do Saco. Para fins de elucidação, os depoimentos das agricultoras e agricultores entraram como a fonte de maior informação sobre a divisão das atividades da Farinhada e o Senado Federal, 2010. 6 Segundo dados da Associação dos Moradores da Lagoa do Saco (entidade gestora da Casa de Farinha), aproximadamente 90% das famílias da comunidade, utilizam a Casa no período da Farinhada.

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uso da terra. Foram entrevistadas (os) no total, 30 produtoras (es) que representaram um universo de aproximadamente 300 famílias. O trabalho na roça: a “labuta”7 da mandioca Os principais alimentos cultivados na comunidade de Lagoa do Saco são a mandioca, o milho, a palma e o feijão, por ordem de importância. Esses alimentos são plantados nas roças (localizadas em sua maioria, nas serras que circundam o centro da comunidade) e nas malhadas (localizadas ao lado da casa da família). A localização do plantio, seja ele na roça ou na malhada diz nos muito sobre as relações de produção do grupo em questão :o trabalho da roça é quase sempre uma função dos homens jovens e o trabalho nas malhadas são de responsabilidade das mulheres da família sejam elas jovens ou não.8 A malhada é o local de excelência para o plantio da mandioca, como foi registrado pelos antropólogos Klaas e Ellen Woortmann, na obra O Trabalho da Terra (1997) realizada entre camponeses do sertão de Sergipe: Esta é a terra da mandioca por excelência. Os bairros rurais (ou municípios) são ricos em malhadas, são ricos também em mandioca, alimento básico e uma das principais mercadorias destinadas a feira. A mandioca é consorciada a outros produtos, basicamente de subsistência, destinados a casa (p.31).

Por questões conceituais e contextuais, torna-se mais apropriado afirmar que no contexto dessa pesquisa, a mandioca e os outros produtos são destinados em primeiro lugar à mesa e depois à feira: a mandioca plantada é quase que exclusivamente direcionada para o consumo interno das famílias e seu uso se destina tanto às pessoas como aos animais de criação principalmente os suínos, garantindo a soberania alimentar do grupo em questão.

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7 O significado local de labuta está relacionado a trabalho muito grande que requer grande esforço físico. 8 Mesmo existindo uma divisão do trabalho por gênero e geração, deve ser lembrado que caso haja necessidade, as mulheres podem trabalhar na roça e os homens na malhada. Em anos ideais de chuva, os trabalhos aumentam e a produção também, a divisão do trabalho é reconfigurada para que as metas sejam cumpridas.

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A forma de acesso à terra na Lagoa do Saco tem como característica principal a terra própria e a terra arrendada (uma pequena parcela dos agricultores arrendam terras de parentes); a terra própria pertence a todos os membros da família que possuam interesse em “trabalhar a terra”. Quando da divisão desta por herança, geralmente o filho mais novo fica responsável pela roça da família nuclear. Em caso de migração, o irmão/ filho mais novo (caçula) também fica responsável pela terra dos irmãos e pelos cuidados com os pais. Ele herda a maior parcela da terra destinada ao plantio. Geralmente, a terra não é vendida, mas quando isso acontece o irmão que se manteve na comunidade compra a parcela do irmão ou da irmã que está ausente.9 Assim, além de geracional, o trabalho na roça ou na malhada é realizado através de um sistema de rotação de terras e de acordo com as relações de parentesco: o plantio é realizado de forma consorciada, a propriedade da família não ultrapassa 5 (cinco) tarefas de terra, o trabalho é realizado basicamente por mão de obra familiar e é dividido nas seguintes etapas: Preparação do solo: é anterior ao plantio e é realizada no período de novembro a janeiro, posteriormente ao período das “trovoadas” e anteriormente ao período de longa estiagem. Nessa etapa a escolha pelo tipo da terra é realizada em um processo de análise do meio: qual o tipo de terra ideal para plantar mandioca, qual o tipo de terra ideal para o milho, etc. Nota-se que a presença masculina é majoritária contudo a presença feminina, principalmente em roças mais próximas do centro da comunidade não é algo raro de se encontrar. Foi notado que no plantio das malhadas a presença feminina se faz muito maior. As refeições consumidas no trabalho da roça são preparadas pelas mulheres dependendo da distância em que estão localizadas as plantações, um dos filhos leva a comida para o pai ou para o tio. A comida nesses momentos deve trazer “força e satisfação”. Os pratos servidos e a 9 O número de membros da comunidade que migram é bastante elevado.Geralmente os irmãos ou irmãs mais velhos são os que migram. O lugar escolhido é a cidade de São Paulo, por já haver nesta cidade uma rede de apoio pautada pelo parentesco, vizinhança e a amizade.

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ordem das refeições durante essa fase do trabalho geralmente são: Carne com cuscuz, café com leite, abóbora cozida, aipim cozido, pão com ovo > café da manhã Feijão, farinha, carne (de qualquer animal), cortado de abóbora ou quiabo, frutas como banana ou melancia > almoço Café com leite, pão ou beiju > merenda Feijão, farinha, carne > jantar Woortmann (1997), salienta a expressão do consumo alimentar durante o “trabalho da terra” quanto á relação comida- corpo-trabalho: O alimento considerado forte (feijão com farinha) deve ser consumido pelo homem, que realiza trabalhos pesados com maior dispêndio de energia. A comida deve repor a força para que o homem siga trabalhando. O alimento mais fraco (leite com tubérculos) deve ser consumido pelo homem quando ele realiza trabalho mais leve, com menos dispêndio de força, assim como pelas mulheres e crianças (p. 50). FIGURA 1 – ALMOÇO NO MOMENTO DA RASPAGEM (FARINHADA DE DONA CATARINA)

Fonte: Trabalho de Campo. Data: Outubro de 2012.

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O plantio e o consorciamento: o plantio é a segunda etapa do trabalho da roça e compreende os momentos de adubação da terra, escolha das sementes e mudas, medição para abertura das covas e plantio consorciado10. Deve ser lembrado que o replante da mandioca é feito a partir de mudas, chamadas manivas, que são enfiadas nas covas. O ideal é que o plantio seja realizado, após um período de chuvas pois assim, segundo os produtores, “o chão estará mais mole e não corre o risco de quebrar a maniva”. Nessa etapa dos trabalhos a participação das mulheres e das crianças é tomada como um “auxílio”. O trabalho feminino e infantil nesse momento é visto pelos homens (principalmente os mais velhos) como um trabalho suporte. Percebe-se em conversa com os homens que a autonomia financeira feminina não é vista como algo positivo. As mulheres que migram e trabalham na cidade ultrapassam o limite do status de “mulher”. É como se, por estar longe dos olhos da família e da comunidade pudesse dirigir o seu comportamento de forma autônoma. Por outro lado, as mulheres que permanecem na comunidade são vistas como possuidoras de um status quo secundário ao dos homens. Na prática, o trabalho da mulher e do homem são complementares; um depende do outro em um enlace que ultrapassa o que é afirmado no discurso. O interessante aqui é não considerar a divisão hierárquica (principalmente no momento das refeições) como um fato que reflete a inexistência das relações de complementaridade11. Como foi dito, mesmo sendo o discurso sobre o trabalho baseado na afirmação da 10 Sobre a lógica do consorciamento: “A escolha dos produtos a serem consorciados obedece ao que poderíamos chamar princípio da alternância (...). O princípio da alternância na combinação de produtos com distintos tempos de duração, tem ainda outro significado se, ao invés de analisarmos as características de cada planta isoladamente, as analisarmos em conjunto.Configura-se então uma associação que procura otimizar o aproveitamento do espaço. Assim, no consorciamento entre milho, feijão e algodão, o cálculo do plantio é realizado de forma tal que, terminada a maturação do feijão, sua colheita anteceda um pouco o momento de expansão do algodão. Há portanto, um timing adequado a cada sistema, conjunto de plantas”. (WOORTMANN & WOORTMANN, 1997, p. 93 e 94). 11 Ellen Woortmann (1991), em pesquisa sobre identidade e gênero em comunidades pesqueiras do Nordeste, define o conceito de complementaridade atrelado ao trabalho, como “atividades de ajuda recíproca” quando mesmo onde há uma divisão dos espaços por gênero” havia uma relação de complementaridade onde a ajuda de um viabilizava o trabalho do outro” (p. 4).

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“masculinidade”, o que é observado na prática é uma inter-relação complementar das divisões das atividades que determinam o trabalho na roça. Principalmente no momento do plantio, a presença feminina pode ser notada de maneira constante. Mesmo que seja vista como “ajuda” sua importância não deve ser desprezada ou posta numa posição secundária no momento da análise. Compreende-se desta forma, a organização do trabalho que vai desde a idealização das atividades da roça até o momento quando são servidas as refeições como um movimento espacial e ideológico de cooperação e “complementaridade”. Em um prévio resumo, “a relação trabalho-terra- comida” é o que deve nortear qualquer tentativa de compreensão sobre os hábitos alimentares e identidade de comunidades camponesas ou tradicionais. A Colheita: essa etapa se configura como uma atividade diária e é quando os homens da família (com exceção dos mais velhos e das crianças muito pequenas) saem todos os dias com o raiar do sol, para trabalhar na roça. As roças estão localizadas geralmente nos “pé de serra”, o que requer bastante esforço físico e dedicação intensa. É comum logo quando amanhece, ver os homens saindo a pé, em burros ou motocicletas para trabalhar/cuidar das roças. Esse trabalho vai até o meio dia, quando o sol a pino e a fome fazem com quê eles se recolham as suas casas. Por outro lado, o trabalho na malhada é uma atividade que envolve homens e mulheres. A pouca distância faz com quê a participação das mulheres seja maior, já que elas são também responsáveis pelos cuidados domésticos, incluindo a feitura da comida servida durante o almoço para os homens e para as crianças que neste horário, estão voltando ou indo para a escola. Após, transcorrido o tempo de cada produção agrícola (milho, feijão ou mandioca), é realizada a colheita. Nessa atividade também notase a presença de homens e mulheres, principalmente na colheita do milho e do feijão. A colheita da mandioca (a arranca) trata-se de uma atividade eminentemente masculina:

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Mulher não participa da arranca. Porque se exige muita força no braço. Tem que ter força no braço. Nem homi fraco ou doente deve participar na hora de arrancar. Também tem outra coisa... Puxar a mandioca faz mal pra mulher. Se elas ficarem fazendo isso, pode fazer mal, depois ela pode ficar com dores ou pode não poder mais ter filho. Faz mal pra mulher. (Morador, 52 anos, transcrição de entrevista realizada pela pesquisadora, 2012).

Vê-se que essa atividade também é dividida por gênero e por geração e os motivos aclamados quase sempre envolvem a noção local do corpo e da força física. É notável que durante as entrevistas as respostas dadas pelos agricultores quando perguntados sobre a restrição da participação feminina em algumas atividades, quase sempre dizem respeito às limitações físicas das mulheres e a fragilidade dos seus corpos; essa fragilidade geralmente está ligada a composição do aparelho reprodutor feminino em especial a presença do útero. As respostas das mulheres geralmente vão de encontro à resposta dos homens, como pode-se conferir no trecho abaixo: A gente não participa do trabalho da roça todo, porque os homens se ocuparam disso. Além disso, a gente já tem muita ocupação aqui na casa. Além de pegar água, tem que fazer comida, cuidar dos menino e cuidar da criação. Não sobra tempo pra esse trabalho”. Mas se precisar a gente vai. (Moradora, 35 anos, transcrição de entrevista realizada pela pesquisadora, 2012).

Talvez a contradição observada entre o discurso e a prática esteja pautada nas transformações da divisão do trabalho por gênero ocorridas nas últimas décadas. Os novos arranjos nos postos de trabalho e a emancipação feminina em todo o mundo estão sendo “estranhados” pelos homens da comunidade. Quem sabe, em futuro próximo esse estranhamento se transformará em uma ressignificação, pois nota-se que os jovens que foram abordados possuíam um discurso que atribui bastante valor ao trabalho feminino. Afinal, na prática cotidiana do trabalho o que observa-se é uma relação histórica de complementaridade, onde

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mulheres e homens em um esforço de solidariedade, se integram para cumprir prazos, compromissos e garantir a manutenção e a soberania alimentar do grupo familiar. A Casa de Farinha A Casa de Farinha trata-se de um espaço de sociabilidade, troca de informações sobre técnicas e se configura como o lócus ideal para a realização de qualquer análise que trate de reciprocidade, solidariedade e hábitos alimentares de comunidades camponesas ou tradicionais do Nordeste do Brasil. A Casa que aqui se faz referência é a Casa de Farinha Comunitária da Associação dos Moradores da Lagoa do Saco, utilizada por grande parte dos produtores e produtoras de farinha de mandioca dessa comunidade e das comunidades vizinhas. Deve ser ressaltado que, atualmente as casas de farinha manuais deixaram de ser utilizadas, principalmente pelo alto custo que acarretam para a cadeia produtiva, concentrando-se dessa forma todas as atividades na Casa Comunitária. Durante as Farinhadas essa Casa, fica aberta quase todos os dias. Suas portas e janelas só se fecham quando todos vão dormir e a farinha produzida está ensacada e armazenada. Os expedientes de trabalho na Casa de Farinha começam no horário que começam os expedientes de trabalho nos escritórios e nas fábricas da cidade, aproximadamente às 8 horas da manhã. Só que a sua finalidade é outra: produzir a comida mais valorizada e consumida pelo grupo social que ocupa esse espaço, produção esta que depende da necessidade e do desejo do produtor, pois enquanto um espaço de sociabilidade e reprodução alimentar, nesse local se mantém a existência e a manutenção do grupo social em questão.Ele não se configura apenas como um abrigo e sim como uma estrutura material onde sentimentos, emoções, discórdias e esperanças são postas em ação. Nessa estrutura as normas de conduta social e convivium são estabelecidas ou reconfiguradas (abaixo a representação da casa de farinha).

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FIGURA 2 – PLANTA DA CASA DE FARINHA

Fonte: desenhado pela pesquisadora durante pesquisa de campo, outubro de 2012. Local: Lagoa do Saco, Monte Santo – BA.

O pagamento do valor do aluguel da casa de farinha, para os moradores que não são associados, pode ser realizado em dinheiro ou em farinha; quase todos preferem que o pagamento seja feito em farinha, mas se não for possível, principalmente pela baixa produção e alto consumo interno, o pagamento varia de acordo com a quantidade de mandioca colhida na arranca. Para os associados o pagamento se dá através das mensalidades (aproximadamente 20 reais)12, pagas à Associação dos Moradores. Vale ainda salientar que neste espaço é realizada quase que diariamente a fabricação de tapioca e beiju13. Esses derivados são 12 Segundo dados da associação, o pagamento é recolhido para que as contas mensais de energia sejam quitadas. Depois da instalação do maquinário elétrico o valor dessas contas, subiu consideravelmente de 20 reais para quase 200 reais mensais. 13 A tapioca é um granulado derivado da fécula da mandioca, que após ser torrado pode ou não dar origem ao beiju (do tupi-guarani mbe’yu ‘bolo de farinha de mandioca), que é uma comida de origem indígena tupi-guarani

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vendidos para a CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) e destinados ao PAA (Plano de Aquisição de Alimentos) e irão compor parte da merenda escolar das escolas públicas do município em questão. A maioria dos indivíduos que participam desta atividade são do sexo feminino e estão ligadas de alguma forma à Associação dos Moradores14. Durante a Farinhada, as atividades relacionadas à produção são divididas gênero. Abaixo quadro explicativo com a divisão das atividades que constituem a produção de farinha de mandioca e a divisão por gênero e espaços relacionados na Casa de Farinha. QUADRO 1 – A PRODUÇÃO DE FARINHA E DIVISÃO POR GÊNERO DAS ATIVIDADES ATIVIDADE

DIVISÃO DO TRABALHO POR GÊNERO

Plantar a mandioca

Atividade masculina com alguma presença feminina

Arrancar

Atividade masculina

Carregar (Carrada)

Atividade masculina

Descarregar

Atividade masculina

Raspar

Atividade feminina com alguma presença masculina (principalmente de idosos e crianças)

Lavar

Trabalho coletivo

Ralar

Atividade masculina com presença feminina

Lavar

Trabalho coletivo

Tirar a goma

Atividade feminina15

Prensar

Atividade masculina

Torrar

Atividade masculina

Peneirar

Atividade feminina e alguma presença de crianças

Fazer a tapioca ou beiju

Atividade feminina

Ensacar

Atividade masculina

Fonte: dados primários levantados em trabalho de campo pela pesquisadora, outubro de 2012. Local: Lagoa do Saco, Monte Santo – BA.

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amplamente difundida no Brasil. A goma da tapioca, ao ser espalhada em uma chapa ou frigideira aquecida, coagula-se e vira um tipo de panqueca, em forma de pastel (ou disco, como em algumas regiões). O recheio varia de lugar para lugar. 14 Outro fato de grande relevância: Em anos de grande estiagem, como foi o de 2012, a fécula ou a goma utilizada na feitura dos beijus foi comprada pela Associação através de cooperativas do Estado do Paraná, para que o contrato com a CONAB, não fosse descumprido. 15 As atividades marcadas dizem respeito à contrapartida doada para as participantes da raspagem. Toda mulher que participa da raspagem da mandioca, leva um balde de goma para casa. Na maior parte das vezes, essa goma é

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Vale esclarecer informações sobre três atividades mencionadas, de suma importância na “feitura” da farinha: A arranca que se trata de uma atividade eminentemente masculina tem início com o raiar do sol e segue até às 8 horas da manhã, quando a mandioca é carregada no caminhão (a carrada) e parte para a Casa de Farinha. Participam da arranca os mesmos homens da família que participaram do plantio, só que nessa etapa há a inclusão de convidados que podem ser parentes, aparentados ou vizinhos. A raspagem: os convidados para a raspagem vão chegando aos poucos. Os primeiros são homens idosos e mulheres também idosas. Nesse momento é decidido o tempo que a Farinhada vai durar (a depender da quantidade de pessoas convidadas e não presentes a raspagem pode durar mais tempo e isso compromete o tempo de duração da produção consequentemente a qualidade da farinha produzida). De acordo com as impressões obtidas no trabalho de campo e seguindo a linha dos relatos, um dos prováveis motivos do aumento da presença masculina na raspagem, é a mecanização: após a mecanização da casa de farinha, os homens mais velhos que não sabem operacionalizar as máquinas (cevador, triturador, peneira elétrica, forno e prensa), mas que querem “contribuir na feitura da farinha” se engajam na raspagem com o objetivo de colaboração16. Esses homens, idosos em sua maioria, quando não possuem mais a mesma força física e a mesma agilidade para o manuseio da faca usada na raspagem contribuem para a continuidade do que aqui é chamado de arcabouço lúdico da Farinhada: contam histórias de longes tempos, comentam o noticiário da televisão, falam dos mortos e suas mortes, das dificuldades antigas, das atuais possibilidades, das secas históricas, fazem relatos da migração e das antigas festas já extintas na comunidade: O São João, a Festa de Santo Antônio e A Festa de Santos Reis17. torrada e se transforma em tapioca ou em beiju. Existe na Casa de Farinha um espaço reservado para a feitura da tapioca, com forno exclusivo para essa atividade. 16 Cada família extensa produz em média 15 sacas de farinha de mandioca (isso é o que equivale a aproximadamente 100 quilos de farinha por saca), em cada Farinhada anual. 17 Segundo os relatos, essas festas deixaram de existir por diversos motivos: longas estiagens, baixa produção

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No decorrer dessa etapa, alguns negócios são fechados (venda e compra de animais de criação: porcos, bodes e galinhas) e as brincadeiras entre os participantes são constantes e vão da escatologia e erotismo a disputas políticas. Nesse momento alguns preceituários e algumas normas de “bom comportamento” são postos de lado, ou seja, são temporariamente esquecidos. Como em uma catarse pública os participantes esquecem as diferenças entre idades, entre gêneros e tecem comentários que em outra situação seriam considerados desrespeitosos. Nesse momento as diferenças são sublimadas e a coesão do grupo é quase palpável. Paradoxalmente, esse é um momento completo de extravasamento e estreitamento dos laços sociais. A torra: é um momento de grande importância na feitura da farinha, principalmente porque nele é conferido o sabor que a farinha terá o aspecto (se fina ou grossa) e o ponto de torra (mais torrada, menos torrada). Essa atividade é realizada por um “especialista em farinhas” chamado de forneiro. A comunidade conta com 3 forneiros (sendo que um deles reside atualmente em São Paulo). O ofício de forneiro é passado de pai para filho, de tio para sobrinho e envolve um aprendizado longo e um conhecimento grande dos tipos de farinha, das preferências das famílias e dos diversos sabores que a farinha pode ter. O pagamento do forneiro é realizado em dinheiro e sua diária custa em média de 50 a 60 reais (essa quantia varia de acordo com a quantidade de mandioca arrancada, o grau de parentesco com o forneiro e condições financeiras da família que contrata esse serviço). A atividade do forneiro e a sua inserção no “sistema de trocas” não deve ser tomada como algo contraditório, pois não se trata de uma relação mercantil e sim de um saber diferenciado que, em contrapartida recebe pagamento em dinheiro, pois como sabe-se a campesinidade não exclui a modernidade e seguindo a linha de estudos

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agrícola, “desinteresse dos mais jovens”. O São João, está em vias de desaparecimento, sendo essa data marcada apenas pela presença das fogueiras e dos pratos servidos nas casas das famílias (a festa há aproximadamente 15 anos atrás, era comemorada coletivamente. Os pratos eram servidos em uma grande mesa na frente da Igreja de Nossa Senhora): pamonha, beiju, canjicas, laranjas, licor, milho cozido, carne de porco ou bode assados. Em anos como o de 2012, os pratos servidos foram bastante reduzidos, existindo apenas a presença de alguns “para não passar a data em branco”.

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clássicos da sociologia rural, pode-se afirmar que o camponês nunca esteve isolado. Pode-se entender mais claramente o status do forneiro a partir do trecho da entrevista a seguir:

O forneiro é uma mão de obra especializadíssima. Eu não sei o número de farinhadas que participo quando o ano está bom. Aprendi esse ofício com meu pai e ele aprendeu fazendo farinha com a família dele. Como tem poucos forneiros eu sou muito requisitado, chego as vezes a trabalhar durante a semana toda no período de Farinhada. As vezes saio daqui e vou torrar farinha no Salgado e no Engorda. (Morador e forneiro, 40 anos, transcrição de entrevista realizada pela pesquisadora, 2012).

Mauss (2003), em estudo clássico sobre o sistema de trocas destaca as motivações sociais para a criação de sistemas complexos e codificados de trocas e prestações. Para este autor a dádiva é o que pauta e organiza a lógica social dos diversos grupos humanos. A dádiva é o oposto da relação mercantil e envolve uma cadeia de troca e reciprocidade. Essa cadeia de prestações perpassa três elos indissociáveis: dar, receber, retribuir. Esses elos são tratados como obrigações e a relação entre eles propicia a criação de laços entre os indivíduos/grupos envolvidos. A doação e retribuição de valores morais é o que demarca a diferença entre essas trocas: Trata-se, no fundo de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca (MAUSS, 2003, p. 212).

Pergunta-se o autor: Mas, o que há na coisa dada que tenha que ser retribuída? Para ele, há parte do doador (o que de fato acontecem são transmissão de valores). A coisa atua pelos autores. Representa o que o doador é e seu anima social. Ademais, essa obrigação se exprime de maneira mítica, imaginária ou se quiserem, simbólica e coletiva: ela assume o aspecto do interesse ligado às coisas trocadas: estas jamais se separam

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completamente de quem as troca; a comunhão e a aliança que elas estabelecem são relativamente indissolúveis. (MAUSS, 2003, p. 232).

No contexto desta pesquisa a coisa dada é o tempo de trabalho: as horas gastas nas atividades da arranca, da raspagem e da feitura da farinha. O consumo da farinha fecha o sistema de dádivas. Que fique claro que a obrigação se constitui. O que ela não pode ser, a fim de que mantenha a existência da cadeia da dádiva, é completamente consciente. A retribuição em horas para a Farinhada, não é proclamada como uma obrigação ou um pagamento. Ela é representada de forma máxima como uma troca. O que está em jogo, além da troca de respeitos é a manutenção do convívio e do elo social. Em conversas com as participantes e os participantes da Farinhada, presentes no momento da raspagem, percebe-se que aceitar o convite para participar de uma Farinhada, é um “compromisso”, assim como partilhar da comida ofertada durante o evento. Não é considerado “educado” sair da Farinhada sem compartilhar as refeições dispostas no dia. O evento da Farinhada Sobre o conceito de evento aqui se entende o que Max Weber (2002) define como algo que permanece no imaginário dos indivíduos após a sua passagem e dá origem a mudanças estruturais no grupo social em questão: são recortes históricos que reificam fatos sociais. Sahlins (1990), em adaptação ao conceito weberiano, salienta que o evento não só modifica o futuro, mas também ressignifica o sentido do passado para determinado grupo social:

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[...] um evento não é apenas um acontecimento característico do fenômeno, mesmo que, enquanto fenômeno, ele tenha forças e razões próprias, independente de qualquer sistema simbólico. Um evento transforma-se naquilo que lhe é dado como interpretação. Somente quando e apropriado por, e através do esquema cultural, é que adquire uma significância histórica (...). O evento é a relação entre um acontecimento e a estrutura (ou estruturas): o fechamento do fenômeno em si mesmo enquanto valor significativo, ao qual se segue sua eficácia histórica específica

PARTE iiI Capítulo 10

Somente quando apropriado por e através do esquema cultural, é que adquire uma significância histórica (SAHLINS, 1990, p. 14 e 15).

Conferir o status de ressignificante ao evento é tratar a mudança trazida por este como algo que além de conservar os instantes sociais, os reinventa. A Farinhada é tomada como um evento, por atribuir a um determinado recorte de tempo uma dimensão de unidade de um determinado grupo e a confirmação de laços sociais. Um evento mais que um acontecimento é um fato social. Sua origem está em um dado acontecimento, mas sua interpretação é mediada pela cultura. Mesmo significando mudanças, ressignificando fatos antigos ou reinventando tradições, o evento não implica em perdas de traços culturais. Muito na verdade, o evento os reafirma: sua natureza está intimamente ligada à produção de identidades culturais. Milton Santos (2002) define o evento como um veículo de uma ou algumas das possibilidades existentes no mundo. O evento é um vetor das possibilidades existentes numa formação social. “O lugar é um elemento obrigatório do evento. Os eventos criam o tempo, como portadores da ação presente” (p. 144 e 145). A continuidade temporal de um determinado evento, como é o caso da Farinhada na Lagoa do Saco, reafirma elementos de relevância da estrutura social do grupo que o promove. Proporcionar a permanência desse evento é ao mesmo tempo, proporcionar a unidade do grupo de pessoas em um momento de troca e reciprocidade, mediado por uma “comida-dádiva” no caso, a farinha de mandioca. O caráter desse evento é absoluto e sistêmico: sua ocorrência/ existência depende de muitos fatores, entre eles o desejo de organização. Trata-se, segundo Santos (2002), de um evento predeterminado, que conta com um combinado de ações para constituir sua permanência: Os eventos não se dão isoladamente, mas em conjuntos sistêmicos - verdadeiras ‘situações’ – que são cada vez mais objeto de organização: na sua instalação, no seu funcionamento e no

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respectivo controle e regulação. Dessa organização vão depender a duração e a amplitude do evento (p. 149).

Dessa forma, pode-se afirmar que a Farinhada enquanto um evento é regida por operações, ações e sujeitos. A sua existência é o resultado de ações humanas em interação. São os acumulados históricos e culturais que definem a diversificação de algumas de suas determinações, como também as suas permanências. O evento da Farinhada é por si só, absoluto, sistêmico e permanente, pois traz em seu conjunto de ações a reivindicação por unidade desse determinado grupo social. No contexto desta pesquisa, a mudança (talvez representada pelo maquinário da casa de farinha) é acompanhada pela continuidade, pois só ocorre e faz sentido a partir de uma estrutura preexistente: o conjunto cultural. Dessa forma, pode-se afirmar que mesmo com todas as transformações pela qual tem passado o evento da Farinhada na Lagoa do Saco e sua existência trata-se de um exemplo de permanência, justificada pela solidariedade do grupo e por sua noção particular de soberania alimentar. As permanências desse evento se mostram principalmente no armazenamento (após a feitura da farinha), na raspagem e nos momentos de compartilhamento das refeições: na comensalidade. A refeição em comum, além de marcar as relações entre os indivíduos, também as produz. A comensalidade é então responsável pela familiarização, assim como é produzido por esta. É um fenômeno cultural de excelência para análises sobre sujeitos coletivos e eventos sociais. A divisão da mesma mesa proporciona fusão e coesão social. A preparação e o compartilhamento das refeições durante a Farinhada simbolizam o ápice de todo esse evento marcado pela troca e pela reciprocidade. Fausto (2002) define comensalidade como um articulador de um sistema de identificação: Ela tem o caráter de dispositivo geral que serve para pensar a passagem de uma condição de parentesco a outra e, portanto, aquilo que aqui é chamado de familiarização (p. 6).

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Elias (1994) relaciona a comensalidade a “história dos costumes”

PARTE iiI Capítulo 10

e esta a história do conceito de civilização. Entender o conceito de civilité atrelado a comensalidade é entender a noção de unificação dos costumes. O autor parte de um tratado redigido por Erasmo de Roterdã (Da Civilidade em Crianças, 1530) para analisar o comportamento de pessoas em grupos e a construção social de gestos, expressões, sentimentos. Podendo dessa forma a comida compartilhada por todos, ser entendida como eventual, ou seja, que reafirma e significa momentos de relações sociais. As refeições servidas durante a Farinhada formam um conjunto dos operadores do evento que envolve concomitantemente a intimidade e a ruptura das distâncias entre os participantes. A intimidade própria da comensalidade é um “prato cheio” de imbricados códigos sociais; a comensalidade observada durante a Farinhada da Lagoa do Saco, é aqui tomada como um evento dentro do evento. Lembrando que são nos eventos que a comunidade racionaliza as relações sociais (WEBER, 2002). Dessa forma, os banquetes, acordos solenes que reúnem indivíduos e, sobretudo, grupos, concretiza-se pela realização de uma refeição em comum. Esse acordo simboliza a partilha da bebida e da comida, que constitui a contrapartida material da redação de um contrato. A refeição une os participantes do banquete. Assim sendo o banquete deve ser considerado o que há de mais exemplar quando o assunto é comensalidade. As refeições dispostas durante as atividades da Farinhada que, tem o almoço como banquete principal, são elas: Café da Manhã: Café com leite, cuscuz, beiju. Almoço: Carne assada ou cozida de porco ou galinha, com feijão e farinha. Merenda: Arroz doce com leite de licuri18. 18 Syagruscoronata é uma palmeira nativa do bioma Caatinga que pode chegar a ter 12 metros de altura. É conhecida popularmente como ouricuri, licuri, alicuri, aricuí, aricuri, butiá, butiazeiro, coco-cabeçudo, coqueirocabeçudo, iricuri, licurizeiro, nicuri, uricuri, urucuriibaenicuri-de-caboclo. Seus frutos são comestíveis e de suas sementes pode-se extrair óleo vegetal. As fibras das folhas são matéria-prima para a confecção de chapéus e outros objetos artesanais. Os frutos são amêndoas, e são utilizados na indústria alimentícia para diversos produtos, como também consumido in natura. As amêndoas têm grande quantidade de óleo, variando em torno de 40%, e são utilizadas na fabricação de azeite, e o subproduto, originado da prensa dessas amêndoas, na torta do licuri, usada na alimentação animal. Fonte: www.comidanacabeca.com. Acesso: 20 de junho de 2014.

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Jantar ou café da noite: O mesmo prato servido no almoço ou café com leite e pão. Como a comida diz muito do comedor, no caso desses comedores, a carne é sinal de “satisfação e força19 e entra como prato principal. O sacrifício de um animal que poderia gerar renda imediata em prol do evento, diz muito do doador: Quando se mata um bicho para a Farinhada, é porque você tá convidando as pessoas pra fazer parte. Tem que ir. Antes isso era mais fácil. A pessoa que fazia a farinha matava um porco ou um bode, hoje tá mais difícil. Principalmente com essa seca. Matar um porco quer dizer muito. Todos se reúnem para comer, conversar, se encontrar. (Moradora 56 anos, transcrição de entrevista realizada pela pesquisadora, 2012).

Geralmente não há excedente para a venda. Quando isso acontece, o “intermediário”, o dono da verdureira (quitanda), realiza a venda para armazéns da cidade. Vale ressaltar que, o intermediário é um membro da comunidade e possui relações de parentesco com muitos produtores de farinha de mandioca. O escoamento da produção, continua dessa forma, sob o domínio dos produtores. Não foi notado, no discurso dos moradores nenhum ressentimento no que diz respeito à presença do intermediário. Bem na verdade esse indivíduo é quase sempre tratado como um facilitador e não como um atravessador. O preço que o quilo da farinha custará é estabelecido pelo produtor, o pagamento do intermediário geralmente é feito em farinha ou outros produtos agrícolas. Sertão, imaginário social e hábitos alimentares: a identidade produzida A diversidade de conceitos é o que caracteriza as abordagens que envolvem a palavra sertão na história da produção artística, acadêmica e

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19 A relação mencionada entre força e satisfação diz respeito à noção de fartura e o ato de comer. Sua concepção está interligada à satisfação física e à satisfação dos desejos individuais e coletivos. Assim, a noção de fartura, força e satisfação enquanto uma experiência emocional construída historicamente está intimamente ligada à feitura da farinha.

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documental em todo o país. Os relatos dos cronistas e viajantes faziam referência ao sertão como um lugar bárbaro, incivilizado e indomável. Inicialmente a palavra “sertão” era usada pelos portugueses na designação da “terra que estava adentro”, longe do mar, lugar inóspito, onde habitavam indivíduos de costumes bárbaros. Um completo contraponto ao litoral civilizado. Porém, havia neste lugar algo de promissor à expansão civilizatória. Sena (2011), no que denomina de “bipartição” do imaginário social sobre o sertão, esclarece esse jogo de contradições que envolve a criação da ideologia nacional: O sertão nunca foi um polo de uma bipartição apenas geográfica. Desde o tempo da colônia, o sertão é o outro possível, imaginado para se opor ao processo de civilização que o conquistador representa, entendendo-se em contraponto, o sertão como o mais próximo da natureza. Como outro, o sertão assombra a nação demonstrando o artifício da civilização brasileira, seu caráter postiço e inautêntico (p. 13).

Porém, a concepção de Sertão está intrínseca e relacionalmente ligada ao lócus de quem faz uso do termo. A partir da obra de Euclides da Cunha (1902), o sertão é tomado como um lugar de expansão e de devir, do projeto de identidade nacional. A miscigenação não é vista mais como um problema à construção desse projeto e o que poderá dar “um norte a nau catarineta brasileira” são as medidas governamentais. No momento que Euclides da Cunha acusa os governantes de abandono, retira a culpa do atraso da “degenerescência étnica” sertaneja. O interior do Brasil toma caráter de existência. O desafio lançado era o de englobar o sertão a nação brasileira. Porventura, as especificidades de um termo polissêmico como sertão, encontra em Guimarães Rosa do Grande Sertão: Veredas (1956), uma definição primaz no que se refere à noção de identidade sertaneja. Pode-se observar em sua obra mais que um lugar geograficamente determinado. O sertão aqui é uma noção, um sentimento de identidade

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coletiva, um fio ideológico e sentimental que condiz com a definição encontrada do que é ser sertanejo na Lagoa do Saco. Ao mesmo tempo em que trata de particularismos e especificidades a noção de uma existência sertaneja no campo desta pesquisa possui características que a identificam com outras noções de sertão. O sertão mais que um lugar para a implementação de propostas civilizatórias e uma região geográfica, é uma categoria do inconsciente coletivo do ser e estar no mundo. O “sentido de sertão” e a noção local de soberania alimentar no contexto desta pesquisa, como já é sabido, está intrinsecamente relacionado ao hábito de fazer e comer farinha de mandioca. E esse sentido é o que opera a identidade cultural do grupo em questão. A partir desta interpretação a noção de identidade possui variadas dimensões, entre elas uma dimensão estável que molda gestos, maneiras, técnicas de trabalho, sensações e sentidos, percepções e modus operandi de sujeitos e grupos sociais. Por sua vez, a identidade existe além do discurso. Em sua dimensão estável ela passa a ser experienciada, produzida. Não só os elementos discursivos criam identidades. Os modos de fazer são também elementos do que significa o conjunto identitário de um determinado grupo. No caso desta pesquisa o discurso entra como uma parte das circunstâncias do ser sertanejo. O aspecto operacional do ato de fazer e comer farinha encontra na noção de pertencimento do grupo o respaldo ideológico e simbólico para a sua existência. A maneira como a memória é operada é por si só um elemento que demarca a identidade. Por isso, pode-se definir a noção de identidade naLagoa do Saco como uma identidade produzida: sua existência coletiva é observável e relacionada a atos e operações ligados à produção de farinha de mandioca. Não se trata de uma identidade profissional e sim de um sentido de sertão. Abrange as concepções filosóficas deste determinado grupo e é forjada na memória da produção, no aparato tecnológico dessa produção e no consumo da farinha de mandioca.

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Conclusões Após algumas idas e vindas, pode-se afirmar que a identidade na comunidade de Lagoa do Saco está intrinsecamente ligada ao gosto da sua farinha e a maneira como esta é produzida. Após a mecanização da casa de farinha, muitos dizem que com o alcance de uma dimensão comercial, essa comida tem se modificado bastante. Antes, “a qualidade da farinha para fora” era muito parecida com a “qualidade da farinha para dentro”. Atualmente, esta qualidade (referente ao gosto e ao aspecto) segue alguns padrões de exigência que engessam e não protegem a feitura da farinha e seu consumo como um patrimônio. Algumas respostas encontradas não são conclusivas. Não houve como aprofundar temas referentes à ocupação do sertão na Bahia e à quantidade de farinha produzida no município (por ausência de dados). Espera-se que, outros pesquisadores se interessem em investigar este vasto campo de pesquisa em trabalhos futuros. Finalmente, existe a esperança que esta pesquisa possa dar suporte aos moradores e moradoras da Lagoa do Saco, assim como a outros farinheiros, espalhados por diversas comunidades do Brasil para pensar em estratégias de manutenção do acumulado de técnicas existentes em torno da farinha de mandioca. Espera-se ainda que este trabalho auxilie no desenvolvimento de políticas públicas que levem em conta a tecnologia milenar envolvida na feitura da farinha. Agradecimentos Agradeço a todas as moradoras e moradores da comunidade de Lagoa do Saco que possibilitaram a realização desta pesquisa. Em especial: Samuel, Maricélia e Saulinho (pelo acolhimento especial), Dona Preta, Dona Bertulina, Seu Zé de Elia, José Nilton e Dona Josefa, que são todos juntos os donos dessa história. Meus sinceros e emocionados agradecimentos!

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Referências

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PARTE IV RELAÇÕES ENTRE SOCIEDADE E NATUREZA

CAPÍTULO 11 FORNOS QUENTES, TERRA VESTIDA

Natalia Ribas Guerrero1

Introdução Entre estudos e debates que se dedicam a refletir sobre territorialidades quilombolas, a história do Quilombo Frechal, na Baixada Ocidental do Maranhão, emerge clássica, seminal. Primeiro grupo reconhecido pelo Estado como remanescente de comunidade de quilombo no Brasil2, após o contexto inaugurado pela Constituição Federal de 1988, Frechal contribuiu, por meio de sua resistência histórica, com as próprias redefinições conceituais e políticas que possibilitaram a incorporação do artigo 68 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), garantindo que “aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Não foi um título de terras definitivo, contudo, que coroou a 1 Jornalista e mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Endereço eletrônico: nat. [email protected]. 2 O parecer da Fundação Palmares que faz essa caracterização foi exarado em 1992.

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luta pelo território entre os quilombolas maranhenses de Frechal, mas uma reserva extrativista. Sim, a Reserva Extrativista (Resex) Quilombo do Frechal, criada em 19923, foi uma alternativa reivindicada diante das dificuldades em se efetivar a garantia do recém-aprovado artigo 68, e também diante de uma escalada violenta no assédio do fazendeiro que visava à expropriação das famílias do povoado. A unidade de conservação ambiental não coincide, porém, com o território de Frechal apenas, mas abrange outras ocupações tradicionais, como os povoados de Rumo e Deserto4. É situação da qual emergem conflitos, quando um território etnicamente configurado é sobrepesado por elementos da conservação ambiental, em um modelo de gestão que encontra dificuldades em levar em conta essa sobreposição – não só em Frechal, mas como política pública em estágio incipiente de implementação por diversos lugares do Brasil, destacadamente a Amazônia5. Ao longo do trabalho de campo, alguns aspectos do modo de vida dos grupos da Resex mostraram-se particularmente profícuos em revelar marcos dos processos de territorialização, tensionados entre a ênfase nas diferenças entre os povoados e ora em sua supressão, o assinalar o vocabulário partilhado pelos três (Pacheco de Oliveira, 2004). A religião foi um desses aspectos, como desenvolvido em Guerrero (2011). A produção de farinha de mandioca remete a outro, como se pretende explanar neste artigo. Para isso, retomaremos a trajetória que conduz da Fazenda Frechal ao Quilombo Frechal e, mais recentemente, à Resex Quilombo do Frechal. Na sequência, apresentaremos informações sobre as transformações envolvendo o cultivo da mandioca e a produção de farinha entre os moradores de Deserto, Rumo e Frechal ao longo dessa trajetória, até hoje.

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3 Criada, mais especificamente, pelo Decreto n° 536, de 20 de maio de 1992, com 9.542 hectares. 4 Os núcleos de Frechal, Rumo e Deserto eram os principais núcleos da Fazenda Frechal – e, hoje, da Resex Quilombo do Frechal. Mas a ocupação do território não se reduzia ou reduz a eles (Guerrero, 2012). Há um número equiparável de famílias em um processo de reconhecimento que se estende há alguns anos. Nesse sentido, ver Guerrero (2012) e Tassan (2009). 5 Para reflexões sobre a luta que surge entre os seringueiros do Acre nas décadas de 1970 e 1980 e que resultará nas linhas das reservas extrativistas como política pública, ver Pantoja (1997), Porto-Gonçalves (2003) e Barbosa de Almeida (2004).

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Por fim, sem pretensão de esgotar o tema, indicaremos pontos de contato entre esses aspectos e os principais desafios que se apresentam aos grupos em questão. Fazenda Frechal: da elite latifundiária à autonomia camponesa Para se aproximar dessa história, é preciso considerar que, antes de quilombo, Frechal nomeou por mais de um século uma fazenda situada na Baixada Ocidental Maranhense, de propriedade de tradicional família latifundiária da região. Com origem na ilha dos Açores, Manoel Coelho de Souza teria recebido sesmarias no Brasil em 1792 e nelas viria a formar, entre outras, a Fazenda Frechal. “Eficiente e conceituado lavrador.” É assim que figura o sesmeiro fundador nos principais registros historiográficos (Oliveira P., 1980: 12), com suas lavouras de algodão e cana-de-açúcar, propulsoras de crescimento econômico na freguesia de Guimarães6 – à época, um destacado polo econômico da Baixada Ocidental Maranhense. A Manoel Coelho de Souza sucederam-se gerações cercadas pelos elementos de prestígio que distinguiam as elites latifundiárias – patentes militares, casamentos intrafamiliares, inserção nas sendas das carreiras jurídicas, entre outros (Souza Netto, 1976). Evidente que os efetivos propulsores desse destaque econômico eram os trabalhadores por trás das engrenagens da fazenda, em grande parte constituídos por africanos sequestrados e escravizados, como gravado nas memórias de seus descendentes. Seu Inácio, liderança quilombola de Frechal, expõe o preço pago por seus ancestrais: “O estabelecimento era grande e o movimento dos senhores de engenho na época, a renda deles, o futuro que eles tinham era esse [negociação de escravos], como fosse hoje gado, uma fazenda de gado”. E conclui: “Então o negro era valorizado como fosse hoje um boi, um cavalo. E por que o negro? Porque o negro ajudava eles fazer a fazenda, as casas, trabalhava pra eles.” 6 A vila de Guimarães é criada em 19 de janeiro de 1758, e posteriormente feita freguesia de São José de Guimarães, no mesmo ano. É reconhecida como município em 1920 e, em 1961, dele se desmembra o distrito de Mirinzal, onde hoje se situa a Resex Quilombo do Frechal.

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Nas propriedades dos Coelho de Souza, como em outras paragens maranhenses, o eito das fazendas também absorvia homens livres – colonos, imigrantes europeus e outros camponeses constituintes de grupos historicamente invisibilizados e socialmente subordinados7. Entre trabalhadores africanos escravizados e homens livres agregados à Fazenda Frechal, encontramos as origens reivindicadas pelos atuais moradores da Resex: os pretos de Frechal e os caboclos dos povoados de Rumo e Deserto, principais expressões pelas quais se identificam, respectivamente. A pujança dos proprietários da fazenda dá mostras de seu esgotamento na segunda metade do século XIX, em um processo vivenciado por toda a província. Até então, toda força de trabalho era pouca para as fazendas maranhenses, e vigia forte controle sobre essa mão-de-obra. Com a desagregação das plantations e o endividamento dos patrões, os trabalhadores escravizados são mais e mais impelidos à produção de seus meios de vida, com roças próprias e uma apropriação menos cerceada dos recursos naturais. Seguiu-se, como indicou Berno de Almeida, “a emergência de uma certa autonomia diante da autoridade do senhor de escravos, corroendo essa mesma autoridade e enfraquecendo as formas de imobilização da força de trabalho” (2010: 24). Essa crescente autonomia estaria na origem de diversos sistemas de uso comum da terra (Berno de Almeida, 1989), em muitos casos emergindo daí certas formas de campesinato negro (CCN; SMDDH, 2002). Essa reflexão, a partir de casos do Brasil, inteiro, seria a base de um processo de ressemantização da noção de quilombo, deslocando-se o sentido restrito às ideias de fuga e isolamento para se enfatizarem os tipos de resistência que expressam essa autonomia. As famílias de exescravos de Frechal aquilombam, portanto, a casa-grande em redor da qual moravam, abrindo com isso caminho para a ampliação da noção de resistência quilombola e contribuindo com a luta das comunidades negras rurais de todo o país (CCN; SMDDH, 2002; Berno de Almeida,

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7 Para considerações adicionais a respeito da historiografia maranhense e a forma que consagra uma agricultura sem agricultores, ver Berno de Almeida (2008a).

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2010: 34; Arruti, 2006: 89-90). Na Fazenda Frechal, um tema recorrente que marca a dialética da construção dessa autonomia em meio à perda de poder dos proprietários é a história da dívida. Nas primeiras décadas já do século XX – após a Abolição, portanto – os relatos apontam que o neto de Manoel, Arthur Coelho de Souza, teria contraído uma volumosa dívida, que ameaçava ser executada à custa da Fazenda Frechal8. Em reação, o fazendeiro conclamou os ex-escravos do povoado a repassarem integralmente a produção da lavoura da cana por duas safras (em vez de praticarem a meação, sistema então vigente nas relações de produção na fazenda), de modo a reunir o suficiente para saldar a dívida. Com o sucesso da empreitada, o administrador e sua esposa prometeram legar a terra aos trabalhadores. “Pagaram a dívida dele. Aí ela [esposa do fazendeiro] disse que aqui nunca era de ser vendido, era dos pretos dela”, lembra uma senhora quilombola. Até hoje, uma parte do território da Resex é conhecida como Canavial Paga-Dívida, uma toponímia que corrobora a importância do episódio para a memória do grupo enquanto tal. Escusado dizer, porém, que a promessa dos patrões não se concretizou, como veremos. Uso da terra e relações de trabalho: transformações na Fazenda Frechal A história da dívida convida a refletir sobre os conflitos da autonomia emergente dos ex-escravos nas transformações das relações de produção entre os diversos sujeitos sociais da fazenda. Temos registros, por exemplo, de que os filhos de Manoel Coelho de Souza: [...] cultivaram, durante grande parte do século XIX, a canade-açúcar, mandioca, algodão, bem como criavam inúmeras cabeças de gado. Ambos mantinham na localidade de Gepuba uma movimentadíssima casa de negócios e uma fábrica de cal na Fazenda Frechal (Oliveira, P., 1984: 36-7).

8 Em alguns desses relatos, esse episódio é envolto em uma ambiguidade temporal, ora situado no século XX, com Arthur Coelho de Souza, ora remontando ao século XIX, com seu pai, Zezinho Coelho de Souza.

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A mão-de-obra consistia em um significativo contingente de escravos, complementado por trabalhadores livres – complementação que rendeu elogios de um jornal da época a Torquato, filho de Manoel e um dos herdeiros da Fazenda Frechal: No sul a carestia de brancos absorve insensivelmente os escravos do norte, e à falta de braços, ao trabalho servil, às terras incultas, ao processo grosseiro substituem nossos agricultores, à custa de honrosos sacrifícios, o trabalho livre, os instrumentos aperfeiçoados, a colonisação, o systema aratorio, e tornam-se credores da estima publica os nomes do Exm. Sr. José Vieira da Silva, e Torcato Coelho de Souza [...]. (São Luiz, 1856, grifo meu).

Nos relatos dos quilombolas de Frechal, quando resgatam memórias transmitidas pelos mais antigos, a violência de alguns patrões surge inexoravelmente. Castigos e punições são enumerados e sua lembrança se imbrica a espaços como a cozinha da casa-grande, onde hoje funciona um centro cultural da Resex. Conta-se que entre as volumosas pedras de seu assoalho é possível divisar os vãos onde trabalhadores eram aprisionados, por vezes até sua morte, povoando até hoje o edifício com visagens dos tempos da dor. No caso dos moradores dos povoados de Rumo e Deserto, sitos, respectivamente, a dois e seis quilômetros da casa-grande, as memórias dão conta de um povoamento que se inicia mais esparso, associado a algumas famílias mais antigas. “Quando eu me entendi, aqui era só mato. [...] Que aqui família mesmo, nascida daqui, é Ferreira e Campos. Depois dessas duas famílias, aí é o Matos. Que são as três famílias, filhos dos velhos”, relata dona Flor de Sé, com seus 80 anos vividos no povoado de Deserto. Em Rumo, foi possível ouvir testemunhos semelhantes – e outros grupos da Resex testemunham também uma ocupação longeva, para além dos três povoados já reconhecidos como beneficiários da Resex. O que emerge de forma comum é a memória de um povoamento por homens livres – caboclos, em contraste aos pretos, como assinalam – em sistema de agregação (Martins, 1990; Moura, 1986). Assim, tinham o direito de

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ter sua moradia e roças no interior da fazenda, desde que pagassem aos proprietários a renda da terra em produto, em uma porcentagem que variava de acordo com o cultivo – meia, no caso da cana-de-açúcar, e um paneiro9 de farinha por linha10 plantada, no caso da mandioca. Além disso, desses povoados se originaram muitos administradores ou encarregados, ou seja, trabalhadores designados para coletar esse pagamento entre os outros moradores da fazenda, conferindo a quantia devida de acordo com o tamanho das áreas cultivadas e atuando, assim, de forma complementar aos funcionários diretos dos fazendeiros. Nas palavras de um dos mais idosos moradores de Rumo: Era medição de terreno, era fazimento de serviço da fazenda. Tinha os empregados lá da fazenda, mas eles [meu pai e meu tio] que administravam aqui o Rumo. Quem ia tirar ordem para roçagem ia tirar direto lá, mas eles que faziam aqui a revisão.

Em Frechal, como indicado, as transformações nas relações de produção advindas da decaída nos negócios dos fazendeiros é mais acentuada na narrativa de seus moradores. De ex-escravos, convergiram para uma variação do regime de aforamento que caracterizava os povoados vizinhos, pagando aos proprietários em troca do direito de manter as lavouras familiares de mandioca e outros gêneros alimentícios, bem como cultivando a cana-de-açúcar em sistema de meação. No entanto, isso ocorria à luz de um sistema envolvendo expedientes de dominação pessoal e cultivo de lealdades (Franco, 1998), levado ao paroxismo na já mencionada “história da dívida”. O resultado é que, em contraste com a renda em produto por uma determinada área cultivada paga pelos vizinhos de Rumo e Deserto, Frechal era cobrado majoritariamente em trabalho. “O foro que nós pagava, a nossa mão de obra aqui, era a limpeza do sítio, o conserto dos caminhos, dessa estrada de chão”, relata seu Inácio, esclarecendo que essa 9 Cesto de fibra vegetal utilizado para transporte e armazenamento de produtos agrícolas, frequentemente tomado como unidade de medida na região norte, equivalendo, em média, a 15 kg. 10 Uma linha, unidade de medida agrária utilizada na região, equivale a 25 x 25 braças, ou aproximadamente 0.30 hectare.

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contrapartida valia para o cultivo da roça de mandioca. “Agora a cana era na meia”, completa. Se o cultivo da mandioca estava livre do pagamento da renda em espécie, isso não significava que a principal base alimentar dos moradores e de trocas de Frechal estivesse livre de taxação pela sede da fazenda. Ainda quem explica é seu Inácio, com destaque meu: Nós não pagava era o foro da roça, da mandioca. Só pagava na produção da farinha, o aluguel do forno. Se você mexesse um paneiro, você dava uns dois quilos, mais ou menos assim, era o aluguel do forno lá. Mas a área que você ocupava, com a roça, você não pagava. Porque já saía na questão da cana.

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Os relatos também indicam que havia uma flexibilização na cobrança envolvendo o cultivo da mandioca e a produção de farinha. Como explica dona Anailde, “nesse tempo, se a senhora roçasse uma linha, a senhora dava um paneiro de farinha. E se também não prestasse [não pagava], porque quando a terra é boa, às vezes uma linha dá 25 paneiros, quando não presta, dá 15, até dois”. A pesquisa mostrou que, de fato, a ocorrência de pragas como o chamado podrão, que deteriora a mandioca por excesso de umidade, é frequente na região. No entanto, talvez valha compreender essa flexibilização à luz da decadência relativa do poder coercitivo dos patrões, com roupagem de concessão pessoal, dentro do sistema de dominação e lealdades. A propósito desse sistema, é interessante observar que a maior parte dos relatos frequentemente se remete ao período da administração de Raymunda (Mundoca) Bogéa, na primeira metade do século XX. A imagem que circula da viúva de Arthur Coelho de Souza é a de uma administradora enérgica e controladora, que observava de perto os negócios da fazenda. “A Mundoca era boa, senhora”, declara uma senhora quilombola de Frechal que foi “pega para ser criada” no casarão pela fazendeira, que não teve filhos. “Ela era tão boa que quando ela tinha necessidade de ir pra São Luís, [como] não tinha carro, eles botavam ela aqui numa rede e levavam ela lá em Guimarães, aí ela ia de barco pra

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São Luís. [...] ‘Os pretos dela’, como ela chamava”. Sobre essa prestação de favor ou serviço, diz de Mundoca um antigo morador de Frechal, José de Silva, já falecido: “se ela queria buscar um ferro em Pinheiro, ou outra qualquer coisa, aí cada qual dava uma junta de boi e se ia buscar. Por que todo mundo usava do canavial” (Carvalho, 2001: 124-5). Era, em suma, um sistema de relações próximo ao que Martins descreveu para a moradia de favor, em que se ultrapassam as relações de trabalho: [...] a concepção de favor, como prestação pessoal, mas recíproca, envolve não apenas a produção material, mas a própria lealdade das partes: a defesa de supostos direitos de propriedade de um fazendeiro, bem como o abrigo e proteção ao camponês contra a perseguição policial por um crime cometido (Martins, 1990: 36).

Corroborando que essa correspondia à situação dos camponeses de Frechal, ainda é seu José da Silva que comenta que Mundoca tinha “muita consideração com o povo, aqui não entrava polícia, polícia se quisesse tinha que mandar uma cartinha pra ela ou pra eles, aí ela mandava levar a pessoa, fazia uma carta e mandava levar, mas eles não entravam aqui” (Carvalho, 2001: 124). Esse processo tensionado de resistência, entre autonomia crescente de produção de meios de vida e configuração do território e manutenção de lealdades com a proprietária, sofreria uma guinada após a morte de Mundoca, em 1956. A fazendeira deixa para trás significativas dívidas junto a sua irmã, Zuleide Bogéa, e não ficam quaisquer registros de suas intenções de legar a terra ao conjunto de trabalhadores que evitou a execução da hipoteca da fazenda. O resultado é que, pela primeira vez em mais de 150 anos, a Fazenda Frechal deixa as mãos da família Coelho de Souza. Tratava-se de motivo de preocupação para pretos e caboclos, especialmente os ex-escravos e descendentes do povoado de Frechal, que na transação projetavam ameaças à sua ocupação, próxima à sede da fazenda. À época, um cantor de bumba-boi registrou o temor em uma

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toada, em que se destaca o emprego do possessivo na primeira pessoa do plural para se referir à fazenda: Se vender Frechal/ nossa fazenda querida/ se vender Frechal/ nossa fazenda querida/ fumo nascido e criado/ ela nunca foi vendida/ se vender para os paulistas/ tamo de esperança perdida/ fumo nascido e criado/ ela nunca foi vendida/ se vender para os paulistas/ tamo de esperança perdida.

O último fazendeiro A venda não tardou, e à esperança restava engendrar a resistência. Das mãos de Zuleide, a fazenda passaria, em 1969, pelo empresário descendente de dinamarqueses Adam Von Bülow, até chegar, em 1974, a Thomaz Melo Cruz11, fazendeiro sergipano radicado em São Paulo. Iniciava-se ali um conflito que duraria mais de uma década e terminaria por envolver muitos mais sujeitos dos que os diretamente ligados à Fazenda Frechal. Cruz iniciou sua administração dosando continuidades e rupturas, muito a depender do grupo com quem tratava. “Ele veio dum jeito, botando muito dinheiro”, lembra uma senhora quilombola de Frechal. Cruz empregou trabalhadores de todos os povoados nas demandas da fazenda – medições, cobrança de foro, consertos e reformas. Por outro lado, cuidando para que isso não significasse qualquer tipo de reconhecimento sobre direitos territoriais daqueles grupos, o que constituía uma ameaça a seu próprio direito como proprietário, o fazendeiro fazia questão de afirmar-se como patrão, mantendo os camponeses como clientes de seus favores, e não cidadãos de direito. Escola, saúde e até energia elétrica foram providos por Cruz, afastando a prefeitura de qualquer dever na área. No caso do povoado de Frechal, Cruz desejava ter o sítio “limpo”, ou seja, eliminar a ocupação em torno de seu recém-reformado casarão colonial. Em expediente comum à expropriação de agregados (Moura, 1986), Cruz ofereceu dinheiro e outros “agrados” para que os

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11 Na década de 1970, antes de receber as terras das mãos de Adam von Bülow, os negócios de Thomaz iam muito bem. Em 1964, adquirira o controle acionário da Concreto Redimix, gigante do ramo da construção pesada. A partir de 1973, o advogado paulista iniciava sua expansão por estados do Nordeste.

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moradores deixassem a área. Evidentemente, as ofertas escondiam um subtexto de intimidação. Se um empresário que ostentava tantos recursos decidia desocupar uma área de sua fazenda, recusar a oferta poderia significar riscos maiores. Ao final, algumas famílias deixaram a área, mas significativa parte delas resistiu12. Foram muitas e intensas as interferências de Cruz na fazenda. Com efeito, além da reforma das estruturas antigas da propriedade, Cruz investiu grandes somas em projetos agropecuários, que consistiram basicamente na criação de gado e búfalo, além de cultivos variados (CCN; SMDDH, 1996). Para implantação do plantel bovino, foram empreendidos novos desmatamentos e moradores denunciaram o fechamento de áreas de roças em função da abertura de pastagens. As denúncias vão no sentido de que Cruz pôs abaixo muitos hectares de babaçuais, de cujo extrativismo da amêndoa muitas famílias complementavam sua renda. “Isso foi uma grande destruição que ele fez aqui”, lamenta um morador do Deserto. Com relação aos corpos hídricos, outros danos foram relatados. Um deles foi o desmatamento de matas ciliares do rio Uru, que corta a região, margeando inclusive a sede de Mirinzal. Esses atos comprometeram atividades de pesca, o que foi agravado pela implantação de plantel bubalino na várzea, que também impactou o tradicional plantio de arroz feito pelos moradores. Linhares (CCN; SMDDH, 1996) lembra que os búfalos colaboram com a devastação dos corpos d’água, por se alimentarem de plantas aquáticas, como mururu, orelha-de-veado, mãe-de-camarão, aningapara e junco-de-quina, além do fato de que sua presença permanente nesses corpos d’água teria causado sérios danos à fauna aquática. Sobre plantios, o fazendeiro experimentou o cultivo de pimentado-reino, capim, guaraná e café. “O plantio dessas culturas foi muito oneroso”, aponta Linhares, engenheiro agrônomo que fez o laudo que 12 Essa divisão estaria na origem do que os moradores de Frechal chamam de “indiretos” – famílias que deixaram a terra por conta do assédio de Cruz, mas que, posteriormente, retomaram suas roças nos limites da Fazenda Frechal e, após 1992, Resex Quilombo do Frechal.

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embasaria a defesa jurídica e os pleitos dos quilombolas (CCN; SMDDH, 1996: 99). Além de não lograr êxito econômico, teve como resultado transformar diversas áreas em capoeira rala, concluía o laudo (Ibid.: 99). As próprias benfeitorias que Cruz instalava acabavam se realizando numa chave de hostilidade contra os moradores de Frechal. Nada mais emblemático do que sua decisão de fazer construir uma pista de pouso para aviões exatamente por cima do pomar de uso comum dos moradores, como descreveu Linhares: Outro ambiente também usado pelo pretenso proprietário foi um grande e tradicional pomar existente em Frechal, constituído de várias espécies de fruteiras tropicais. Ali existia um imenso mangueiral onde as mulheres se reuniam para a quebra do coco babaçu durante o pique da safra (CCN; SMDDH, 1996: 109-110).

Outro marco no enfrentamento entre Cruz e os quilombolas foi sua iniciativa de isolar casas dos camponeses do acesso ao rio Uru, fundamental para diversas atividades cotidianas. “Passava por debaixo do arame pra vir buscar água aqui no quintal. Que eles vinham buscar água só aqui no quintal. Aí a turma se ajuntaram, desmancharam a cerca e tocaram fogo... Aí pronto”, conta uma senhora quilombola. Em uma ata de reunião da associação de moradores formada no contexto de resistência ao fazendeiro, assinala-se o quanto essa interferência na organização e acesso aos recursos por parte dos camponeses representou uma escalada no conflito, especialmente a partir de 1989. Diz o documento: Veio 10 (dez) pistoleiros com vários tipos de armas desconhecidas e derrubaram e queimaram uma casa da viúva Eduvirgens Silva Carneiro. Neste mesmo dia aproveitaram e cercaram um terreno onde nossos animais pastavam. Os moradores pediram demais para eles não ensolasse [isolasse] o terreno[,] mas os mesmos não concordaram. Tudo isto foi mandado por Tomaz na administração de Joaquim e José Barbosa e Fernando que era gerente da Redimik [Redimix] em São Luís. Também fizeram uma cerca no campo para os animais dos moradores não ir pastar no referido campo,

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porque só os dele podia comer. Os animais iam até na frente do sobrado, eles voltavam, para os animais ficar só andando só no sítio para não comer nada. Nesse período ele cercou todo o campo e nós ficamos sem a menor condição de manter os nossos animais que tanto nos ajuda em nossos trabalhos.

Por fim, a intervenção na dinâmica de organização das roças dos moradores, com alteração do regime de relação de trabalho descrito anteriormente, é outra marca da resistência. No mesmo documento da associação de moradores, relata-se a proibição de implantação de uma roça, por parte do administrador de Cruz, que teria sido respondida coletivamente pela comunidade. “Foi feita uma roça de um comunitário por mutirão, porque o administrador José Barbosa embargou o trabalho, então o povo achou que não podia ser embargada, e se juntaram e fizeram todo o trabalho da roça”, diz a ata. Em outras palavras, uma prática de ajuda mútua desenvolvida pelo campesinato negro de Frechal foi utilizada em um contexto de resposta política a um ataque que, embora recaísse sobre um morador específico, era compreendido como um ataque à existência do grupo como um todo. Seu Inácio também tem relatos a respeito desse período:

Algumas veze eles tentaram querer nos improibir roçar – também, né?, Roçar devidamente o solo, que eles queriam que a gente pagasse de uma forma exigida por paneiro. Mas, nesse momento, a gente lembrou, lembramos, que o nosso antepassado não tinha costume de pagar o foro dessa forma exigida por paneiro, eles pagavam o foro era trabalhando no sítio, limpando sítio, essas coisa... E aí, a gente ainda conseguiu pagar algumas vezes, né? Quando nós vimos que a gente tava priorizando o latifúndio, como o proprietário, nesse pagamento de foro, nós desistimos de pagar, e hoje não se paga mais o foro. Mas nessa época, no período de 74 a 84, eles tentaram que a gente pagasse, e alguma vez a gente conseguiu pagar, porque a gente foi esquecido da forma que os nossos antepassados faziam. Depois a gente lembrou que nós tava sendo prejudicado e fizemo de uma forma que não pagamo mais, né? (CCN, SMDDH; 1996: 143).

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Diante do fracasso em expulsar todas as famílias dos arredores da casa-grande, Cruz intensifica expedientes de intimidação e violência, aprofundando inclusive intervenções nas áreas de uso e moradia do grupo. Nos povoados vizinhos de Rumo e Deserto, também há relatos de interferência no território, mas Cruz apostou bastante em elementos de paternalismo com dominação pessoal, apoiando escola, posto de saúde etc., angariando apoio de moradores com perfil de lideranças. Com isso, além de afastar o poder público e, portanto, a legitimidade dessas ocupações e os correspondentes direitos de cidadania, o fazendeiro esperava isolar o povoado de Frechal, minando sua força política. Quando indagados sobre essa aliança com o fazendeiro, que se estenderia até o desfecho da luta pela terra, moradores de Rumo e Deserto invocam como justificativa a expressão: “ovo não bate em pedra”. Em outras palavras, em uma avaliação – não desprovida de exemplos que a fundamentassem, diga-se de passagem – as lideranças de Rumo e Deserto não vislumbravam as condições pelas quais uma luta aparentemente tão desigual desembocaria em um resultado favorável a seus vizinhos, e não ao rico fazendeiro. “Na verdade, essas três comunidades vivia dentro da terra. E sempre Frechal foi os mais maltratados. Na época, porque o doutor Thomaz queria fazer o centro dele, e queria expulsar eles de lá. Aí foi guerra”, relata um morador de Deserto. Assim, para uma parte dos moradores dos outros dois povoados, Cruz não representava uma ameaça a seus direitos de morada e roça, já que não se encontravam próximos à sede da fazenda. Ante esse tipo de opinião, elevam-se, em Frechal, algumas vozes de indignação. Uma mulher quilombola, por exemplo, não tem dúvidas de que a proteção do empresário às localidades vizinhas ocultava uma estratégia clássica de divisão para conquista: “Se ele tirasse daqui, os do Rumo era facinho dele tirar, porque eles eram puxa saco dele. Agora eles não conseguiram tirar os daqui...” Para essa liderança, portanto, estava muito claro que a contrapartida do alinhamento ao fazendeiro seria uma diminuição da articulação política dos povoados vizinhos, falta sentida caso Cruz decidisse expulsar Rumo e Deserto da terra.

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O advento da Resex Ocorre que, a partir da década de 1980, a luta de Frechal para permanecer na terra é fortalecida e amplificada por apoiadores, destacadamente por organizações que já atentavam para as ameaças às então chamadas comunidades negras rurais. Fundamental mostrouse a rede de apoio propiciada pelo Centro de Cultura Negra (CCN) do Maranhão, um dos mais reconhecidos grupos do emergente movimento negro fora do eixo Rio-São Paulo, ladeado com a Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos (SMDDH). Com a inclusão do artigo 68 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), em 1988, despontava no horizonte uma solução para Frechal, que resistia aos assédios cada vez mais violentos de Thomaz Melo Cruz. Sucedeu-se, então, um extenso leque de ações que buscava justificar o direito de Frechal de ser amparada pelo artigo 68. Objetivo, contudo, que só parcialmente seria atingido. O reconhecimento veio, mas sem o título de propriedade. Parecer técnico, exarado em 30 de março de 1992 pela então recémhabilitada Fundação Cultural Palmares (FCP), atribuía a Frechal o status de comunidade remanescente de quilombo. No entanto, apesar dessa importante e histórica atribuição – a primeira no Brasil – não foram emitidos os títulos sobre o território de Frechal, nos termos das disposições do artigo 68. O início de 1992 trouxe uma alternativa para solucionar o conflito fundiário em Frechal: a proposta de criação da Resex Quilombo do Frechal. O resultado é uma sobreposição: a identidade quilombola, que articularia o processo de territorialização, é confrontada com um campo identitário das chamadas populações tradicionais, a quem se destinam as Resex13. Alterna-se, portanto, a base fundamental do pleito de Frechal, 13 Aqui é importante dizer que nos identificamos com a crítica de autores que apontam a inadequação dos termos “populações tradicionais” para significar a realidade dos grupos em questão. Em uma análise coerente, Berno de Almeida (2008b) destaca o processo de mobilização social que emergiu na década de 1980 e que configurou a ação dos povos da floresta, bem como a atuação das entidades confessionais, que terminariam por consolidar a reivindicação do termo “comunidades”. Ambos – “povos e comunidades” – seriam revestidos de uma conotação

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relegando-se a maior ênfase na configuração étnica do território e depositando-a na perspectiva da conservação ambiental. O decreto da Resex, porém, não põe fim ao conflito fundiário. Dois anos mais tarde, ainda na lógica de resistência ao fazendeiro, e para pressionar o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)14 a “promover as desapropriações necessárias”, o grupo decidiu pela ocupação da superintendência do órgão em São Luis. Setenta pessoas se deslocaram de Frechal até a capital, entre homens, mulheres e crianças, onde permaneceram durante 20 dias, ao longo dos quais se sucederam audiências diárias, sempre com o acompanhamento próximo de representantes dos órgãos em Brasília. Embora se pleiteasse a Resex, era o quilombo que se levantava. Nos jornais, viam-se os “negros de Frechal” lutando pelo “Quilombo Frechal”. Ao final, a pressão surtiu efeito, foi depositado em juízo o valor da indenização de Cruz. O ovo batia na pedra. Iniciava-se outro capítulo, em que os povoados se defrontariam com os desafios de seus processos de territorialização, buscando termos de controle social sobre os recursos, seguindo na reelaboração de seu passado e sua cultura, compreendendo os espaços a ocupar nessa nova relação com o Estado, que por vezes os define como um campo único, por vezes os obriga a refletir sobre suas características distintivas, em disputas e diferenciações internas. A seguir, reuniremos informações sobre o cultivo e a produção da farinha de mandioca, de modo a relacionar, ao final, esse aspecto do modo de vida com esses desafios e contradições. O cultivo da mandioca Observando as lavouras e despensas dos moradores da Resex Quilombo do Frechal, entre 2009 e 2010, foi possível relacioná-las a um

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política, ligada a um princípio de autodefinição, ausente no termo “populações”, que acabou sendo abandonado em certos contextos. Ou, como descreve o autor, estaríamos diante de um deslocamento em que a noção de populações tradicionais é “afastada mais e mais do quadro natural e do domínio dos ‘sujeitos biologizados’ e acionada para designar agentes sociais, que assim se autodefinem, isto é, que manifestam consciência de sua própria condição” (ALMEIDA, 2008b, p. 38). 14 Lembre-se que, até a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, em 2007, cabia ao Ibama levar adiante o processo de criação e a gestão das unidades de conservação federais.

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conjunto de práticas e elementos, que variavam de um povoado a outro e, inclusive, no interior dos próprios povoados. De modo geral, contudo, o modo de vida das famílias na Resex se assenta em um consórcio de agricultura, pesca, extrativismo vegetal e criação de animais. As espécies mais extraídas na Resex são o babaçu e a juçara, e as criações mais frequentes são de gado, aves e, mais raramente, porcos. A pesca se dá majoritariamente no rio Uru, que atravessa os três principais povoados da Resex. A mandioca é um dos principais produtos das lavouras da Resex, o que justifica um destaque para seus múltiplos usos. De sua massa, derivam-se a farinha d’água, a farinha seca, e a tapioca, elementos fundamentais à dieta das famílias. Além disso, o excedente da farinha seca destina-se ao comércio e compra de outros produtos necessitados pelos camponeses. As sobras do processo de fabrico das farinhas, como cascas e partes das raízes, por exemplo, ainda também empregadas na alimentação dos animais de criação – bois, porcos, galinhas etc. As áreas cultivadas se apresentam em mono ou policultivos, cada qual associado a uma diferente denominação e a uma distinta porção do território, envolvendo áreas de apropriação familiar e também em terras de uso comum. A área em que se implementa um monocultivo de mandioca – ou mandioca solteira – é conhecida como ligeiro, roçado ou São João15, e ocorre em lugares afastados dos campos alagáveis do rio Uru, ou seja, no alto. De outra parte, roça é o nome que leva a área destinada a cultivos consorciados, em que a mandioca divide espaço com o arroz, o milho e, com menos volume, as culturas do feijão, maxixe, macaxeira, quiabo, vinagreira, melancia e abóbora. Tanto o ligeiro quanto a roça se baseiam quase sempre na coivara como técnica de cultivo. No caso do primeiro, o corte da capoeira é feito por volta do mês de agosto, com o plantio em setembro ou outubro. A partir de seis ou sete meses, já é possível colher a mandioca. Registrou-se 15 Em algumas falas, utiliza-se a denominação “São João” para aludir ao “ligeiro”. Contudo, relatos dão conta de que esse nome diria respeito a uma prática não mais realizada de efetivar o plantio da mandioca solteira no mês de junho, daí o nome emprestado às festas de santo tradicionalmente realizadas nesse mês.

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a observação de um tempo de pousio mínimo de cerca de quatro anos para esses monocultivos de mandioca. A roça, por sua vez, demanda outros preparativos. Recomenda-se que a vegetação esteja em pousio há pelo menos oito anos – quanto maior a capoeira, mais substrato para os cultivos. A derrubada, nesse caso, costuma ocorrer no mês de outubro, com o plantio nos meses de dezembro e janeiro, após a primeira chuva da estação, e a colheita, no mínimo, um ano mais tarde. De modo geral, o consórcio de atividades produtivas das famílias da Resex se assenta majoritariamente no trabalho de seus próprios membros, complementado por práticas de ajuda mútua, como o mutirão16 e a troca de dias, bem como a remuneração por dia de trabalho, a chamada diária. Há que se considerar, porém, que cada atividade tem peculiaridades que atraem determinadas formas de organizar o trabalho. No caso do cultivo da mandioca, as etapas que demandam maior quantidade de trabalho, como a derrubada e queima, bem como a própria etapa do plantio, geralmente são desempenhadas em grupos de homens adultos. Durante a pesquisa, foram registradas trocas de dia, bem como mutirões, para essas etapas. Quando o trabalho, apesar de coletivamente despendido, ocorre em terras de uso comum do território, ele ainda é associado a determinada unidade familiar, na figura de um de seus membros. Dizse que determinada roça se trata do “trabalho de fulano”, e não “terra de fulano”. Uma das expressões desse sistema de regras que organizam o uso da terra e a apropriação dos recursos naturais para práticas agrícolas é o sistema de balizas. Trata-se de sinalizações, geralmente na forma de uma cruz, feitas com estacas de madeira para indicar que determinada capoeira será roçada por um trabalhador no subsequente período propício. Segundo os moradores da Resex, o sistema é respeitado e não traz conflitos. Em muitos casos, por se tratar a Resex de uma área

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16 Na Resex, mutirão designa a reunião de trabalhadores unidos por laço de vizinhança e compadrio para desempenho de determinada tarefa, que pode ser de utilidade marcadamente pública (limpeza de um caminho, edificação de uma ponte) ou relativa a determinadas unidades familiares. Essa reunião pode configurar uma prática de ajuda mútua com ou sem intermediação financeira, ou seja, a convocação de trabalhadores pagos pelo seu dia de trabalho – na diária – também é chamada de mutirão.

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relativamente pequena e pelos arranjos associativos já mencionados, os locais das roças dos moradores das Resex são de conhecimento de seus vizinhos. Assim, se determinada área foi roçada por um morador, e este não refizer a roça no mesmo local nos anos seguintes, ela pode “voltar ao comum”, sendo integrada às áreas potencialmente disponíveis aos outros moradores. A produção de farinha A obtenção da farinha de mandioca entre os grupos que a têm com centralidade em sua dieta e trocas econômicas está associada a tecnologias aprimoradas ao longo de gerações, envolvendo critérios econômicos, estéticos, morais. Entre os três povoados da Resex Quilombo do Frechal, foram registradas algumas variações na forma com que a farinha d’água é fabricada. Após a retirada dos tubérculos das roças ou roçados, duas técnicas são possíveis. A mandioca pode ser colocada diretamente em um tanque (de alvenaria ou construído com barragens naturais em algum corpo d’água) para pubar, ou seja, fermentar, ou ela pode ser descascada antes disso. O descascamento prévio é efetivamente mais comum no povoado de Rumo. Segundo seus moradores, isso propicia que a mandioca fique de molho menos dias, além de render mais e apresentar mais qualidade quando pronta. A desvantagem ficaria realmente por conta da mão-de-obra necessária, já que o descascamento antes da puba é mais lento e difícil. É nesse ponto que a troca de dias torna a empreitada viável. “Estou tirando três alqueires de farinha aqui. Se fosse para pagar esse pessoal todo, 2,5 alqueires iam ficar só para isso. A gente troca dia para aumentar o rendimento”, contou um morador de Rumo. “Uma mão lava a outra”, resume. Nenhuma das atividades ligadas ao fabrico da farinha na Resex foi associada exclusivamente às mulheres, mas algumas foram ditas como de exclusividade masculina – mexer a farinha no forno seria uma delas. A própria colheita é caracterizada como um trabalho mais comumente desempenhado por homens. Em compensação, o descascamento coletivo envolve pessoas das mais diversas idades, inclusive crianças, quando não

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estão em horário escolar. Com a mandioca descascada e fermentada, a polpa é transportada para as casas de farinha, para prosseguir em seu beneficiamento, que inclui moagem, prensa, peneira e torrefação. A primeira das etapas é feita por meio do caititu, espécie de ralador movido a motor, que homogeneíza a massa. Na sequência, a mandioca que sai do caititu é prensada para extração do ácido cianídrico. Finalmente, a polpa que sai da prensa é peneirada e submetida à torra em fornos a lenha de alta temperatura, processo que demora horas e demanda um trabalhador especificamente designado para mexer constantemente a farinha, evitando que queime. Todos os povoados da Resex contam com casas de farinha, que podem ser privadas ou comunitárias. O segundo tipo é mais frequente – nesse caso, qualquer morador tem o direito de utilizar o equipamento, mediante o pagamento de uma porcentagem da produção, geralmente baixa e definida no âmbito da associação de moradores. Com as casas de farinha pertencentes a alguma família, o acesso também costuma ser franqueado a outros moradores do povoado mediante a cessão de parte da farinha obtida – apenas, nesse caso, a porcentagem fica ao critério da família proprietária. O povoado com maior número de casas de farinha é Rumo – são quatro privadas e uma comunitária, mais recente. Deserto conta com quatro casas de farinha, uma comunitária e três particulares, ao passo que Frechal dispõe de apenas uma casa de farinha, comunitária. Há algumas diferenças, para além dos números, entre as casas de farinha da Resex. Em Frechal, a antiguidade do estabelecimento se deixa entrever, por exemplo, na amplitude da edificação e na espessura de seu forno de ferro fundido. Já a casa comunitária de Rumo, por sua vez, é a única que conta com tanques de alvenaria para a fase de puba da mandioca, já que é costumeira a prática do descascamento antes de colocá-la de molho. Ainda em Rumo, também podemos encontrar uma prensa centenária, situada na casa de farinha de dona Roxa. As distinções nos equipamentos, bem como algumas variações técnicas ao longo dos processos, têm influência nas características da farinha d’água resultante. Nesse sentido,

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há variações no que se refere a critérios de apreciação para consumo ou venda. Pra vender tem que ser amarelinha, é a fala de muitos. Em uma casa de farinha, um morador analisava os grãos que saltavam no forno e dizia, com satisfação: “Essa nem saiu muito branquinha, né? Saiu moreninha, até, moreninha”. Nesse ponto, é preciso chamar a atenção para um aspecto da maior importância a respeito da cultura de mandioca na Resex: as variedades cultivadas. Sem um estudo sistemático, apenas com relatos de moradores, foi possível identificar mais de dez variedades manejadas nas lavouras (milagrosa; três ganchos; baixinha; branquinha; pericumã; curiçaua; maria-viúva; puê; pixico, ou tixico; paracaná; amarelinha; joelheira; vinagreira; antonia-roxa). O caso é que o processo de reprodução da mandioca se dá de forma vegetativa, mas também de forma sexuada, podendo as sementes permanecer no solo e dar origem a uma nova variedade – esta, por sua vez, é avaliada pelos camponeses e, caso apresente atributos positivamente valorizados, pode fornecer manivas para o próximo plantio. Esses atributos podem ser de ordem adaptativa ao solo ou a pragas, com incremento na produtividade média, ou de outra ordem – dar mais farinha, mais amarela, ou mais saborosa, ou ainda mais propícia para pessoas com saúde vulnerável, como mulheres paridas, crianças etc. Há quem utilize exclusivamente uma variedade nos roçados, mas o consórcio é mais comum. Maurício Torres, a partir da análise de uma localidade ribeirinha do alto Tapajós, chama atenção para os significados imbricados nas variedades de mandioca em grupos camponeses. Esse quadro denotaria uma construção intelectual de agricultores interagindo com o banco genético do ambiente: “São sistemas tradicionais de cultivo e seleção germinados da observação e do manejo cuidadoso da diversidade genética” (Torres, 2011). Um funcionamento, diga-se de passagem, passível de observação apenas na agricultura camponesa, uma vez que a agricultura capitalista se inclina à uniformidade dos cultivos, tomando para isso a espécie de maior produtividade. Sua conclusão é a de que essa

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dinâmica de plantio faz dos grupos que a praticam não apenas agentes para estoque e preservação da diversidade de cultivos, mas também indutores de variabilidade genética. Aponta Torres: Ainda que todas as variedades de mandioca da Amazônia fossem depositadas em coleções de germoplasma, o processo evolutivo que acontece silenciosamente nos roçados como os de Mangabal, causador do surgimento de novas formas e novos genes, é insubstituível (2011: 124).

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Em outras palavras, isso não só reveste esses processos de uma riqueza geralmente subestimada, como chama a atenção para elementos indissociáveis – o grupo, o modo de vida, o território. Fala-se aqui de um manejo associado a conhecimentos também aprimorados ao longo de gerações e construídos de forma coletiva. Caminhando por áreas de roças dos povoados, um morador que nos acompanhava não necessitou mais que um relance para sentenciar a variedade de mandioca cultivada por outro morador: “É baixinha”. O manejo coletivo se processa também por uma forma de cooperação relatada pelos moradores da Resex, que reside na troca de manivas entre grupos de vizinhos e parentes. Outro ponto importante é a forma com que o manejo das variedades também compreende preocupações ligadas à saúde dos membros da família. Se as boas farinhas para venda são unanimemente as amarelas, dona Anailde, por outro lado, lembra que as variedades que originam polpas de mandioca mais claras são as melhores para o fabrico da farinha seca, destinada à preparação de angu a crianças muito novas ou convalescentes. “Não desmancha a barriga [causa diarreia] de criança nenhuma”, garante. A farinha também aparece em circuitos simbólicos, na narrativa sobre memórias, trajetórias e perspectivas para as famílias. Em um testemunho de infância, dona Anailde sorria enquanto relembra os ralhos do pai no processo de fabricação de farinha: “A farinha de verão, que se fazia em setembro, meu pai botava era mais pra porco. Aí ia fazer farinha de roça, no mês de maio, farinha nova, pra nós comer. E mesmo nós tinha

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preguiça – diz que [preguiça] é pecado, mas criança, né?”, ri. E prossegue: Se eu tirasse a farinha de manhã no jirau pra almoçar, de tarde eu não queria subir mais lá. Quem tinha [que subir] era minha irmã, e ela também era preguiçosa, deixava aberto e vinha aquelas baratas, assim. Papai ficava bravo. Pegava os paneiro de farinha e despejava, os porcos comiam.

Outro circuito simbólico em que a produção de farinha aparece é nos preparativos das principais festas e feriados – carnaval, festas de fim de ano e as festas de padroeira, que cada povoado celebra em um período. Nesses momentos, fica evidente a rede de membros da família que vão trabalhar na cidade e a interdependência mantida em relação aos que ficam. Como lembra Moura, “não é possível confundir distância com rompimento. À separação física da família não corresponde a separação social: quem é parente, ativa, à distância, essa condição” (1988: 28). Assim, receber ajuda – em dinheiro, em bens de consumo, em trabalho – desses membros é comum, como ouvimos de muitos. Mas o sentido contrário também ocorre. E uma de suas expressões são suprimentos de farinha, seja para uma contribuição econômica mais essencial para o parente que foi para a cidade, seja para que se mantenham vivos os laços com a terra, unindo os que ficam e os que se apartam. A vida na cidade, a esse propósito, é frequentemente caracterizada como desprovimento, espaço de conhecimentos inutilizados, laços ausentes, dependência (Torres, 2014). Nas palavras de uma senhora quilombola: “Na cidade, a gente tem que amanhecer com a mão no bolso todo dia. Aqui não, se a gente não tem uma farinha, o colega tá mexendo, a gente vai, pede, ele empresta”. Saber as propriedades de variedades de farinha, estar inserido em um sistema de relações influenciadas por parentesco e vizinhança, conhecer a alquimia dos tipos de solo e seu reflexo na farinha – nada disso acorre ao camponês desterritorializado. Farinha: expressão da terra vestida Retomando a trajetória de luta pela terra e os desafios que se

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impõem, é preciso registrar que a Resex representou uma conquista na luta pelo reconhecimento de direitos territoriais. Foi também uma solução cuja natureza coadunou com o modo de apropriação do território, respeitando os paradigmas das terras de uso comum. Nos anos seguintes, porém, a partir da segunda metade da década de 1990, a etnicidade quilombola de Frechal e mais recentemente, de Rumo e Deserto, vai sendo escanteada durante a construção dos instrumentos de gestão da modalidade, nos marcos da conservação ambiental17. Quando pensamos em um processo de territorialização resultando em uma consequente reelaboração da cultura e do passado (Pacheco de Oliveira, 2004: 20), e nos desafios que a Resex traz, vemos que os povoados empreendem movimentos distintos, mas articulados em suas experiências do processo de territorialização. Ilustro essa conclusão com um exemplo, derivado de uma discussão ocorrida durante a elaboração do plano de manejo, em setembro de 2009. Os moradores discutiam, em grupos pequenos, temas que poderiam ser objeto de algum tipo de intervenção, fosse por meio da organização dos povoados ou de políticas públicas. Em um dos grupos, o mote da discussão era o tema “cultura”. Sucedeu-se uma reflexão marcada pela enumeração de elementos partilhados e por uma valorização das expressões desses elementos em cada um dos povoados. Moradores de Deserto e Frechal disputaram por algum tempo o prestígio de ter manifestações culturais em festas afamadas pela região. Quando viram que os moradores de Rumo estavam mais silenciosos, alguém perguntou, um tanto jocosamente: “mas Rumo não tem cultura?”. Ao que foi contestado com veemência pela presidente da associação de moradores: “Você não diga uma coisa dessas”. E prosseguiu: “Por acaso a gente fala igual ao pessoal de Deserto, hein?” Um murmurinho não

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17 As discussões de gestão da Resex em torno do uso dos recursos, provocadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), não partiam, segundo visto no período da pesquisa, de um esforço para reconhecimento da apropriação do território pelos povoados, para identificação do manejo e do uso que já eram tradicionalmente feitos. Não há um esforço consistente, calcado em discussões e produção de conhecimento, no sentido de incorporar as distintas dinâmicas identitárias dos grupos, seus espaços de tomada de decisão, os circuitos de poder à gestão do território (Guerrero et. al., 2011).

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muito convencido ainda se fazia ouvir. Mas dali sai o trunfo: “Nunca mais que eu vi ninguém pôr mandioca na água sem o couro!” Eis que uma etapa do processo de fabricação da farinha de mandioca é invocada como diacrítico cultural, em um contexto que tinha, afinal de contas, um pano de fundo político e remetia às relações de poder assimétricas entre os grupos a cargo da gestão territorial da Resex. Por outro lado, a ênfase na união dos três remete à ideia, que surgiu mais cedo para uns grupos que outros, que a ocupação do fazendeiro negava a ocupação que ali tinha se desenvolvido ao longo de quase um século após a derrocada dos patrões. Esse confronto é bem representado na fala de dona Flor de Sé, de Deserto, quando fala da chegada de Thomaz Melo Cruz e do que encontrou, de modo geral, na fazenda inteira: “Quando ele fez esse negócio, ele não achou a terra nua, ele achou a terra vestida”. A escolha de palavras é muito evocativa. Existe uma diferenciação clara entre dois campos, entre quem veste a terra e quem faz dela um negócio18. No entanto, terra vestida não é uma terra na qual encontramos um aglomerado de pessoas homogêneas. Vestir é um ato de cultura por excelência, e são várias as formas de vestir a terra – como o são os moldes e fazendas de tecido. Nesse sentido, a produção de farinha surge como expressão desse vocabulário partilhado, de pertencimento ao campo dos que vestem a terra, e, por outro, como palco para se assinalarem as diferenças entre os povoados, como parte de sua estratégia de resistência e disputa de perspectivas políticas, seja com o fazendeiro, seja com o Estado, na forma da Reserva Extrativista. Agradecimentos Agradeço às famílias de Deserto, Rumo e Frechal, pela acolhida e paciência durante os contatos em campo. Gostaria de sublinhar também, e com muita gratidão, a importância das observações de Mauricio Torres e Maria Luiza Camargo ao longo dos trabalhos que embasaram este artigo. 18 Oposição que remete ao contraste entre terra de trabalho e terra de negócio, tal qual desenvolvido em Martins (2004).

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CAPÍTULO 12 A PRODUÇÃO DE FARINHA DE MANDIOCA EM GUARAQUEÇABA- PR: ENTRE SUSTENTABILIDADE, INTERAÇÕES E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS

Rosilene Komarcheski1 e Valdir Frigo Denardin2

Introdução As discussões sobre sustentabilidade emergem com força em meados da década de 1960, quando a atenção de cientistas, do poder público e da sociedade civil é convocada para a denúncia da eminência de uma crise ambiental que despertava em âmbito global. Esta chamada de atenção teve o reforço de uma série de informes publicados com vistas à denúncia da crise e da realização de eventos que propiciassem o debate sobre a questão, promovessem a visibilidade da crise e possibilitassem a tomada de decisões sobre o futuro das relações entre sociedade e natureza no planeta – com ênfase especial sobre o que diz respeito aos graves danos ambientais promovidos pelo modelo de industrialização que vinha sendo 1 Doutoranda em Sociologia (UFPR), Bolsista CAPES. 2 Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (UFRRJ), Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial Sustentável (PPGDTS/UFPR).

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adotado pelos países. A partir da realização do primeiro grande evento global sobre a questão ambiental, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Humano, em 1972, em Estocolmo – Suécia, é proposto, por Maurice Strong – Secretário Geral da Conferência, o termo “ecodesenvolvimento”, que foi então devidamente conceituado por Ignacy Sachs, em 1973, como: (...) um estilo de desenvolvimento que, em cada ecorregião, insiste na busca de soluções específicas para seus problemas particulares, levando em conta não só dados ecológicos, mas também os culturais, bem como as necessidades imediatas como as de longo prazo (2007, p. 64).

Nesse contexto, a partir da luz lançada sobre a questão ambiental, iniciam-se mudanças estruturais em diversos espaços da vida social, quando a natureza passa a ser observada por novos e renovados olhares e a questão ambiental começa a atravessar novos campos. Assim ocorre, por exemplo: a intensificação da organização e das ações do movimento ambientalista; a firmação de acordos e protocolos ambientais em nível internacional; a criação e o avanço da legislação ambiental nos países; a criação de ministérios de meio ambiente e outros órgãos ambientais, etc. Do mesmo modo, transformações profundas ocorreram no campo científico, de onde passam a emergir novas áreas voltadas à compreensão dos fenômenos sociais e naturais que envolvem a complexidade apresentada pela questão ambiental. O ponto culminante da visibilidade que alcançou a questão ambiental em âmbito global se deu com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de Janeiro – Brasil. Nesse momento se consagra a proposição do “desenvolvimento sustentável”3 como caminho para o futuro do planeta de maneira ambientalmente equilibrada, socialmente justa e

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3 O “desenvolvimento sustentável” resultou de estudos e discussões promovidos pela Comissão das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), criada para este fim, sendo divulgado/publicado em 1987 pelo Relatório Nosso Futuro Comum e institucionalizado na Conferência de 1992.

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economicamente viável, definida pelo Relatório Nosso Futuro Comum como processo que permite satisfazer as necessidades da população atual sem comprometer a capacidade de atender às gerações futuras (CNUMAD, 1991). Assim se consagra também a visibilidade de que se faz necessário e urgente (re)estabelecer relações entre a sociedade e a natureza de maneira ambientalmente saudável, desde a teoria até a prática. Contudo, a operacionalização da sustentabilidade socioambiental tem se dado entre uma diversidade de situações que envolvem interações e conflitos entre sociedade e natureza, onde parcelas da população acabam sendo privilegiadas em função do uso dos recursos naturais em detrimento de outras. A proposta do ecodesenvolvimento dos anos 1970, como definida por Sachs, trazia em seu bojo uma preocupação com as particularidades das distintas regiões do Planeta [ou “ecorregiões”], especialmente com as realidades vividas pelos países então chamados “não desenvolvidos”. Nela, o autor propõe que se considerem as particularidades destes países em todas as suas dimensões (cultural, social, econômica, ambiental, territorial e política), de modo que os “projetos de desenvolvimento” pudessem ser pensados também de forma particular a cada realidade (2007). Contudo, o desenvolvimento sustentável, como firmado em 1992, acabou por promover uma generalização da proposta que não prevê as peculiaridades regionais, o que tem implicado, na prática, na homogeneização de políticas ambientais, que, por sua vez, têm promovido disparidades socioeconômicas e ambientais entre os povos. Para Enrique Leff (2009), a noção de desenvolvimento sustentável foi sendo difundida e vulgarizada até se tornar parte do discurso oficial e da linguagem comum. Assim, as discussões que giravam em torno da crise ambiental na década de 1970, as quais indicavam a necessidade de limitar o crescimento em prol da proteção da natureza, foram se deslocando até o ponto em que, a partir da década de 80, a contradição entre crescimento e meio ambiente fosse diluída pelo discurso neoliberal (ibidem). Sachs (2007) aponta também que o economicismo ainda constitui a corrente dominante de pensamento, no

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qual a economia comanda as ações e aparece como meio para dirimir os problemas socioambientais existentes. Desse modo, as mudanças promovidas pela emergência da questão ambiental têm sido refletidas nos mais variados espaços da vida social, porém, de forma distinta para cada grupo. Tais mudanças implicam num custo muito elevado para uma parcela específica da sociedade, se tornando bastante oneroso, por exemplo, para populações de agricultores familiares. É nesse sentido que se propõe o presente trabalho, através do qual busca-se problematizar a sustentabilidade socioambiental em duas comunidades rurais do município de Guaraqueçaba, região norte do litoral do Estado do Paraná. Açungui e Potinga são duas comunidades guaraqueçabanas que têm a produção de farinha de mandioca na base de sua reprodução socioeconômica e cultural, contando com cerca de 180 habitantes cada uma. Situadas em meio à maior extensão contínua de Mata Atlântica ainda preservada do país (IPARDES, 2001), estas comunidades abrigam uma rica biodiversidade presente nas florestas da região. Em conjunto, abrigam ainda a riqueza ancestral da tradição que envolve a produção de farinha de mandioca. As famílias que vivem em Açungui e Potinga são vítimas de um processo de precariedade socioeconômica – uma vez que acabaram à margem do desenvolvimento capitalista – e os impactos das limitações sobre o uso da terra gerados através da implantação de políticas de proteção ambiental na região. Assim, o presente trabalho traz como objetivo central apresentar um panorama geral sobre o contexto socioambiental que envolve a produção de farinha nas comunidades e, a partir daí, identificar os principais pontos de interação e de conflitos presentes nas relações socioambientais locais para, então, promover uma discussão sobre implicações, limites e possibilidades de um “desenvolvimento sustentável” na região. A realização da pesquisa se deu através de um trabalho de observação participante desenvolvido em parceria com a equipe de um projeto de extensão universitária que atua junto às comunidades,

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durante o período de 2011 a 2012. Nesse processo de pesquisa foram também entrevistados representantes de 19 famílias – somadas as duas comunidades – com quem aplicaram-se questionários semiestruturados que versavam sobre o tema em questão. Na sequência, o texto resultante do estudo se apresenta basicamente em três fragmentos interconexos, de modo que cada um representa uma dimensão da sustentabilidade, assim desenhadas: a dimensão sociocultural; a dimensão socioeconômica; e a dimensão socioambiental. Desse modo, conferiu-se à dimensão social um caráter transversal, entendendo que esta perpassa todas as demais dimensões e é delas parte constitutiva, ao mesmo tempo em que atua como eixo dialógico e integrador entre todas as dimensões. Para Ignacy Sachs, a dimensão social merece especial destaque frente às demais dimensões da sustentabilidade – a econômica e a ecológica – por ela compor a própria finalidade do processo (2009). A dimensão sociocultural da sustentabilidade: a cultura como lócus de compreensão das relações socioambientais Guaraqueçaba abriga muitas famílias de pequenos produtores rurais e pescadores artesanais, dentre as quais um contingente considerável tem suas bases social, cultural e econômica fundadas em atividades que envolvem a produção de farinha de mandioca, que se realizam com formas de organização e produção assentadas de modo particular sobre o seu território. Características como estas levam o município a ser considerado um patrimônio cultural importante, abrigando ainda remanescentes da “cultura tradicional caiçara”4 (IPARDES, 1989). Com 7.871 habitantes, o município tem a maior parcela destes (5.188) vivendo no meio rural e dos seus 2.315 Km² de extensão 66% é considerada área rural (IBGE, 2007). Tendo como limites territoriais Campina Grande do Sul e Antonina, a Oeste, e Paranaguá, ao Sul, Guaraqueçaba abriga diversas comunidades rurais, que se distribuem por 4 Termo de origem tupi-guarani, população caiçara deriva da miscigenação de povos e culturas entre indígenas, portugueses e antigos escravizados negros que habitaram a região litorânea do Paraná, São Paulo e sul do Rio de Janeiro (ADAMS, 2000).

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todo o seu território, dentre as quais se encontram Açungui e Potinga. Estas localizam-se às margens da PR 405, estrada de principal acesso das comunidades à sede de Guaraqueçaba e ao município de Antonina (FIGURA 1). FIGURA 1 – LOCALIZAÇÃO DE AÇUNGUI E POTINGA, GUARAQUEÇABA – PR

Fonte: Adaptado de Kassebohemer (2007, adaptado de IPARDES,1989).

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A faixa etária média dos 19 entrevistados (responsáveis pelas farinheiras) é de 59 anos de idade, sendo que 12 deles possuem mais de 60 anos. Todos os produtores e seus cônjuges nasceram em Guaraqueçaba, sendo a maioria na mesma comunidade em que vive até hoje. O tempo de permanência das famílias na região diz muito sobre o seu sentido de pertencimento ao local, o que desencadeou nos grupos que formam as comunidades o estreitamento de laços que envolvem as relações de parentesco e vizinhança entre os indivíduos, além de contribuir para o fortalecimento da própria identidade dos grupos em questão. A tradição que envolve o cultivo da raiz e o fabrico da farinha de mandioca teve início com os povos indígenas, que já desenvolviam a atividade antes da chegada dos colonizadores portugueses no Brasil. Relatos de Staden (1999) retratam o processo de produção de farinha realizado por tupiniquins na região ainda no período de 1548-1555, enquanto que e Saint-Hilaire (1978) indica a existência da exportação do produto pelo Porto de Paranaguá já no início do século XIX. Remanescente desta tradição, a produção de farinha de mandioca é realizada historicamente por muitas famílias em Guaraqueçaba, onde foram identificadas mais de 30 farinheiras (DENARDIN et al. 2011). A organização dos agricultores em torno da produção de farinha reflete uma série de elementos particularmente representantes da identidade cultural local. O plantio e a colheita da raiz foram historicamente envoltos em mutirões e festividades entre as famílias, com a realização do tradicional fandango caiçara – e todo o seu ritual composto por músicas, danças, instrumentos musicais e as relações sociais que se davam no festejar da finalização dos mutirões. Parte desta tradição, no caso da produção de farinha em Açungui e Potinga, parece ter desaparecido recentemente, especialmente por conta de novas práticas e crenças religiosas adotadas por uma parcela significativa da população local, que acabam inibindo a realização da festividade que envolvia o mutirão5. 5 Relatos dos entrevistados indicam que a realização de mutirões e, conjuntamente, do tradicional fandango caiçara, se dava com intensidade até a década de 1970, momento que coincide com a chegada de igrejas protestantes

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Em ambas as comunidades se verifica que praticamente em todos os quintais existe uma farinheira de propriedade e uso familiar. Estas farinheiras possuem elementos em comum que lhes conferem caráter peculiar, como, por exemplo, a rusticidade com que se apresentam a arquitetura das unidades produtivas (FIGURA 2) e os artefatos (FIGURA 3) utilizados na produção de farinha. Os artefatos utilizados no processamento da farinha guardam em si a memória material da tradição de fazer farinha na região, sendo confeccionados pelas mãos de poucos membros das comunidades, os quais são guardiões do saber tradicional do ofício. A memória material desta tradição encontra-se viva nos artefatos utilizados nas etapas de elaboração do produto, que, ao longo do tempo, se transformou em ícone da identidade cultural local do litoral do Paraná. Segundo Denardin et al. (2011), cada etapa do processamento de farinha inclui manejo e artefatos que são herdados de geração em geração, mantendo assim viva a tradição envolta na produção de farinha da população local. FIGURA 2 – VISTA EXTERNA DE FARINHEIRA FAMILIAR EM AÇUNGUI

Fonte: acervo dos autores, 2012. Legenda: a farinheira, destacada com o círculo na figura, encontra-se anexada à residência da família.

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na região. Os entrevistados também informaram que a religião seguida por muitas famílias locais na atualidade inibe a prática de danças e festejos tradicionalmente realizados nas comunidades.

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FIGURA 3 – BOLANDEIRA (EQUIPAMENTO UTILIZADO PARA RALAR MANDIOCA)

Fonte: acervo dos autores, 2012.

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Contudo, nem todas as farinheiras familiares encontramse atualmente em uso nas comunidades, sendo que, por motivos diversos, alguns produtores deixaram de utilizá-las, o que coloca em risco a continuidade desta tradição bem como a memória material nela envolta. Um destes motivos é o não enquadramento das unidades produtivas familiares locais nas normas de padronização sanitária dos estabelecimentos, as quais são previstas em âmbito nacional pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Assim, foram instaladas uma farinheira comunitária em Açungui e outra em Potinga, as quais são destinadas ao uso público e coletivo das famílias ali residentes, tendo sido implantadas por uma política pública estadual e que têm sido restauradas com o apoio de um Projeto de extensão universitária6 de modo a obedecerem a padronização estabelecida pela ANVISA. Nesse sentido, impõem-se, no mínimo, duas situações diante das comunidades e que as inserem necessariamente num [novo] processo acentuado de transformação sociocultural: de um lado, com o acesso a farinheiras adequadas à padronização sanitária, as famílias 6 As farinheiras comunitárias foram instaladas nas comunidades através de um Programa do governo do Estado do Paraná, em 2000, intitulado “Paraná 12 meses”. A restauração e adaptação destas unidades produtivas está sendo realizada com o apoio do Programa de Extensão Universitária da UFPR “Farinheiras no Litoral”.

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passam a ter a possibilidade de dar continuidade à produção de farinha e, consequentemente, à sua reprodução socioeconômica através desta atividade, uma vez que a comercialização do produto é favorecida por um processo de produção que possibilita a certificação de qualidade exigida pelo mercado convencional. Porém, por outro lado, o uso das farinheiras comunitárias se apresenta então como alternativa praticamente exclusiva para a produção de farinha de mandioca às comunidades, colocando em risco a continuidade de práticas tradicionais utilizadas pelas famílias, ou seja, o risco do fim de um saber tradicional, o “saber fazer” da farinha local. Assim, independentemente da adoção ou não do uso de uma farinheira comunitária pelas famílias, a tradição da produção de farinha encontrase gravemente ameaçada, onde o modo de produção tradicional passa a ser solapado pela produção convencional impulsionada pelas demandas homogeneizantes do mercado capitalista7. De todo modo, a instalação e o uso das farinheiras comunitárias têm promovido novas e renovadas formas de relações sociais entre os indivíduos dos grupos em questão. A farinheira de Açungui, após a restauração, tem sido utilizada com sucesso pelas famílias, tendo despertado inclusive uma movimentação de ações inédita na comunidade. Em primeiro lugar, ao serem consultados sobre a possibilidade da reforma da farinheira (em 2009), todos os membros da comunidade se mobilizaram em prol da reforma, sendo que as famílias participaram ativamente de todo o processo, desde a realização de reuniões para deliberar sobre o que haveria de ser feito até a realização de mutirões para o trabalho manual que a reforma exigia. A partir da melhoria nas condições da instalação da farinheira os produtores têm demonstrado maior entusiasmo com a atividade e, ainda, alguns deles que haviam cessado a atividade sentiram-se estimulados a retomá-la. A Associação de Moradores de Açungui, criada há cerca de 12 anos para possibilitar a implantação da farinheira pelo Estado do Paraná, foi retomada vigorosamente após o início do processo de reforma da

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7 As demandas do mercado convencional passam pela padronização de produtos e modos de produção, onde desconsideram-se saberes particulares enraizados na tradição local.

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farinheira, a qual teve suas pendências colocadas em ordem, o ingresso de novos membros e a retomada das reuniões com assiduidade e comprometimento dos integrantes. Nesse processo, as mulheres da comunidade acabaram conquistando espaço de destaque, assumindo as funções da coordenação da Associação e levantando pautas propositivas e inovadoras para a comunidade. Além disso, a mobilização que tem se dado em torno da farinheira comunitária e da Associação tem propiciado o vislumbre de novas possibilidades de ações pela e para a comunidade, como novas atividades agrícolas e mercantis e acesso a fontes de financiamento, por exemplo. Enquanto isso, a comunidade de Potinga encontrava-se ainda em processo de restauração, mas à medida em que as transformações têm ocorrido concretamente na comunidade vizinha – de Açungui – os moradores de Potinga sentem-se mais entusiasmados e dispostos a seguir os seus passos. Até o momento desta pesquisa (2012), a comunidade havia também retomado as atividades da Associação de Moradores de Potinga, promovendo reuniões frequentes e vislumbrando possibilidades de ação a partir dela que poderiam beneficiar a comunidade. A retomada da Associação se deu também através da possibilidade de reforma da farinheira comunitária, sendo que já haviam realizado mutirões para a reforma e a farinheira estava quase pronta para uso, necessitando apenas de alguns pequenos reparos e da avaliação e emissão da licença da ANVISA para o seu funcionamento legal. As famílias e Açungui e Potinga se veem imobilizadas diante da forma como estas transformações socioculturais se processam, a partir de uma racionalidade distinta que a das comunidades. Tem-se aí, então, um conflito de distribuição cultural, o qual se dá entre os saberes locais arraigados em tradições e modos de vida particulares e o conhecimento técnico-científico que fundamenta as diretrizes políticas; entre o modo de vida local com sua racionalidade temporal-espacial própria e a velocidade e ferocidade do sistema capitalista hegemônico; entre a economia local com base em trocas e no autoconsumo, e a economia de mercado. Para Arturo Escobar (2005), os conflitos de distribuição cultural

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se originam nas diferenças de poder associado com valores e práticas culturais particulares, que: No provienen de la diferencia cultural por sí misma, sino de la diferencia que esta diferencia marca en términos de control sobre la definición de la vida social: quién – cuál perspectiva cultural – define las normas y los valores que regulan las prácticas sociales relacionadas, por ejemplo, con las personas, las economías y las ecologías; quién controla la producción del conocimiento, la concepción de la propiedad, etc. (p. 130).

Desse modo, ao serem lentamente incorporadas pela lógica homogeneizante do sistema capitalista, as comunidades produtoras de farinha vão perdendo a riqueza cultural presente no modo de vida e consequente modo de fazer farinha particulares destas populações, que também se ligam estreitamente às formas de relação que estas desenvolvem com a natureza. Para Enrique Leff (2009), a cultura possui um efeito mediador entre as relações sociais dos grupos com a natureza, as quais são representadas pelos processos produtivos destes grupos. Segundo o autor: (...) a organização cultural regula a articulação entre processos ecológicos e processos históricos; a materialidade da cultura inscreve-se na racionalidade produtiva dos grupos indígenas e das sociedades camponesas, gerando um efeito mediador entre a produção e o meio ambiente (ibidem, p. 102).

O efeito que a cultura exerce como mediadora das relações entre sociedade e natureza pode ser entendido, em situações extremas, aqui em duplo sentido. De um lado, vê-se a relação degradante que o modelo de desenvolvimento capitalista tem estabelecido a partir de modos de uso e apropriação da natureza, onde esta aparece na forma de “recursos” naturais [matéria-prima] e de depósito de resíduos. Por outro, numa perspectiva em que se consideram outras racionalidades,

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a natureza pode ter um papel central na realização de atividades cotidianas se configurando como parte integrante do meio onde se dão as relações sociais e econômicas, onde se cultua e reproduzem tradições, ou seja, a natureza como bem comum. Nas comunidades estudadas a natureza aparece na forma de vários elementos inerentes a atividades cotidianas, existindo, por trás da produção de farinha, por exemplo, uma racionalidade própria destas comunidades que as fazem conviver com o meio de maneira mais íntima e harmoniosa do que a forma como se processa o desenvolvimento capitalista hegemônico. Na proposta de ecodesenvolvimento de Sachs, a dimensão social incorpora duas ordens: a social e a cultural, inerentemente interconectadas. Segundo o autor, com esta dimensão busca-se alcançar, prioritariamente, a redução das desigualdades sociais; a autonomia e a endogeneidade; e o equilíbrio entre tradição e inovação (2007). Nesse sentido, o processo homogeneizante que tem incorporado a produção de farinha em Açungui e Potinga desconsidera formas alternativas de desenvolvimento local que não compactuem com o modelo capitalista, inibindo assim as comunidades de construírem coletivamente suas próprias formas de desenvolvimento e seus próprios destinos, a partir de sua racionalidade e saberes próprios. Coíbe-se assim a autonomia local e a consequente possibilidade de um desenvolvimento endógeno, onde a inovação aparece como dada pelo sistema e acaba solapando a tradição e, assim, não se apresenta como prioridade a redução de desigualdades sociais e sim a padronização técnica e cultural. A dimensão socioeconômica da sustentabilidade: a economia local e a reprodução sociocultural Dotado de características indiscutivelmente rurais, Guaraqueçaba tem sua produção agrícola baseada no cultivo de banana, mandioca, arroz e palmito, onde a mandioca ocupa lugar de destaque. Dos 527 estabelecimentos agrícolas recenseados (IBGE, 2007), existem 171 unidades em que se realiza a produção de mandioca no município. Andriguetto Filho (2004) verificou que o modelo de agricultura

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desenvolvido em Guaraqueçaba é basicamente tradicional, com baixo nível tecnológico, baixa diversidade e baixa inserção no mercado. Os indicadores socioeconômicos do município encontram-se muito abaixo da média do Estado, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), por exemplo, que situa o município na posição 396 entre os 399 municípios do Paraná (IBGE, 2007). Outro indicador que se destaca é o Produto Interno Bruto (PIB) de Guaraqueçaba, que se configura como o 5º menor do Paraná, situando-se muito abaixo do PIB nacional (ibidem). Dentre os entrevistados, 16 haviam produzido farinha de mandioca no período de realização da pesquisa. A média anual da produção destes foi de 3.400 Kg/produtor, o que rendeu um lucro médio anual de R$ 3.500,00/produtor, ou seja, em torno de R$ 289,00 ao mês. A renda obtida com a comercialização de farinha produzida representa, em média, 30% do total da renda mensal familiar, atuando assim como complemento essencial à economia das famílias locais. Outras atividades rurais realizadas pelos produtores que complementam a renda das famílias são: produção de banana, de palmeira real, de pupunha e de arroz, principalmente. Depois da farinha de mandioca, a banana é o produto com maior percentual na composição da renda familiar, seguido da palmeira real. A composição da renda é complementada em alguns casos com valores recebidos pela realização de trabalhos externos, mas nenhum dos produtores trabalha como assalariado. O que se configura como renda fixa mensal nas famílias é o valor recebido por aposentadorias, sendo que apenas 3 dos produtores não tinham em sua família alguém que recebia o benefício durante a pesquisa, o que indica a dependência econômica local deste auxílio. Considerando que o meio rural do município possui valores de empregos formais inferiores aos do meio urbano, conforme dados do IPARDES (2010)8, a situação de emprego e renda no campo guaraqueçabano é preocupante.

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8 O número total de empregos formais no município é de cerca de 695, dos quais a maior parcela (475) se concentram em atividades vinculadas à administração pública.

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A comercialização da farinha é realizada nas próprias comunidades, na sede do município e em comércios dos municípios próximos de Antonina e Paranaguá. A demanda pelo produto é abundante na região, porém os produtores enfrentam sérios problemas de comercialização no mercado formal, por motivos como a falta de transporte e de licença sanitária do produto. O transporte de farinha até os centros de comercialização é realizado predominantemente através do pagamento a terceiros, sendo que apenas 5 dos entrevistados possuem veículo automotor e outros 4 deixaram de comercializar fora das comunidades por falta de transporte. Assim, tem-se outro empecilho que é o fato de o custo do transporte encarecer o valor do produto final, implicando na redução da competitividade do produto local com o de outros municípios e regiões do estado que são ali comercializados. Somado aos problemas anteriores, a produção de farinha nas comunidades sofre ainda com a carência de mão de obra e de maquinários agrícolas, o que tem implicado para 13 dos entrevistados na carência de raiz de mandioca para a produção da farinha e em dificuldades no processamento da raiz. Assim, a série de problemas enfrentados pelos produtores para a produção de farinha tem levado alguns deles a deixarem a atividade e a outros tantos tem implicado na redução da produção. A situação se agrava quando se trata da escolaridade nas comunidades estudadas, onde nenhum dos entrevistados concluiu o ensino médio da educação básica, 16 não tiveram estudo algum e apenas 3 concluíram apenas a 4ª série primária, sendo o grau de escolaridade dos seus cônjuges semelhantemente reduzido. Contudo, este quadro muda radicalmente em relação aos filhos dos produtores, onde a maioria concluiu o ensino médio e alguns até curso superior. A particularidade deste índice elevado de escolaridade entre os filhos dos produtores encontra-se no fato de que estes, em sua maioria, não residem mais nas comunidades, tendo migrado massivamente nos últimos anos para centros urbanos de cidades próximas, como Paranaguá e Colombo, por exemplo. Todos os familiares que migraram para o meio urbano são filhos

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de produtores que partiram em busca de estudo, trabalho e renda, ainda jovens. Nas 19 famílias foi identificado um total de 127 indivíduos, dos quais 63 (de 16 famílias) migraram para o meio urbano nas últimas décadas. Permanecem no meio rural, predominantemente, idosos, alguns poucos jovens que vêm dando continuidade ao trabalho agrícola realizado pelos pais e pessoas que ainda não atingiram a idade adulta. Nota-se então uma íntima relação entre os índices de escolaridade dos familiares e a migração dos jovens para centros urbanos, denotando que o município não tem lhes proporcionado os acessos necessários, especialmente no que diz respeito à educação, trabalho e renda. Abre-se aí mais um fator socioeconômico agravante para as comunidades, uma vez que as condições locais têm inviabilizado a permanência das novas gerações no campo. No que diz respeito à dimensão econômica, mais uma vez as comunidades de Açungui e Potinga acabam se vendo submetidas aos pressupostos do sistema capitalista hegemônico, que lhes impõe a lógica do mercado competitivo, onde desconsideram-se as particularidades do território a que estas populações pertencem. O baixo rendimento econômico gerado pela comercialização de farinha, por exemplo, não é suficiente para a realização de investimentos nas unidades produtivas que permitam a adequação tecnológica dos equipamentos de cultivo agrícola e das unidades de produção e a aquisição de meios de transporte para o produto. Assim, as comunidades necessitam desenvolver estratégias de desenvolvimento que sejam apropriadas ao local e que tenham como premissa fundante a racionalidade sociocultural desta população, de modo a considerar outros valores e outras formas de economia ali praticados. Além dos impactos de ordem distributiva, a racionalidade econômica vigente é responsável pelo progressivo processo de degradação ambiental, acompanhado de uma distribuição social desigual dos custos ecológicos. Nesse sentido, Sachs (1986, p. 181) indica que a sustentabilidade econômica “deve ser viabilizada mediante a alocação e o gerenciamento mais eficiente dos recursos e de um fluxo constante de

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investimentos públicos e privados”. A sustentabilidade econômica implica na eficiência de seus sistemas econômicos (instituições, políticas e regras de funcionamento), para assegurar continuamente melhorias sociais de modo equitativo, quantitativa e qualitativamente (ibidem). Nesse sentido, mesmo que para garantirem sua permanência no campo e sua reprodução socioeconômica e cultural as comunidades tenham que desenvolver mecanismos que as possibilitem a realização de um desenvolvimento endógeno, faz-se necessária uma maior atenção do poder público para a realidade e necessidades locais. Na proposição de políticas públicas, como a que implantou as farinheiras comunitárias em Açungui e Potinga, por exemplo, devem ser consideradas as peculiaridades socioculturais e econômicas territoriais para otimizar a sua eficiência e, ainda, não causar danos à vida destas populações. Além disso, para que um desenvolvimento apropriado a tal realidade efetivamente se realize, é necessário também que as políticas públicas executadas na região sejam contínuas e integradas, de modo a dialogarem e serem compatíveis entre si e, juntas, mais eficazes para a resolução de problemas das comunidades. A dimensão socioambiental da sustentabilidade: a reprodução sociocultural e a proteção ambiental entre interações e conflitos Desde a década de 1980 têm sido criadas diversas unidades de conservação (UCs) no litoral paranaense, as quais totalizam atualmente 34 unidades distribuídas entre os 7 municípios, o que representa mais de 80% da área total do território9 (FIGURA 4). A indiscutível riqueza ecológica conferiu à região o reconhecimento pela UNESCO de Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (LIMA et al., 1998). Apesar de se enquadrarem em diferentes categorias de manejo, as UCs acabam por estabelecer no território inúmeras restrições legais sobre a ocupação e o uso do solo. Somado a isso, tem-se também muito presente na região as Áreas de Preservação Permanente (APPs), às quais cabem rigorosas 9 Em 2006 haviam 31 UCs no litoral do Paraná, que ocupavam, ao todo, 82% deste território (DENARDIN & LOUREIRO, 2008). Em 2012 foi criada uma nova UC na região, a Reserva Biológica Bom Jesus, em 2013 foi criado o Parque Nacional da Ilha dos Currais, e, em 2014 foi criada o Parque Nacional de Guaricana, elevando o número de UCs para 34 (IAP, 2014; ICMBio, 2014).

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restrições sobre áreas de beiras de cursos d’água e de encostas e topos de morro (LEI Nº 4.771, 1965); e, ainda, as áreas de Reserva Legal, que devem ser protegidas em todas as propriedades10. Desse modo, a efetivação da conservação ambiental implicou em um necessário redimensionamento das formas de realização de atividades produtivas em todo o município de Guaraqueçaba. Entre os municípios do litoral paranaense, Guaraqueçaba é o que possui a maior extensão territorial protegida ambientalmente, sendo que 98% de sua área é ocupada por UCs, que são: Estação Ecológica de Guaraqueçaba, Parque Nacional do Superagüi e Reserva Biológica Bom Jesus, de Proteção Integral11; e APA (federal) de Guaraqueçaba, ARIE do Pinheiro e Pinheirinho, RPPN Salto Morato e Reserva Ecológica de Sebuí, estas de Uso Sustentável (IAP, 2014; ICMBio, 2014). A Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba é a maior destas, correspondendo à quase totalidade do território do município (DIBAP, 2007, apud DENARDIN & LOUREIRO, 2008).

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10 As áreas de Reserva Legal são definidas, no caso do bioma Mata Atlântica, como uma porção de 20% de área coberta por vegetação nativa, a ser delimitada em cada propriedade, além das APPs existentes no local. A vegetação da reserva legal não pode ser suprimida, podendo apenas ser utilizada sob regime de manejo florestal sustentável, de acordo com princípios e critérios técnicos e científicos (Art. 16º, LEI 4.771, 1965). 11 As unidades de conservação são diferenciadas conforme o grau de restrições de uso estabelecidas. Assim, se dividem, basicamente, em dois grupos, ou categorias de manejo: de Proteção Integral, onde o uso da área é altamente restrito; e de Uso Sustentável, onde é permitido o desenvolvimento de atividades, porém, com algumas restrições. Estas ainda se subdividem em outras, seguindo o mesmo padrão de restrições (SNUC, 2000).

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FIGURA 4 – MAPA DE USO DO SOLO DO ESTADO DO PARANÁ (2005-2008)

Fonte: Adaptado da base cartográfica do Instituto de Terras, Cartografia e Geociências do Paraná (ITCG), 2010 (apud IPARDES, 2010). Legenda: a área circulada apontada na figura representa o litoral do Paraná, que, no mapa, encontra-se destacada como a maior área coberta por floresta original em conjunto com toda a área de restinga do Estado.

O cenário natural guaraqueçabano é dotado de características e peculiaridades que o levam a se configurar como uma área de relevante importância global no contexto da conservação da natureza. Contudo, esta vasta riqueza abriga uma série de atividades desenvolvidas no ambiente rural que conferem a tradição cultural local, a qual se vê ameaçada diante de tensões socioambientais desencadeadas pelo novo contexto de conservação estabelecido na região. Dentre estas atividades encontra-se a produção da raiz e da farinha de mandioca, a qual insere-se no quadro socioambiental conflituoso do ambiente rural regional. A produção de raiz de mandioca nas comunidades estudadas é realizada em pequena escala, sendo utilizados em média 2,5 alqueires áreas totais para cultivo nas propriedades, que, por sua vez, abarcam um total de cerca de 8 alqueires cada uma. O cultivo é realizado em áreas baixas, respeitando as restrições das UCs e mantendo preservadas as

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APPs, sem o uso de agrotóxicos. A geração de resíduos provenientes da produção de farinha também é reduzida, sendo que os produtores, em sua maioria, têm os reutilizado nos próprios cultivos agrícolas. Do processo de agroindustrialização da farinha de mandioca resultam, basicamente, os seguintes resíduos: cascas da raiz de mandioca, geradas pelo descascamento; manipueira (ou mandiquera), gerada a partir da prensagem da raiz ralada; bagaço (ou raspa), gerado a partir do esfarelamento da raiz, após a prensagem. A manipueira é utilizada pelos produtores em geral, principalmente, com duas finalidades: como biofertilizante (para enriquecimento de solos); e como bioherbicida (defensivo agrícola utilizado para o controle de pragas nas plantações). Após ser devidamente dosada e diluída, a manipueira é comumente utilizada em cultivos de banana, para eliminação de pragas que afetam as produções. A raspa é utilizada na alimentação animal, especialmente de galinhas. E a casca é geralmente triturada e retorna aos solos de cultivo da raiz como fertilizante natural. Desse modo, tendo em vista a riqueza natural e a proteção ambiental da região, a produção de farinha de mandioca em Guaraqueçaba tem caminhado para uma adaptação do sistema produtivo a este contexto – desde o plantio da raiz até o processamento da farinha em si, demonstrando o cumprimento da legislação ambiental e dando indícios de uma vocação ecológica dos cultivos agrícolas e agroindustrialização local. Guaraqueçaba, se configurando atualmente como a região mais bem preservada do Paraná, é também pouco urbanizada e pouco industrializada, o que favorece o cumprimento dos objetivos da conservação da natureza. A proteção de áreas naturais traz inúmeros benefícios à vida na Terra em todas as suas formas e a existência de áreas verdes é necessária para a manutenção da qualidade de vida da sociedade humana como um todo. Por outro lado, reduzindo a escala de observação a regiões como as comunidades aqui estudadas, vê-se que a proteção legal de florestas, da forma como tem sido operacionalizada, traz também consigo sérias limitações à reprodução socioeconômica e cultural da população de produtores de farinha.

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A falta de regularização fundiária das terras é recorrente entre os produtores locais, o que implica ainda em dificuldades de acesso a incentivos à realização de atividades rurais pela ausência de documentação das áreas. Em Açungui e Potinga o acesso à água é completamente improvisado pela própria população, sendo inexistente a ação pública tanto para a distribuição como para o tratamento da água. E o acesso à madeira, para uso combustível nos fornos que torram a farinha e para reformas de residências e farinheiras, também tem sido dificultado pelas restrições ambientais. Além disso, a criação das UCs na região tem implicado ainda na redução drástica do tamanho das áreas disponíveis para o cultivo agrícola e, assim, algumas práticas tradicionalmente realizadas pela população local, como o pousio, por exemplo, tornaramse inviáveis. A produção de raiz de mandioca realizada em Guaraqueçaba contrapõe-se à agricultura modernizada, que utiliza grande carga de insumos tóxicos prejudiciais tanto à natureza quanto à saúde humana e que sustenta, ainda que indiretamente, desigualdades socioambientais em grande medida. Contudo, ainda assim, esta atividade vê-se ameaçada pela dificuldade de acesso aos recursos naturais promovida pela política ambiental. Cabe então uma reflexão acerca do paradoxal modelo de desenvolvimento sustentável executado na região, onde as populações de produtores de farinha de Açungui e Potinga sofrem restrições à realização desta atividade em função da proteção ambiental global. Ou seja, enquanto espaços urbanizados e industrializados são poluídos e degradados pela população neles residente e por quem usufrui dos produtos e bens de tais espaços, os habitantes de Açungui e Potinga se veem limitados na sua reprodução socioeconômica e cultural. Nesse sentido, “abre-se um debate não só pela injustiça distributiva do sistema econômico, mas pela distribuição ecológica, entendida como a repartição desigual dos custos e potenciais ecológicos” (LEFF, 2001, p. 36). Nesta concepção de desenvolvimento sustentável sob a qual Açungui e Potinga encontram-se sujeitas prioriza-se a dimensão ecológica da sustentabilidade em detrimento das dimensões social,

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cultural, econômica e territorial. Assim, comprimidas entre este modelo de desenvolvimento “sustentável” e a ferocidade com que avança o desenvolvimento capitalista, restam poucas possibilidades a estas comunidades, que, como já indicado, acabam tendo suas gerações mais recentes migrando massivamente para centros urbanos em busca de sobrevivência. Desse modo, ocorre em Guaraqueçaba o que Teixeira (2005) intitula de “naturalização do social”, onde a dimensão social do desenvolvimento “sustentável” acaba sendo suprimida pela dimensão ecológica estrita. Ou seja, prioriza-se a conservação da natureza (em âmbito global) em detrimento da reprodução socioeconômica e cultural da população local. A participação social e política dos grupos em questão poderia se configurar como um espaço de mobilização e transformação positivas das comunidades, seja no sentido de permitirem a busca coletiva de formas de adaptação ao modelo de desenvolvimento sustentável imposto à região, que os viabilizassem garantias de reprodução socioeconômica e cultural, seja no sentido de possibilitarem um enfrentamento mesmo do próprio modelo, onde pudessem dar voz às suas necessidades e anseios coletivos no que diz respeito ao modo de vida local. Mas a participação social e política em Açungui e Potinga têm sido realizada recentemente somente através das associações de moradores, especialmente em torno da produção de farinha nas farinheiras comunitárias. É inexistente, por exemplo, a participação em conselhos gestores (como o da APA de Guaraqueçaba), na prefeitura e na câmara municipal, o que denota uma fragilidade política estrutural nas comunidades.

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Conclusão Através das transformações socioculturais que têm ocorrido nas comunidades de Açungui e Potinga podem-se elencar alguns elementos oriundos de uma cultura [capitalista] hegemônica que passam a ser incorporados localmente. Isso pode ser notado, por exemplo, no “abandono” – de certa forma imposto – de práticas coletivas tradicionais como a realização do mutirão e do festejo do fandango; na

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inserção da padronização das unidades produtivas segundo normas nacionais; na necessidade do aprendizado de novas práticas coletivas e compartilhamento de espaço em função destas normas; dentre outras tantas transformações que se processam nesse conjunto. Todas estas transformações recentes que ocorrem nas comunidades estudadas podem ser estendidas a um contexto mais amplo da sociedade, uma vez que denotam possuir um fundo comum a muitas realidades na atualidade: se configuram como situações em que a ordem do capital e do sistema hegemônico tem sido imposta sobre modos de vida tradicionais. Segundo a gama de motivos apontados e as inter-relações que se estabelecem entre eles, a produção de farinha por si só não tem garantido a sustentabilidade econômica das famílias que desenvolvem esta atividade, apesar de atuar como complemento essencial à composição da renda familiar. Porém, isso não se dá exclusivamente por conta da dinâmica econômica interna local, tendo uma relação íntima com a dinâmica da economia regional e, em última análise, mais uma vez, se relaciona com as imposições das demandas do mercado capitalista, no qual a concorrência de preços e a padronização são imperativos maiores que o valor agregado contido em um produto com identidade territorial como a farinha de mandioca produzida em Açungui e Potinga. As políticas de conservação da natureza executadas em Guaraqueçaba seguem os moldes do modelo de desenvolvimento sustentável indicado no Relatório Nosso Futuro Comum. Assim, as UCs criadas na região não servem apenas para a proteção de recursos naturais para a população local, mas se configura como um bem comum da humanidade, que deve ser preservado para as presentes e futuras gerações. Contudo, na escala local, esta política de proteção ambiental têm subsidiado injustiças socioambientais, na medida em que limitam o acesso a recursos naturais pela população residente nas comunidades e, de certa maneira, acabam contribuindo para a compressão destas comunidades pelo sistema capitalista hegemônico. A participação social e política também indica fragilidades entre os próprios produtores e comunidades, o que os têm causado empecilhos

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tanto quanto à manutenção da atividade de produção de farinha local como ao desenvolvimento de possibilidades de desenvolvimento local de modo geral. Por outro lado, o associativismo nas comunidades visitadas, que tem relação direta com as farinheiras comunitárias, se configura como um tipo de inovação sociopolítica local, desenvolvida endogenamente, onde os produtores têm experimentado possibilidades de fortalecimento coletivo da produção de farinha e meios de manutenção da reprodução socioeconômica local.

Referências

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PARTE iV Capítulo 12

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