\"Faro Policial\": um estudo de caso acerca dos critérios de construção e operação de padrões de suspeição e seletividade na ação policial

June 19, 2017 | Autor: Elizabete Albernaz | Categoria: Anthropology, Police, Policia, Police and Policing, Antropología, Antropología y Sociología Jurídica
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39º Encontro Anual Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS GT01 – Administração de Conflitos em Perspectiva Comparada

“Faro Policial”: um estudo de caso acerca dos critérios de construção e operação de padrões de suspeição e seletividade na ação policial.

Elizabete Ribeiro Albernaz, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF).

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Polícia: uma burocracia de aplicação da lei? A polícia justifica sua existência profissional pela atribuição de fiscalizar e garantir a adesão dos indivíduos a um determinado regramento, seja ele legal ou consuetudinário. O imaginário que cultiva como linha de frente no combate ao crime, sua estrutura organizacional, seu treinamento, mecanismos de controle e parâmetros de avaliação e produtividade tudo em sua institucionalidade tende a caracterizar a polícia como uma burocracia de cumprimento da lei (BITTNER, 2003). Para os policiais militares, quando pensamos em suas atividades finalísticas, distribuídos dentre as várias modalidades de policiamento ostensivo, as situações de abordagem aparecem como um tipo de evento paradigmático, a encarnação de um fazer policial de rua (MUNIZ, 2012), ocasião em que os agentes buscam proativamente o contato com pessoas e situações que lhes pareçam suspeitas. Segundo Tânia Pinc (2009), “(...) a abordagem representa um encontro da polícia com o público e os procedimentos adotados pelos policiais variam de acordo com as circunstâncias e com a avaliação feita pelo policial sobre a pessoa com que interage, podendo estar relacionada ao crime ou não. Essa é uma ação policial proativa, que ocorre durante as atividades de policiamento, cujos procedimentos preveem a interceptação de pessoas e veículos na via pública e a realização de busca pessoal e vistoria veicular, com o objetivo de localizar algum objeto ilícito, como drogas e arma de fogo. A decisão de agir é exclusiva do policial e é respaldada por lei.” (:01)

A lei, na definição da autora, aparece como “respaldo” do trabalho policial. Dentre os sentidos da palavra “respaldo” encontramos a ideia de “apoio”. Como o encosto de uma cadeira que recebe as costas cansadas de alguém (um outro sentido possível da palavra, diga-se de passagem1), respaldar significa dar sustento (político, físico, ideológico) a algo que já está dado na realidade fenomênica (as costas de alguém) ou significativa (a definição de uma situação) do fluxo da vida cotidiana. No caso da polícia, a ideia de “respaldo” parece evocar o horizonte de legalidade de seu processo de tomada de decisão como uma espécie de “apoio” ou “justificativa” dados (ou não) à posteriori. Uma vez concretizado um determinado curso de ação, no tempo frio dos gabinetes e salas de audiência, avalia-se o “respaldo legal” reivindicado pelas motivações alegadas, procedimentos adotados e resultados obtidos pelos agentes à luz dos princípios que regem nosso ordenamento 1

http://www.priberam.pt/dlpo/respaldo [em 20/09/2015]

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jurídico-político. A lei, entretanto, não é capaz de antever todas as condutas concretas dos sujeitos, e a polícia, por sua vez, também não é seu mero replicador. Seu espectro de intervenção (o que a polícia de fato faz) supera (de longe) o argumento que justifica a legalidade de suas ações (BITTNER, 2003; LIMA, 1995, 2013; MUNIZ, 1999, 2006, 2012). Em especial, nas situações de abordagem, este horizonte fugidio de legalidade encontra-se informado pelo conceito de poder de polícia, definido no artigo 78 do Código Tributário Nacional (CTN) como uma atividade da administração pública que faculta aos seus portadores limitar e disciplinar direitos individuais em prol de noções bastante abstratas de tranquilidade e interesse públicos2. Como a lei não é um operador decisório eficaz para grande parte do que “de fato a polícia faz”, o exercício desse poder – cuja justificativa de aplicação é atribuída, como vimos, à posteriori – se dá, no cotidiano do policiamento, ao sabor de apreciações sobre “pessoas” e “circunstâncias” (PINC, 2009:01) construídas pelos próprios agentes. Soma-se a esse quadro de referência os efeitos do caráter quase marginal da discricionariedade policial à brasileira, que flerta sempre, nos processos de tomada de decisão, com seu gênio mal, a prevaricação3. Isso significa dizer que, muito embora a polícia esteja constrangida, no fundamento de legalidade de suas ações, por uma série de requisitos normativos, na prática, ela exerce seu mandato como uma espécie de “cheque em branco” (MUNIZ & PROENÇA JR., 2007), segundo padrões construídos de seletividade e suspeição. Mas o que informa a construção desses padrões? Como eles são operados no dia a dia do policiamento? Que valores e interesses movem o universo motivacional dos sujeitos para que decidam, proativamente, intervir sobre o fluxo da vida social? Uma chave importante para lançar luz sobre a opacidade operativa dos padrões de suspeição e seletividade, pelo menos para fins do argumento que sustenta o presente artigo, “Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou de autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos” (Art.78, CTN). [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5172.htm, em 20/09/2015] 3 É um crime funcional, isto é, praticado por funcionário público contra a Administração Pública em geral, que se configura quando o sujeito ativo retarda ou deixa de praticar ato de ofício, indevidamente, ou quando o pratica de maneira diversa da prevista no dispositivo legal, a fim de satisfazer interesse pessoal. A pena prevista para essa conduta é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa (Art. 139 do Código Penal). Fonte: http://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/424/Prevaricacao [em 30/06/2014]. 2

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reside em explorar analiticamente a categoria “faro policial”. Enquanto explicação nativa, o "faro" pode ser caracterizado como uma sensibilidade diferenciada para “aquilo que está fora do lugar”4, mescla de intuição e experiência acumulada, um saber-fazer construído a serviço da suspeição, do controle, da previsibilidade e da vigilância. Atributo valorado como distintivo de quem vive e aprende com “a polícia feita na rua”, o “faro” opera, ao mesmo tempo, como uma técnica de exercício do poder e uma forma de conhecer, de onde decorrem regras de inclusão\exclusão que forjam os objetos e portadores legítimos desse saber-poder (FOUCAULT, 2005). Principalmente em ações consideradas “proativas”, como as abordagens, em que a polícia busca ativamente algum “objeto ilícito” (PINC, 2009:01) – ou mesmo se antecipar aos eventos para proteger-se, colocar-se em vantagem estratégica ou tática em relação a uma situação etc. –, o que é aqui caracterizado como “faro” pode ser analisado sob dois pilares: em primeiro lugar, sob a ótica da construção e operação, a partir de uma experiência social compartilhada, de um sistema classificatório que situa pessoas, coisas e eventos segundo relações determinadas pelo que Goffman chama de expectativa generalizante de normalidade (GOFFMAN, 2002); uma segunda dimensão surge quando analisamos a categoria “faro policial” sob a perspectiva do universo motivacional que impulsiona os agentes no sentido de adotarem um curso de ação proativo, em que a iniciativa da ação parte da própria polícia. A “experiência de rua”, seja adquirida de forma direta ou por meio da troca de impressões entre pares, aporta repertórios e calibra o olhar ao testar, muitas vezes na prática, no “erro e acerto”, a eficácia operativa do “faro”, como um sistema de valores, na produção – dentre outras tantas coisas – de proteção, antecipação e controle de condutas. Essa “experiência”, entretanto, não pode ser analisada fora do contexto de construção de um campo de motivações para a ação, afinal de contas, segundo meus interlocutores, “só fareja quem quer encontrar alguma coisa”. Nesse sentido, argumento que essas motivações para a ação proativa (o “farejar”) devem ser buscadas no que Howard Becker chama de situação de trabalho da polícia, ou seja, como respostas às pressões e prioridades

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Lançando mão da terminologia analítica de Erving Goffman, pode-se afirmar que, baseados em seu repertório acumulado de experiências, os policiais tendem a apreender inconsistências aparentes entre cenários, maneiras e aparências, subordinadas a uma expectativa generalizante de normalidade (GOFFMAN, 2002), como indícios para a caracterização de uma determinada situação como algo que mereça a atenção da polícia.

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estabelecidas pelo ambiente organizacional dos impositores de regras (2009:166). Para analisar esta dimensão, desenvolvo, nas páginas que seguem, a categoria subsidiária de rendimento, como algo que se espera como desdobramento do agir frente a um ambiente de profunda imprevisibilidade dado por um mandato precariamente definido (MUNIZ & PROENÇA JR., 2007) e pelos perigos das lógicas institucionais de culpabilização de condutas (LIMA, 2013). Movidos por um olhar atento ao que está “fora do lugar”, os policiais mobilizam valores oriundos de múltiplos contextos de significação (BENSA, 1998), uns mais distantes e abrangentes, como as referências de sua origem social ou mesmo de filiação religiosa (ALBERNAZ, 2009; 2010), outros mais especializados e circunscritos, como o saber policial de rua (MUNIZ, 2012). Estes contextos de valores implicam-se mutuamente na construção de quadros de referência que estabelecem, para cada situação concreta, uma expectativa generalizante de normalidade (GOFFMAN, 2002), enquadramento moral com base no qual emitem juízos sobre situações e pessoas e decidem materializar suas suspeições em um determinado percurso de ação. Para meus interlocutores, nesse sentido, a lei não é, muitas vezes, de onde se parte, mas onde se chega uma vez que uma decisão tenha sido tomada. Busca-se nela, a posteriori, uma justificativa e uma justificação burocrático-normativa para processos decisórios que operam sob outras bases. Esse modo de operar produz um tensionamento constante entre o que está escrito (na lei, nos regulamentos etc.) e as regras não-escritas da atividade policial. De modo a explorar os desdobramentos desse tensionamento entre o “mundo das leis e as leis do mundo”, à luz da categoria nativa “faro”, no fazer cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), tomarei como referência empírica o caso da prisão do traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, conhecido como “Nem da Rocinha”, por policiais do Batalhão de Polícia de Choque (BPChq) durante a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na comunidade, em 2011. Este caso, trazido em maiores detalhes na parte final deste artigo, será analisado sob a perspectiva do drama social (TURNER, 1996), enquanto evento paradigmático que coloca em conflito as motivações dos agentes, explicitando a trama de valores que informam suas condutas. Lembro-me que, à época, o que chamou minha atenção para esse caso foi justamente o caráter atípico

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da ocorrência5. O fato é que, frente a todos os “perigos” que rondavam a ocorrência – questões de “imunidade diplomática” e uma plêiade de “autoridades” (advogados, delegados de polícia etc.) –, alguma coisa havia incitado aqueles policiais a seguir em seu propósito inicial6. De modo a constituir uma narrativa sobre o caso, foram realizadas entrevistas em profundidade com os policiais militares diretamente envolvidos na prisão, tanto praças quanto oficiais, segundo seu papel e momento de inserção na dinâmica da ocorrência. Com isso esperava-se incorporar, por meio de seus relatos, as diferentes perspectivas assumidas por esses atores no enredo dramático de um caso concreto de abordagem e seus desdobramentos posteriores. Além disso, pretendo explorar teoricamente, no presente exercício, material empírico coletado durante visita realizada ao Batalhão de Ações com Cães (BAC) da PMERJ, onde são treinados os “cachorreiros” da corporação, experiência narrada na primeira parte deste artigo. Com essa investida ao campo, esperava-se trazer à discussão a parte de animalidade semanticamente presente na noção de “faro policial”. Para fazer isso, parto de uma discussão, tradicional na Antropologia, sobre os pares natureza e cultura, buscando estabelecer, da perspectiva da linguagem e da metáfora, pontes expressivas entre estes perceptos a partir das falas de meus interlocutores e da experiência de campo. Nesse sentido, para fins do presente experimento teórico-etnográfico, entendo que a analogia entre o “faro policial” e o “faro do cão”, no campo da expressão simbólica, pode render um bom exercício reflexivo para a caracterização desse atributo. Mas, creio eu, ainda é possível ir além. Pretendo, aqui, extrapolar esta análise e seguir os rastros (farejar, portanto!) dos tensionamentos produzidos entre os atributos individuais esperados daqueles policiais que cultivam e valorizam o “faro” e uma série de lógicas institucionais há muito estabelecidas na PMERJ. Para ambas as pretensões, a visita ao Batalhão de Ações com Cães e o contato com o treinamento dos chamados “cães de faro” teve rendimentos teórico-metodológicos, no mínimo, ilustrativos, que passamos a narrar a seguir.

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Segundo Victor Turner, citando Freud, os distúrbios do normal e do regular muitas vezes nos oferecem um maior insight sobre o normal do que o estudo direto (TURNER, 2008:30). 6 Sua convicção era tamanha que o oficial comandante da operação, um capitão do BPChq, chegou a cravar uma faca no pneu do veículo para impedir que ele fosse movido sem que sua mala fosse aberta e revistada – uma conduta totalmente irregular, diga-se de passagem, e que poderia ter lhe custado muita “dor de cabeça” caso estivesse equivocado em suas intuições.

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Sobre cães, faro e produtividade policial: relato de uma visita ao BAC “O Batalhão de Ações com Cães (BAC) fica numa área contígua ao 16º BPM, em Olaria, zona norte do Rio de Janeiro. Está ali desde quando ainda era apenas uma Companhia Independente, uma CIPM. Chego um pouco atrasada. Estava agendada às 14h, mas demorei um pouco pra me encontrar no trajeto entre a estação de trem de Olaria e o batalhão, um prédio antigo, em azul e branco, que parece um pequeno castelo deteriorado, com duas torres de vigia, uma em cada lado do portão principal. Entro no batalhão e, no meio do caminho, encontro o Oficial “cachorreiro” que era o meu contato na unidade. O termo “cachorreiro” designa o policial treinado para adestrar e conduzir cães nas diversas atividades de policiamento em que estes podem ser empregados: busca e apreensão de armas e drogas, tomada de refém, controle de distúrbios civis etc. Fui levada pelo jovem Oficial ao gabinete do comandante e do subcomandante do BAC. Primeiro sou apresentada ao “02” da unidade (subcomandante). Em sua camisa, seu “nome de guerra” e, bordado logo abaixo, a expressão “cão 420”. Explico as motivações de minha visita. Em princípio, há um desafio. “Chama ela pra ir numa operação conosco para ela conhecer a realidade que nós policiais vivemos”, braveja o “02”. Respondo, como de praxe, que sou filha de policial militar e que trabalho há 15 anos com a polícia. Minha “ascendência policial”, meu one drop of blood7 de “sangue azul”, sempre ajudou a “abrir caminhos”. Coloco-me “de dentro”, o exterior é sempre ameaçador8. Vencida essa etapa, podemos continuar, há outras etapas a vencer ainda até a entrevista. Minimamente convencido de minhas boas intenções, o subcomandante me leva até um quadro branco, afixado em seu gabinete, onde encontrase sistematizada a “produtividade” do batalhão. Para a PMERJ, “produtividade” significa apreensão de armas, drogas e prisão de pessoas. Chama atenção imediatamente o incremento geométrico do volume de apreensão de drogas desde 2009, passando de cerca de 900 quilos/ano para seis toneladas no fechamento parcial das estatísticas de produtividade de 2015 até julho. O subcomandante faz um destaque “isso tudo com um consumo mínimo de munição, sem policiais mortos, sem civis mortos”. Fico realmente surpresa, pelo resultado em si, mas também pela forma como me foi apresentado, com ênfase na baixa letalidade das ações da unidade. O comandante do BAC se junta a nós. Um “cachorreiro” antigo, fez carreira no batalhão desde 2006. Nessa hora somos eu, o jovem Oficial, o subcomandante e o comandante. Agradeço a recepção, elogio o desempenho da unidade e pergunto ao “01” o motivo do aumento da “produtividade” do batalhão. Ele responde de pronto, “isso aconteceu, porque deixamos de subestimar o 7

A expressão faz referência ao critério de definição racial nos Estados Unidos, em que a presença de qualquer ascendência negra na linhagem familiar da pessoa (one drop of blood), por exemplo, a definiria como sendo negra. 8 Como bem observou Kant de Lima, quando alguém convive com a polícia, ou vira policial ou fica contra eles. A polícia não reconhece diferenças (LIMA, 1994:21).

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faro”. Nessa hora tive certeza de ter feito a coisa certa. Ir ao BAC teria um rendimento teórico-metodológico importante, afinal. Peço que me explique. Ele diz que antes daquele ano o BAC atuava apenas em apoio às missões de outras unidades, principalmente em auxílio a força de choque. Por conta disso, não apresentava uma “produtividade” própria. Sua eficácia e efetividade, segundo os padrões da PMERJ, não poderiam ser comprovadas mediante a apresentação de estatísticas de apreensão de armas, drogas e pessoas, o que se traduzia numa proporcionalmente baixa capacidade de mobilizar recursos institucionais para a unidade. A elevação da antiga CIPM-Cães, em 2011, ao estatuto de Batalhão, inclusive, teria relação direta com a reversão desse quadro. O comandante menciona, à título de ilustração, um conselho que teria dado a um colega “cachorreiro” da polícia militar de São Paulo: “você precisa mostrar serviço”. Nisso, o “01” me leva à um quadro de avisos, situado no corredor. Lá, naquela cortiça, encontro o nexo que me permitiria explorar o simbolismo institucional mobilizado por essa metáfora de natureza-cultura que é o “faro policial”. Duas matérias jornalísticas estampam fotos de duas grandes apreensões de armas e drogas do BAC em 2015. Homens e animais, lado a lado, cada qual com suas “recompensas”: os homens com suas toneladas de drogas, armas e munições apreendidas; os cães com seus “brinquedos”, dois labradores, cada qual com uma bola verde na boca9”. Trecho de relato de campo

O relato acima, extraído do meu caderno de campo, busca ilustrar, dentre outras coisas, a centralidade da chamada “produtividade policial” como meta organizacional, objeto do esforço e da ação dos membros da corporação policial implicados em atividades consideradas “finalísticas” para a situação de trabalho da polícia (BECKER, 2009:166). A partir do incremento dos padrões de produtividade do BAC, por exemplo, a unidade, outrora relegada a uma função subsidiária, ascendeu à condição de Batalhão de Polícia Militar (BPM) e consegue obter hoje, junto ao comando da corporação, recursos financeiros, materiais e humanos para sustentar os custos elevados de manutenção de um substantivo aparato policial especializado (viaturas para condução de cães, canil, veterinária etc.). E isso em função do aumento do volume de apreensões de armas e drogas do batalhão, obtido graças ao que meus interlocutores chamaram “investimento no faro”. Em primeiro lugar, isso diz algo sobre uma pedagogia institucional que, ao recompensar esse tipo de “produtividade”, coloca-a no horizonte motivacional dos agentes no cotidiano

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http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2013-12-21/batalhao-de-acoes-com-caes-apreende-trestoneladas-de-maconha-em-acari.html

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do policiamento ostensivo. No caso do BAC, os rendimentos institucionais deste padrão de “produtividade” foram alcançados pelo “retomada da vocação da unidade” na “condução de cães de faro”. O “faro” dá direcionamento às ações do BAC. Auxiliados por seus cães, os policiais “cachorreiros” tem sua capacidade de predição ampliada no que se refere à localização de armas e drogas nos esconderijos mais remotos e inesperados. A eficácia do olfato do cão é modulada pelo filtro da experiência e da sensibilidade de seu condutor, que precisa definir, com base em seu repertório de experiências acumuladas, a conveniência, oportunidade e legalidade do curso de ação desencadeada pelo “faro” do animal. Homens e animais “farejam”, cada qual em busca de suas recompensas – “os homens com suas toneladas de drogas, armas e munições apreendidas; os cães com seus ‘brinquedos’” –, rendimentos decorrentes de suas intervenções. Mas no que isso me ajuda no delineamento de um interesse de pesquisa sobre “padrões de seletividade e suspeição”? Fui aconselhada por um amigo a fazer uma visita ao BAC para conhecer a atividade dos “cachorreiros” da corporação. Na época, achei que fazia sentido. Queria começar a delinear meus interesses e nada melhor do que ir à campo e deixar-me afetar pelas pessoas, pelo ambiente. Afinal, como diria Françoise Laplantine, a etnografia consiste em ficar atento, mas também ficar desatento e se deixar abordar pelo imprevisto, estar lá, em corpo e sentidos, para que se possa aprender a olhar o que importa para uma alteridade descoberta em uma relação humana (LAPLANTINE, 2004:18). Pareceu-me que o caminho mais interessante para essa afecção seria pensar o “faro policial” como uma expressão metafórica. Segundo Victor Turner (2008), a metáfora é um instrumento especulativo útil, uma pista para a compreensão do mundo, uma maneira de proceder do conhecido ao desconhecido (:21-22). Uma espécie de monstro liminar (:26), uma forma de cognição que opera, por meio de uma extensão analógica entre sentidos convencionados (estruturais) e não-convencionados (antiestruturais), uma transformação semântica do universo de ideias, imagens, sentimentos, valores e estereótipos associados aos termos em sua coatividade expressiva (TURNER, 2008). Para Lakoff e Johnson (2003), essa transferência de sentidos transformadora é direcional e seletiva. Muito embora se afetem mutuamente, um dos termos da metáfora desempenha um tipo de agência privilegiada sobre o outro, no sentido de produzir uma associação de ideias em que apenas parte de seus atributos significativos é chamado a contaminar os sentidos associados ao

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uso literal do outro10. O caráter motivado dessa escolha de palavras é o que nos permite inferir algo sobre os valores que circulam por essas relacionalidades e operam metaforicamente esses conceitos que orientam a ação cotidiana, a vida, mais que apenas a intelecção (LAKOFF & JOHNSON, 2003). Nesse sentido, quando falam sobre o que fazem em termos de “faro”, os policiais militares entrevistados, em um plano mais ou menos consciente, mobilizam imagens que “nossa” sensibilidade social associa afetivamente a ideia de natureza, enquanto valor classificatório dominante e princípio organizador de uma série de atributos (DURKHEIM & MAUSS, 1995). Esses atributos naturais, quando associados à imagem do “policial”, dizem coisas sobre as características individuais daqueles que alegadamente operam esse saber-poder (FOUCAULT, 2012, 2013), mas também – e é o que se espera demonstrar no presente exercício – sobre as características institucionais em que este é operado, produzindo tensionamentos em torno de outros sentidos possíveis do “ser policial”. Essas tensões e disputas são dramatizadas nas ocorrências atendidas diariamente nas ruas da cidade, mas também nas narrativas que se constroem sobre “o que realmente aconteceu” entre seus participantes – principalmente quando disso se depreendem outros desdobramentos, de ordem administrativa, como promoções, prisões, punições etc. Em diversos momentos, quando falam sobre as características do “faro policial”, meus interlocutores produzem pontes significativas entre domínios naturais e culturais que, para o “nosso” imaginário ocidental moderno, constituem, em princípio, entidades discretas e incomensuráveis. Essa tradição, na Antropologia, remonta um debate cuja origem nos remete, inevitavelmente, a definição de cultura de E. B. Tylor. Logo na abertura de “A Ciência da Cultura”, publicado originalmente em 1871, nos primórdios da formação da disciplina, Tylor nos oferece uma primeira formulação conhecida do conceito11. Por sua vez, ao englobamento da cultura pela natureza, sustentado pelos evolucionistas e presente na definição tyloriana, Kroeber (1993) nos conclama a Na famosa peça de William Shakespeare, “Romeu e Julieta”, Romeu acorda ao lado da amada e lhe diz “Qual é a luz que brilha através daquela janela? É o Oriente, e Julieta é o Sol. Ergue-te, ó Sol resplandecente, e mata a Lua invejosa, que já está fraca e pálida de dor ao ver que tu, sua sacerdotiza, és muito mais bela do que ela própria” (Ato II, Cena II). Quando utiliza a expressão metafórica “Julieta é o Sol”, Romeu chama a contaminar os sentidos de Julieta talvez o calor, a imprescindibilidade do sol para a vida, mas não se apropria, por exemplo, de sua cor amarela, dentre outros sentidos associados à ideia de sol. 11 Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade (CASTRO, 2005: 31) 10

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emancipação, a seguir o caminho de um lado e de outro do abismo, sem a ilusão de superação dessa dicotomia de antíteses complementares12. Marilyn Strathern (2014), por sua vez, em “Sem natureza, sem cultura: o caso Hagen”, a partir de sua etnografia na melanésia, afirma que a força do antagonismo natureza e cultura para a “sociedade ocidental” seria proporcional à sua instabilidade. Na linguagem cotidiana – e mesmo nas apreensões acadêmicas do debate –, à serviço da expressividade e da comunicação de ideias, tendemos a estabelecer uma série de relações imagéticas entre esses domínios simbólicos: de contínuo, de processo, de hierarquia etc. (:33). No Batalhão de Ações com Cães (BAC), como pretendo demonstrar, essas relações imagéticas se estabelecem a partir dos “cães de faro”. Para que um “cão de faro” possa fazer o seu trabalho ele deve ser condicionado à responder a uma lógica compensatória: o animal segue a pista do odor ao qual foi condicionado a associar o seu “brinquedo” de preferência. Uma vez encontrada a fonte da “trilha de cheiro”, o “rastro”, o animal recebe a sua merecida recompensa e, com o tempo e a prática reiterada desta pedagogia, reforça-se essa associação13. A formação desse “cão de faro”, no discurso de meus interlocutores, se confunde com a constituição do próprio “cachorreiro”. Apenas quando consegue construir, de maneira efetiva, o chamado “binômio homem-cão”, o “cachorreiro” é reconhecido por seus pares como alguém digno de ostentar essa alcunha legitimamente. No BAC, a construção dessa conexão entre o homem e seu cão começa com o “Curso de Adestradores de Cães para Emprego Policial” (CACEP), que habilita o agente, Praça

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A natureza, o orgânico, pertenceria ao campo do fato, do dado, do real e da objetividade. Ela é interior, individual, adquirida, inescapável e limitante, circunscreve os seres ao que lhes é dado de nascença, pela hereditariedade e pelo instinto. A cultura engloba o artefato, o construído. É exterior aos indivíduos, pertence aos coletivos. Ela é apreendida e passível de ser questionada, modificada. É criatividade, produto expressivo da engenhosidade e do intelecto humano que, por meio da linguagem, da capacidade de simbolização, libertam os indivíduos dos grilhões deterministas de sua existência natural. Mas cultura também circunscreve, melhor, prescreve por meio dos processos educacionais, de transmissão e manutenção da tradição, enquanto cumulativo de valores, descobertas e condutas compartilhadas, circunscritas geográfica e historicamente. 13 O estímulo produzido por essa associação é tão forte que, segundo afirmaram os “cachorreiros” com quem conversei, o cão devidamente treinado aprenderia a resistir à estímulos naturais básicos – como, por exemplo, o cheiro de cio de uma cadela que porventura cruze o seu caminho durante uma operação –, movido pela recompensa afetiva representada pelo ato de receber de seu “condutor” e “companheiro de matilha” os afagos que acompanham a sua recompensa: a oportunidade de, mais uma vez, estar com seu brinquedo. Por isso os labradores são ótimos “cães de faro”, são brincalhões e respondem bem ao condicionamento que associa um odor determinado a um objeto de desejo para suas brincadeiras, que pode ser uma bola, um boneco etc. Tem a coisa da quantidade de células olfativas no trato respiratório do animal, mas aí já é entrar demais numa seara técnica do ofício.

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ou Oficial, a conduzir um “cão de faro”. No ofício do “cachorreiro”, a condução de um “cão de faro” é tida como a atribuição mais refinada e complexa de seu fazer. No CACEP, desde o primeiro dia de treinamento, o aluno recebe um cão, pré-selecionado por outros “cachorreiros” mais experientes, para servir de laboratório na constituição do “binômio homem-cão”. O futuro “cachorreiro”, então, é estimulado a “entrar na mente do animal” a partir de uma pedagogia ritual mimética, em que o homem é chamado a assumir a perspectiva do cão ao vivenciar situações e sensações típicas de sua condição. Nesse sentido, o aluno-neófito deve começar seu percurso ritual dormindo no canil, na baia, junto ao seu cão, no mesmo tablado de madeira que lhe servirá de cama. Deve colocar o “enforcador” e sentir “na própria pele” aquilo que o animal sente ao ser conduzido por esse tipo de guia. Tudo isso para produzir o tipo de “conexão” necessária à qualificação dos sentidos que, orientado por um imbricado sistema classificatório, faculte ao futuro “cachorreiro” a habilidade de interpretar os sinais emitidos por seu cão. “Isso começa desde a retirada do cão do box. Nos cursos a gente costuma dar um cão pro aluno, um cão fica com um aluno, ainda mais no curso de adestrador, o aluno tem que formar esse cão. Você tem que entregar o cão pronto no CACEP. Você pega um cão sem adestramento nenhum e você tem que entregar ele pronto. Você tem quatro meses pra fazer o cão. Pra aprender a adestrar, por isso que o CACEP é um curso puxado, porque o ‘cacepiano’ tem que estar pronto pra trabalhar em qualquer função (...) Ele tem que entregar esse cão pronto e ele passa o tempo todo com o cão, tem que fazer tudo com o cão (...) Você recebeu o cão, você dorme com o cão. Você dorme no box com o cão, porque você tem que saber o que o seu cão passa. Tem que ter completa noção do que tá acontecendo com ele. É um lugar frio, o chão é gelado... No curso o cão tem todas as mordomias possíveis, o que a equipe de instrução puder facilitar pro cão e piorar pro aluno vai piorar. O cão vai dormir no palet dele pra não sentir frio, contato com o chão e tal, água etc., mas ele tem que estar ali e saber as condições em que o cão dorme. No adestramento, olha só isso aqui e um colar um enforcador. Tá vendo isso aqui como dói, ‘sim senhor’, então se você puxar forte vai machucar o seu cão, vai prejudicar o adestramento. Porque tem que formar esse binômio [homem-cão] até que o turno todo vai virando uma matilha. Os cães que no início brigam, no final do curso eles já tão juntos como uma família (...). Oficial “cachorreiro” (grifos meus)

Ao final deste processo ritual, espera-se que o “homem se torne um cão” e que o cão “se torne um membro da guarnição do BAC”, “o turno14 se torna uma matilha”, expressão metafórica de uma determinada ética e de sua estética correspondente, que identifica e

“Turno” é o termo utilizado para designar todos os policiais que participam de uma mesma turma de um curso de operações especiais. 14

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singulariza o “cachorreiro” no universo policial militar15. O “binômio homem-cão” estabelece entre o condutor e seu “cão de faro” a ficção de uma linguagem comum, não verbal, que possui a sua própria eficácia na produção dos resultados da atividade do “cachorreiro”.

Essa conexão é única e intransferível. É referida em termos de

“sentimentos”, “energias”, transmitidas entre o homem e seu cão por instrumentos como a própria “guia” do condutor, olhares, afagos. Muito embora conte com alguns princípios classificatórios gerais, orientadores da atividade do adestrador de cães, parte-se da percepção de que “cada cão é um indivíduo”, portanto, a cada nova parceria, uma nova “conexão” binomial deve ser construída. Nesse sentido, decidi então levar à sério as implicações concretas de afirmações construídas figurativamente por meus interlocutores e explorar, por meio do recurso metafórico, o universo de significados mobilizados em expressões como “todos viram uma matilha”16 ou de que o cão é um “membro da guarnição do BAC”. Toda a estrutura da guarnição do BAC, formada por nove policiais no total, se organiza a partir da condução e proteção do cão, que forma, com seu condutor e com o “homem canga” 17, a chamada “célula faro”. Os demais integrantes, todos, destinam-se a proteção desta “célula faro”, que dita o ritmo e o direcionamento da progressão no terreno. Segundo afirmaram meus interlocutores, estes seriam os principais motivos para a baixa letalidade e alta “produtividade” do BAC: uma progressão cautelosa, lenta, totalmente direcionada pelo “faro” à busca e apreensão de armas e drogas. Estimulada pela visita, passei a acompanhar o BAC no Facebook18. As postagens, quase todas, ressaltam a ideia do “batalhão dos melhores amigos”, em que os atributos do “binômio homem-cão” (confiança, companheirismo, empatia etc.) são muito valorizados enquanto ideais para o comportamento de seu efetivo, seja na relação uns com os outros,

Motivados por esta “conexão”, essa troca de perspectivas entre homem e animal, logo abaixo do “nome de guerra” do subcomandante da unidade podia-se ler a inscrição “cão 420”, como mencionei no relato de campo que abre esta parte do artigo. O cardinal indica a senioridade do “cachorreiro” e corresponde ao seu “número de cursado”, cujo início da contagem remonta os primórdios do CACEP. 16 Nesse sentido, por exemplo, “lealdade” e “companheirismo”, atributos associados à “natureza” do cão, são enaltecidos na forma alternativa pela qual o BAC também é conhecido, o “batalhão dos melhores amigos”, o que diz algo mais sobre a conduta esperada de sua tropa do que propriamente sobre o comportamento dos animais. 17 O termo refere-se a um policial, normalmente um sargento mais “antigo” e experiente, responsável por realizar “tarefas especiais voltadas para o cão”, auxilia-lo na progressão no terreno, na superação de obstáculos, identificação das melhores vias de acesso etc. 18 https://www.facebook.com/BACPMERJ/videos/568560006557952/ 15

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com os próprios animais ou com a “sociedade”. Por outro lado, a “produtividade” da unidade também é muitíssimo valorizada. Isso a distingue das demais unidades da PMERJ, por operar segundo uma lógica de ação totalmente proativa e direcionada. Enquanto as “unidades convencionais” realizam, muitas vezes, “incursões” inócuas em favelas, em que a troca de tiros é certa, mas a “produtividade” é incidental, a ação do BAC rende apreensões de armas e drogas. E isso, segundo meus interlocutores, por conta da centralidade do “faro” na constituição identitária e doutrinária da unidade, agenciada por intermédio do “binômio homem-cão”. O “faro policial”, enquanto uma espécie de metáfora de natureza-cultura, é carregado semanticamente por esta associação com o atributo animal, trazido à nossa reflexão por intermédio do relato sobre a atividade do policial “cachorreiro”. Como veremos a seguir, os policiais militares entrevistados, envolvidos na ocorrência da prisão do “Nem da Rocinha”, quando mobilizam a categoria “faro”, também dialogam com a ideia de uma ação direcionada e a um tipo de lógica compensatória, motivada, que esperamos desdobrar, nas linhas que seguem, a partir da categoria subsidiária de rendimento. No BAC, as guarnições mais “produtivas” são, no geral, as que sustentam uma conexão mais afinada entre atributos ditos “humanos” (experiência, técnica, composição etc.) e “não-humanos” (seus “cães de faro”) do “binômio”. Os cães têm em seus “brinquedos” objetos de desejo e fontes de recompensa afetiva. Assim é também com os humanos. Apenas um policial motivado “fareja” ativamente, manipulando (ou desconsiderando) os perigos de um ambiente institucional marcado pela imprevisibilidade de um mandato precário (MUNIZ & PROENÇA JR, 2007) e pelas lógicas de culpabilização (LIMA, 2013) que assolam o seu agir.

Sobre “faro policial”: a prisão do traficante Nem como drama social sobre culpa e responsabilização “Oito de novembro de 2011, noite de terça feira. Uma equipe do Batalhão de Polícia de Choque aguarda sua “rendição” depois de um cansativo serviço de 24 horas num dos “pontos de bloqueio” montados durante o “cerco” à favela da Rocinha, comunidade situada na Zona Sul do Rio de Janeiro e que receberia, na semana seguinte, uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Pela primeira vez, desde 2008, quando foi instalada a primeira UPP, a operação de cerco tinha sido montada com tanta antecedência. Talvez a Secretaria de Segurança quisesse responder às 14

críticas sobre a “migração de traficantes”, pretensamente oportunizada pela estratégia de “guerra avisada” adotada pela pasta para evitar confrontos armados durante as ocupações. E os resultados, até aquele momento, pareciam muito bons. A imprensa, nacional e internacional, cobriu amplamente as prisões e apreensões que se seguiram naquela semana. Essa enorme visibilidade pública enredava o processo em uma aura de espetáculo. As ruas de São Conrado e da Gávea, bairros nobres da cidade, onde a Rocinha está situada, viram-se tomadas pelo vermelho e azul das viaturas de polícia como nunca. Essa ostensividade toda não é típica do policiamento nessas áreas. As pessoas, no geral, querem segurança, mas não querem um contato tão vivaz, uma interferência tão expressiva da polícia em seu cotidiano. Mais cedo, numa das ruas da Gávea, policiais civis e militares tinham sido presos “fazendo a segurança” de traficantes da Rocinha. Infelizmente, isso é bem comum. Talvez por conta disso, as unidades territoriais tenham um papel mais periférico nessas ocasiões. Sobre elas, paira sempre uma suspeição no que se refere ao seu comprometimento com esquemas locais de distribuição de propina, para os quais o “movimento” costuma destinar quantias substanciosas de seus recursos. As chamadas “unidades especiais” – como o próprio Batalhão de Choque, a Coordenadoria de Operações Especiais (CORE) etc. –, que não tem base territorial, assumem esse protagonismo. Em tese, não estão enredadas em esquemas desse tipo, de base local. O Batalhão de Choque, nesse caso, era responsável por montar os bloqueios no entorno da favela naquela semana de cerco. A orientação recebida pela tropa e seus Oficiais supervisores era “parar todo mundo”, todo veículo que descesse as vias de acesso à comunidade deveria ser revistado, mesmo as viaturas de polícia, ambulâncias, o que fosse. Circulavam rumores de que o “01” da Rocinha teria sido surpreendido pela antecipação da operação de cerco e ainda se encontrava no interior da favela. Final do dia, depois de um “serviço de 24 horas”, uma guarnição do Choque cansada ainda aguarda a sua “rendição”. Uma hora de atraso! “Os colegas tinham ido jantar antes”, me diz um dos entrevistados. Era hora do rush e o trânsito intenso dificultava o deslocamento das viaturas. A própria supervisão dos pontos de bloqueio não conseguia chegar. Dois Oficiais, Tenentes, um “mais antigo” outro “mais novato”, amigos desde a escola de formação, dividiam a supervisão nesse dia. Em razão do fluxo de veículos, decidiram dividir os pontos para reduzir a necessidade de deslocamento. Um ficou responsável pelos bloqueios do lado da Gávea, outro pelos de São Conrado, e o deslocamento, quando necessário, era feito por dentro da Rocinha. Um grande carro preto, filmado, desce pelo acesso via Estrada da Gávea. Um Soldado, à frente do bloqueio, seleciona o veículo e faz sinal para que encoste. Não era um carro popular, tinha uma mala grande, lembrava muito a imponência de veículos funcionais blindados de autoridades e figuras públicas. O Soldado pede que os ocupantes desembarquem do veículo para a revista. Todos concordam. Um dos ocupantes, que logo se identifica como advogado, assume a interlocução com os policiais. Mostra-se simpático e acessível. Pedem-lhe que abra a mala. Daí começa a celeuma. “Não posso abrir a mala”. O advogado se nega e apresenta o argumento de que o veículo pertenceria ao Consulado do Congo. Ele apresenta o homem que conduzia o veículo como cônsul honorário. Justifica, então, sua 15

resistência pela natureza do conteúdo da mala, que estaria cheia de documentos diplomáticos confidenciais. A resistência do grupo chama a atenção do restante da guarnição. Um Sargento, “mais antigo” e experiente, assume a interlocução com os ocupantes do veículo. A mala precisa ser aberta, essa é a determinação, “não passa nada”. Esse Sargento, hoje Subtenente, tem fama de “bom cumpridor de ordens”. Se mandarem parar “o Papa” e vossa santidade for desafortunado o suficiente para parar num bloqueio que ele esteja comandando, diz-se, “o Papa que se prepare”. Os integrantes da guarnição, então, começam a trocar impressões entre si. Não era “normal” toda aquela resistência, afinal “quem não deve, não teme”. A placa do veículo era comum, não era placa de veículo diplomático. E por que, diabos, o cônsul dirigia seu próprio carro? Não seria esperado que um motorista o fizesse? Frente à intransigência do advogado, que ameaçava os policiais com “carteiradas” e represálias diplomáticas, o Sargento decide chamar a “supervisão de oficial”. Ele explica, por telefone, a situação. O Tenente se dirige para o ponto de bloqueio. O advogado, que tinha tomado a frente das tratativas, com a chegada do Tenente, abandona o Sargento e dirige suas atenções para a “maior autoridade no local”, “quem poderia resolver o seu problema”. O Tenente passa direto pelo homem e consulta o seu Sargento, que lhe relata os eventos. Um carro de “alto padrão”, com uma mala grande, saindo de uma favela que seria ocupada nos próximos dias, da qual se tinha notícias de pessoas (inclusive policiais!) auxiliando na fuga de criminosos procurados, com um cônsul na direção de seu próprio veículo diplomático, cujo emplacamento não correspondia a de um carro de consulado, com dois advogados “vestidos como bicheiros” e uma “autoridade” que não agia como tal (“o cônsul era o mais bundão de todos”). O rastro de inconsistências levava a apenas uma conclusão, tem “caroço nesse angu”. “Abre a mala”, disse o Tenente. O advogado sustenta seus argumentos. Um Soldado chega próximo ao Tenente e fala “meu chefe, isso vai dar merda...”. O Tenente não consegue identificar a autenticidade dos documentos apresentados. “Era inexperiente”, diz ele, “hoje já teria uma outra visão do que aconteceu”. Decide chamar seu “veterano”, que dividia com ele a supervisão dos pontos. Chega o Tenente “mais antigo”. Mais uma vez o advogado se volta para o policial de maior posto. Mais uma vez se vê preterido. Os Tenentes conversam primeiro entre si, depois com os Sargentos. Um deles chama a atenção para o fato de que, a despeito do desembarque de seus ocupantes, o veículo permanecia pesado, com o eixo traseiro arriado, “como se tivesse alguém na mala”. Dito isso, voltam-se todos para o advogado. A versão que ele conta não bate com a que contou ao jovem Tenente. Este se põe a fazer questionamentos frontais às inconsistências desta nova versão da história. Isso irrita o advogado. Ele pede para falar a sós com o Tenente mais experiente. Destacados do grupo, ele recebe a notícia bombástica, dita em tom de sedução, um “canto da sereia”. Na mala do carro, ao invés de documentos diplomáticos, haveria um milhão em dólares, reais e euros, “dinheiro como ele nunca tinha visto”. É aí que o Tenente, responsável pelo comando da operação, decide, sem pestanejar, tirar o veículo daquele local. Se aquilo era verdade, havia um risco implicado. Se aquilo fosse “dinheiro do tráfico” certamente seria resgatado a qualquer momento. Correria. Todos se mobilizam para um 16

eventual ataque. Nisso (finalmente!) chegam os policiais da equipe de rendição. Eles assumem o ponto de bloqueio e a equipe que “fez a ocorrência” segue, em suas viaturas, para a Delegacia de Polícia Federal, na Praça Mauá. No caminho, duas paradas e mais duas ofertas de propina depois, o grupo chega à Lagoa Rodrigo de Freitas, em frente ao Clube Piraquê. Ali, vendo que não iriam, como tinham sugerido, para a Delegacia de Polícia Civil da área, que seguiam para a Polícia Federal, pararam no recuo em frente ao clube, saíram do veículo e começaram a esbravejar sobre a arbitrariedade e ilegalidade da conduta dos policiais. O jovem Tenente, o tempo todo ao telefone com o comandante do Batalhão de Choque, decide, incentivado por seu “01”, ligar para um grupo de policiais federais que havia conhecido mais cedo, numa outra ocorrência. É quando um delegado de Maricá chega ao local, em princípio, acionado pelos advogados. O Soldado, mais uma vez, chega no ouvido do Tenente e repete, com mais ênfase dessa vez, “meu chefe, isso vai dar merda...”. Os agentes de polícia federal que, por sorte, comiam uma pizza ali por perto, no Jardim Botânico, chegam logo em seguida. Inicia-se uma “disputa de autoridade”. Chegam policiais da CORE, unidade especial da Polícia Civil. As relações de poder se desequilibram em favor do delegado. “Eu sou a única autoridade aqui”, esbraveja ele, pegando as chaves do veículo para, ele mesmo, conduzi-lo à delegacia mais próxima. Um verdadeiro tumulto havia se instalado. Uma confusão de uniformes, viaturas, curiosos, flashes. O Tenente “mais antigo” manda que as viaturas do Batalhão de Choque cerquem o veículo para que ele não saia. “Você só sai daqui se for um helicóptero”, retruca ele, furando, em seguida, o pneu do veículo com a faca tática de um colega. No auge do pandemônio espetaculoso em que tinha se tornado aquela ocorrência, bateu o medo. Aquilo tinha ficado grande demais. E se não fosse nada? E se toda aquela confusão, no final, tivesse sido por um “baseado”, uma coisa vexatória qualquer que estivesse na mala do carro? “Lembrei da cena dos Intocáveis”, me confessou, depois, o Tenente “mais antigo”, se referindo ao episódio do filme19 em que Eliot Ness “estoura” um carregamento de sombrinhas, achando se tratar de um grande carregamento de bebidas alcoólicas de Al Capone20. Chega ao local um delegado de polícia federal, conhecido do comandante do Batalhão de Choque. Este último, o delegado de polícia civil e o advogado se destacam da confusão. O jovem Tenente, com o comandante do Batalhão de Choque grudado em seu ouvido, observa à distância, mas próximo o suficiente para ouvir da boca do advogado “o Nem está na mala”. A confusão se instala. “É o Nem, é o Nem que tá na mala”, grita ele. Todos correm em direção ao veículo, exaltados, eufóricos, querem estar lá quando a mala for aberta. Um dos policiais militares chama o delegado de ladrão. Um empurra-empurra começa. A mala se abre. Antonio Francisco Bonfim Lopes, conhecido como “Nem da Rocinha”, é retirado do veículo em meio ao escarcéu que sua prisão tinha se tornado. “Todo mundo quis meter a mão no preso”, todos queriam um pedaço da glória, da repercussão. “O preso é do Batalhão de Choque”, grita o Tenente “mais antigo”. Um mundo tinha saído de suas 19

https://www.youtube.com/watch?v=PwgsaYvHP3Y

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http://1.bp.blogspot.com/-rZMV0rAjyFU/T1K8EaMZ93I/AAAAAAAAAZ8/EBWk_3K9yjM/s1600/os+intoc%C3%A1veis+guarda+chuva.JPG

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costas. Não seria punido, não seria motivo de chacotas, tinha prendido o “Nem da Rocinha”, a “bola da vez” do movimentado hall de “traficantes mais perigosos” da segurança pública fluminense. Podia dormir tranquilo. Não seria lembrado por perseguir “sombrinhas””21. Trecho de relato de campo

O relato acima é uma sistematização parcial. Parcial em razão de se constituir em síntese das entrevistas realizadas até o momento, mas, principalmente, porque são o produto de um investimento de transformação, sob a perspectiva da descrição etnográfica, do olhar em linguagem, do que foi visto e ouvido no campo, em uma narrativa possível dos eventos (LAPLANTINE, 2004). Narrativas de narrativas de um drama social, portanto, assombradas pelos limites e possibilidades de seu caráter, em certo sentido, ficcional. Além das entrevistas com dois praças e dois oficiais envolvidos diretamente na ocorrência, foi realizada uma extensa pesquisa sobre a cobertura dada pelos meios de comunicação de massa aos eventos. Vídeos, fotos, reportagens, na imprensa nacional e internacional, serviram de material complementar aos relatos coletados junto aos atores, mas também conversas com outros policiais sobre as repercussões institucionais da ocorrência de prisão do “Nem da Rocinha”. Para Victor Turner, um evento adquire contornos dramáticos quando, num determinado contexto relacional, padrões normativos estabelecidos na experiência social e aspirações imediatas de indivíduos e grupos entram em choque em uma sucessão minimamente encadeada de acontecimentos (TURNER, 1996, 2008). Nessas ocasiões, de crise e conflito, os valores que são caros aos atores sociais emergem, performados naquilo que dizem e fazem com os símbolos, mobilizados pelos dramas sociais vividos. Para Turner, os dramas sociais se processam em três momentos: a ruptura, símbolo claro de uma dissidência, envolve o descumprimento deliberado de alguma norma crucial que regule as relações entre as partes, estopim simbólico de um embate público; a crise crescente, em que opera a tendência do alargamento da ruptura inicial (ou escalada da crise), possui, segundo o autor, características liminares, uma vez que se caracteriza por uma espécie de interstício entre duas fases relativamente estáveis do processo social; e, por fim, a fase de ação corretiva, em que atuam mecanismos de ajustes e regeneração do 21

https://www.youtube.com/watch?v=NpSNILOlI5A https://www.youtube.com/watch?v=WwmXBpQcrgE

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tecido social (TURNER 2008: 33-34). Para o etnógrafo, caçador ativo e atento (MALINOWSKI, 1978:22), esses momentos mostram-se extremamente produtivos. Além de uma oportunidade para o exercício do olhar, acontecimentos críticos mobilizam paixões, revolvem velhas querelas, influindo sobre a predisposição dos sujeitos de se posicionarem e falarem sobre o ocorrido. A prisão de Antonio Francisco Bonfim Lopes, conhecido como “Nem da Rocinha”, aconteceu em 2011. Portanto, como mencionei anteriormente, o que se analisa aqui, sob a perspectiva do drama social (TURNER, 1996), não é um caso registrado de forma testemunhal direta, mas histórias contadas sobre o que aconteceu. Histórias parciais, produzidas por atores posicionados e que mobilizam esse tempo pretérito – um pouco como o conceito de mito leacheano (LEACH, 1996) – à serviço de expectativas e interesses do tempo presente. Nesse sentido, ao analisar narrativas, procuro identificar as motivações dos atores, os conflitos que elas explicitam e o que elas dizem sobre o que lhes é caro na sustentação de suas versões dos eventos. Uma das tensões que se coloca para esta narrativa se situa entre o caráter de proatividade do “faro”, os padrões institucionais de “produtividade” e as lógicas de culpa e responsabilização (LIMA, 2013), que expõem os agentes a um ambiente de instabilidade e perigos em seu agir. Há também aí um tensionamento marcado entre o oral e o escrito, entre o que é dito pelos diversos atores envolvidos na ocorrência e o que “vai para o papel” e efetivamente produz desdobramentos burocrático-legais para os participantes. Como um relato de conversão, a consistência significativa entre os eventos narrados é dada à posteriori, à luz de uma revelação. Quando “Nem” sai da mala, o efeito é de validação de todas as escolhas (boas ou ruins), de todo o percurso decisório da ocorrência, que pesava “como o mundo” sobre os ombros de seu comandante. E se não fosse o “Nem”? E se realmente aquela plêiade de “autoridades” tivesse algum motivo razoável para não abrir a mala do carro? A ordem, afinal, era “parar todo mundo”. Mas até quando essa ordem se sustenta? No caso da prisão do “Nem da Rocinha”, relatada acima, todos os policiais foram promovidos “por bravura” por conta dos resultados da ocorrência. Ganharam fama como “policiais incorruptíveis”, foram homenageados, ganharam prêmios. Mas também foram perseguidos e tiveram dificuldades em se “reencontrar” dentro da corporação. Sua fama os precede, tornando-os, segundo dizem, “indesejados”. Mas e se desse errado? Se não fosse o “Nem”? Como justificar atitudes que foram tomadas fora da técnica e até nas franjas da legalidade? 19

Seguindo esta linha de argumentação, o “faro policial” oferece um tipo de enquadramento de referência que serviria à proteção dos agentes frente aos riscos do agir, tanto no que se refere aos riscos concretos que se impõem a sua integridade física e de terceiros, ampliando sua capacidade de predição dos desdobramentos de suas intervenções, quanto (e talvez, principalmente) à imprevisibilidade das lógicas de culpabilização (LIMA, 2013) da PMERJ. Ele opera também como uma narrativa sobre indícios que justificam a “fundada suspeita” e todo o seu percurso decisório à luz dos resultados obtidos e de sua repercussão para dentro (entre seus pares, seu comando etc.) e para fora (opinião pública etc.). “A primeira coisa é entender que uma abordagem errada é uma bola de neve, né? Uma abordagem errada ela pode ter um desdobramentos que pode chegar até mesmo ao uso da força letal. Então o desenvolvimento, o refino desse faro vai trazer pra ele um ganho onde ele vai conseguir atuar de maneira mais profissional, onde ele vai conseguir atuar de maneira que ele consiga preservar tanto a integridade física dele quanto do cidadão; tanto a liberdade dele quanto a liberdade do cidadão e tanto a vida dele quanto a vida do cidadão, porque ele vai conseguir realizar a abordagem somente no momento em que realmente houver uma fundada suspeita, ele vai perceber essa fundada suspeita através desse faro policial”. Oficial da PMERJ

Nesse sentido, segundo meus interlocutores, um fator crítico para a forma como a ocorrência da prisão do “Nem” foi conduzida teria sido o que chamaram de “suporte institucional”, ou seja, o respaldo dado a suas ações por seus superiores hierárquicos. O “faro” é um atributo de proatividade, direcionamento da ação. Implica que o policial não esteja a esmo na rua, sem direcionamento, mas que ele esteja buscando algo. Como um “cão de faro”, o agente deve estar disposto a seguir ativamente os indícios que insinuam que uma determinada situação merece ser alvo da intervenção policial. Isso, entretanto, só tem rendimento em um ambiente institucional em que as regras e sua aplicação seguem linhas claras, em que o policial pode, minimamente, acreditar na previsibilidade das consequências de seus atos. “Na verdade, assim, o que acontece... essa coisa da ‘carteirada’ pra você combater isso você precisa dar um suporte muito grande pro policial, ele precisa estar certo que não vai sofrer represália se fizer o certo, se ele fizer a coisa certa, que é continuar com a ocorrência, que é realizar a abordagem, que é abordar, fazer a busca pessoal independente de quem seja, juiz, delegado, médico... então ele precisa desse suporte, precisa se 20

sentir seguro né? (...). É um carro chique com uma pessoa que, aparentemente, é dessa classe social, o dono do carro, o proprietário do carro, o policial fica com o pé atrás; se ele perceber que seria motorista particular ele pode ‘Então vou abordar sim porque não é o dono, não é a pessoa que detém influência’”. Praça da PMERJ

Além do imobilismo e da evitação, essa imprevisibilidade faz com que o policial, ao ser pressionado pelos marcos de “produtividade” institucional, muitas vezes, adote uma postura entendida como de baixo risco, decidindo abordar pessoas e situações que, ele acredita, lhe trarão rendimentos livres de “problemas” futuros. O “faro”, nesse sentido, acaba operando como um tipo de recurso de “sobrevivência institucional”, para identificação dos cursos de ação menos “problemáticos” e de justificação para suas escolhas. Segundo Egon Bittner, em sua lida diária, um “bom policial” sabe que deve aprender a ver, ouvir e intervir diante do que emerge, sempre atento a reconhecer os sinais de que algo que não deveria estar acontecendo está acontecendo e alguém deve fazer algo a respeito agora (BITTNER, 2003: 234). Entretanto, pelo menos segundo o material empírico que sustenta o presente argumento, a intervenção policial não parece operar motivada nem pela lei, muito menos por um sentido de urgência dado, predominantemente, pela ordem do fenômeno, por um imperativo de sua natureza fenomênica intrínseca (algo que não deveria estar acontecendo), mas pelos rendimentos potenciais desdobrados a partir da decisão de agir ou não agir, próprios do que Howard Becker chama de situação de trabalho da polícia (BECKER, 2009). E como entendo que, até este ponto de minha etnografia, não se pode falar em “faro” sem falar em motivação, sem situá-lo à luz de uma discussão sobre “proatividade” e “produtividade” da ação policial, procurei sistematizar alguns possíveis rendimentos vislumbrados pelos policiais para que apliquem esta habilidade ativamente no cotidiano do policiamento. Nesse sentido, para fins analíticos, aquilo que chamamos de rendimentos podem ser situados em quatro campos motivacionais que, na prática, encontram-se interligados: (1) “recompensas institucionais” (folga, gratificações, prêmios, promoções etc.), desdobradas dos indicadores de “produtividade” e prioridades atribuídas pela corporação; (2) o que chamo “sobrevivência institucional”, no sentido de buscar proteção

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contra os diversos perigos do agir cotidiano, como a “perda da vida ou da liberdade”; (3) capital simbólico, ou seja, reputação (BOURDIEU, 1996), acumulada frente aos pares; e, por fim, pode-se “farejar” com vistas à (4) identificação de potenciais mercadorias políticas (MISSE, 2006) decorrentes de sua intervenção, em que se pode negociar, por exemplo, a liberação de um “flagrante” em troca de informações ou qualquer outro tipo de “dádiva” (MAUSS, 1989), seja ela classificada como “legal” ou “ilegal”.

Conclusão Em princípio, pode causar estranheza a relação imaginada entre o ofício do “cachorreiro” e a prisão de um criminoso procurado que, dizem, chefiava o tráfico de drogas numa das maiores favelas da América Latina, quiçá, do mundo. A história recente do Batalhão de Ações com Cães (BAC) conecta “faro” e “produtividade policial” como fenômenos relacionados. Nos discursos, expressivamente, atributos de natureza e cultura, animalidade e humanidade, afetam-se mutuamente na construção de uma narrativa que, à posteriori, explica e justifica, a partir do investimento no “binômio homem-cão”, a relação entre as medidas adotadas e os rendimentos institucionais obtidos pelo BAC. Esta questão está presente também, segundo creio, na ocorrência de prisão do “Nem da Rocinha”. Havia uma ordem, “parar e revistar todo mundo”. Toda a visibilidade da operação contraindicava, fortemente, que qualquer coisa diferente disso fosse feita. Nesse contexto, o “faro” dos policiais da guarnição (e um tanto de teimosia, talvez) deu direcionamento à tomada de decisão e permitiu que, uma vez bem sucedida, sua ação fosse coroada de rendimentos (promoções, reputação, prêmios etc.). Além disso, havia o que meus interlocutores chamaram “respaldo institucional”. As praças tinham o “respaldo” de seus comandantes, os dois Tenentes responsáveis pela supervisão da operação. Estes, por sua vez, tinham o “respaldo” do comandante do Batalhão de Choque, “pendurado no ouvido” do jovem Tenente, pautando e assumindo responsabilidades. Em última instância, havia o “respaldo” da ação, inserida em uma mega operação de “cerco”, planejada a serviço da instalação da UPP da Rocinha. A “experiência” – não só de “rua”, creio eu, mas da institucionalidade policial militar como um todo – permite que o policial visualize esses fatores e saiba quando, como e a serviço de quê aplicar seu “faro”.

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Nesse sentido, ao refletir sobre os rendimentos teóricos desta proposta de exercício, entendo que ela me permitiu perceber uma relação entre o atributo de animalidade do “faro” e as características do ambiente institucional em que este é chamado a operar. Além disso, de forma subsidiária, foi possível propor uma reflexão sobre o valor lógico e ontológico da separação entre natureza e cultura, enquanto separações e relações inventadas à serviço da expressão de ideias e sentimentos. Não se pretende com isso, como já é possível inferir a essa altura, nem reificar, nem, tão pouco, desconsiderar que esta é uma imagem que possui um valor classificatório que faz sentido para a “nossa” sensibilidade social (DURKHEIM & MAUSS, 1995). Pretendo, com isso, não apenas apropriar-me dos rendimentos teóricos dessa posição para uma compreensão das relacionalidades observadas sob o prisma do “faro policial”, mas posicionar-me politicamente sobre uma determinada antropologia que tem na divisão natureza e cultura um de seus mais importantes recursos de poder, desdobrado na relação sujeito e objeto22 (WAGNER, 2010). Ao abrir mão dessas assimetrias quero crer que pavimento o caminho, como norte ético-teórico de minha pesquisa, para um processo de afecção mútua, em que o ato criativo de inventar uma cultura para os meus interlocutores, não precise prescindir, para se edificar, de sua participação na invenção de minha própria antropologia.

BIBLIOGRAFIA ALBERNAZ, Elizabete (2009). “Deus e o Diabo na terra do sol”: visões de espaço público, ética profissional e moral religiosa entre policiais militares evangélicos do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado em Antropologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. ____________________ (2010). "Na fronteira entre o bem e o mal”: ética profissional e moral religiosa entre policiais militares evangélicos cariocas. Caderno CRH 23.60.

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A explicação de Viveiros de Castro (2002), nesse ponto, é bastante esclarecedora deste desdobramento lógico, ético e político da relação natureza e cultura para a relação sujeito e objeto. “Ainda quando antropólogo e nativo compartilham a mesma cultura, a relação de sentido entre os dois discursos diferencia tal comunidade: a relação do antropólogo com sua cultura e a do nativo com a dele não é exatamente a mesma. O que faz do nativo um nativo é a pressuposição, por parte do antropólogo, de que a relação do primeiro com sua cultura é natural, isto é, intrínseca e espontânea, e, se possível, não reflexiva; melhor ainda se for inconsciente. O nativo exprime sua cultura em seu discurso; o antropólogo também, mas, se ele pretende ser outra coisa que um nativo, deve poder exprimir sua cultura culturalmente, isto é, reflexiva, condicional e conscientemente” (:114).

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